INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Campo Grande – MS
A INDIVIDUALIZAÇÃO DA CRIANÇA NO CONFRONTO ENTRE A
AUTORIDADE E A TÉCNICA
Flávio Roberto Meurer
Mestrando em Comunicação e Informação na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]
Resumo : o presente texto é uma tentativa de entender as condições subjetivas que dão espaço
para o surgimento de uma relação convergente entre a criança e a lógica do sucesso. Para isso,
procedemos a uma busca na história da infância e da família que nos mostrará o papel desta
última na socialização daquela. Com a progressiva invasão da técnica ao cotidiano familiar,
através dos especialistas em comportamento e dos fenômenos de indústria cultural, a
autoridade parental, que preservava a individualidade, fica enfraquecida. A subjetivação passa
a se dar novamente num espaço público, governado por uma autoridade anônima e dispersa.
Assim, o sucesso pode se estabelecer como valor. Este trabalho é parte de minha dissertação
de mestrado, que pretende, a partir do material histórico e teórico que é em parte aqui
descrito, analisar o programa Gente Inocente?! como articulador dessa nova realidade.
Palavras-chave: indivíduo, infância, autoridade
Jurandir Freire Costa nos chama a atenção para uma crise dos valores, orientados
atualmente pelo que ele chama de “ideologia do bem-estar”, onde o que conta não é a virtude,
mas sim o sucesso e a visibilidade proporcionados e explorados pela publicidade, que
desconsidera a divisão entre público e privado, entre fatos e valores. “O sucesso tornou-se um
meio ‘naturalizado’ ou ‘socializado’ de construção de identidade pessoal. A diluição do
sujeito na moral do consumo e do mercado faz do sucesso uma das poucas condições de posse
da admiração do outro” (Costa, 1994, pp. 46-7).
O diagnóstico de Costa nos parece vá lido de ser trazido para a discussão de fenômenos
cada vez mais comuns nos dias de hoje. A mídia constantemente nos oferece imagens de mães
e pais que levam seus filhos e suas filhas às agências de modelo, aos testes para papéis em
telenovelas, aos programas como Gente Inocente. O sucesso midiático (como modelo, ator,
cantor ou mesmo jogador de futebol) tornou-se, entre outros aspectos, uma alternativa de
carreira profissional num mundo em que o trabalho estável foi transformado em rotina
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desgastante, sendo incapaz de render os frutos emocionais e materiais desejados. As revistas,
os programas de TV, os jornais “populares”, todos freqüentemente trazem as histórias de
pessoas pobres que chegaram ao sucesso graças ao seu talento, pois encontraram no meio
artístico uma saída para sua situação de pobreza.
Esta demanda social tem sido dirigida de forma cada vez mais precoce e explícita aos
sujeitos. Além disso, as resistências a tais direcionamentos tornam-se frágeis, já que os
lugares onde poderiam ocorrer ficam expostos à mesma lógica. Este trabalho é parte de minha
dissertação de mestrado, ainda em andamento, que pretende analisar o programa Gente
Inocente a partir de um contexto específico de relações entre o sujeito infantil e o sucesso
midiático. Para isso, compreendemos a necessidade de entender as mediações entre o
indivíduo e as demandas sociais, realizadas por instituições como escola e família. Portanto, é
importante nessa relação o processo de individualização da criança, seus conflitos com a
autoridade, e a possibilidade que ela visualiza de desvincular-se dos parâmetros colocados
pela tradição. Não nos aprofundaremos aqui na análise propriamente dita do programa; tratase antes de uma tentativa de situar o surgimento de um sujeito infantil sobre o qual a lógica do
sucesso não se coloca de forma imposta ou manipuladora, mas também converge com seus
interesses.
Partimos da idéia de que o Gente Inocente?! faz a mediação e a articulação – através
da linguagem televisiva – de um tipo de relação social vigente que diz respeito à infância,
enquanto elemento interno e indispensável à construção da subjetividade moderna. Se
continuamos a produzir formas culturais para representar os seres infantis, é porque
necessitamos deste tipo de noção. Sandra Corazza sugere, em seu artigo “As gentes pequenas
e o indivíduo,” que a modernidade produziu um arsenal de produtos culturais com o fim de
manter a infantilidade como dispositivo de construção do sujeito moderno (Corazza, 1997).
Poderíamos mesmo dizer que a idéia de infância é intrínseca à modernidade, pois no
seu seio foi gerado este conceito, não necessariamente como uma passagem abrupta da
indiferença ao afeto pela criança, mas pelo que Philippe Ariès chamou de “sentimento de
infância” (Ariès, 1981), uma consciência de diferenças qualitativas entre crianças e adultos. A
infância é um conceito histórico – portanto, que não existiu desde sempre ou da mesma
maneira em qualquer tempo – que é indissociável da noção de privacidade. A partir do século
XVI dá-se a mudança de uma confusão entre os domínios público e privado para uma
separação mais nítida entre eles. É nesta esta época que a família muda de sentido: já não é
apenas uma unidade econômica, mas torna-se lugar de refúgio, onde se escapa dos olhares de
fora. É o lugar de afetividade, onde se estabelecem relações de sentimento entre o casal e os
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filhos, o lugar de atenção à infância (Ariès, 1991). Ariès define assim uma problemática que
reduz a história da vida privada a uma mudança na sociabilidade: “uma substituição da
sociabilidade anônima – da rua, do pátio do castelo, da praça, da comunidade – por uma
sociabilidade que se confunde com a família, ou ainda com o próprio indivíduo” (idem, p. 16),
já que a família se tornará a primeira e a principal mediação entre indivíduo e sociedade.
Quando, a partir do século XVI, Igreja e Estado começam a intervir no sistema
educativo (revelando a intenção desses setores de controlar o conjunto da sociedade), reforçase a diferença entre os âmbitos particular e público. Essas instituições pretendiam fazer valer
as novas normas de conduta que apregoavam uma racionalidade contrária aos instintos
naturais. Assim, a nova forma de educação contou logo com a adesão dos pais, “e deve seu
êxito ao fato de moldar as mentes segundo as exigências de um individualismo que cresce
sem cessar. [Portanto], não existe contradição entre a ‘privatização’ da criança no âmbito da
família nuclear e a educação pública que lhe é dada” ( Gélis, 1991, p. 324). Além disso, Igreja
e Estado divulgavam modelos de infância que, por serem inacessíveis, reforçaram a
emergência da criança enquanto indivíduo na sociedade ocidental (idem, p. 325).
A afirmação desse “sentimento de infância” (moderno) no século XVIII é indício de
uma nova atitude em relação ao corpo e à vida, e teve seus reflexos na infância. Um
individualismo crescente e a preocupação com o desenvolvimento da criança, levavam os pais
(que nessa época já tinham maior poder sobre os filhos) a entregá-la à educação pública. A
criança tem sua individualização garantida pelas interseções da família e da escola.
A escola ensinaria a criança a fazer uso da razão – tão apreciada pelos idealizadores da
modernidade – como maneira de deixar seu estado de ignorância e atingir a “maioridade”
kantiana, quando se tornaria sujeito racional, livre e responsável por seu destino (Ribeiro,
1997). A modernidade representa, por isso, um período de “subjetivação do mundo”, que
consiste em colocar, entre o saber e o objeto, a figura do sujeito. Este estaria dotado de uma
capacidade reflexiva, uma estrutura unificada apta a acessar a verdade. Por isso a
subjetividade se dá como um subproduto da “busca da verdade” (Ghirardelli Jr., 1997, pp.
112-113).
Isso significa também que a mediação das relações entre as pessoas se torna mais
complexa, pelo alargamento de um espaço (subjetivo) entre elas, e pela consciência de uma
interioridade potencialmente presente em todas as pessoas. Essa individualidade presumida
implica formas de autocontrole, de internalização das normas sociais e de preservação de um
foro íntimo. Várias práticas serão desenvolvidas na direção da infância, na forma de um
constante ensinamento sobre a moderação e a vergonha. Neil Postman (1999) entende que
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sem uma noção clara de vergonha não pode haver infância, porque esse é um dos mecanismos
psicológicos e sociais que mantêm afastados os campos de experiência e conhecimento de
adultos e crianças.
“As crianças, em outras palavras, estão imersas num mundo de segredos
cercados de mistério e temor; um mundo que se tornará inteligível para elas
por obra e graça dos adultos que lhes ensinarão, por etapas, como a vergonha
se transforma num conjunto de diretrizes morais. Do ponto de vista da criança,
a vergonha dá poder e autoridade aos adultos” (Postman, op. cit., p. 100).
A família é a instituição que reúne cuidado e autoridade, amor e poder, sendo capaz de
criar o ambiente no qual a criança pode adquirir confiança nas normas sociais. É uma
mediação na qual a cultura é incrustada na personalidade do sujeito de forma que elas não
mais se distingam. Conforme Christopher Lasch, “a socialização faz com que o indivíduo
queira fazer o que deve fazer e a família é o agente ao qual a sociedade confia essa tarefa
complexa e delicada” (Lasch, 1991, p. 26).
Assim, podemos perceber dois processos confluindo: por um lado, uma racionalização
do mundo exterior, expressa no mercado mas também na educação; e por outro uma retirada
ao mundo familiar como proteção intermediária entre o mundo exterior e o indivíduo. A
afetividade e a autoridade presentes na família eram capazes de manter a relação entre os
homens distante da competição encontrada no mercado e na política (o mundo externo). A
família protegia a criança da identificação direta com as instituições sociais, e assim ficava
preservada a individualidade. A autoridade, neste caso, tinha um sentido moral , conforme a
análise que faz Horkheimer da família do século XIX.
“ Ao mesmo tempo que o princípio da autoridade paterna se estabelecia com
base no provedor econômico, na submissão das mulheres e das crianças
excluídas dos direitos econômicos e sexuais (...), a autoridade tinha também,
um outro sentido: a auctoritas, ‘ser autor de algo’, responder por algo que
depende de nós, mas de nenhuma maneira significa ‘possuir o poder’. Assim, o
pai era também o provedor moral, aquele que mostrava um caminho, dava a
palavra responsável” (Horkheimer in Matos, 1993, p. 58).
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Há porém um componente dialético intrínseco ao desenvolvimento da modernidade
que faz surgir contradições no progresso linear de seus pressupostos. A ascensão da sociedade
burguesa expandiu as fronteiras da liberdade, mas também gerou novas formas de
escravização. “A propriedade privada e a família nuclear, que no século XIX proporcionaram
novas bases para a liberdade política e a autonomia individual, guardavam dentro de si
elementos fatais à sua própria existência” (Lasch, 1991, p. 215). O isolamento da família
contra as agruras do mercado desde o início era precário. A maneira como a sociedade
capitalista se organizou a fim de continuar se reproduzindo levou ao desmoronamento das
instituições que ela mesma construiu. A racionalidade técnica invadiu o seio da família –
prejudicando a mediação que esta proporcionava entre indivíduo e sociedade – principalmente
por duas vias: ao organizar o lazer como um indústria e ao intervir na formação dos filhos
através dos especialistas em comportamento.
A crise da família tradicional, já no final do século XIX – revelada, por exemplo, pelo
aumento do número de divórcios –, permitiu o crescimento de importância das chamadas
profissões assistenciais na criação dos filhos. É quando a sociedade assume o papel de “mãe
provedora” e toma para si muitas das funções da família, principalmente no que se refere a
questões de saúde física e mental. A relação entre a desautorização paterna e esse fenômeno
se dá como um círculo vicioso.
“A difusão da nova ideologia de bem-estar social teve o efeito de uma profecia
auto-realizada. Ao convencer a dona de casa e, finalmente, até mesmo seu
marido, que confiasse na tecnologia e nos conselhos de especialistas externos,
o aparato do ensino em massa – sucessor da Igreja em uma sociedade
secularizada – minou a capacidade da família de prover-se a si mesma e assim
justificou a contínua expansão dos serviços de saúde, educação e bem-estar”
(Lasch, op. cit., p. 41).
Os médicos, assistentes sociais, pedagogos, psicólogos, psiquiatras começam a intervir
diretamente na formação dos filhos e na sua socialização. A ciência e a tecnologia modernas
tinham tomado o lugar da tradição no ordenamento da vida doméstica, tornando-se uma nova
religião, a religião da saúde que, como qualquer outra, reivindicava para si os direitos sobre a
virtude e a verdade. “Desde o início, uma concepção médica da realidade subjaz aos esforços
no sentido de remodelar a vida privada” (idem, p. 219).
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Esse fenômeno coincide com a formação e consolidação da chamada indústria
cultural. O termo “ exprime um movimento real do capitalismo moderno como um todo sob o
aspecto dos valores e da subjetividade encarnada nos indivíduos e nas instituições (...)”
(Rüdiger, 1999, p.30). Ou seja, indica como a nova fase do capitalismo invade a constituição
da subjetividade e como os valores passam a ter um fundamento econômico e a “ser operados
de maneira instrumental” (idem, p.15). Pode-se dizer que tal processo teve início devido a
uma mudança estrutural na sociedade já a partir da virada do século XIX para o XX. Segundo
Adorno (1994), ele se deu pela coincidência de diversos fatores, como o desenvolvimento das
técnicas e também a forte concentração econômica e administrativa. E ainda, como coloca
Rüdiger, porque “surgira (...) uma cultura popular industrial, de cujos esquemas, pouco a
pouco, passou a depender a formação da subjetividade da maioria da população” (Rüdiger,
1999, p.15).
Baseada num princípio econômico e administrativo, a cultura perde muito de sua
capacidade de se opor à normalização do homem (Adorno, 1971). O projeto da modernidade
levou à extrema racionalização da vida, gerando o oposto do que previram seus idealizadores.
“A racionalidade teria subjugado a subjetividade ao invés de levá-la à auto-realização antes
intencionada” (Markert, 1986, p. 308). É assim que Adorno irá pensar, em Minima Moralia, a
extinção do “indivíduo autônomo” na “sociedade administrada”, a sociedade atual. A
autonomia do indivíduo é própria da modernidade liberal – ainda que, de fato, possa não ter
existido. Ela importa enquanto ficção social, enquanto horizonte ideológico presente no
processo de subjetivação do homem moderno. Segundo Adorno,
“o sujeito em si já não existe, embora continue existindo como sujeito para si;
isto é, na falta de uma nova subjetividade, o homem continua acoplando suas
experiências individuais à sua velha noção de sujeito – o indivíduo seguro de
sua autonomia –, mesmo que se saiba o quanto essa noção é um fantasma em
um mundo em que a autonomia é impossível ” (Adorno in Ghirardelli Jr, 1997,
p. 122).
No século XX, a família já não participa da mesma maneira da formação do indivíduo,
que fica entregue, desde a infância, a condições precárias de subjetivação. Se a possibilidade
de autonomia é quase nula, sua idéia (ou ideologia) se espalha no âmbito da indústria cultural.
O processo de expansão dos meios de comunicação e dos bens massivos de consumo
radicalizou-se a partir da década de 1950, passando a atingir também um público específico: a
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juventude. Hobsbawn (1995) destaca a transição para uma nova posição do jovem na
sociedade pelo fato de que começava a representar uma massa com poder de compra. Ao
entrar mais cedo no mercado de trabalho, numa época de pleno emprego, o jovem do pósguerra (pelo menos nas economias desenvolvidas) alcança uma prosperidade que seus pais
jamais tiveram. Assim, dispõe de dinheiro suficiente para comprar seus próprios produtos,
inclusive aqueles de uma cultura popular florescente, como discos, entradas de cinema,
ingressos para shows, roupas da moda etc. . Porém, “se os adolescentes estão entrando cedo
no mercado de trabalho, têm dinheiro e se tornam consumidores, esse fenômeno não se reduz
apenas a um gesto mercantil mas indica todo um contexto transformador” (Capparelli, 1997,
p. 48). Começa a se dar uma mudança na própria estrutura da família e na maneira de se
entender a criança e o adolescente. Diferentemente do que ocorria em outras épocas, a
juventude desse período passa a ser vista “não como um estágio preparatório para a vida
adulta, mas, em certo sentido, como o estágio final do pleno desenvolvimento humano”
(Hobsbawn, 1995, p. 319).
O fenômeno do consumo abrange, no final da década de 1970, não só o adolescente,
mas também a criança, que passa a ser entendida como um crescente mercado consumidor.
Pelo menos nos países desenvolvidos, as crianças foram deixando de ser filhos de clientes
para se tornarem o próprio cliente, merecendo esforços de marketing de exclusivos
(Capparelli, 1998, p. 155). Para tornar-se mercado consumidor, o segmento criança precisa
preencher alguns requisitos, como o tamanho, a habilidade para comprar, o desejo ou
necessidade por um produto, a autoridade para adquirir um produto específico, um
entendimento do que é dinheiro, e a disposição para partilhar seu dinheiro (Pecora, 1998, p.
8). Assim, as crianças menores passam a ter também produtos televisivos, brinquedos,
alimentos, todos dirigidos especificamente a elas.
A ascensão do “poder jovem”, incentivado pela cultura de massa, desestrutura as
relações entre os jovens e os mais velhos. Isso porque as informações necessárias à
sobrevivência não ficavam mais restritas à escola (instituição governada por adultos), mas
encontravam-se também no cotidiano, povoado pela comunicação de massa. O saber
depositado no sistema escolar não tinha mais tanta importância, pois “as responsabilidades
formativas da juventude [vinham] se transferindo da escola para uma cultura de consumo cujo
sujeito não é mais a pessoa maturada pelo saber, mas o próprio jovem (pós-moderno)”
(Rüdiger, 1999b, pp.107-8).
Este não respeita mais as imposições disciplinares, que são vistas, mesmo entre os
adultos, com maus olhos. Na década de 50, os pais já tinham assimilado o novo ideal de
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“amizade” como referência na relação com os filhos. A grande influência que as técnicas de
comportamento tiveram na ideologia familiar levou os pais a um recuo na sua posição de
autoridade e a uma dependência cada vez maior dos “conselhos” dos especialistas, cujas
orientações são muitas vezes conflitantes e se desdobram conforme modismos médicos.
Circula a idéia de que a saúde mental (atual e futura) dos filhos é resultado de uma série de
atos bem ordenados, de acordo sempre com a moral da vida saudável, aumentando a
responsabilidade dos pais sobre o futuro da criança. Assim, parece natural que eles recorram a
ajuda externa em momento críticos.
A ideologia permissiva também levou os pais a não imporem mais seus gostos a seus
filhos; esta tarefa cabia agora aos colegas destes. O mundo externo entra no privado pela
influência dos pares, dos grupos de adolescentes, que têm um modelo próprio de gosto e de
ideal de paternidade, formulado nos seus ambientes auto-referentes de consumo e via meios
de comunicação. “A criança aprende com o rádio, os quadrinhos e o cinema [e a televisão]
como devem se comportar os pais, e coloca este ideal acima deles. Ela desenvolve um precoce
domínio do mundo externo e, na medida em que a conduta dos pais não corresponde ao ideal,
torna-se até certo ponto auto-suficiente. Antes, os pais é que eram auto-suficientes. Agora eles
são inseguros, ficam na defensiva e hesitam em impor seu próprios padrões aos jovens”
(Lasch, 1991, p. 168) .“O domínio dessas informações dá [à criança] uma vantagem tática
importante nas negociações com seus pais” (idem, p. 222). O respeito à autoridade não remete
mais a preceitos morais abstratos, mas passa a se basear numa série de negociações entre o
mundo e as regras familiares.
Os profissionais da saúde e grupo de adolescentes (autônomo em função do consumo)
procuram impor sua visão de mundo, e os pais, para que não percam o afeto de seus filhos,
vêm-se obrigados a realizar concessões. “As relações no interior da família tornaram-se
semelhantes às relações no resto da sociedade” (idem, ibidem). Desmorona, dessa forma, a
autoridade enquanto recurso subjetivo, porque o mundo exterior invade a vida privada.
Porém, essa dissolução não gera uma liberdade mas novas formas de dominação,
principalmente em relação à técnica, tornando o homem uma extensão dela. A forma
mercadoria, ao invadir a cultura e fundir-se com ela, transforma as relações sociais numa
espécie de mercado no qual o valor de troca predomina. Mesmo as referências ao poder são
sempre questionadas em favor do espírito calculista e racionalista: “a arte de governar tornase a arte das relações públicas e da administração de pessoal” (idem, p. 233).
Para que possa surgir uma criança cuja relação com o sucesso se tornou tão
“naturalizada”, é preciso que se entenda como essa criança voltou a ter o espaço público como
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ambiente de socialização. Sua subjetivação se dá cada vez mais por vozes desencarnadas,
anônimas, como o consumo e os fenômenos de indústria cultural. Estes apontam para
necessidade de indivíduos que possam se guiar por si mesmos, e por isso colocam a
autonomia individual como uma possibilidade e um objetivo a ser alcançado. Porém, os
recursos que disponibilizam ao sujeito não são capazes de efetivá-la. O homem da
modernidade tardia vive a ilusão de uma individualidade sem substância.
“Sua ‘livre escolha’ é a escolha de marcas como consumidor, sua liberdade de
consciência é a liberdade de desconfiar de tudo, um cinismo profundo que
simplesmente o expõe mais facilmente à fraude. Em mundo no qual nada é
verdade (e em que a simples idéia de verdade cede lugar à de credibilidade),
tudo é ‘certo’. Assim, o ceticismo coexiste com uma confiança ingênua nos
‘especialistas’”. (Fromm, in Lasch, 1991, p. 125).
A modernidade idealizou o indivíduo consciente de si, mas acabou se enredando em
suas próprias contradições. O capitalismo transformou a cultura e a formação em um bem de
consumo barato; a ciência e a tecnologia invadiram a família, desestabilizando a autoridade
dos pais; em suma, as práticas e instituições modernas desgastaram-se e pouco têm a ver com
a realidade contemporânea. As relações entre adultos e crianças que se dão neste contexto
permitem que o sucesso seja internalizado como valor. O auto-controle, do qual o indivíduo
lança mão nos dias de hoje – e de maneira cada vez mais precoce, visto que alcança também
as crianças –, aponta para o sucesso como quase uma necessidade para reconhecimento pelo
outro. Assim, é ensinada às crianças a melhor maneira de posicionar-se frente às câmaras, de
segurar o microfone, de comportar-se como uma estrela. Só dessa forma poderá obter o
reconhecimento esperado.
Neste sentido, é possível pensar um programa como Gente Inocente?! como um dos
articuladores desse processo. A modernidade produziu a idéia de infância e a “condição
infantil como um elemento moral de subjetivação” (Corazza, 2000, p. 49). É como se
precisássemos manter essa idéia circulando, até pela necessidade que nós adultos temos de
idealizar um futuro, objetivado na criança. Projetamos nela os nossos sonhos frustrados, e
valorizamos seus traços narcisicamente, de forma que ela jamais poderia corresponder ao
ideal sem a perda de sua subjetividade (Fernandes, 1997).
Gente Inocente?!, ao elaborar uma visão da infância, serve como modelo de
identificação e de veículo da linguagem do sucesso como parâmetro das relações pessoais.
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Porém, o que se torna digno de atenção é como esta lógica passa despercebida, justamente,
por encontrar reflexo nos subjetivação em operação na cultura atual. As crianças que ali
aparecem não precisam ceder à imposição narcisista dos pais para que desempenhem um bom
papel no concorrido e rigoroso meio artístico. Pois, como coloca Francisco Rüdiger, “o
poderio mais formidável não se exerce apenas quando os homens, embora saibam como e
porque são dominados, não mais se importam; se dá antes quando coincide de todo com o
corpo e a alma do sujeito” (Rüdiger, 2000, p. 11).
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