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O CONCEITO DE PESSOA1
Os antigos concílios definiram que em Deus há três pessoa na unidade de natureza. Não
deram, porém, uma definição dogmática sobre o conceito de Pessoa ele mesmo, não o
fixaram, quanto aos seus elementos, com a infalibilidade com que o tinham fixado como
próprio para significar o que em Deus é trino. As circunstâncias de então, as
controvérsias doutrinárias e as dificuldades da Igreja reclamavam que se fixasse: o que
faz com que Deus seja Deus é a essência, natureza, substância (ousia, physis) – e tudo
isto em Deus é rigorosamente, matematicamente, numericamente um. A trindade está nas
pessoas (hipóstasis, prósopon – persona, suppositum).
A falta de uma definição de pessoa, que à primeira vista é bastante estranha e contrária
ao uso dos teólogos, os quais supõem cada qual o seu conceito de pessoa nas antigas
definições, aparece claramente atestado por S. Agostinho, que certamente sabia o que
significavam as definições, uma vez que era contemporâneo das grandes controvérsias
trinitárias, que precederam os concílios de Constantinopla (381) e Éfeso (431); não teve
em mãos as definições deste concílio, pois faleceu em 430; os “15 libri de Trinitate” foram
terminados em 416, mais ou menos; nas retratações, escritas no fim da vida, nada mudou
a respeito do conceito de pessoa). Examinando a terminologia, diz: o que os gregos
chamaram de “hipóstase – substância” os latinos chamaram de “pessoa” (De trin. Lib. VII,
cap. 7). Indagando em seguida qual o sentido do termo, não dá nenhuma explicação que
vá além de fixação de termos (cf. De Trin. Lib. VII, cap. 7-12): não se encontra nem
mesmo o resquício de uma definição metafísica do conceito de pessoa. A “Summa
Summarum” de quanto pôde dizer está nesta frase:
Dizendo que os três em Deus são uma essência, e um Deus, porque não dizemos também que são
uma pessoa, mas dizemos que são três pessoas? O único motivo parece ser que nos decidimos a
reservar ao menos um termo para exprimir o sentido em que dizemos existir Trindade, pois sem isto
não teríamos resposta quando nos perguntam: três o quê? De trin. Lib. VII, cap. 11).
Lembra que não faz tanto tempo assim que se começou a reservar este termo para esta
significação, quando antes se supunham outros sentidos (op. cit.)
Depois de S. Agostinho multiplicaram-se as reflexões sobre o conceito de pessoa e hoje
em dia é dos mais tratados na filosofia. No entanto, se aplicássemos a Santíssima
Trindade os sentidos em que o termo é tomado nas filosofias modernas, chegaríamos às
heresias antigas do triteísmo, do monarquianismo, do sabelianismo, do
subordinacionismo, do arianismo e a muitas novas. Fala-se de “pessoa” e pensa-se
numa realidade de ordem psicológica, que existe em certos indivívuos humanos, faltando
em outros; outras vezes pensa-se numa realidade de ordem moral, identificando-se
“pessoa” com livre arbítrio ou com o seu uso forte e decidido, dizendo que certos
indivíduos desenvolveram sua “personalidade”, outros não; outras vezes pensa-se numa
realidade de ordem física, identificando-se os conceitos de “pessoa” e de “indivíduo”, ao
menos quando se trata de naturezas racionais. Para aplicação na Ssma. Trindade, porém,
só pode servir um conceito de origem metafísica. Segundo Boécio, nesse nível se deve
dizer que a substância individual de uma natureza racional é pessoa: “persona est
rationalis naturae individua substantia” (De duabus naturis, cap. 3). Santo Tomás soube
introduzir as necessárias distinções na análise desta definição, a fim de evitar a heresia,
de que em Deus a natureza, enquanto natureza – substância, natureza, essência
formalmente –, é pessoa (cf. Sent. I, d.25, q. 1, art. 2; S. Theol. I, 29,3; de Pot. q. 9, a.3 –
para omitirmos as conceitualizações das questões disputadas De verbo incarnato, e que
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Escrito inédito de Fr. Constantino Koser, como parte de um livro ou estudo sobre o conceito de trindade em Duns
Scotus.
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não concordam com esta definição). Supondo-se, como supunha S. Tomás, que nossos
conceitos, para serem aplicados a Deus, devem ser considerados análogos por analogia
de proporcionalidade e que por isso o que lhes corresponde em Deus é essencialmente
diferente, havendo apenas uma semelhança indeterminável e impossível de ser abstraída
do conceito, nada impede de admitir estas distinções e diferenças, sem abandonarmos o
conceito.
Ricardo de S. Vítor, antes de S. Tomás, havia tentado modificar os termos da definição de
Boécio, a fim de adaptá-la melhor ao mistério trinitário. Não dizia que a pessoa é a
substância, mas transferia o constitutivo da pessoa para o campo existencial: ser pessoa
é um modo de existência. Esse modo se caracteriza pela propriedade de ser de tal modo
“in se” e fechado sobre si mesmo, que uma comunicação deste modo a outros indivíduos
é impossível. Assim introduziu a idéia da incomunicabilidade no conceito de pessoa.
Pessoa, para ele, é um modo incomunicável de uma natureza existir – e por sinal cabe só
a naturezas racionais. Porque definiu o conceito diretamente para o mistério trinitário,
formulou do seguinte modo: “Pessoa é a existência incomunicável da natureza divina”
(persona est divinae naturae incommunicabilis existentia, cf. De Trin., lib. IV, cap. 22).
Será então que em Deus existem três existências? Não é este o sentido da definição
ricardiana; antes: não existem em Deus três existências, mas três modos de existir. Nem
por isso cai na heresia do modalismo, pois afirma que esses três modos são simultâneos
e eternos, intradivinos e não manifestações para fora. Nem por sombra pensou em modos
sucessivos e passageiros. Esta definição de Ricardo de S. Vítor foi adotada por Alexandre
de Hales e por São Boaventura.
Duns Escoto a tomou como ponto de partida e é tudo que tem em comum com Ricardo.
Preocupou-se demoradamente com a comunicabilidade, tentando determinar melhor o
sentido deste elemento da definição. Como se vê, situou-se numa linha de evolução
diferente da de S. Tomás – mas pelas análises a que procedeu acabou também bastante
distanciado de Ricardo de S. Vítor, Alexandre de Hales e S. Boaventura. Sua doutrina
trinitária em todos os pormenores supõe o conceito de pessoa que elaborou. É de uma
coerência impressionante com a sua definição. Daí nascem quase todas as diferenças de
doutrina entre tomismo e escotismo. Aliás, os teólogos costumam proceder deste modo,
uns com maior coerência, outros com coerência precária: isto é, de partirem de um
conceito de pessoa e de interpretarem os dogmas trinitários em função deste conceito.
Não se pode, pois, incriminar Duns Scotus de ter feito a mesma coisa. Mas, para entender
corretamente o seu pensamento trinitário, ninguém pode passar-se de acompanhá-lo nas
análises por vezes muito subtis do conceito de pessoa. Isto justifica a relativa largueza
que concedemos nestas páginas a estas análises.
As reflexões de Duns Scotus sobre o conceito de pessoa partem da definição de Ricardo
de S. Vítor, e aí começam no ponto em que este, na definição boeciana, substitui a
palavra “substância” por “existência”. Duns Scotus admite como certo que, quando
alguém diz “pessoa”, pensa numa natureza racional individualizada. Acontece, no entanto,
que dizendo “pessoa” não se visa esta natureza racional individualizada “in recto” e
formalmente. Pelo contrário, pensa-se que esta natureza racional é “possuída” e isto “por
alguém”. Este “alguém” é a pessoa e cabe-lhe “incomunicabilidade”. A esta altura diz
Duns Scotus:
Tenho minhas dúvidas sobre se o termo “pessoa” significa a existência como formalmente idêntica
com a incomunicabilidade, ou se é assim que “pessoa” propriamente só significa a
“incomunicabilidade”, e a existência só entra no conceito como designativo do modo de possuir a
existência. Se assim for, a definição deverá ser: pessoa é incomunicabilidade, que possui existência
em uma natureza racional individual.
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Persona non tantum dicit incommunicabilitatem, sed dat intelligere naturam intellectualem in qua est,
sicut individuum in natura communi. Dubito tamen, si dicat existentiam formaliter cum duplici
incommunicabilitate, aut dicat tantum formaliter incommunicabilitatem, et existentiam in concreto
tanquam modum habendi naturam, ut sit sensus: persona est incommunicabilis habens existentiam
in natura intellectuali” (Oxon., lib. I, d.23, q.un., n.5, ed. Vivès, vol. X, 261b).
Nas obras de Duns Scotus não se encontra mais nada a respeito deste ponto, que,
levado avante, parece que teria sido muito fértil. Em todo caso, sobrepôs-se ele mesmo à
dúvida aqui acusada, supondo sem mais uma diferença entre pessoa e existência. Isto já
se vê pelo modo de distinguir pessoa e individualidade.
Individualidade e personalidade não se identificam, pois que em Deus são três as
pessoas, não há, porém, três indivíduos. É do domínio comum que Duns Scotus elaborou
uma doutrina própria sobre a individualidade e sobre o princípio de individuação. Seria de
esperar que tivesse aplicado os conceitos respectivos à doutrina trinitária. Não se
encontra, porém, uma aplicação explícita e “ex professo” em suas obras, apenas
considerações ocasionais. A diferença entre individualidade e personalidade para ele está
nisto: cabe incomunicabilidade diferente e maior à pessoa. Para ele, a individualidade
está constituída pela “haecceitas”. Isto significa que uma substância, seja material, seja
espiritual, se individualiza pelo fato de ser “haec”, não por “materia signata”. Se o fato de
ser “haec”, a haecceitas” é “quaedam entitas positiva actualis” para além da substância
completa, é um problema discutido entre os escotistas, havendo os que interpretam o
mestre num sentido, outros noutro. Para a doutrina trinitária, esta controvérsia entre
escotistas não é de importância. O que importa é que pela “haecceitas” a substância se
individualiza e adquire uma certa incomunicabilidade, que, porém, formalmente não
pertence à essência, mas precisamente ao indivíduo como tal. A esta espécie de
incommunicabilidade Duns Scotus dá o nome de “incommunicabilitas ut quod”. Lychetto
explica o sentido desta locução: “Significa que (na linha descendente dos conceitos, em
direção ao particular) nada existe de inferior, do qual se poderia predicar “in recto” (aquilo
que está individualizado), assim como se diz: “isto é aquilo” (Vivès, vol. VIII, 589). Neste
sentido os indivíduos não admitem uma predicabilidade, pois que não se pode aplicar a
sua noção a algo que na linha dos conceitos tenha uma extensão menor, exatamente
porque cabe rigorosamente só a um único “quod” – e assim possui a incomunicabilidade.
Acontece, porém, que a hipóstase ou em natureza racional a pessoa não é o ser
individual da natureza respectiva, mas se distingue da “haecceitas” respectiva: “Neque se
habet natura ad suppositum sicut ‘quo’ ad ‘quod’” (Scotus, Ordin. Lib. I, dist. 2, pars 2, q.1,
n. 378, ed. Vaticana, vol. II p. 345 lin.1). A prova inconcussa dessa asserção é um dogma:
na Encarnação uma natureza humana perfeitamente individualizada é realidade sem ser
pessoa humana (Scotus, Quodl., 19, art. 2, n.17, Ed. Vivès, vol. XXVI p. 286b). Por aí se
vê que a diferença entre individualidade e personalidade não é só de ordem lógica, mas
também de ordem ontológica, e que conseqüentemente, também a incomunicabilidade “ut
quo” é da ordem ontológica.
Mas na individualidade trata-se só de incomunicabilidade “ut quod”, pois a revelação do
mistério da encarnação e da Ssma. Trindade mostra que a natureza individualizada, sem
quebra desta incomunicabilidade “ut quod”, é comunicada: uma vez duas naturezas
individualizadas a uma pessoa, outra vez uma natureza singular, a três pessoas. Vê-se
que existe uma comunicabilidade dentro da incomunicabilidade “ut quod”. A
incomunicabilidade da pessoa se avantaja à da individualidade pelo fato de lhe caber
ainda esta outra incomunicabilidade que falta à individualidade: a pessoa é incomunicável
“ut quo” et “ut quod” (Scotus, Ordin., lib. I, dist. 2, parte 2, q.1, n. 378, ed. Vaticana, vol. II
p. 345, linhas 1-9; Quodl. 19, n. 13, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 279a). E é assim que a pessoa
se distingue da individualidade.
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Distingue-se também da natureza, muito embora coincidam pessoa e natureza “realiter”
no “suppositum per se” (Quodl. 19, n.11, Ed. Vivès, vol. XXVI, p. 277-8). “Suppositum per
se” é a personalidade que corresponde à natureza em questão (loc. cit. e também ibid.
n.21). Muito embora coincidam assim “realiter” natureza e pessoa no “suppositum per se”,
não se identificam inteiramente. É que a pessoa não se constitui como pessoa pela
natureza – exemplo: “este homem não é pessoa por ser homem” – mas pelo “quo” próprio
da pessoa: “Este homem é pessoa por ser pessoa, pela ‘suppositalitas’” (Ordin., lib I, dist.
2, parte 2, q.1, ed. Vaticana, vol. II, p. 345, lin. 1-9). Esta incomunicabilidade “ut quo”,
pois, distingue a pessoa tanto da natureza, quanto da individuação da natureza.
A dupla incomunicabilidade, “ut quo” e “ut quod”, é para Scotus o elemento distintivo da
pessoa. Volta a estas duas incomunicabilidades todas as vezes que deseja determinar
exatamente o que vem a ser pessoa. O que significam? Não é fácil apanhar bem o seu
sentido, exatamente porque a formulação é negativa. O que interessa é surpreender o
elemento positivo que está escondido na negação. Duns Scotus aplica o constitutivo da
pessoa tentando formular positivamente o que há na incomunicabilidade e enumera dois
modos de comunicabilidade.
1. Algo pode ser comunicado predicando o conceito superior do inferior – ou, dizendo as
coisas na ordem do ser: pode ser comunicado totalmente. Assim se predica a
“animalidade” da “humanidade” e deste modo está o “animal” no “homem”: inteiramente.
Este modo de comunicação tem seu limite extremo exatamente no indivíduo, e por isso o
indivíduo é incomunicável nesta linha de comunicação: aí está a incomunicabilidade “ut
quod”. Dir-se-á mais exatamente: esta é uma das espécies da incomunicabilidade “ut
quod”, pois que neste sentido se predica e é própria formalmente do indivíduo como tal,
não da pessoa – e a pessoa também possui uma incomunicabilidade “ut quod”, mas de
sentido diverso.
2. Algo pode ser comunicado como forma e acontece então que o que recebe é
aperfeiçoado por aquilo que recebe, tornando-se, porém, essencialmente outra coisa em
união com o que recebe: um “ens tertium”, diferente tanto daquilo que se comunica
quanto daquilo a que é comunicado. É esta a comunicabilidade “ut quo”. Nesse sentido a
individualidade, ou melhor, o indivíduo pode ser comunicado à pessoa, a natureza por sua
vez pode ser comunicada assim tanto ao indivíduo, quanto à pessoa. A pessoa ela
mesma porém não pode ser comunicada assim, e por isso lhe cabe a incomunicabilidade
“ut quo”, unida à incomunicabilidade “ut quod” (Scotus, Oxon., lib. I, dist. 23, q.un., n.4 e 6;
Quodl. 19, n. 13). Assim se entrevê o que há de positivo na formulação negativa da
incomunicabilidade.
Com isso, porém, o conceito de pessoa ainda não está perfeitamente delimitado. Duns
Scotus lembra que a alma de alguém que morreu e ainda não ressuscitou de fato não
está comunicada nem “ut quod”, nem “ut quo” – sem que por isso seja pessoa. Para ser
pessoa, pois, não basta a simples incomunicabilidade “ut quod” e “ut quo” de fato, é
preciso que acresça ainda a “aptitudo non dependendi”, ou a incomunicabilidade
apptitudinal. Esta incomunicabilidade, diz Duns Scotus, pode ser designada de “inclinatio
ad oppositum” ou “aptitudo ad contrarium”, isto é, onde existe só a aptitudinal, existe
simultaneamente a inclinação para ser comunicado (cf. Quodl. 19, n.19, ed. Vivès, vol.
XXVI, p. 287-8). O conceito da “aptitudinalitas” não está sendo muito usado na
neoescolástica, conquanto tenha sido de grande importância no período áureo. Para
interpretar corretamente este termo, antes de mais nada é preciso não confundi-lo com
mera possibilidade. O que é “aptum” para alguma coisa possui uma disposição interna
para aquilo para que é “aptum” – o que não se dá necessariamente com o mero possível.
O “non-aptum” por sua vez não só carece desta disposição interna, mas até possui uma
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disposição contrária àquilo de que se diz “non-aptum”. O ato correspondente neste caso
só pode ser conseguido com violência. Em terminologia teológica moderna diríamos que
aquilo para o que alguma coisa é “non-aptum” só pode ser conseguido por meio de
intervenção preternatural ou mesmo sobrenatural. A incomunicabilidade aptitudinal
significa não só a possibilidade de ser incomunicável, mas uma disposição interna para a
incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade aptitudinal por si só, sem a atual, por sua
vez não basta para que haja pessoa, como se vê no exemplo da natureza humana
individual em Cristo: possui a incomunicabilidade aptitudinal, não porém, a atual; Antes
está atualmente comunicada ao Verbo Divino. Só onde convergem simultaneamente
ambas estas incomunicabilidades existe pessoa (Quodl. 19, n.19, ed. Vivès, vol. XXVI, p.
287-8).
Resumindo, vemos que para que haja pessoa é necessário que se verifique a
incomunicabilidade “ut quo” e “ut quod”, e ambas tanto aptitudinais como atuais. Para que
haja pessoa, pois, é necessário que estejam realizadas quatro incomunicabilidades, e
nenhuma pode faltar sob pena de não estar realizada a pessoa: a incomunicabilidade “ut
quo” aptitudinal e atual, e a incomunicabilidade “ut quod” aptitudinal e atual.
Duns Scotus menciona ainda uma quinta incomunicabilidade que designa como “negatio
possibilitatis dependentiae” ou “communicationis” (Quodl. 19, n. 19, loc. cit.). Diz que esta
consiste na “repugnantia ad actum opositum” (loc.cit.). Dos textos que seguem nesta
questão quodlibetal 19 vê-se que se trata no caso da negação de potência obediencial
para a comunicação (cf. loc. cit. n. 20). Também esta incomunicabilidade pode ser “ut
quo” e “ut quod”. Não é da pessoa em geral, mas só da pessoa em Deus: é o
característico da pessoa divina enquanto divina. Em pessoas criadas não pode existir esta
incomunicabilidade suprema, pois que estas estão sempre sujeitas ao poder soberano de
Deus (loc.cit. n. 19-20).
É preciso prestar atenção para não perder de vista o sujeito da incomunicabilidade. Por
vezes se tem a impressão de que os autores a atribuem à natureza como sujeito,
entendendo que a natureza se torna pessoa pela incomunicabilidade. Isto, porém, não é o
que Duns Scotus ensina. Segundo ele, a natureza que é pessoa está tão longe de ser
incomunicável que de fato está comunicada tanto “ut quo” quanto “ut quod” – e isto á
pessoa. No caso pois existe também a comunicabilidade aptitudinal e atual sob ambos os
aspectos – as quatro comunicabilidades opostas diametralmente às quatro
incomunicabilidades que caracterizam a pessoa. A incomunicabilidade cabe
exclusivamente ao “quo persona est persona”, não à natureza. Só se pode predicar da
natureza enquanto esta é possuída pela pessoa e enquanto nela está a pessoa, não “in
recto”, e muito menos formalmente. Quando se fala de incomunicabilidade, pois, pensa-se
no “quo persona est persona”, a natureza está apenas conotada (cf. l Oxon. Lib.I, dist. 23,
q.un., n. 7, ed. Vivès, vol. X, p. 265; Cf. tb. o comentário de Lychetto para esta passagem,
loc. cit.).
Firmada esta doutrina, indaga-se: a quinta incomunicabilidade, a da “negatio possibilitatis
dependendi”, que Duns Scotus diz caber só à pessoa divina, também se entende
“persona quo persona”, ou neste caso a incomunicabilidade se refere à natureza? A
pergunta nasce da dificuldade de pensar numa comunicação, mesmo sobrenatural, de
uma pessoa a outra, na ordem metafísica em que aqui se fala de comunicação. No caso
da união hipostática da natureza humana de Cristo ao Verbo não se trata duma
comunicação de uma pessoa a outra, exatamente porque o dogma ensina que em Cristo
não existe pessoa humana. Este exemplo, pois, não pode explicar nem provar a
possibilidade de comunicação de uma pessoa a outra de modo preternatural ou
sobrenatural. O fato de a pessoa estar constituída de quádrupla incomunicabilidade
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parece excluir necessariamente a comunicabilidade, mesmo pela potência obediencial.
Não resta dúvida de que existe potência obediencial de ser supressa uma pessoa e a
natureza despersonalizada “per se” ser personalizada “in altera”. Não se trata então de
uma comunicação da pessoa, mas da natureza. Assim parece que a “negatio possibilitatis
dependendi” existe também para a pessoa criada. Duns Scotus de fato só atribui esta
última incomunicabilidade à pessoa divina, não à criada. Na frase em questão, passa
insensivelmente da pessoa divina para a natureza criada (sola persona divina habet
incomunicabilitatem primo modo (negatio possibilitatis dependendi)... natura autem
creata, licet in se ssubsistat, non tamen aliquid habet intrinsecum, per quod impossibilile
sit eandem dependere; et ideo sola persona divina haabet propiam personalitatem
completam, natura vero creata personata in re, non habet” (loc. cit. n. 20)). Assim parece
que há uma incoerência nesta determinação do sujeito da incomunicabilidade no sentido
de “negatio possibilitatis dependendi”.
Como quer que seja, Duns Scotus é explícito em ensinar que as quatro outras
incomunicabilidades se referem de fato à pessoa enquanto pessoa, e não à natureza. E é
explícito também em exigir para o caso de Deus ainda a quinta incomunicabilidade, a
“negatio possibilitatis dependendi”.
A pessoa em seu constitutivo formal é apenas incomunicabilidade? Duns Scotus faz
explicitamente esta pergunta e responde: “A pessoa não é só incomunicabilidade, mas dá
a entender ((connatat) também a natureza intelectual em que está...” e segue o texto, em
que manifesta a sua dúvida, sobre se o constitutivo da pessoa se identifica formalmente
com a existência, ou se de per si só significa a incomunicabilidade, conotando a
existência concretamente como o modo de possuir a natureza. Se assim for, resulta como
definição da pessoa: “Persona est incommunicabilis habens existentiam in natura
intellectuali” (Oxon. Lib. I, dist. 23, 1.un, n. 5, ed. Vivès, vol. X, p. 261b).
Se abandona aqui a questão da identificação ou distinção entre pessoa e existência, não
abandona tão depressa a questão do elemento positivo, constitutivo da pessoa. Afirma
explicitamente que a pessoa se constitui por um elemento positivo, que porém não pode
ser reduzido a conceito comum universal, por se tratar de um singular absoluto, tanto que
por exemplo o positivo constituinte da pessoa do pai difere do positivo consituinte da
pessoa do filho. O “quo persona est persona” portanto é um elemento positivo (Oxon. Lib.
I, dist. 23, q.un.; dist. 25, q.un. n. 1-2). Nessa questão da Ordinatio o ser pessoa para
Duns Scotus não é apenas a negação da comunicaabilidade, mas um elemento “ante
omnem actum intellectus”, “aliquod quod est in re”. Destas considerações pode-se tirar a
conclusão de que a incommunicabilidade quádrupla não é propriamente o constitutivo da
“persona ut persona”, mas uma propriedade decorrente do constitutivo – o constitutivo ele
mesmo seria outro, algo “ante omnem actum intellectus” e que possui existência real,
“aliquod quod est in re”, sem que possa ser formulado em conceito unívoco. Uma doutrina
aparentemente diversa se encontra no Quodlibet 19. Declara explicitamente que a
incomunicabilidade aptitudinal e atual pode estar concretizada sem suporte positivo, e que
isto de fato se dá na pessoa criada. Deduz isso do que se observa na união hipostática
(cf. n. 19). Na pessoa divina, porém, onde à quádrupla incomunicabilidade acresce ainda
a “negatio possibilitatis dependendi”, conforme doutrina também explícita de Duns Scotus,
a incomunicabilidade não pode estar concretizada sem um elemento positivo de suporte:
“Nulli simpliciter repugnat esse communicabile, nec tamquam communicabile dependere,
nisi sibi sit simpliter proprium aliquod positivum, quod sit ratio repugnantiae
communicabilitatis et dependentiae” (loc. cit. n. 20). Como porém só as pessoas divinas
possuem esta quinta incomunicabilidade, só elas possuem um elemento positivo e só elas
não são apenas a negação da comunicabilidade e comunicação: “Sola persona divina
habet incommunicabilitatem primo modo, quia entitatem aliquam intrinsecam simpliciter
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propriam , per quam sibi repugnat posse communicari... et ideo sola persona divina habet
propriam personalitatem completam...” (loc. cit. n. 20).
As duas exposições parecem contraditórias. Mas observando melhor percebe-se que o
Quodlibet é uma explicitação da Ordinatio e que não há oposição de doutrina. É que na
Ordin. Liv. I, d.e 3 Duns Scotus se refere exclusivamente à pessoa divina e não trata da
pessoa criada.
Conforme o Quodlibet 19, a pessoa criada não possui elemento positivo, mas está na
simples e chã incomunicabilidade quádrupla – a pessoa divina, porém, se constitui por um
elemento positivo, suporte da quádrupla incomunicabilidade, mais a “nagatio possibilitatis
dependendi”.
Resumo da doutrina de Duns Scotus sobre o conceito de pessoa. A definição que
encontramos em Duns Scotus é: “Persona est incommunicabilis habens existentiam in
natura intellectuali” (Oxon. Lib. I, dist. 23, q.un. n. 5 ed. Vivès, vol. X, p. 261b).
Comparando as várias definições de pessoa que exerceram profunda influência, notamos
a seguinte marcha evolutiva: “Persona est substancia...” (Boécio), “Persona est
existentia...” (Ricardo), “Persona est incommunicabilis habens existentiam... (Duns
Scotus). Os elementos comuns às três definições são: “natura rationalis individua”. Tanto
em Boécio, quanto em Ricardo nota-se a luta pela definição, mas os autores conseguem
resolver-se e apresentar a sua definição sem hesitações. Em Duns Scotus esta luta
aparece mais claramente, e do conjunto dos textos pode-se tirar a conclusão que a luta
para ele não terminou: refletiu muito, pesquisou, analisou, objetou, respondeu objeções –
e por fim não conseguiu um resultado suficientemente uniforme e completo. Não
conseguiu uma noção de pessoa comum a Deus e à criatura – não atingiu o conceito
“simpliciter simplex” de pessoa. Sua mira era conseguir um conceito que em nada
colidisse com os dogmas trinitários e cristológicos e que também estivesse em
conformidade com o que se observa na criatura. Não podia satisfazer-se com menos,
sem renegar a sua doutrina da univocação de quarto grau para todos os conceitos
capazes de serem aplicados a Deus e às criaturas. Considerando todo o conjunto de seus
enunciados respectivos, não se pode dizer que encontrou o que procurava. Os elementos
de valor estável, em sua doutrina sobre o conceito de pessoa parecem ser os seguintes:
1. os aprofundamentos das relações de identidade e distinção dos conceitos de natureza,
indivíduo e pessoa;
2. a enumeração, definição e distinção das várias incomunicabilidades que devem
competir à pessoa;
3. os pensamentos sobre a “negatio possibilitatis dependendi”, que só pode competir à
pessoa divina;
4. a asserção de que a pessoa em Deus é constituída por um elemento positivo, sujeito
das cinco incomunicabilidades – sem que exista a possibilidade de abstrair para este
elemento positivo um conceito universal;
5. a distinção entre os conceitos de pessoa e existência.
Capítulo 3o – A “non-identitas formalis”
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A doutrina da “non-identitas formalis” – assim dizia Duns Scotus, e não ”distinctio
formalis”, como depois disse a escola – é de importância capital para a doutrina trinitária,
e ao lado do conceito de pessoa e da univocação de quarto grau está por assim dizer
onipresente nas considerações do Subtil. Trata-se duma doutrina metafísica
extraordinariamente complexa e não é possível fazer dela aqui uma exposição exaustiva.
Limitamo-nos por isso à análise duma passagem, em que o próprio Duns Scotus
explicitamente e “ex professo” aplica esta distinção ao mistério trinitário. Aí colheremos
informações suficientes para compreender o seu pensamento trinitário.
A ponderação de que parte nessa passagem da Ordin. Lib. I, dist. 4, é a seguinte: “Não
parece inteligível que a essência não esteja multiplicada e as hipóstases sejam várias se
não se admitir uma distinção qualquer entre a razão constitutiva da essência e a das
pessoas. Sendo necessário afirmar a possibilidade (simultânea dos dados indicados), é
necessário refletir sobre essa distinção”
(“non enim videtur intelligibile quod essentia non plurificetur et supposita sint plura, nisi aliqua
distinctio ponatur inter rationem essentiae et rationem suppositi. Et ideo ad salvandam istam
compossibilitatem praedectam, oportet videre de ista distincione” (Ordin. Lib. I, dist. 2, parte 2, q.1
ed. Vaticana, vol. II, n. 388, p. 349).
Logo a seguir formula a sua sentença, mas com extremos de reserva: “E dito sem afirmar
e sem prejuízo de sentença melhor, que a razão pela qual o suposto é formalmente
incomunicável, e a razão da essência enquanto essência devem admitir uma distinção
que preceda qualquer ato de intelecção criada ou incriada” (“Et dico sine assertione et
prauidicio melioris sententae, quod ratio qua formaliter suppositum est incommunicabile,
et ratio essentiae ut essentiae habent aliquam distinctionem praecedentem omnem actum
intellectus creati et increati” (Ordin. Lib. II, dist. 2, parte 2, q.1, n.389, p. 349).
É preciso dar o devido realce à fórmula: “ante omnem actum intellectus creati et increati”.
Duns Scotus com estas palavras diz com clareza insofismável que a distinção em que
pensa deve estar “in re” e que não nasce da ação intelectual do sujeito pensante, não é
uma distinção de razão. Com isso se distancia clara e decididamente da “distinctio rationis
cum fundamento in re”. A fórmula do “ante omnem actum intellectus” é a chave para toda
a doutrina que é conhecida sob o nome de distinção formal. Cumpre notar ainda a reserva
com que se exprime: “sine assertione et praeiudicio melioris sententiae”. Na “Lectura”,
anterior à Ordinatio, não se exprimira assim com reserva, mas dissera afoitamente: “...
quia sic esse intellectus meus no dubitat...” (Ordin. Loc. cit. ed. Vaticana, loc. cit., nota).
Que argumentos tinha Duns Scotus para asseverar uma distinção “ante omnem actum
intellectus” entre a essência e as pessoas divinas? Vejamos primeiro as suas
formulações, depois expliquemos.
A primeira hipóstase possui formal ou realmente algo de comunicável, do contrário não poderia
comunicar; possui também uma realidade incomunicável, do contrário não poderia ser pessoa
positivamente numa entidade real. Entendo o “realmente” no sentido de que não se origina de
nenhum modo de inteligência atuada, mas que está entidade existiria aí, mesmo se nenhum
intelecto estivesse atuado. É isso o que chamo de “esse ante omnem actum intellectus”. – Ora, não
pode acontecer que uma entidade seja comunicável antes de qualquer ato da inteligência... e outra
entidade seja incomunicável antes de qualquer ato da inteligência... se não houver, também antes
de qualquer ato de inteligência, uma distinção entre esta e aquela realidade. Logo... (Primum
suppositum formaliter vel realiter habet entitatem communicabilem, alioquin non posset eam
communicare; habet etiam realitatem incommunicabilem, aliquin non posset esse positive in entitate
reali suppositum. Et intelligo sic “realiter” quod nullo modo per actum intellectus considerantes, immo
quod talis entitas esset ibi, si nullus intellectus consideraret, dico esse ante omnem intellectum. –
Non est autem aliqua entitas ante omnem actum intellectus ita quod non per actum intellectus,
communicabilis, ita scilicet quod sibi contradicat communicari, nisi ante omnem actum intellectus,
9
hoc est, non praecise per intelligere, sit alique distinctio inter hanc entitatem et illam; ergo” (Ordin.
Lib. I, dist. 2, parte. 2, q.1, ed. Vaticana, vol. II, n.390, p. 349-350).
Cumpre observar que Duns Scotus não deixa nenhuma dúvida sobre a sua doutrina,
quanto a isto: não se trata duma distinção de razão, nem mesmo com fundamento “in re”,
mas trata-se duma distinção objetiva, existente mesmo que não haja nenhuma atividade
intelectual. Analisemos o argumento. Deus Pai possui algo que pode...
divina. "Possuir algo" aqui significa um dado objetivo “transcendental”, no sentido de
existência propriamente dita e não só pensada. No mesmo sentido há também o que não
pode ser comunicado, isto: a personalidade, o "ser Pai", o "não ter origem em nenhum
sentido”. Isto são dogmas. Ora, não pode o mesmo dado simultaneamente ser
comunicável e incomunicável - e como a essência divina é simples, o “simil”
necessariamente deve ser tomado em sentido rigoroso. Logo deve haver uma distinção
entre estes elementos. Como, porém, a comunicabilidade e incomunicabilidade existem
antes de, e independente de qualquer ato de pensamento ("ante omnem actum
intellectus”), segue que também a distinção entre os elementos deve ser anterior a
qualquer ato de pensamento.
Uma segunda prova apresenta Duns Scotus: afirmando-se que no Pai entre paternidade e
essência divina antes de qualquer ato de pensamento não há distinção, então segue que
no Pai não existe nada que não seja comunicável, uma vez que a essência é
comunicável. Disto segue então que ou o Pai comunica ao Pilho a Paternidade ou que a
Paternidade não é um dado de ordem objetiva ("Si dicas, quod ante omnem actum
intellectus Patris non est ibi aliqua distinctio, sed est entitas omnino unius rationis, et ita
nullam entitatem positivam in se habet Pater quam non communicat Filio: ergo
communicat ei paternitatem sicut essentiam" [Ordin. lib. I, dist. 2, parte 2, q. 1, ed.
Vaticana vol. II, p. 391, p. 350). O argumento é tão claro em seus elementos, que não
necessita de explicação.
Mais complexo é o terceiro argumento. Duns Scotus parte da seguinte consideração: na
origem do Pilho o Pai, "origine prius”, conhece tanto a natureza divina quanto o "quo
suppositum est suppositum". Conhece a natureza divina como comunicável, conhece-o
elemento constitutivo da pessoa como incomunicável. Ora, admitido isto, existem duas
possibilidades: 1. o pai conhece estes dois dados como objetos de formalidade distintas,
ou 2. como o mesmo objeto formal sob modos diferentes de intelecção. Uma terceira
possibilidade não existe. Suponhamos o caso de o Pai conhecer a essência divina e o
constitutivo da hipótese como formalmente idênticos e as distinções como resultantes dos
modos diferentes de intelecção, que seguiria? Neste caso entre os dois dados não
poderia existir maior distinção que por exemplo entre Deus e divindade, isto é, entre o
concreto e o abstrato em Deus. Neste caso, porém, também não seria possível que o Pai
conhecesse o constitutivo formal da hipóstase como incomunicável e a natureza como
comunica, pois que estes dois atributos são objetivos, não resultam apenas de modos de
conhecer. Ora, o conhecimento que o Pai tem em qualquer hipótese é a simples verdade.
E seguiria, então, que ou a hipóstase seria comunicável ou a essência incomunicável não poderia a essência ser comunicável e a hipóstase incomunicável. A conclusão, pois,
seria que a trindade de pessoas na unidade de essência seria impossível com o que se
evidencia o erro da hipótese feita. Pelo que só resta a outra suposição, o Pai conhece a
essência divina e o constitutivo formal da hipóstase como objetos formais distintos. Uma
vez que isto deve ser assim e de fato assim é, pode-se continuar a refletir do seguinte
modo: Deus Pai ou Deus simplesmente também só possui conhecimento intuitivo, pois
que o conhecimento abstrativo, qualquer seja, é imperfeição. Ora, um conhecimento
intuitivo, desde que seja verdadeiro como deve ser o de Deus, corresponde perfeitamente
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àquilo que o objeto é em si e como existe de fato. Um objeto, porém, pode ser conhecido
intuitivamente de modo imediato em si mesmo, ou então em outro objeto que o contém de
modo eminente (eminenter) . Por isso os objetos conhecidos intuitivamente como
formalmente diferentes ou são tais que um contém o outro de modo eminente (eminenter
continet), ou cada qual dos objetos é termo do ato de intelecção em si mesmo
imediatamente. Vistos e admitidos estes dados, cumpre considerar que nas hipóstases
divinas nada do que as constitui formalmente pode estar de modo eminente em outro
objeto (non continentur in aliquo eminenter), pois neste caso nada mais seriam que ser
comunicado, quando são exatamente o contrário. Por isto não podem ser conhecidas em
conhecimento intuitivo de outro objeto que as contenha eminentemente - tal objeto não
existe. Logo, dai tudo o que constitui as hipóstases divinas em sua realidade formal e que
perfaz objeto formal de conhecimento intuitivo, é termo da intuição como objeto em si
mesmo imediatamente. Isto, porém, é exatamente a proposição de que antes de qualquer
ato intelectual são distintas (habent aliquam distinctionem ante omnem. actum intellectus)
(cf. Ordin. lib. 11 dist. 2, parte 2, q. 1, n. 390-394, ed. Vaticana vol. II p. 349-352).
Estas considerações e os argumentos feitos, pois, levam à conclusão de que entre a
essência e as hipóstases divinas deve existir uma diferença “ante omnem actum
intellectus”, isto quer dizer: uma diferença que não se funda no sujeito pensante, mas nos
dados existenciais transcendentes.
Que distinção será esta? É evidente que não pode ser distinção real, pois que esta supõe.
coisas distintas, o que a simplicidade divina exclui. Não se pode dizer, que as hipóstases
são cada qual uma “coisa” e a essência divina “coisa” também. Disto resultaria que em
Deus existem quatro “coisas” e em última análise chegar-se-ia a afirmar a existência de
quatro deuses. Nem se pode pensar numa distinção de coisas potenciais de “coisas” que
não sejam reais, uma vez que em Deus não existe nenhuma potencialidade (loc. cit. n.
400, ed. Vaticana, vol. II, p. 355)
São Boaventura, refletindo sobre esta distinção, deu-lhe o nome de distinção de razão (cf.
sent. Lib. I . dist.5, art.1,q.1, ed. Quarachi, vol. I, col. 113a; dist. 26, art. un., q.1, ad. 2, ed.
Quaracchi vol. I, col 453a; dist. 45, art. 2, q.1, i.c, ed. Quaracchi, vol. I, col. 804ab). Duns
Scotus comenta esta terminologia dum modo bastante estranho. Diz: “ratio” nestas
passagens não significa a atividade menta mas a “quidditas rei”, enquanto é objeto da
inteligência. “Distinctio rationisI, pois, neste caso significaria “distinctio quiditatis rei
secundum quod quidditas est obiectum intellectus" (Scotus, loc. cit. n. 401, ed. Vaticana
vol. II, p. 355).
Segundo Duns Scotus, poder-se-ia dar à distinção entre a essência e as pessoas divinas
também o nome de “distincio virtualis” (loc. cit. n. 402). Esta locução em Duns Scotus tem
um sentido diferente daquilo que significa no tomismo. Para o Subtil, significa uma
diferença “ante omnem actum intellectus”, enquanto que para os tomistas significa uma
diferença “post actum intellectus". Vê-se que o termo é praticamente equívoco, e mais:
significa não apenas coisas inteiramente distintas, mas até opostas. Por que Duns Scotus
deu tal sentido à locução? Diz que onde se verifica a distinção questionada, os objetos
diferentes não são “res et res”, mas "una res habens virtualiter sive praeeminenter quasi
duas realitates, quia utrique realitati ut est in illa una re competit illud quod est proprium
principium tali realitati ac si ipsa esset res distincta..." (loc. cit. n. 402).
Conquanto não considere erradas as expressões “distinctio rationis” e “distinctio virtualis",
no sentido em que as interpretou, acha contudo que não são muito apropriadas para
designar a distinção existente entre a essência e as pessoas divinas. Por isto as rejeita e
procura uma expressão mais adequada. Chama a atenção para os vários graus de
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unidade, ou mesmo espécies de unidade: ”unitas aggregationis ... ordinis ... per accidens
... per se ... simplicitatis” (loc. cit. n. 403). Graus ou espécies semelhantes também
existem para a identidade, e quando se fala em identidade não se pensa necessariamente
e sempre na formal. Para que haja identidade formal, estabelece as seguinte a condições:
“Voco autem identitatem formalem [illam] ubi illud, quod dicitur sic idem, includit illud cui
dicitur sic idem in ratione sua formali quidditativa per se primo modo” (Loc.. cit. n. 403). O
“per se primo modo" se refere ao "estar incluído". Para exemplificar: deste modo o
universal está incluído no particular, o predicado assim está incluído no sujeito e o sujeito
no predicado quando se trata de definições propriamente ditas. Incluído “per se", numa
formalidade, portanto, está aquilo que faz parte de sua definição essencial. Incluído “per
se primo modo" está alguma coisa em outra, quando o predicado não encerra em sua
significação nada que não exista no sujeito. Incluído “per se secundo modo", quando a
significação do predicado ultrapassa a do sujeito. Explicados assim os termos, vê-se que
para a identidade formal Duns Scotus reclama o seguinte: 1. os dois elementos, dos quais
se afirma, devem pertencer um à essência do outro; 2. na proposição em que é afirmada,
o predicado, com seus elementos materiais e formais deve estar inteiramente contido no
sujeito; 3. os dois pontos mencionados devem ser assim por necessidade essencial e por
essência.
Fixados estes conceitos, pode-se fazer a aplicação a Deus. É um fato que todos
concedem que a definição essencial de Deus não pode conter a definição formal das
propriedades da hipóstase e que a definição da hipóstase não inclui os elementos formais
da definição essencial da essência. Só assim se pode compreender que “ante omnem
actum intellectus” a realidade que é essência é comunicável, enquanto a hipóstase
enquanto hipóstase é incomunicável. Só assim se compreende que “esse essenciae”
exato e formal não é o “esse hypostaseos” exato e formal. Com outras palavras: entre
essência divina e hipóstase não existe uma identidade que corresponda aos elementos
necessários para...
De tudo isto segue que se deve admitir entre essência e hipóstase em Deus uma
distinção, e que a distinção que provém do pensamento não basta para satisfazer as
condições vistas. Como a distinção real também não pode ser admitida, é necessário
recorrer a uma terceira espécie de distinção. Na Escola Escotista esta recebeu o nome de
“distinctio formalis”. Duns Scotus pessoalmente não usou esta terminologia e se exprimiu
com extremos de cuidado. "É melhor dar preferência à formulação negativa, isto é: “isto
não é formalmente idêntico”, em vez de dizer: “isto se distingue assim e assim” (loc. cit. n.
404). Suas preocupações, porém, foram ainda mais subtis. Indagou: "Não será coerente
dizer: essência divina e hipóstase divina não são formalmente idênticas, logo são
formalmente distintas?” (loc. cit. n. 405). E respondeu: "Não, isto não é coerente, porque a
formalidade é afirmada numa e negada na outra" (loc. cit. n. 405), e entre o “nada” e o
“algo” propriamente não se pode dizer que há diferença, pois que a distinção é uma
relação que reclama dois extremos e não pode existir se um dos extremos não existe – e
o “nada” não existe.
Concluindo, diz Duns Scotus:
Breviter dico, quod in essentia divina ante omnem actum intellectus est entitas “a” (ratio qua
formaliter suppositum est suppositum) et entitas “b” (ratio essentiae ut essentiae), et haec formaliter
non est illa, ita quod intellectus Patris considerans “a” et considerans “b”, non habet ex natura rei
unde ista compositio sit vera: “a” non est formaliter “b”, non autem praecise ex aliquo actu intellectus
circa “a” et “b” (loc. cit. n. 406).
Que se há de pensar de tudo isto? Em todo o caso não se poderá deixar de "tomar em
consideração o modo extremamente diferenciado e reservado com que Duns Scotus se
12
exprimiu. As tentativas de refutação, feitas no decorrer dos séculos, não atenderam às
formulações subtis e às distinções extremamente delicadas, supondo uma doutrina bem
rudimentar e pouco diferenciada. Para discordar, é preciso antes de mais nada alcançar o
ponto em que Duns Scotus se situa. E situa-se, como se viu, mais que tudo na análise do
“fundamentum in re", tão pouco analisado entre os que afirmam a “distinctio virtualis" no
sentido tomista. Não será que, analisando o "fundamentum in re" com mais cuidado, se
chega a afirmações ao menos bem mais próximas das de Duns Scotus, do que as que
costumam ser feitas?
Uma questão grave que se justifica é: e a simplicidade infinita de Deus? Duns Scotus não
perdeu de vista esta verdade em suas investigações sobre a distinção entre essência e
hipóstase em Deus. Procedeu da seguinte maneira: é um fato indiscutível que também
para o conhecimento intuitivo de Deus existe em Deus algo que é comunicável e o que
não é comunicável. Como a ciência intuitiva de Deus corresponde à objetividade e não
nasce de abstração, segue que estas diferenças devem existir “in re", no próprio objeto, e
não podem derivar do sujeito pensante. Estas diferenças, porém, levam necessariamente
à afirmação de que em Deus o que é comunicável e o que é incomunicável não é
formalmente idêntico, pois que do contrário ou a ciência divina estaria labutando em erro
ou não seria ciência intuitiva. Disto segue, como conclusão indeclinável, que a essência
divina não é formalmente idêntica às pessoas divinas. Constando isto, e constando
simultaneamente a simplicidade infinita de Deus, segue que estes dois dados não podem
colidir. “Ista autem non identitas formalis stat cum simplicitate Dei, quia hanc differentiam
necesse est ponere inter essentiam et proprietatem, sicut supra d. 2, q. un. ostensum est"
(Ordin., lib. I. dist. 8, q. 4, n. 21, ed. Vivès, vol. IX, p. 667a); nesta distinção oitava, aliás,
Duns Scotus prova que esta “non identitas formalis” existe também entre os atributos
essenciais de Deus e que por conseguinte é um erro atender a simplicidade divina de tal
modo que se oponha a esta distinção).
Capitulo IV. A Univocação na doutrina da Ssma. Trindade
Capítulo V. Questões Trinitárias e suas respostas
As investigações sobre o conceito de Pessoa, a "Non-Identitas Formalis” e a Univocação
são como que de ordem geral e marcam a perspectiva da doutrina de Duns Scotus sobre
a Ssma. Trindade. Por isto era necessário dedicar-lhes maiores cuidados e mais espaço.
Seguem agora as várias questões, levantadas por Duns Scotus a propósito da doutrina
trinitária, com as tentativas de solução que fez. Mais uma enumeração, que uma
exposição, de acordo com o fito do presente trabalho. O que há de característico nestas
doutrinas quase sempre está nos argumentos e no modo de encaminhar a resposta por
etapas sucessivas de "posições-objeções-respostas" parciais. Expor tudo isto, reclamaria
uma obra de grande volume e exorbita do nosso propósito. Temos em mira dar apenas
uma informação sobre o teor exato da doutrina de Duns Scotus sobre a Ssma. Trindade.
Esta enumeração levará a compreender quanto ainda deve ser feito pela teologia neste
terreno dificílimo.
Duns Scotus em todos os pontos foi coerente com o conceito de pessoa exposto, com a
doutrina da “non-identitas formalis”, e entendia os seus conceitos no sentido da
univocação de quarto grau, ao menos tinha a tendência de chegar até o ponto em que
pudesse afirmar esta univocatio dos seus conceitos. Seria cansativo lembrar isto a
propósito de cada qual dos pormenores. Mas é preciso não esquecer de ver tudo nesta
perspectiva e de interpretar coerentemente. Sem isto, não se consegue entender a sua
doutrina, nem se obtém a sua visão deste mistério.
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Passamos agora a enumerar simplesmente as questões e respostas. A seqüência
escolhida é a do Comentário às Sentenças. Como já se disse dos livros das Sentenças de
Pedro Lombardo, que eram um monumento de falta de ordem sistemática, não se pode
esperar que a seqüência do Comentário seja uma obra-prima de sistematização.
Pensamos que Duns Scotus nem mesmo cogitou em compor um tratado sistemático
sobre Ssma. Trindade. Por isto a ordem, ou melhor "desordem", em que as questões
surgem e são tratadas nos Comentários às Sentenças, se é precária do ponto de vista
sistemático, não “deixa de ter vantagens: está mais conforme ao pensamento do Subtil,
apresenta as questões em sua ambiência original, atende aos encadeamentos incompletos, é certo - em que o próprio Duns Scotus viu os vários temas. Há de se observar que os dogmas trinitários são relativamente pouco tratados, faltam nos títulos das
questões. No entanto, perceber-se-á que estão presentes em toda parte, como que são a
suposição de todos os pormenores: estimulam o espírito a levantar as questões, orientam
as tentativas de solução, comandam as formulações e as decisões tomadas. Não são tratados diretamente, porque Duns Scotus se situou propositalmente no campo da pesquisa
teológica, logo no trabalho de aprofundamento dos dados e não no trabalho de obtenção
deles. Não se deve, pois, estranhar que deles não se faça uma exposição direta e
especifica.
1. A Cognoscibilidade da Ssma. Trindade. Segundo Duns Scotus, a Ssma. Trindade só
pode ser conhecida por caminhos sobrenaturais. Esta tese geral, aliás, é comum a todos
os teólogos católicos. O que há de especial em Duns Scotus é a divisão feita em várias
subteses e o rigor com que trata a doutrina dos “vestígios" e da "imagem" da Trindade nas
criaturas. As teses que propôs são as seguintes:
a. a razão criada, ainda no uso perfeito e ótimo de suas faculdades naturais - como por
exemplo se dará na glória - não pode chegar por forças próprias naturais a um
conhecimento imediato nem perfeito, nem imperfeito, de Deus na Trindade de Pessoas.
Este conhecimento só pode ser dom de Deus e Dom sobrenatural;
b. mesmo um conhecimento mediato de Deus enquanto trino é impossível às forças
naturais da criatura, porque a trindade de pessoas não está contida em nenhum “medium
cognitum";
c. é possível atingir um conhecimento imperfeito da Ssma. Trindade por meio da "fides
acquisita", supondo a revelação e a doutrina do magistério eclesiástico; para este
conhecimento, segundo Duns Scotus, a "fides infusa" não é necessária; o conhecimento
pode ser inteiramente certo, não será apenas opinativo;
d. nas forças naturais não existe a possibilidade de um conhecimento da Trindade "a
posteriori”, porque todos os efeitos de Deus “ad extra" provêm de sua essência e têm explicação plena nesta sua essência;
e. as forças naturais também não são capazes de um conhecimento "a priori” da Ssma.
Trindade, porque lhes falta a “ratio trinitatis”: não sabemos porque Deus é trino;
f. não existe a possibilidade de um conhecimento natural da “imago trinitatis" na alma
humana, porque as forças naturais não atingem a alma enquanto é imagem da Ssma.
Trindade. Duns Scotus pois não nega que haja uma “imago Trinitatis" na alma; nega
apenas que possa ser atingida com forças naturais. Declara ainda que tudo quanto se tem
indicado como imagem da Trindade de fato pode ser entendido e explicado cabalmente
sem a suposição da Trindade de Pessoas em Deus, com a só essência divina.
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g. Vistas estas teses claras e categóricas, não se pode dar uma interpretação categórica
aos argumentos de razão que Duns Scotus faz a favor da Trindade. Só podem ter valor
de razões de conveniência (cf. Ordin. Prol. q. l, n. 57-65, ed. Vaticana vol. I, p. 35-40; Lib.
I, dist. 2, pars II, q. 1-4, ed. Vaticana, vol. II, p. 245-378; Lib. I, dist. 3, pars II, q. un., ed.
Vaticana vol. III, p. 173-200; pars 3, q.1-4, ed. Vaticana, vol. III, p. 201-357; Quodl. XIV,
Vívès, vol. XXVI, p. 1-117).
2. A possibilidade de existirem simultaneamente unidade de essência e trindade de
pessoas em Deus. Esta possibilidade não pode ser provada nem “a priori” nem “a
posterioi” pela inteligência humana. O único caminho de a descobrir é a fé (cf. n. 1). No
entanto, existem muitas razões que, se não a provam categoricamente, ao menos a
tornam menos estranha ao espírito humano. Duns Scotus empreende mostrar estas
conveniências e para isto desenvolveu o conceito de pessoa e da “non-identitas formalis”.
O conceito de pessoa mostra as grandes diferenças existentes entre pessoa e
essencia-natureza-substância, tamanhas que para a inteligência já não é contradição a
unida na essência e a trindade nas pessoas. A doutrina da "non identitas formalis” leva à
conclusão duma distinção "ante omnem actum intellectus” entre essência e pessoa. Assim
se vê que não é necessariamente uma contradição supor unidade na essência ao mesmo
tempo que trindade nas pessoas: são formalidades distintas (cf. Ordin. lib. I, dist. 2, pars
2, q.1, ed. Vaticana, vol. II, p. 344-361).
3. Porque só podem existir três pessoas em Deus? É uma das questões mais profundas
da doutrina trinitária e que estava em foco desde Ricardo de S. Vítor. Duns Scotus
conhecia esta questão e empreendeu solucioná-la, usando as razões de conveniência
para a explicação da Ssma. Trindade - contudo parece que, depois, esqueceu de dar
resposta ao problema. Alinhou as razões de conveniência que existem para a processão
de uma pessoa pelo modo da inteligência, enquanto a inteligência é “memoria perfecta" do que segue que existe uma pessoa em Deus. Em seguida pondera que uma pessoa
procede pelo modo da vontade e que estas duas processões, respectivamente as
pessoas originadas das processões, devem ser distintas em Deus. Examina ainda os
argumentos que se podem alinhar para provar que em Deus deve existir uma pessoa que
não procede e que por isto é diferente das duas outras. Assim mostra que existem três
pessoas em Deus. A impossibilidade de existir maior número de pessoas também deveria
ser examinada - adiou-a da distinção 2a para a 7a do 1o Livro, mas, ao que parece,
depois esqueceu de tratar dela. Ao menos nada se encontra a respeito na distinção 7a (cf.
Ordin. Lib. I, dist. 2, parte 2, q.2, ed. Vaticana, vol. II, p. 335-344).
4. A possibilidade de produção em Deus. Para elucidação deste dogma, Duns Scotus
propõe as seguintes asserções, que procura provar devidamente:
a. na pessoa divina que não procede há um princípio de produção; logo;
b. a “memoria perfecta” em Deus pode produzir uma "notitia perfecta", e esta não pode
senão ser pessoa; logo;
c. semelhante é a situação da vontade; logo;
d. o objeto conhecido na “memoria perfecta" é produtivo e o produto só pode ser pessoa;
logo;
e. a produção é perfeição, logo não pode faltar em Deus;
f. a relação de produtivo e produto em Deus é possível; logo.
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Conquanto se esforce lealmente por evidenciar estes princípios, Duns Scotus contudo
observa, que não se trata de argumentos propriamente ditos, porque estas “rationes” “non
demonstrant”, pois que as suas conseqüências para as origens intradivinas não estão ao
alcance da razão natural. Analisa ainda os argumentos que Henrique de Gand, Ricardo
de Mediavilla e Boaventura alinharam a propósito do mesmo tema, ponderando que
fazem a tentativa de provar o “ignotum" com “minus notum" - o que naturalmente resulta
inútil (cf. Ordin. Lib. I, dist. 2, parte 2, q. 3, ed. Vaticana vol. II, p. 259-287).
5. A impossibilidade de mais de duas processões em Deus. É uma questão semelhante à
que trata da impossibilidade de existirem mais que três pessoas em Deus. Duns Scotus
rejeita a posição de Henrique de Gand e estabelece outra, marcada pelos dogmas e deles
derivada. Não se trata, pois, duma razão "a priori”, nem duma razão natural, mas de razão
derivada da revelação. Henrique de Gand tinha proposto o seguinte: em Deus só existem
dois atos essenciais: o da inteligência e o da vontade; ora, os atos nocionais se fundam
sobre estes dois, logo não podem existir mais que dois. Duns Scotus, refutando
longamente esta sentença, estabelece a doutrina seguinte:
a. em Deus existem só dois princípios produtivos nocionais, que constituem duas razões
formalmente distintas - melhor não formalmente idênticas de produção;
b. estes princípios são o “naturale” e o “voluntarium”;
c. não há possibilidade de reduzir estes dois princípios a um só;
d. todos os demais princípios que se podem excogitar, podem ser reduzidos a estes dois;
e. logo, existe a possibilidade de duas produções em Deus e não existe a possibilidade de
maior número de produções;
f. o Filho não procede da inteligência simplesmente, mas da “memoria perfecta in Patre”;
g. não se deve entender o "Verbo" como o conhecimento atual do Pai, pois que no Pai
nada existe, senão o que não nasceu, o que não se originou;
h. faltam as ponderações relativas ao Espírito Santo (Ordin., Lib. I, dist. 2, parte 2, q. 4,
ed. Vaticana, vol. II, p. 287-335).
6. A questão do vestígio da Trindade nas criaturas. Para dar uma resposta a esta
questão, Duns Scotus analisa o conceito de vestígio e depois propõe a sua doutrina:
a. vestígio é semelhança de uma parte do objeto em outro: “similitudo partis”. Com esta
definição se distancia de S. Tomás, para quem o vestígio é a representação “per modum
effectus" (I,93,6, ic.).
b. falando de "criaturas" , neste contexto, só pensa nas irracionais;
c. na criação não existe vestígio da trindade, mas apenas das apropriações trinitárias, e
mesmo estas estão na criação não como apropriações, mas como imitação da essência
divina (Ord., Lib. I, dist. 3, q. 5, editio Vaticana, vol. III, p. 173-200).
7. A questão da imagem da Trindade na alma. Uma questão momentosa na Idade Média.
Duns Scotus responde com as seguintes asserções:
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a. Imagem é a “similitudo totius”, com o que se distancia de S. Tomás, para quem a
imagem é “similitudo secundum speciem [em contraposição a “genus”] ... vel ad minus
secundum aliquod accidens proprium speciei (em contraposição a “commune”)” (S.
Theol. I,93,2 ic.);
b. para que na alma houvesse imagem da Trindade, seria necessário haver nela o que
desse a conhecer: a'. a distinção de pessoas; b’. a unidade da natureza; c'. a ordem das
origens; além disto, isso tudo deveria ter sido posto na alma por Deus com a finalidade de
imitar a Trindade e de a representar;
c. de fato existe na alma o que se pode dizer "imagem da Trindade”;
d. a imagem não está na inteligência e vontade só como atos primeiros, nem só como
atos segundos, mas como atos primeiros e segundos em conjunto;
e. a imagem da consubstancialidade e da distinção de pessoas está na memória e na
vontade;
f. a imagem das origens está em que o ato de vontade supõe o ato de memória - mas a
imagem é muito deficiente, pois que o ato de vontade não se origina do ato da memória;
g. a última condição para que algo seja imagem - que tenha sido feito com esta intenção –
não se verifica na alma com relação à Trindade, pois que a alma não foi criada por Deus
com a intenção de fazer uma imagem deste mistério; por isto só se pode dizer que a alma
"de algum modo" é imagem da Trindade, não de modo perfeito - mas de fato pode-se
dizer que é imagem;
h. a imagem via de regra leva ao conhecimento daquilo que representa – esta qualidade,
porém, não existe na alma com relação à Trindade: nenhum conhecimento natural da
alma, por mais perfeito e completo que seja, leva ao conhecimento da Trindade;
i. o fato de a alma ser imagem da Trindade não é do alcance da razão natural, pois que
tudo quanto assim se conhece na alma pode ser entendido perfeitamente sem supor a
Trindade.
As exposições de Duns Scotus sobre a alma como imagem da Trindade mostram que
estava inclinado a negar a suposição; tentou, porém, ”salvar” a afirmação de que a alma é
imagem da Trindade por respeito a S. Agostinho (Ordin. lib. I, dist. III, parte 3, ed.
Vaticana, vol. III, p. 201-357; Quodl. 14, editio Vivès, vol. XXVI, p. 104s).
8. Será correta a expressão: "Deus genuit alium Deum"? A resposta de Duns Scotus é
negativa por causa do "alium". Da expressão “Deum de Deo”, diz, segue que se pode
dizer “Deus genuit Deum”, não porém “alium Deum" (Ordin. Lib. I, dist. 4, q. 1, ed. Vivès,
vol. IX, p. 423-424).
9. Será correta a expressão: "Deus est Pater, Filius et Spiritus Sanctus”? Duns Scotus
declara que a expressão é correta, desde que não seja entendida em sentido formal (Ordin., lib. I, dist. 4, q. 2, ed. Vivès, vol. IX, p. 429-430).
10. A essência divina gera? A essência divina é gerada? Evidentemente Duns Scotus
nega ambas as perguntas, e é a propósito desta negação que desenvolve a sua doutrina
da "non-identitas formalis" (Ordin. lib. Il, dist. 5, q. l, Vivès, vol. IX, p. 443-461).
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11. O Filho é gerado da substância do Pai? Esta pergunta é respondida afirmativamente
por Duns Scotus. A motivação está nisto: uma vez que o Filho não é criado, não pode ser
gerado do nada e é consubstancial ao Pai por geração, não se pode supor outra coisa.
Adverte, porém, que esta doutrina não deve ser entendida no sentido de a substância do
Pai ser como que a matéria da geração e a relação como que a forma (doutrina de
Henrique de Gand). Tampouco se deve entender como se a substância “subiceretur
generationi" e o Filho fossem o termo da ação (Godofredo de La Fontaine) (Ordin. lib. I,
dist. 5, q.2, Vivès, vol. IX, p. 465-488).
12. Como pode haver essência e relação na mesma pessoa, sem que a essência seja por
assim dizer a forma da relação? Uma questão motivada pela doutrina escolástica sobre
as funções da essência de alguma coisa. Duns Scotus ensina:
a. a pessoa divina é uma unidade sem composição, pois que o "ser Deus" não determina
a propriedade pessoal-nocional, nem é contraído por esta propriedade, nem é por ela
atualizado - nem se pode supor que aconteça vice-versa; isto é possível por causa da
"non-identitas formalis” e por causa da simplicidade infinita divina, que não é
comprometida pela “non-identitas formalis" por causa da infinitude divina;
b. as relações distinguem as pessoas sem levarem a uma distinção, seja qual for, na
essência, precisamente por serem “atos” nocionais e não “quidditas”;
c. a essência é fundamento das relações, sem ser aperfeiçoada por elas; isto é possível,
porque a essência por si mesma em Deus possui toda a perfeição possível na infinitude
intensiva e radical; a possibilidade disto se entende na doutrina da "non-identitas formalis"
e estes fatos reclamam esta “non-identitas”;
d. a essência é comunicada sem supor a existência daquele a quem é comunicada, pois
que se trata não de uma mutação ou modificação, mas de uma comunicação a alguém
para que este exista, “ut sit" (Ordin. lib. I, dist. 5, q. 2, ed. Vivès vol. IX, p. 488-499).
13. Qual a influência da vontade do Pai na geração do Filho? Duns Scotus declara que o
Pai não gerou o Filho pela vontade, mas "com" a vontade, no sentido de: “quis gerá-lo”
(Ordin. lib. I, dist. 6, q. un., ed. Vivès, vol. IX, p. 508-515).
14. A potência de gerar é algo de absoluto ou é uma propriedade nocional do Pai? Uma
questão bastante complexa, em que Duns Scotus, opondo-se a várias opiniões de
contemporâneos, expõe sua doutrina sobre o constitutivo nocional do Pai. Estabeleceu as
seguintes teses:
a. não se pode admitir que a essência divina é "principium quo” da geração (contra S.
Tomás, cf. S.Theo. I, 41, 5, ic.);
b. nem se pode admitir que a essência, enquanto determinada pela relação nocional, é
“principium quo” da geração (contra Henrique de Gand);
c. fala duma “potentia logica generandi”, para distinguir este termo do conceito de
“potentia physica" - pois que no sentido em que potência se distingue do ato não se pode
falar de potência em Deus;
d. a potência lógica de gerar é a simples possibilidade de gerar, entendida no sentido de
simples "non-repugnantia terminorum”: não é uma contradição dizer que em Deus a
geração é possível;
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e. enquanto a potência de gerar, assim entendida, é um princípio para um ato e enquanto
é formalmente entendida como tal, é em Deus uma relação no Pai;
f. quando se entende a potência de gerar como fundamento remoto do ato de gerar, então
é algo de absoluto no Pai, um absoluto nocional, mais precisamente: é a “memória
fecunda” do Pai e não uma relação;
g. enquanto se entende a potência de gerar como o fundamento próximo do ato de gerar,
então é o próprio ato de gerar enquanto produzido pelo pai (Ordin. Lib. I. dist. 7, q. un.,
ed. Vivès, vol. IX, p. 525-556).
15. A questão de distinção "ante omnem actum intellectus” na ordem essencial divina.
Duns Scotus afirma a existência de "non-identitas formalis" no campo essencial em Deus;
fundamenta esta asserção com a distinção existente entre o Filio e o Espírito Santo,
mostrando que esta seria impossível sem esta distinção no campo essencial; enfrenta o
problema da infinita simplicidade de Deus, apesar da distinção "ante omnem actum
intellectus" entre essenciais e indica a solução do problema na “infinitudo radicalis” (Ordin.
Lib. I, dist. 8, q. 4, ed. Vivès, vol. II, p. 651-672).
16. A geração do Filho é eterna? Sim (Ordin., Lib. 1, dist. 9).
17. A produção do Espírito Santo “per modum voluntatis" é afirmada por Duns Scotus
(Ordin. Lib. I, dist. 101 q. un., ed. Vivès, vol. IX, p. 788).
18. Como pode a vontade em Deus comunicar a natureza, quando entre criaturas isto é
impossível? Um problema amplamente e apaixonadamente discutido no tempo de Duns
Scotus. Rejeita a sentença de Henrique de Gand, segundo a qual a essência divina como
que "assiste" à vontade na produção do Espírito Santo; muito menos se pode admitir que
a essência divina como tal produza o Espírito Santo; comunica a essência ao Espírito
Santo não formalmente enquanto vontade, mas enquanto infinita: a vontade infinita ama
infinitamente e este amor infinito é a natureza, a essência divina (Ordin. lib. I, dist. 10, q.
un. ed. Vivès, vol. IX, p. 804-806).
19. Existirá uma produção necessária na vontade? Duns Scotus responde: sim, mas é
preciso distinguir: não enquanto vontade é vontade, mas enquanto é vontade infinita. A
infinitude também dá necessidade ao objeto da vontade. A infinitude faz com que a
vontade esteja necessariamente “in actu", “in actu recto” e em ato infinito (Ordin.-11b. I,
dist. 10 q. un., n. 9-12; ed. Vivhs vol. IX, p. 806-808).
20. Como pode a produção ser livre se é necessária? É que a necessidade não se opõe
ao “dominium sui actus", isto é, à liberdade propriamente dita, segundo Duns Scotus, mas
ao "naturale". O oposto do necessário não é o livre, mas o contingente (Ordin. loc. cit.).
21. Por que o Espirito Santo procede também do Filho? Porque o Filho recebe do pai o
princípio de um amor perfeitíssimo "inimpedibile" e o possui "prius quam intelligatur
Spiritus Sanctus productus" (Ordin. lib. I, dist. 11, q. 1, ed. Vivès, vol. IX, p. 825-828).
22. O Espírito Santo também se distinguiria do Filho, se não procedesse dele? S. Tomás
declarara que esta distinção seria impossível, caso o Espírito Santo não procedesse do
Filho (S. Theol. I, 36, 7, ic). Duns Scotus declara que a distinção seria possível também
no caso de o Espírito Santo não proceder do Filho, e fundamenta: a "filiatio" difere da
"spiratio" sem o "filioque" e porque geração e espiração diferem de modo semelhante
(Ordin. lib. II, dist 11, q.2, ed. Vivès, vol. IX, p. 836-842).
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23. Pai e Filho produzem o Espírito Santo como um só princípio? Duns Scotus responde
afirmativamente e declara ainda que entre as duas pessoas que dão origem ao Espírito
Santo no ato de produzir não há distinção, porque o princípio de produção está no Pai e
no Pilho sem nenhuma divisão e distinção, o Pai o comunica ao Filho na geração como
principio numericamente um (Ordin. lib. I, dist. 12, q.1, ed. Vivès, vol. IX, p. 853).
24. Pai e Filho produzem o Espírito Santo pelo modo de vontade única ou de amor
mútuo? Questão amplamente debatida na Idade Média. Duns Scotus se opõe à doutrina
de Henrique de Gand que afirmava o amor mútuo como princípio produtivo do Espírito
Santo. Afirma: a. o amor mútuo em Deus não é mais perfeito que o amor não mútuo,
porque a infinitude faz com que um aumento da amabilidade pelo amor correspondido
seja impossível e porque então em Deus o conhecimento de amor correspondido seria a
razão formal de produção; b. Pai e Filho produzem o Espírito Santo pelo modo de vontade
única e não pelo modo de amor mútuo; c. O Pai não produz o Espírito Santo enquanto
ama o Filho formalmente, nem o Filho produz o Espírito Santo enquanto ama o Pai
formalmente; d. ambos produzem o Espírito Santo, enquanto amam a essência divina
como primeiro objeto de sua vontade; e. por conseguinte não se pode dizer: “Pater et
Filius sunt duo spirantes”, mas pode-se dizer: “Pater et Filius sunt duo spiratores” concorda assim com S. Tomás, mas discorda nas razões aduzidas, porque nega a
doutrina do amor mútuo como princípio produtivo nocional do Espírito Santo (Ordin. lib. I.
dist. 12, q.1, ed. Vivès, vol. IX, p. 854-869).
25. Pai e Filho produzem o Espírito Santo “uniformiter”? Para responder, é preciso
distinguir vários aspectos possíveis da pergunta: a. a espiração é inteiramente uniforme
do ponto de vista do termo, da Pessoa do Espírito Santo, que é rigorosamente uma só; b.
é também rigorosamente uniforme em si mesma, enquanto ato produtivo - mais que
uniforme, é matematicamente una e única; c. considerada a espiração do ponto de vista
das pessoas que produzem, há o seguinte: a’. a “vis spirativa” é comunicada ao Filho pelo
Pai, e por isto; b’. o Filho recebeu do Pai o espirar, o Pai espira “a se”, c’. o Filho espira
“non a se”. d. nem por isto, porém, há prioridade de origem entre Pai e Filho quanto à
espiração; e. a ordem é a seguinte: no Pai com prioridade de origem existe dupla
fecundidade; em seguida há nele o ato da primeira fecundidade, da geração; por fim, em
simultaneidade de origem com o Filho e em unicidade de ato existe a segunda
fecundidade, mas no Pai é "a se", no Pilho é "a Patre”. Resumindo, deve-se dizer que o
Pai não espira com prioridade de origem relativamente ao Filho, mas espira em
simultaneidade de origem com o Filho, conquanto possua a segunda fecundidade em
prioridade de origem com relação ao Filho (Ordin. Lib. I, dist. 12, q.2, ed. Vívès, vol. IX, p.
872-874).
26. Por que não se pode dizer que o Espírito Santo é gerado? Duns Scotus, rejeitando
várias sentenças de resposta a este problema (duas de S. Tomás, uma de Egídio
Romano, outra de Ware, uma de Godofredo de La Fontaine e duas de Henrique de
Gand), propõe a seguinte sentença: as processões em Deus se distinguem pelo que elas
são em si mesmas e não por alguma determinante que lhes acresça. Isto quer dizer que
não existe um conceito universal de “processão” ou “origem”, ao qual acresçam
diferenças como gêneros inferiores ou espécies – mas a geração é geração pela
totalidade do que é, a espiração do mesmo modo. A análise desta questão leva o Subtil a
formular profunda doutrina sobre as processões, as suas relações à essência e às
pessoas (Ordin. lib. I, dist. 13, q. un., ed. Vivès, vol. X, p. 885-910).
27. Todas as Pessoas divinas enviam e todas são enviadas? Responde evidentemente
que não (Ordin. lib. I, dist. 15, q. un. ed. Vivès, vol. X, p. 12-14).
20
28. A missão visível convém ao Espírito santo? Responde afirmativamente, pois que a
visibilidade da missão acrescenta sobre a missão ela mesma apenas um sinal visível
(Ordin. lib. I, dist. 16, q. un., ed. Vivès, vol. X, p. 19-20).
29. Quando se designa o Espirito Santo de "dom", pensa-se numa propriedade nocional
da terceira Pessoa?
a. a resposta é negativa, quando "dom" significa uma relação à criatura, “ad extra”;
b. Quando “dom" significa “liberaliter productum”, pode-se conceder que indica a
propriedade pessoal do Espirito Santo;
c. não se deve, porém, pensar em "dom" no sentido de amor mútuo de Pai e Filho;
d. em sentido próprio, “dom" significa algo “ad extra”, logo algo de Deus para a criatura e
neste sentido não pode ser uma propriedade nocional do Espirito Santo - mas tal
propriedade está conotada (Ordin. lib. I, dist. 18, Vivès, vol. X, 144-147).
30. As pessoas serão iguais em magnitude? Duns Scotus responde:
a. é evidente que não se pode falar de tamanho quantitativo das pessoas;
b. tamanho, magnitude, porém, podem também significar uma propriedade do ser,
enquanto oposta à pequenez qualitativa, sem nenhuma conotação quantitativa; assim o
conceito de magnitude está livre de imaginações quantitativas, muito embora seja tomado
num sentido algo metafórico;
c. neste sentido de magnitude dever-se-á dizer das pessoas divinas que são iguais em
magnitude (Ordin. lib. I, dist. 19, q. 1, ed. Vivès, vol. X, p. 169-173).
31. As Pessoas inexistem mutuamente?
a. segundo o Gandavense, as Pessoas divinas inexistem mutuamente “secundum partem
sui”, isto é: segundo algo de seu ser que é também das outras Pessoas, isto é, a
essência; esta sentença é rejeitada por Duns Scotus;
b. nega também que as Pessoas inexistam mutuamente ao modo da essência, porque a
propriedade nocional formalmente não cabe à essência, nem as propriedades essenciais
cabem formalmente às pessoas - formalmente, quer dizer reduplicativamente, às Pessoas
enquanto Pessoas;
c. o "esse in alio", a inexistência de que aqui se trata, é a das Pessoas formal e
reduplicativamente enquanto Pessoas e só pode valer das Pessoas enquanto tais e
"secundum se totas”: é pois a inexistência do subsistente em outro subsistente em
presencialidade e intimidade; este modo de "esse in” é singular da Trindade e não existe
em parte alguma da criação;
d. a razão desta inexistência singular não está só na essência, nem só nas relações
nocionais, mas ambos os elementos concorrem com simplicidade e diversidade, tornando
possível falar de inexistência (Ordin. lib. I, dist. 19, q.2, ed. Vivès, vol. X, p. 184-194).
32). As três pessoas divinas serão iguais em poder?...
21
sentido de potência ativa - isto decorre facilmente do conceito de Deus; a fé ensina este
poder, e mais que as três Pessoas divinas nele são iguais;
b. a dificuldade desta asserção está em que o Pai gera, o Filho não - o Pai e o Filho
espiram, o Espírito Santo não; disto não resultará uma diferença das Pessoas na potência
ativa?
e. Egídio Romano e Guilherme de Ware tinham respondido que a onipotência divina se
restringe ao que não é contraditório e que seria uma contradição se o Filho gerasse etc.
Esta tentativa de solução Duns Scotus rejeita;
d. propõe como solução própria uma definição de potência a partir do seu correlativo, o
possível: a potência se refere só ao possível; ora, o necessário não é possível em sentido
próprio, porque é; acontece que tudo quanto é intradivino, é necessário, logo não é objeto
de potência ativa; daí o fato de o Filho não poder gerar e o Espírito não poder nem gerar
nem espirar, não faz diferenças na potência destas Pessoas e por conseguinte as três
são iguais em poder (Oxon. Lib. I, dist. 20, q. un. ed. Vivès, vol. X, p. 199-206).
33). Poder-se-á dizer: "Solus Pater est Deus”?
a. Duns Scotus rejeita a proposição como falsa, ponderando os dois sentidos que pode
ter:
a. "Deus est solitarius" - neste sentido é falsa, porque sendo Deus trino, não pode ser
solitário;
b. no sentido de comparação do Pai a outras pessoa divinas, está errada a proposição,
porque exclui um essencial das outras pessoas;
c. na resposta às objeções do “quod sic” desenvolve subtis regras sobre a aplicação de
princípios de lógica à mesma Trindade (Ordin. lib. I, dist. 21, q. un. ed. Vivès vol. X, p.
210-217).
34). A palavra “Pessoa”, enquanto se diz do Pai, do Filho e do Espírito Santo, significará
um universal abstrato (aliquid secundae intentionais)?
a. Egídio Romano e talvez o Gandavense haviam afirmado
significa “aliquid secundae intentionis" - Duns Scotus os refuta;
que "Pessoa" em Deus
b. para expor sua própria opinião e refutar a dos adversários, expõe o seu conceito de
Pessoa: a dupla incomunicabilidade “ut quo” e “ut quod” e procura provar como é possível
dupla negação de comunicabilidade, sem haver uma afirmação comum;
c. levanta aí a questão da existência de elemento positivo, e responde afirmativamente;
d. este elemento, porém, não leva a um "commune secundae intentionis” porque é
rigorosamente singular em cada pessoa (Ordin. lib. I, dist. 23, q. un. ed. Vivès, vol. X, p.
258-264; cf. supra as exposições sobre o conceito de pessoa em Duns Scotus).
35). Haverá número em sentido próprio em Deus? Dizendo-se que são três Pessoas,
soma-se alguma coisa - e se nada há de comum entre as pessoas, como se pode falar
em três?
22
a. Duns Scotus nega que se possa falar em número em Deus em sentido de unidade
formal, para a qual o que se conta está na relação de "matéria";
b. nega também a existência de número em sentido próprio, quando significa unidade de
agregação;
c. admite a existência de número em sentido formal na mesma Trindade, quando é
tomado só em sentido de “ens rationis”, portanto, só se pode falar de número em Deus
“secundum quid”, acrescentando sempre: "de pessoa” e excluindo diversidade, agregação
e potencialidade (Ordi, lib. II, dist. 24, q. un., ed. Vivès, vol. X, p. 268-271).
36). O conceito de pessoa em Deus significa substância ou relação?
a. a "substancia prima" em Deus só pode estar conotada no conceito de pessoa;
b. uma “substantia secunda" não pode estar nem mesmo conotada porque em Deus não
existe;
c. uma relação em sentido próprio ou comum também não pode estar significada, porque
em Deus é impossível;
d. o conceito significa em todo o caso a dupla negação de comunicabilidade - e por isto
não significa substância, que não pode ser negação; tampouco significa relação, pelo
mesmo motivo;
e. há, porém, no conceito nesta sua acepção várias conotações: a) daquilo que constitui
as pessoas divinas; b) da relação pela qual às pessoas convém tal negação; c) da
essência: esta, conquanto esteja conotada, no entanto não é razão da negação.
f. supondo que "pessoa" em seu "quo" significa algo de positivo, então isto está
significado primariamente, todo o mais está apenas conotado; neste sentido não se deve
pensar em espécie ou gênero "pessoa", mas apenas num elemento singular, diferente
“per totum” em cada qual das Pessoas (Ordin. lib. I, dist. 25, q. un. ed. Vivès, vol. X,
278-279).
37). As pessoas divinas são constituídas formalmente pelas relações de origem?
Duns Scotus concorda aqui com a comum sentença, que é afirmativa sem abrir exceção
para o Pai. Discorda, porém, dos fundamentos indicados por Prepositino, S. Tomás, S.
Boaventura, João de Ripa (Ordin. lib. I, dist. 25, ed. Vivès, vol. X, p. 291-353; Quodl. IV,
ed. Vivès, vol. XXV, p. 149-191).
38. Que é “Verbum” criado?
a. "Verbum" não é a intelecção atual;
b. não é um conhecimento qualquer;
c. mas só o conhecimento produzido pela “memória”, porque só este pode ser
considerado "gerado";
d. a vontade não influi interiormente como princípio originante sobre a geração do
“Verbum”, concorre apenas como força que aplica o intelecto à investigação (Ordin. lib. I,
dist. 27, q. 1 ed. Vivès, vol. X, p. 360-377).
23
39. “Verbum” significa Uma propriedade da Pessoa gerada em Deus?
Responde afirmativamente (Ordin. lib. I, dist. 27, q.2, ed. Vivès, vol. X, p. 380-381).
40. O nome “verbum” em Deus significa uma relação a criatura?
a. Uma questão muito debatida na escolástica por causa da pontuação de Jo 1,3-4. Aí
estava o fundamento para uma dificuldade, que desapareceu com outra Pontuação. Liam:
"Quod factum est in ipso vita erat” (Jo 1,4).
b. Henrique de Gand resolvera: “verbo" significa uma relação a criatura e por isto, se dito
da segunda pessoa em Deus, só uma apropriação. Duns Scotus rejeita esta sentença.
c. Declara: "Verbo" em Deus significa uma propriedade nocional da Segunda Pessoa, e
significa aquilo pelo que a segunda pessoa é Pessoa.
d. este nocional, porém, possui uma semelhança especial com as criaturas, pelo que se
justifica subentender uma relação a elas: é “connotatum remotius”, o “connotatum
proximum” do conceito é “aliquid absolutum in illa persona, quod est quasi terminus
formalis productionais illius personae” (Ordin. lib. I, dist. 27, q. 3, ed. Vivès, vol. X, p.
382-384).
41. “Ingenitum” significa uma propriedade do pai?
a. Duns Scotus afirma que este conceito significa uma propriedade do pai, enquanto é
privação ou negação de geração no sentido de "quomodocumque productum”.
b. nega a sentença de S. Boaventura, que entendia “ingenitus” no sentido de “fontalis
plenitudo”:
c. afirma que mesmo negada esta conotação, o conceito de “inteligentus” significa o
suficiente para ser um nome que designa dignidade, apesar da forma negativa (Ordin. lib.
I, dist. 28, q. 1, ed. Vivès, vol. X, p. 393-399).
42. A inascibilidade é o constituinte da primeira Pessoa?
a. Duns Scotus declara claramente que não, refutando a sentença afirmativa e provando
a negativa;
b. Também o Pai se constitui pessoa pela relação de...
c. não se pode afirmar que o Pai, enquanto pessoa, esteja constituído pela “aptitudo
generandi”, como diz o Gandavense;
d. S. Tomás distinguia na paternidade o aspecto de propriedade e de relação; constitutiva
do Pai é a paternidade enquanto propriedade, e neste aspecto “intelligitur” antes que se
gere o filho; a paternidade não é constitutiva enquanto relação, e como tal “intelligitur”
como conseqüente da geração e originada pela geração; também esta sentença é
rejeitada por Duns scotus;
e. tampouco se pode admitir que o pai esteja tido pela relação de paternidade, enquanto é
origem, como ensina S. Boaventura;
f. Duns Scotus rejeita também a sentença de João a Ripa que considerava as pessoas
divinas constituídas “per absolutum” ou pela essência enquanto distinta das relações;
24
g. Duns Scotus afirma que o pai é constituído pessoa pela geração ativa ou paternidade;
entre geração ativa e paternidade há só uma diferença “rationis”; se pois os dois
elementos podem ser distinguidos “ratione”, identificam-se “re” (Ordin. lib. I, dist. 28, q. 2 e
3, ed Vivès, Vl. X, p. 402-431; Quodl. IV, ed. Vivès, vol. XXV, p. 149-191).
43. Como a essência divina é determinada para ser pessoa, no Pai? (quomodo essentia
determinatur ad primam subsistentiam?)
a. isto não pode ser: a) por meio de um elemento absoluto; b) por meio de uma
subsistência que estivesse “per se” na essência e lhe correspondesse adequadamente; c)
nem por ser razão formal para a primeira subsistência em Deus;
b. “determinatur” pela geração ativa, e por isto pode-se dizer que a essência em Deus
está de modo mais imediato para a primeira Pessoa que para as demais, por causa da
ordem de origem (Ordin. lib. 1, dist. 28, q. 3, ed. Vivès, vol. X, p. 428-431).
44. “Princípio" quando enunciado da essência e das pessoas em Deus é um conceito
unívoco? Duns Scotus nega a univocidade no caso e afirma: a. em sentido essencial trata-se duma relação de pura razão; b. em sentido nocional trata-se duma relação real
(Ordin. lib. I, dist. 29, q. un. ed. Vivès, vol. X, p. 442-443).
45. Identidade, semelhança e igualdade serão relações reais em Deus?
a. refutando a sentença do Gandavense, que negava e realidade do fundamento para que
se possa falar em relações reais de identidade, semelhança e igualdade em Deus –
“grandeza”, a “magnitude” – Duns Scotus afirma que se trata de relações reais;
b. a prova segundo ele está no fato de existir fundamento real destas relações: a
essência; termos realmente distintos: as pessoas; alé m disto, identidade, semelhança e
igualdade existem em Deus “ante omnem actum intellectus” e “ex natura rei”;
c. a igualdade é como o fundamento para a identidade e semelhança;
d. entre os atributos divinos, existe uma “ante omnem actum intellectus”, isto é: a “non
identitas formalis”; em conseqüência nas Pessoas existem tantas igualdades que
carecem da identidade formal, quantos são os atributos divinos; estas “igualdades” entre
si não se distinguem nem realmente, nem só por razão, mas pela “non identitas formalis” ;
e. além disto, existe em cada Pessoa uma dupla relação de igualdade: uma para a
essência, outra para as demais pessoas; assim, por ex., o Pai possui a relação de
igualdade para com o Filho e o Espirito Santo - igualdades distintas "ante omnem actum
intellectus” tanto com relação às pessoas, quanto com relação à essência; e cada qual
das "igualdades" com as pessoas se multiplica pela “non identitas formalis”, segundo a
multiplicidade dos atributos essenciais, distintos “ante omnem actum intellectus”;
f. estas relações de igualdade se distinguem das relações de origem, porque: a) não
constituem pessoas; b) são relações comuns às pessoas, as de origem não; c) seguem
as relações de origem, supondo-as “origine priores”;
g. objetando-se que não podem ser relações reais sem constituir pessoas,
responder-se-á: a relação de espiração ativa também é real e não constitui pessoa - isto é
dogma; logo alguma coisa pode ser relação real em Deus sem constituir pessoas (Ordin.
lib. I, dist. 31, q. un. ed. Vivès, vol. 10, p. 489-497; Quodl. VI, ed. Vivès, vol. XXV, p.
239-278).
25
46. Pai e Filho amar-se-ão no Espirito Santo?
É a questão do amor mútuo entre Pai e Filho.
a. Duns Scotus rejeita a sentença, bastante propagada, de que o Espirito Santo é o amor
mútuo do Pai e do Filho, que o Pai e o Filho se amam no Espirito Santo;
b. rejeita também a sentença de S. Tomas, que dizia: Pai e Filho se amam no espirito
santo em sentido nocional, como se diz que a árvore floresce em flores (floret floribus),
quer dizer: como termo, não como ato ou meio;
c. segundo Duns Scotus, pode-se apropriar ao Espirito Santo o amor do Pai ao Filho e do
Filho ao Pai, porque a terceira pessoa é amor produzido – no mesmo sentido em que se
lhe apropria o amor de quem quer que seja, a quem quer que seja;
d. pode-se ainda dizer que "o Pai e o Filho se amam no Espirito Santo, entendendo que o
produzem como amor nocional - mas evidentemente este sentido é um pouco forçado;
e. em resumo: Duns Scotus rejeita a teoria de que o Espírito Santo é o amor mútuo do Pai
e do Filho (Ordin. Lib. 1, dist. 32, q. 1, ed. Vivès, vol. X, p. 505-518).
47. Propriedade e Pessoa serão a mesma coisa?
Duns Scotus responde: a) em realidade e concretamente sim; b) formalmente não (Ordin.
Lib. I, .dist. 33, ed. Vivès, vol. X, p. 523-528).
48. Identificam-se propriedade e essência?
Duns Scotus responde: a) realmente sim; b) formalmente não (Ordin. lib. I, dist. 33, q. 2,
ed. Vivès, vol. X, p. 531).
49. Identificar-se-ão pessoa e essência?
Duns Scotus responde: a) realmente sim; b) formalmente não (Ordin. Lib. I, dist. 34, q.
un., ed. Vivès, vol. X, p. 531-532).
50. Os essenciais estarão mais próximos da essência que os nocionais?
Duns Scotus aproveita a oportunidade desta questão para fixar e definir terminologia:
a. a) a essência em Deus; b) entidade real, atualmente existente, única, primeira sob
todos os pontos de vista, razão primeira de ser em Deus. b) é o mesmo que substância; c)
a existência faz parte da essência (logo as pessoas não são a ordem existencial em
Deus, como pensam os tomistas); d) é a primeira consideração e o ponto de referência
primário de tudo quanto Deus é; e) não é a razão formal de as pessoas serem pessoas,
mas de serem simplesmente.
b. o essencial: a) segundo os filósofos, é tudo o que se inclui na essência, “per se"; o
mais é acidente; b) os teólogos, quando falam de Deus, empregam este termo num
sentido diferente: essencial em Deus é tudo o que é comum às três pessoas, o que pode
ser enunciado de cada qual delas e das três juntas no singular; c) o essencial em Deus
se distingue em: 1) essencial relativo - é “ad extra” (o nocional relativo é “ad intra”); 2)
essencial absoluto - é tudo o que é comum às três pessoas e não significa uma relação
“ad extra"; d) distingue o essencial absoluto da essência divina, considerando "essencial”
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tudo o que pode ser predicado na forma de atributo e assim se distingue da essência pela
“non indentitas formalis";
c. o nocional é tudo aquilo que faz parte do conhecimento da distinção de pessoas em
Deus e por isto deve ser predicado de Deus de modo inteiramente diverso do essencial;
todo nocional é relativo “ad intra” (Duns Scotus aqui não...
d. ”mais próximo" é uma locução que pode ter vários sentidos; aqui só interessam dois
sentidos, que os outros possíveis não têm aplicação: a) sentido positivo: neste caso
significa aquilo que medeia entre duas coisas; b) sentido negativo: não há meio entre um
e outro, que assim se relacionam diretamente, sem interferência de um terceiro elemento;
sendo que a locução está em forma gramatical comparativa, pode também significar que
o primeiro termo se relaciona ao segundo com menos elementos intermediários que com
um terceiro termo.
e. a esta altura Duns Scotus faz uma recapitulação: a. a essência é o elemento ao qual se
referem os demais, cuja ordem se investiga; b. na questão investiga-se a ordem relativa
dos nocionais e essenciais à essência; c. a questão é de saber o que é "mais próximo” da
essência; d. para resolver a questão é preciso atender ao “ad intra - ad extra” e ao duplo
sentido - positivo e negativo - da locução “mais próximo";
f. solução da questão: a) conclusão primeira: entendendo-se o "mais próximo," em sentido
positivo (isto é: de servir de meio) deve-se afirmar que nenhum nocional é "mais próximo"
da essência que qualquer essencial, isto é: nenhum nocional serve de meio para
relacionar um essencial à essência; b) conclusão segunda: entende-se “mais próximo"
em sentido negativo, deve-se afirmar, que nenhum essencial relativo (que significa
relação “ad extra”) está mais próximo da essência que os nocionais; c) conclusão terceira:
entendendo-se “mais próximo” em ambos os sentidos, deve-se dizer que não há um
nocional que esteja mais próximo da essência que os essenciais absolutos; d. conclusão
quarta: entendendo-se mais próximo em ambos os sentidos, aplicados ao nocional
simultaneamente, deve-se dizer que não há nocional mais próximo da essência que os
essenciais neste sentido; e) conclusão quinta: os atributos em Deus, isto é: os essências
absolutos, os “ad intra” estão “mais próximos” da essência que os nocionais, porque em
Deus os atributos são do mesmo gênero que a essência, os nocionais não, uma vez que
são relativos; o contrário se dá nas criaturas: f) conclusão sexta: mesmo que em Deus
não se supusesse que as pessoas estão constituídas por relações, difeririam em gênero
dos essenciais por serem incomunicáveis, a essência comunicável (Quodl. I, ed. Vivès,
vol. XXV, p. 1-57).
51. Poderão existir em Deus várias processões de igual "ratio"?
a. Pela fé sabemos que de fato não existe em Deus precessões ou produções da mesma
razão:
b. a questão é se isto é apenas uma verdade de fé ou se podemos indicar as razões para
o fato;
c. motivos para o fato não podem ser os que estão indicados nas sentenças seguintes: a)
a forma de igual teor não se multiplica, a não ser multiplicada a matéria; ora, como em
Deus não há matéria, não pode haver multiplicação de tais formas; b) Deus entende tudo
por um único ato, logo só há uma produção intelectual; c) a natureza está determinada a
um; d) se houvesse mais filhos, nenhum deles seria inteiramente perfeito, pois que
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haveria “filiatio” fora dele; e) as produções são “adequadas” ao ato de produzir, pelo que
este se exaure com uma única produção, não podendo ser multiplicada a produção;
d. as razões que Duns Scotus admite são as seguintes: a) não pode haver mais que uma
produção porque se fosse possível existiriam infinitas produções em ato, uma vez que
não haveria nada que limitasse o número, nem a possibilidade de permanecerem “im
potentia”, tratando-se de produções intradivinas; b) a pluralidade em Deus tem
necessariamente sua determinação de algo intrínseco, pois não pode ser determinada de
fora; logo o número de produções existente está determinado intrinsecamente; c) podese admitir o axioma de Aristóteles, de que onde há mais que uma produção deve haver
“contrahnens”, no sentido de matéria (Quodl. II, ed. Vivès, vol. XXV, p. 59-106).
52) Como é possível que a relação comparada à essência seja um “ens rationis”,
comparada ao seu oposto porém real?
a. a questão é uma armadilha e por meio de “petitio priricipii” torna impossível a solução; é
que a relação, comparada à essência não é “ens rationis”, mas é "ens extra animam”,
precisamente porque entre pessoas e essência, entre as relações e a essência há “nonidentitas formalis”;
b. rejeita a sentença dos que admitem que a relação comparada à essência é apennas
“ens rationis”, ou que há apenas uma “distintio reationis cum fundamento in re” (Quodl. 3,
ed. Vivès, vol. XXV, p. 114-142).
55). A relação de origem será formalmente infinita?
a. o conceito de infinito: a) rejeita a definição de Aristóteles: “Infinitum est cuius
quantitatem accipientibus restat aliquid accipiendum; b) define ele mesmo: “Ens infinitum
est cui nihil entitatis deest eo modo quo possibile est esse in aliquo uno”; c) frisa: a
infinitude não é “passio”, mas “modus intrinsecus entis cui convenit”;
b. respostas erradas: a) diz-se: a relação de origem é formalmente infinita; esta asserção
está errada, porque enuncia o aspecto de identidade da relação e da essência, quando a
indagação se refere exatamente ao “quo relatio est id quod est”; b) dizendo-se: “Paternitas
est infinita”, erra-se porque o adjetivo é predicado como forma, a infinitude, porém, não é
forma e por isto não deve ser predicada deste modo:
c. resposta e provas: a) resposta: no sentido da definição adotada a paternidade não e
infinita – nem nenhuma das relações de origem é infinita; b) provas: 1) a unicidade do
infinito: não é possível que exista uma pluralidade de distinção real, em que cada qual
seja formalmente infinito – ora as relações de origem se distinguem realmente; logo; 2) as
perfeições simples são comunicáveis; logo a infinitude é comunicável; o que constitui as
pessoas, porém – exatamente as relações de origem, não é comunicável; logo não é
infinito; 3) as perfeições simples por causa de sua infinitude admitem uma predição mútua
no abstrato – as relações de origem não admitem esta predicação; logo, c) percebe-se
sem dificuldade, que esta doutrina supõe a “non-identitas formalis”; na suposição da
“distinctio rationis cum fundamento in re” os argumentos nada provam;
d. conseqüências: a) as relações em Deus – as pessoas não são formalmente infinitas,
pelo que ficou visto; nem são finitas, porque o finito é “pars” e como tal é excedido
necessariamente por algum ser; b) objeta-se: a divisão do ser em infinito e finito é
transcendental e por isto não existe ser que não seja um ou outro - responde-se: assim
se divide o ser que possui alguma “quantitas perfectionalis”, o que não vale da pessoa; c)
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daí segue-se que a pessoa como tal, formalmente, não é nem “partialis” (finita), nem
“totalis” (infinita) d) e segue ainda que nela não se verifica formalmente o conceito de
perfeição, mas tampouco o de imperfeição; não é “quantum in se habens aliquam
quantitatem perfectionalem” (Quodl. V, ed. Vivès, vol. XXV, p. 198-230).
54) O Filho possui relação especial à criação? Duns Scotus responde claramente que
não, desfazendo uma série de equívocos, que andam dificultando esta tese: este
Quodlibet é riquíssimo de doutrina (Quodl. VIII, ed. Vivès, vol. XXV, p. 342-365).
55) A liberdade da vontade e a necessidade “naturalis” poderão coexistir simultaneamente
sob o mesmo aspecto de ato e objeto?
a. Existe necessidade no ato de vontade divino, e isto tanto no ato de vontade essencial
pelo qual Deus se ama a si, quanto no ato de vontade nocional, pelo qual Pai e Filho
produzem o Espírito Santo;
b. esta necessidade “naturalis” não impede que o ato de vontade divino seja livre;
c. nem toda necessidade, porém, é “naturalis”, por isto a pergunta está mal formulada;
d. liberdade e necessidade podem coexistir na forma indicada – liberdade e modo de agir
“naturalis” não (Quodl. XVI, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 181-201).
56) A pessoa divina se constitui por algo positivo? Responde afirmativamente (Quodl. XIX,
ed. Vivès,vol. XXVI, p. 287-288).
57) Existirá algo de próprio na pessoa divina, que não pode existir na pessoa criada?
Responde afirmativamente, indicando a incomunicabilidade especial, que está na
impossibilidade de depender – e o constitutivo positivo (Quodl. XIX, ed. Vivès, vol. XXVI,
p. 287-288).
Conclusão
Para completar o quadro da doutrina trinitária de Duns Scotus, muitos outros pontos
deveriam ser mencionados. Mais que tudo – como foi frisado logo de início – teria sido
nesseçário mencionar, ponto por ponto, os argumentos do Subtil, pois que neles mais do
que tudo está a sua originalidade, está a sua doutrina trinitária. Para a finalidade deste
resumo, porém, basta o que ficou dito. Percebe-se quanto o conceito de pessoa e a
doutrina da “non-identitas formalis” estão onipresentes em todos os pormenores desta
doutrina e quanto são aplicados com coerência.
Dever-se-ia escrever um tratado sistemático da doutrina trinitária com os muitos
elementos que Duns Scotos legou à posteridade. Ele mesmo não elaborou um tratado
sistemático, mas ajuntou questão a questão, assim como apareciam a propósito dos
temas tratados pelo mestre das sentenças ou como lhe eram propostas nas questões
quodlibetais. Talvez também se abstivesse propositalmente de escrever um tratado
sistemático, por estar convencido demais do caráter fragmentário da revelação neste
assunto. Legou não só questões resolvidas, deixou muitas sem solução e outras vezes
rasgou horizontes ainda não explorados. Os escotistas terão levado avante as pesquisas
do mestre de sua escola? Quanto conhecemos os tratados trinitários escotistas, temos a
impressão de que se viram acuados à defensiva, sem conquistarem a oportunidade de
elaborações positivas, não apologéticas. Em suas apolologias do mestre nem sempre
foram felizes. Não atenderam suficientemente à coerência do pensamento, puseram-se a
defender pormenor após pormenor, enganando-se não raras vezes e tomando como
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afirmação de Duns Scotus o que ele de fato não afirmou. Outras vezes transformaram em
tese o que ele tinha aventado apenas como hipótese de trabalho. Para escrever um
tratado sistemático de doutrina trinitária, segundo Duns Scotus, antes de mais nada será
necessário voltar ao próprio texto do mestre e aferir com ele tudo quanto a escola
escotista afirma. Em seguida, retomar o fio da pesquisa, onde Duns Scotus o largou e
tentar seguir pelos caminhos por ele indicados. Ver-se-á depois até que ponto o caráter
fragmentário da revelação permite um conjunto sistemático. Nisto, porém, será necessário
cultivar também o espírito crítico do Subil, para não acontecer que demos passe livre a
doutrinas modalistas ou triteístas – como tantas vezes aconteceu durante o decorrer da
história
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O conceito de pessoa