Os imigrantes do Núcleo Colonial de
São Bernardo e a constituição do
subúrbio paulistano (1877-1902)
Alexandre Alves
Introdução
A criação de Núcleos Coloniais em São Paulo foi um processoque se instituiu dadas as necessidadesde alteração dos mecanismos de recrutamento de
mão-de-obra na transição para o trabalho livre. A partir de 1847 foram fundadas colônias particulares de terras que seriam cultivadas pelo sistema de parceria, pelo qual os colonos tinham direito a 50% da renda da colheita. Este sistema apoiava-seno processo imigratório, deslocando trabalhadores europeus de
diferentes regiões, que deveriamfazer a América, fugindo das crisesde abastecimento de regiões como o Veneto ou a Calábria na recém unificada Itália. As
colônias apareciam como possibilidade de ascensãosocial a camponeses ou
trabalhadores manufatureiros, ou de liberdade aos anarquistas perseguidos por
problemas políticos. Entretanto aspromessasde ganhos fáceis eram logo perdidas, pois os imigrantes tinham, já na chegada ao Brasil, que reembolsar os
gastos com suas passagensda Europa, com alimentação, médico e moradia,
acabando por serem aprision~dos por dívida. Até a década de 80 do séc.XIX a
vinda de imigrantes ainda era pouco significativa, mas a partir de 1884 o governo passoua subvencionar essetranslado em larga escalapara asfazendasde café,
cultivadas pelo sistema do colo nato - pelo qual os imigrantes ganhavam conforme a quantidade de café colhido, estimulando o trabalho familiar.
Conforme já fora definida desde a política de doação de terras para estrangeiros por D. João VI em 1808, quando introduziu
1.500 imigrantes
alemães no Espírito Santo, os Núcleos coloniais objetivavam o povoamento de áreas novas, tais como os núcleos i~stituídos no sul do país - baseados
no cultivo de terras em pequena propriedade.
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colônia
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Paulo teve três funções principais: resolver o pro-
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54
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devacânciae, finalmente, que atuassecomo meio
propagandísticopara a imigração estrangeira,divulgando a oportunidade de seadquirir um lote aosimigrantes que sedeslocassempara as fazendasde cafédo interior),
Os quatro núcleosestabelecidosem torno da Capital no séc.XIX - São
Caetano, São Bernardo, Glória e Santana - faziam parte de um plano do
governadorda Província,JoãoTeodoro Xavier, de reforma do espaçourbano da cidade e criaçãode um cinturão agrícolaestruturado para atender ao
abastecimentode gênerosalimenríciosem SãoPaul02,Essareforma pretendia europeizara cidade- centro político-financeiro e moradada elite cafeeira
- constituindo ao seu redor um banlieu coloniafe3encarregadode promover o abastecimentoatravésde um anel rural, que atuassecomo uma espécie de filtro entre o núcleo urbano e o sertãoinculto. O projeto foi inspirado em Curitiba, onde a partir de 1867 instalaram-se35 núcleos coloniais
nos arredoresda cidade,formando um verdadeiro"cinturão verde"4.A relação que se estabeleciaera assim, entre cidade, como sededo comando, e
subúrbio, como seuespaçocomplementar.
Porémasfunçõesreaisdessesnúcleoseramambíguas,por issosuaexistência acabou tendo mais um caráter experimental. Com efeito, o fracasso
dessatentativa de divisãodo trabalho entre asfazendasde cafémonocultoras
e os Núcleos Coloniais policultores (produtores de alimentos) acabou expondo oscamponeses
a uma situaçãocrítica, lançando-osa atividadeseconô-
Diadema nasceu na Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
micas marginais de natureza igual às dos posseirose foreiros da área na
épocada fazendados beneditinos.
Em 1874, foi criado o Núcleo Colonial de São Caetano, emancipado
em 1879, vivendo nos limites da miséria durante aquele período. Foi somente em 1887, quando promoveu-sea reativaçãodo Núcleo (com imigrantesrecém-chegadosdevido à política da "grande imigração" do governo), que esgotou-sea vendade lotesde terra do Núcleo Colonial. A atividade principal foi a vitivinicultura (plantio de uva e fabricação de vinho),
atividade arrasadaem 1888 quando uma praga destruiu asvideiras.A partir daí a atividade industrial pass~ua ser uma válvula de escapepara o
constantecrescimentodemográficodo Núcleo de SãoCaetano.
A mesmapragaatingiu o Núcleo Colonial de SãoBernardo entre 1893 e
1894. Naquele período a lavoura era uma atividade quaseinviável devido
às grandes dificuldades no desbravamentodo terreno, coberto de matas
virgense à má qualidadedos solos.Assim, a produção de vinho e alimentos
foi substituída pela extraçãode madeira e fabrico do carvão como única
atividade disponível aoscolonos no momento, embora fosseuma atividade
ilegal e punida pela chefia do Núcleo Colonial. Apesar disso, cresceuo
número de serrariasoperando na área.
Isolado pelo abandono do antigo Caminho do Mar e pela distância da
ferrovia, o Núcleo ficou décadassubsistindo de atividadesde pequenaexpressão.Segundoo Censode 1920, 50% da áreatotal dos estabelecimentos
rurais ainda era ocupadapor matasna regiãodo ABC.
As primeiraslevasde imigrantesparaSãoBernardoestabeleceram-se
entre
1876 e 1886, na SedeColonial e nasregiõesrurais limítrofes, com grandes
dificuldades, como aslinhas Jurubatuba e SãoBernardo Novo. Parachegar
à linha Capivary,por exemplo,em 1888, os imigrantes tiveram que percorrer de vinte a trinta quilômetros de picada na mata e, foram precisastrês
tentativas para a sua instalaçãonessalinha.
Em 1889, a regiãode SãoBernardoà qual pertenciao Núcleo, foi elevada de Freguesiaa Vila e em 1902 de Vila a Município. Essecrescimento
deve-seà diversificaçãode funçõesdos imigrantes, que deixavamde sededicar exclusivamenteà agricultura, ao rápido aumento da população (em
1874 tinha 2.782 habitantes,em 1886 tinha 3.667 e em 1900 tinha 10.124)
e à possibilidadede absorçãocontínua de mão-de-obra,sejana agricultura,~
55
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
S6
no comércio ou na indústria5.Dos quatro núcleos,o de SãoBernardo foi o
que permaneceuativo por mais tempo.
Naquele contexto, os imigrantes trazidospara os núcleosforam entendidos como potenciaisagentesda europeizaçãoda cidadeno processode transformação que a elite cafeeiraesperavada mudança do regime e da implantação do trabalho livre na Província.Esseimaginário republicano daselites
paulistasdesmascara-se
com os conflitos, que no decorrer da implantação
dos núcleos,ocorreramentre o governoe oscolonos.Revelou-sea distância
entre os projetos concebidose a realidadehistórica, refletindo-se na mudança de função dos núcleossuburbanosde SãoPaulo após 1886, quando
passama servir como meio propagandísticopara a atraçãode mão-de-obra
no contexto da "Grande imigração" dasdécadasde 80 e 90.
Nas páginas seguintesanalisaremosos conflitos entre o governo e os
imigrantes, acompanhando a atitude ambígua do governo, assimcomo as
correspondentesreaçõesdos imigrantes, ora de submissão,ora de revolta.
Perpassaessesconflitos a mudança de função dos subúrbios de SãoPaulo
entre a época da implantação dos núcleos (décadasde 70, 80 e 90) e o
novo contexto industrial da cidade de São Paulo, com a constituição de
bairros operários ao longo da via férrea (Brás, Mooca, Ipiranga, etc). De
"banlieu coloniale" os ex-núcleos coloniais tornaram-se fornecedores de
mão-de-obra, de matéria-prima e locais privilegiados para a implantação
da indústria em São Paulo.
A partir das fontes que analisamos,estabelecemos
dois períodos para a
fast:de implantação do Núcleo Colonial (1876-1902): de 1876 a 1886, da
fundação do Núcleo ao seu abandono e sua reativação;e de 1887 a 1902,
da fundação de novaslinhas de colonizaçã06até suaemancipaçãodefinitiva, quando ele foi devolvido à jurisdição da municipalidade.
Nos dois anos após a instalaçãodo Núcleo de São Bernardo, 1878-79,
diversos conflitos entre o governo e os colonos ocorreram, pela falta de
pagamento dos seussalários,falta de condiçõesde moradia, de ruas carroçáveis,médico e igreja no Núcleo e pela desilusãodos colonos face à terra
de má qualidade que adquiriram. Naquele período inicial aslevas?de imigrantes - na maior parte italianos, alguns alemães - eram exp°I'ltâneas, ou
seja,elespróprios custeavamsuasdespesas
de viagem. O governoapenasse
obrigava a pagar saláriosaos colonos por um ano - antesda primeira co-
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
lheita
-
pelos serviços de infraestrutura que deveriam realizar nas terras. De
1879 a 1886, a colônia foi parcialmente abandonada pelo Estado, que não
introduziu mais imigrantes uma vez que o governo foi assumido por um
grupo político que não via a imigração para o Núcleo como fundamental.
De 1887 a 1891 foi retomada a política imigratória anterior. Foram inauguradas mais seis linhas de colonização, ampliando os limites do núcleo e
introduzindo novas levas de imigrantes. Desta vez, o governo subsidiou, na
sua maior parte, as passagensdos colonos, porém eles não recebiam salários
pelas obras que tinham de realizar para o governo. Com as novas levas de
imigrantes que ingressaram no Núcleo, de imigrantes italianos, poloneses e
húngaros, entre outras nacionalidades minoritárias, houve maior diversificação e novos conflitos. Podemos observar na tabela (próxima página) o
total de imigrantes vindos para o Núcleo, porém tivemos que dividir os
dados em duas tabelas devido às numerosas nacionalidades que contribuíram para o povoamento de São Bernardo.
A chegada dos últimos grupos de imigrantes promoveu uma série de conflitos de menor amplitude que o grande conflito de 1878-79 por falta de
pagamento dos salários. Estes conflitos passarama ser da responsabilidade do
controle da região, que para isso construiu a cadeia pública e a seu lado o Paço
Municipal. Em 1894 e 1897, inauguram-se as duas últimas linhas de colonização: Campos Salles e Bernardino de Campos. As linhas anteriores emancipam-se em 1898, as novas linhas em 1902, quando cessaa responsabilidade
estatal sobre o Núcleo, devolvendo suas terras ao controle municipal.
o problema da sobrevivência
Os colonos viviam no núcleo em condição de isolamento, sendo constantemente vigiados e eventualmente punidos por seu comportamento.
Havia cuidado constantecom a suasaúde,dando-lhesassistência,pois eles
deveriam ser uma espéciede barreira entre o interior paulista - localda
indolência, dasdoençase da insalubridade,e a cidade-local da cultura, da
ordem e do trabalho. Não se concebia que os imigrantes europeus se
adoentassem
ou sobrevivessem
da mesmaforma que ossertanejosdo interior,
de atividadesmarginais- como o corte de lenhaparafazercarvãoe a cultura
de subsistência.Ao contrário, o seutrabalhodeveriaservigiado, seucompor-
57
TABELA A
- Imigrantes
de São Bernardo
(Ano x Nacionalidade)
Ano/Procedência
(nO de processos)
,
~I~~ha
~
597
1878
30 I
1879
13
1880
17
1882
5
1883
15
16
1885
58
1886
632
52
22
5
24
6
17
20
11 (Pilar)
13
TOTAL
6
19
1884
.
Nacional
(local de origem)
61
1876
1877
,
Austrlo
11
20
7
22
22
1887
253
253
1888
115
115
1889
46
48
1890
18
1891
35
1892
1893
2 (Ceara)
28
17
19 10 (SantoAmaro)
81
40
3
14 (Santo Amaro)
57
22
32
8
71
17
15
24
1895
34
34
1896
17
18
1894
1897
()
36
35
37
1535
Diadema nasceu no Grande ASC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
OBSERVAÇÓES:
1) Os dados são referentes apenas aos colonos que adquiriram
e pagaram lotes, excluindo os
ainda não estabelecidos na terra e os não residentes em São Bernardo. Consideramos
o ano
de estabelecimento do colono na terra e não o ano da chegada ou da compra do lote.
2) Na nacionalidade
italiana foram incluídos os tiroleses, pois apesar da região perrencer
administrativamente
ao Império Austro-Húngaro,
seu habitantes são na maior parte italia-
nos (o Titol foi devolvido à Itália em 1919).
3) Na nacionalidade austríaca foram incluídos apenas os imigrantes desta procedência com
sobrenome alemão.
4) Na nacionalidade polonesa foram incluídos os imigrantes russos vindos através da Polônia.
59
OBSERVAÇÃO:
exceçõesao fluxo geral de imigrantes: vieram os seguintes migrantes (trabalhadores
nacionais): 24 da antiga Colônia de Santo Amaro. 2 pessoasdo Ceará e 11 da cidade de Pilar;
reemigrados: 13 alemães de Santa Catarina e 2 armênios que vieram reemigrados da Argentina.
I
I
tamento controlado,
direcionado
para as
atividades "produtivas",
como a agricultura, para
a produção de vinho,
cereaise verduras o abastecimento da cidade.
Deste modo, a proi-
--
bição de cortar a lenha
nas matas antes do pa-
gamento dos lotes e,
depois de emancipado o núcleo, proibição municipal de cortar qualquer
lenha das matas em torno da povoação ("Mata Atlânticà') , sem a permissão
do município, formam circunscrevendo os limites de ação destes moradores. Ofício de 1902 pediu a criação do cargo de "zelador das matas", para
impedir a destruição destas. O cargo já havia sido pedido antes, em 1897, o
que atesta a permanência do problema. Porém, o cuidado do governo não
60
visava a preservação da mata virgem. Basicamente as medidas tinham três
finalidades: fixar os colonos na terra, impedir que os imigrantes se emancipassem exercendo uma atividade lucrativa (venda de madeira) e impor a
ideologia do trabalho. Dados geográficos atestam o processo de destruição
da Mata Atlântica paralelo ao processo de ocupação da região. A madeira
era utilizada para a construção civil, em dormentes para a ferrovia, para o
fabrico de móveis e principalmente como fonte de energia na maior parte
dos lares: o carvão. Com efeito, em 1920, já 50% das matas da região do
atual ABC haviam sido destruídas8. O Engenheiro Chefe do Núcleo Colonial escreveu um ofício em 1887 onde afirmou:
"Enquanto não seja emancipada a parte deste núcleo colonial, e
consequentementeremovida a Sededa Administração para uma das
linhas recém-colonizadasque mais carecemde fiscalização,torna-se
difícil fazer-seobservaro Regulamento em vigor [sobre o corte da
mata], por quanto, pela extensãoda Colônia, muitas vezesdão-se
fatos reprováveis,que só muito mais tarde chegaramao meu conhecimento... À vista do expostovenho pedir-vos, como uma boa providência, a admissãode um empregadode confiança, ao qual fique
incumbida a fiscalizaçãodasestradascoloniais, para observânciado
Diadema nasceu no Grande ASC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
artigo 31 e 32 do Regulamento Colonial e bem assim, impedir a
destruição das matasdos lotes não pagos,fato esteque aqui, apesar
de todas as medidas tomadas, constitui um verdadeiro abuso, que
muitas vezesnão pode ser coibido pois, quando chegaao meu conhecimento já o indivíduo destruiu a mata do lote e retirou-se clandestinamenteda colônia".
A destruição das matas era vista como uma atividade predatória, típica
dos antigos foreiros da fazendados beneditinos, uma atividade marginal,
não condizente com a visãoe o papel que seatribuía aoscolonos europeus.
Encarregadosde seremportadoresda "civilização",elesdeveriam implantar
astécnicasagrícolaseuropéiaspara o cultivo da terra9.Isto não era possível
porque a Europa não tinha uma agricultura tropical com terras virgens e
árvoresimensas.A culpa do empreendimento agrícola ter falhado foi atribuída pelaselites governantesà ignorância e mau caráterdos colonos e não
aosverdadeirosfatores: a acidezdas terras e a total falta de infraestrutura
agrícola. Quando, na décadade 90 uma praga, afiLoxera,devastouos vinhedos da região, único produto exportávelno momento, elespassarama
sededicar exclusivamenteà extraçãode madeira para produção de tábuas,
caixase carvão1O.
Como j~ foi dito, estaseram as únicas atividades que
restavamaosimigrantes, mesmo sendoconsideradaspelaselites como predatórias, não produtivas e relacionadaà população marginal que secularmente habitou a região.
Face à sua condição geográficade isolamento, longe da ferrovia, São
Bernardo não seindustrializou antesda décadade 40, permanecendocomo
subúrbio rural, ampliando a atividade de extraçãode madeira para a fabricaçãode dormentes para a ferrovia, de material para construçãocivil e fabricação de móveis.Já SãoCaetanoe SantoAndré começarama seindustrializar na décadade 10, devido à suamaior proximidade com SãoPaulo e
sua facilidade de comunicação,por estarempróximos da ferrovia.
Os antigos colonos adaptaram-seà nova função do subúrbio: industrial
- local de terrenos baratos,com mão-de-obra abundante e facilidadesde
comunicaçãopara a produção. Fora abandonadaa idealizaçãodo subúrbio
como "jardim da cidade", assim como dos imigrantes com seu trabalho
familiar e agrícolacomo padrão moral ideal. A partir da nova situaçãoeconômica, os colonos foram colocadossob o signo da periferia e da negativi-
61
Diadema nasceu no Grande ASC: História Retrospectiva da Cidade Vermelho
dade,sendoconsideradosapenascomo mão-de-obradisponível. Com efeito, nas décadasseguintes,continuou a migração para a região, mas com
predominância de nacionais, principalmente do nordeste, misturando-se
aosdescendentesdos colonos na mesmaluta diária pela sobrevivência
Tensões e conflitos com os poderes locais
Por um contrato com os colonos, o governoseobrigavaa dar-Ihessubsídio diário para os trabalhosde infraestrutura, além de fornecer-lhesalimentaçãodurante um ano, antesda primeira colheita. No início de 1878 houve
uma revolta que sealastroutambém por SãoCaetanoe Santanapor falta de
cumprimento dessasobrigaçõesdo governo.Os colonos invadiram a Sede
colonial e seqüestraram
o EngenheiroChefedosnúcleoscoloniais- Leopoldo
Joséda Silva- exigindo a intervençãodo governoprovincial sobresuasituação. O Engenheiro Chefe estavadesprovidodo poder de punir na ocasião,
pois encontrava-seem situaçãode risco - constrangido a escreverao governo pelos colonos que o seqüestraram- foi obrigado a admitir que elesti62
nham razão,por causado contrato efetuadocom o governo,como diz neste
ofício dirigido ao Presidenteda Província:
"Levoao conhecimentodeV. Ex a que há três dias me acho neste
Núcleo, afim de conter os colonos que estão desesperadoscom a
demora do pagamento de seussalários. Hoje invadiram a casada
administração, porque alguns ignorantes acreditaramque recebi o
dinheiro para estefim e que não o quero entregar.Consta-me que
hoje fazemuma deputaçãoa V. Ex a afim de solicitarem o pronto
pagamento e significaram-me bem claro o seu desejo para que eu
ficasseaqui atésuavolta. Estouportantoretido e peçoa V. Ex a
prontas providênciassobreo dito pagamento,afim de evitar conflitos que podem dar-se a todo o momento".
Posteriormenteo Engenheiro Chefe expôs- por ocasiãode outra revolta, pouco mais de um ano depois - seuverdadeiro pensamentoa respeito
dos imigrantes e expressoua necessidadede'Controlá-lose puní-Ios para a
manutenção da ordem. Conforme o discursodo Engenheiro Chefe, os colonos "ignorantes" demandavam a benevolênciado governo, que se via
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
desincumbidode paga-Iosjá que os subsidiarapor um ano, como podemos
ler no ofício abaixo dirigido por Leopoldo Joséao governo:
"Tenho a honra de levar ao conhecimento de V
a
Ex a que alguns
colonos do Núcleo de São Bernardo em número de 109, sendo os
cabeçasdo motim, os colonos de nomes ...{seguem-se6 nomes italianos)..., obrigando os outros com ameaçasa acompanharem-nos
para perturbarem a ordem, como verbalmente comuniquei a V a
Ex a pedindo providências,continuam do mesmo modo.
Os empregadosestãosendo perturbados e ameaçados,não podendo livremente encarregarem-se
em seusserviçosde medições.Rogo
a V a Ex a paraprovidenciar afim de que sejam punidos os cabeças,
para a ordem e a garantia, considero a estadadelescomo inconveniente ao núcleo...
Como oficiei a Va Ex ae verbalmenteinformei, o Governo marcou o
prazo de 6 mesesdentro do qual daria a diária que for estipulada,e
cumprida, finalizando o prazo marcado os colonos de S. Bernardo e
S. Caetanofizerãouma petiçãoao Governo que remeti ao Dr. Chefe
da Diretoria de Agricultura o que seaguardasolução,não fazendo-se
incluídos, senãoos maisnecessitados;
mas os colonos de S. B. entendem que devem perturbar a ordem com suaspertinazes reclamações,sem quererem aguardara deliberaçãodo favor que pedem".
A atitude esperadade quem recorria ao paternalismodo governo seriaa
humildade e não a revolta, como demonstra-seno rrecho abaixo, redigido
de próprio punho pelos imigrantes italianos, justificando sua revolta em
razãoda fome e da miséria e apelandoà magnanimidade do governo para
socorrê-los.Há uma adaptaçãodo discurso do~ imigrantes em relaçãoao
do governo,apóso choqueenrreambosmarcandoo início de uma assimilação (lingüística inclusive) - recursode sobrevivênciados imigrantes num
meio social hostil.
...nós vimos aos pés do Isenlentíssimo governo desta província
para que nos sejasocorrido - ou com gênero ou com dinheiro - os
"
abachoassignados- pedeestesocorro por mais 6 mesese esperamos
no Isenlentíssimo governo não nos fartar com esta caridade para
que nos tiver de barulho e desgraça,porque a miséria e a fome não
tem lei nem justiça; e a quando recebemosasnossascolônia era fora
de tempo de fazerplantações,somentepudemoslavra poucostereno
- estesfoi afim desteano não serDossívelcolher lavorae Dorestafarta
63
Diadema nasceu na Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
é que não temosestasmisériasde sofrimentosporanto esperamosno
Isdentíssimo governo que não nos farte com esta mizericordia e
dinvindade e a quem pode nos livrar de todos os mal que pode-se
proceder nestespobre agricultores que abachoseassignão"
Este processo permite a verificação da atitude ambígua das elites paulistas
em relação aos imigrantes, concebendo-os como desejados e temidos: desejados pois deviam ser os agentes da construção do regime republicano, da
nova ordem que se pretendia implantar, e temidos quando contrariassem as
expectativas e agissem de forma autônoma, tornando-se para as elites, então, geradores de "desordem"II.A
institucionalizar
República passava naquelo momento a
o sentido da ordem pela célebre definição da questão soci-
al ser "caso de políciá'.
Conflito semelhante ocorreu no processo de implantação dos imigrantes
alemães na colônia de Santo Amaro em 182712. Nesse caso, o temor das
elites em relação aos imigrantes era ainda mais claro. Eles foram da mesma
forma isolados do núcleo urbano e vigiados por um Engenheiro Chefe,
pois temia-se que realizassem uma revolta armada contra a cidade de São
64
Paulo. Este temor sejustificava pelos soldados alemães que na mesma época
se revoltaram no Rio de Janeiro por falta de pagamento do governo imperial pela sua participação na guerra pela Província Cisplatina, no sul do país.
A estratégia de vigilância foi semelhante, dispersando os colonos tidos como
"inconvenientes" e mantendo a localidade em isolamento.
Houve também conflitos de menor envergadura opondo os colonos que exigiam um mínimo de sociabilidade no subúrbio
o Engenheiro Chefe, o
Município e a SPR (The
São
Paulo
Railway
Company).Um ofício de
1894 do delegado da
Vila e outro de 1903 do
presidente da Câmara
Municipal
de São Ber-
nardo pediam que "não
se faça a inumação de
cadáveres sem o devido
-
e os poderes locais,
registro", ou seja,semo pagamentodo certificado e da sepultura.Em 1898,
conforme outro ofício, os colonos pediam a construçãode um "cemitério,
templo e residênciapara um sacerdotecatólico" - pedido negado, pois a
constituição da República vetava que "cultos religiosos fossem subvencionados pelo estado". O cemitério foi concedido, por razõessanitárias,
mas a igreja foi negada.
Ao lado do controle estrito do governosobreo Núcleo, atravésda figura
do Engenheiro Chefe, havia total falta de assistênciareligiosa, social ou
cultural aosimigrantes- formaselementaresde sociabilidade.Também não
havia edifícios para o exercíciodasfunçõespúblicas na Vila dos imigrantes.
O vigário de SãoBernardo (elevadade freguesiaa Vila em 1889), pediu no
ano de 1889 que o governomandasseconstruir edifíciosparao PaçoMunicipal e a Cadeiapública já que eleseramobrigatóriossegundolei provincial de
1885. O pedido foi indeferido pois esses
edifíciosdeviamserconstruídos"às
expensasdo povo"13.Houve freqüentesreclamaçõesa respeito do "estado
sanitário" da colônia, denunciandocasosde tifo e outras infecções.Mesmo
apósa emancipaçãodo Núcleo Colonial em 1902, a iluminação pública e os
serviçosde esgotoaindaeramextremamenteprecários- situaçãoque seagravara muito após o início da industrializaçãoda região na primeira década
desteséculo.Parao discursosecularda República, era primordial manter a
ordem, a salubridadee impor a ideologiado trabalho nascolônias,masnão a
assistênciareligiosa,hospital, águaencanadae a educaçãoprimária dos filhos
dos colonosl4.
Tais problemas,de restocomunsentre ascolôniasdo interior do Estado,
denunciaram a condição suburbanade SãoBernardo, apóso abandono do
projeto oficial para os Núcleos Coloniais dos arredoresde São Paulo. Do
idílico projeto - inspirado na cidadede Curitiba - de construir um banlieu
colonialeao redor da cidade,passou-seà concepçãodo subúrbio como "refugo da cidade", abrigo da indústria - atividade ligada à poluição e à sujeira
no imaginário das elites e por isso,isolada,posta "à margem"15.
Naquele contexto
-
entre essasduas concepções do subúrbio: como "jar-
dim da cidade" e como "refugo da cidade"- vieram seinserir os imigrantes,
também elesmarcadospela ambigüidade:desejadose temidos, indolentes e
morigerados,agentesda ordem e da desordem.
65
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
66
Houve conflitos também devido
à existênciado trabalho obrigatório
dos imigrantes nas estradasda Vila,
envolvendodestavezproblemasconsulares,que exigiram a intervenção
do Presidenteda Província.Conforme o Regulamento Colonial, os colonos eramobrigadosa trabalhar um
número variável de dias por mês no serviço de estradas,gratuitamente,
supondo-seque seriado seu interesseconstruir caminhos carroçáveispara
suaprodução.Após a emancipaçãodo núcleo, a municipalidade passoua se
utilizar do trabalho dos colonos para seusserviçospúblicos, dando orige~
a reclamaçõese a um incidente consularcom os colonos húngarosda linha
Bernardino de Campos. Na ocasião,o cônsul do Império Austro-Húngaro
remeteu ofício ao Presidenteda Província, pedindo satisfaçãosobre as reclamaçõesdos colonos. Eles foram obrigadosa trabalhar em obras de São
Bernardo, dois ou três dias por mês, sob ameaçade prisão. Da mesmaforma, os colonos poloneses,definidos em outro trecho como "morigerados"
escreveramum abaixo assinadopara recusaro trabalho nasestradasmunicipais. Veja como segue:
"Como nem roubamos, nem salquegamose nem conduzimos madeiras, não temos tanto interessenos melhoramentos deste caminho. Demais temos pagosos nossoslotes e cumpridos com as disposiçõeslegais,e os caminhos que passampor nossoslotes sãoquase
que exclusivamenteutilizados e estragadospelos gatunos, salquegadorese carroceirosde madeiras,ficando-nos, além disso, ainda impedidos na exportaçãode nossosprodutos...podemosperguntar por
que direito devemostrabalhar para essesúltimos, dos quais a maior
parte nem quer pagar,nem quer ficar nos lotes; que nos sejapermitido, uma vez esteestadode coisasacabado,trabalhar nos consertos
dos nossoscaminhos, mas só dentro da linha de Capivari'.
É notório nestedocumento como os imigrantes polonesesresistiramem
seremassimiladosao meio e adaptarem-seaosmodos tradicionais de vida
da população local (extraçãoe transporte de madeiras),ao contrário dos
imigrantes italianos e espanhóisque adaptaram-secom maior facilidade'6.
Diadema nasceu no Grande ASC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
Os polonesesconsideravamestesúltimos (italianos e espanhóis)os ditos
"gatunos,saqueadores
e carroceiros"que destruíamos caminhos,revelando
diferentesformas de assimilaçãoao meio e diferentesrecepçõesdo discurso
dos podereslocais pelos grupos nacionaisdo Núcleo.
Após a emancipaçãodo Núcleo, os conflitos continuaram ocorrendo,
porém agoradirecionadosa outras dimensõessociais,num nível mais cotidiano, maismicrossocial,com relaçõesmenosclaras.TomemoscomoexempIo um conflito de carroceirosda Vila de São Bernardo com a SãoPaulo
Rai/way Company - empresa que realizava as obras da construção da ferro-
via - pela utilização da ponte sob o Ribeirão dos Meninos, destruído pelas
obras da ferrovia. Um abaixo assinadodos negociantesdo Alto da Serra
alegaque
a "Companhia Ingleza tem a sualinha atravessandoplena povoação
[ou seja,a parte habitada e necessáriacomo passagemaoscolonos],
estabelecendofechosilegais, não dando passagensnecessárias";pedem que a câmaraintervenha para que a Companhia "restabeleçaas
primitivas passagens
e aumente o viaduto para boa regularizaçãoda
liberdade de comércio".
Ou seja,exigiam a reconstruçãoda ponte e a demolição das barragens
feitas para os trabalhos da ferrovia. No embate de poderesentre o grande
capital inglês e o humilde comércio dos carroceiros,que transportavam
carvãoou madeira, o fator alegadopor estesera a "liberdade de comércio",
adaptandoo discursoliberal daselitescomo fator de contestaçãonasatividadesdo seu cotidiano~
A atitude ambígua das elites
o~ imigrantesforam investidosno imaginário das elites paulistas de um duplo atributo:
desejado~ temido, conforme fossemidealizados como agentesda ordem que se pretendia
implantar ou como desordeirose vadios. São
diversosostermosnegativosaplicadosa elesnos
documentos,principalmenteaosimigrantesita-
67
lianos. São tratados como "ignorantes",
"indolentes",
"insubmissos"
e
"atravessadores", o termo oposto seria o "trabalhador morigerado", como o
tipo ideal de imigrante que se desejava receber.
a duplo atributo idealizado dos colonos lhes confere ora o "favor e a
graça" do governo, ora a sua desconfiança, refletida num sistema de vigilância e punições que, durante o período de implantação do Núcleo, pretendia
disciplinar os colonos. Era necessário excluir do corpo do Núcleo, do seu
"quadro colonial" os indivíduos "inconvenientes", perturbadores da ordem
ou seja, as células que comprometessem a saúde do Núcleo, contaminan-
-
do outros indivíduos, paralisando o trabalho. Esta preocupação é paralela
ao cuidado com a saúde pública no núcleo - morte de crianças, casos esporádicos de loucura, infecções eram entendidos como fatores comprometedores do sucesso da experiência dos núcleos coloniais suburbanos. No início de 1879 foi providenciada a contratação de um médico para atender os
núcleos de São Bernardo e São Caetano, o médico contratado - Dr. Hortêncio
de Mendonça Uchôa
-
informava periodicamente em ofícios ao Engo Chefe
sobre as "condições sanitárias" dos núcleos, como no ofício abaixo:
68
"Permita-me V.Ex a que eu faça algumas reflexõessobre o serviço
sanitário nos núcleos coloniais. Os núcleos de Glória e de Santa
Ana, além de emancipados,estãomuito próximos da cidade e por
isso no casode necessidadepodem ser recolhidos à.Santa Casa da
Misericórdia os colonos q' enfermarem.
... Os núcleosde SãoCaetanoe S. Bernardoacham-seem condições
diversas.Além da distância, em que estãoda cidade, não se podem
considerar emancipadose por isso entendo que durante o tempo,
em que o Governo pagar aos colonos diária para subsistirem até a
primeira colheita, deve igualmente prestar-lhessocorros médicos.
Além de desumano, seria prejudicial aos interessesdo Paísdeixar
morrer quase ao abandono colonos estabelecidossob a proteção
oficial e já de possedessefavor... ouso lembrar a v: Ex a a conveniência de sercontratado um médico q. semanalmentevisite os núcleos de S. Caetano e de S. Bernardo".
Um documento redigido três dias antespelo pr6prio Engenh~iro Chefe
expressavacom clarezao paralelismoda preocupaçãomédica e da preocupaçãocom a saúdedo corpo social nos núcleoscoloniais:
):_-'---~~.~~..nn ~rnnrl..
lJ.RC.Hiotnri" R"tr~~~"ctiva
da Cidade Vermelha
Ia visita que faço neste núcleo, verifiquei que sete famílias insisn no propósito de recusaros lotes de terra, livres de contestação,
e lhe tem sido oferecidos.
,mei a resoluçãode intimar-lhes o prazo de 24 horas para que,
ntro do perímetro do núcleo escolham a terra que melhor lhes
nvenha,sob pena de, não o fazendodentro do prazo fixado, sen eliminados do quadro colonial e expulsosdo núcleo.
ém dessasfamílias que considero verdadeiro foco de insubordição e indolência, há 8, cujos chefespor s~urepreensívelcompornento agravamainda mais a situaçãoatual do núcleo. A respeito
4, que podem corrigir-se em outra parte, aconselheio engenheichefe da comissãoincumbida da medição de lotes e estabeleciento de colonos, a entender-secom o diretor da f-íbrica de ferro
Ipanema,no sentido de recebê-losali.
uanto aosoutros, estou resolvido a expulsá-losdo núcleo, se não
udaremde conduta.
~I:) w.~';\"""~~,,,\.~
~ \.( .~'!
~ ~,"I:)~~~","\'I:).,
I:.w. ~\\.I:. ~~I:)\\' d.1:.~~~I:.t\.d.l:.t ';}.
rltregado auxílio gratuito e o abono da diária às famílias, cujos
flefesnão querem estabelecer-se
ou procedem mal.
no!;!;lvelaue estamedida produza alguma agitação."
9
o corpocolonialdeveriaestarsob constantevigilância e ser submetido à
punição,os elementosrecalcitrantesisoladose disciplinados ou excluídos
~m último caso. Essemecanismo de poder, que visavaconstruir uma "sociedade
disciplinar" às margensda cidade (como
uma espéciede experiência),não condizia
com a concepçãoque as elites tinham da
populaçãosertanejado interior do Estado
e dos antigos moradoresda região da Vila
de SãoBernardo.O corpo dessapopulação
- no pensamentodessaelite - era doente,
"indolente", desordenado,incivilizadoe por
issomereciaapenasdesprezo,devendoser
mantido à distânciada cidade "sã" e ordenada.Por isso,a localizaçãodos núcleossuburbanosde SãoPaulotambém foi concehic1:1
como um cordãoisolante.uma barrei-
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha
ra entre o sertão dos caboclos - onde grassam as infecções, e a cidade
- local
privilegiado da cultura e da sociabilidade.
A idealização do imigrante como trabalhador levou à estratégia da punição pelo isolamento e pelo trabalho, na idéia de que o trabalho é disciplinador
e a disciplina instaura "ordem'. Isto é expresso nos qualificativos opostos
atribuídos aos colonos: "indolente e insubmisso"f "trabalhador morigerado". "Morigerar"
sendo moderação dos costumes, moralização, disciplina-
mento, exemplaridade.
O paternalismo do governo, pelo qual os imigrantes ficavam durante
alguns anos submetidos ao regime de tutela, estritamente vigiados e disciplinados, pretendia fazer dos colonos esse "trabalhador ideal" - agente da
constituição deste novo corpo social a ser implantado na cidade de São
Paulo e cujo primeiro passo foi a urbanização a partir de 1872, chamada
também de "segunda fundação" da cidade.
Uma carta anônima, dirigida ao Presidente da Província, faz um apelo ao
paternalismo do governo, à propósito da atitude do Engenheiro Chefe em
70
relação à uma viúva com filhos recém estabelecida no Núcleo, negando-lhe
o subsídio dado pelo governo aos imigrantes durante o primeiro ano de seu
estabelecimento. Uma viúva, com efeito, diverge do padrão ideal do trabalhador que o Engenheiro esperava receber no Núcleo: agricultor, com vários membros masculinos na família e pacífico ou "morigerado" (o que inclui
abster-se de reclamações):
"Patma Pizami, emigrante italiana, estabelecidana colônia de S.
Bernardo, destacapital, que tendo chegadoapenashá três mesesda
Itália, e não podendo portanto ainda obrigar os lotes de terra que
lhe deram naqude núcleo a dar-lhe a alimentaçãonecessária
para sua
subsistênciae de seusfilhos, não compreendeo motivo por que o engenheiro diretor dascolôniasnega-sea dar-lhe alimentação.O mesmo
engenheirodeclarouque- sea suplicantenão quisesse
sujeitar-sea isso
(tradução:senão quisermorrer de fome), retire-seda colônia.
Oras, abusarassimda ignorânciados colonosé um ato inqualificável,
além de ser uma falta de caridade.Iludir pobres estrangeiros,trasêlos para estaprovíncia, e pretender obrigá-los a atos impossíveis- é
reduzí-los a uma escravidãopior que a dos nossoscativos.
A suplicante, não sabendo assignaro seu nome, leva este fato ao
conhecimentodev: Ex a para dar as providênciasnecessárias,certa
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva
da Cidade Vermelha
de que no Brasil não é intuito trocar escravosbrancos por escravos
pretos. É uma obra de caridade, que muito distinguirá a administraçãodeV. Ex a atender a suplicante".
Essacrítica veicula um discursoliberal e abolicionista, ligado à facçãoda
elite paulista que propugnavaa pequenapropriedadedo imigrante europeu
como meio para o desenvolvimentoda agricultura no Estado. O apelo ao
ideal humanista que teria inspirado o projeto imigratório - o de abolir a
desumanidadeda escravidãoe de construir o regime republicano com trabalhadoreslivres, isentosdo ranço da velha mentalidadeescravista- pressupõe que o imigrante não seja uma mera mão-de-obra, mas seja tratado
como parceiro do governo na construção do novo regime. A "ignorância
dos colonos" ressoacom o adjetivo pejoratiyo aplicado noutro documento
aosimigrantes que serevoltaramem 1878.pelafalta de pagamentodo subsídio. Nos dois casoshá idealizaçãodos imigrantes, ora como agentesda
ordem que se pretendia estabelecercom o regime republicano, ora como
comprometedoresda ordem disciplinar imposta na gestãod0 Núcleo Colonial. Reflete-seaí a atitude ambíguabásicados podereslocais em relação
aoscolonos: paternalismo e desprezo.
Por vezes,os conflitos entre os colonos e os podereslocais revestiram-se
de diferentes facesconforme o processode assimilaçãode imigrantes de
nacionalidadesdiferentes. Os chamadoscolonos "polacos" estabeleceramseprincipalmente naslinhas de colonizaçãoCapivary,Rio Pequenoe Campos Salles.Eles fizeram parte da segundaleva de imigrantes para o Núcleo
quando elefoi reativadoem 1887, como atestao ofício abaixodo lntendente
dos Núcleos Coloniais:
"...foi reiniciado o serviço (da colônia) a 8 do mês que se findou.
dando começono marco n o 8 da Linha Dr. CamposSallesafim de
dar caminho aoscolonos da mesmalinha; estescolonos são os novos slavosjos quais nesta colônia do Capivary tem sido o exemplo
na construção de suascasaSjmorigerados; observadoresdo artigo
18 do Regulamento".
Devido aosvários conflitos ocorridos na primeira fasede existênciado
Núcleo entreo governoe osimigrantesitalianos,agoraexperimenta-seoutras
nacionalidadescomo, além dos poloneses,os húngarose austríacos(cf. ta-
71
belasA e B acima). Nesseperíodo os italianos são qualificados nos documentos de "atravessadores"-- ou seja, carregadoresde carvão e madeira
extraídadasmatas,único meio de sobrevivênciaà suadisposiçãona época.
A assimilação,a adaptaçãoao meio de vida tradicional dos ~cupantesantigos da região acabarelacionando a sua imagem - no imaginário da elite
imigrantista - à dos sertanejosdo interior, ao seucorpo social "indolente",
avessoao trabalho "produtivo". Por isso, a atividade de "carroceiro", ou
"mercador de madeiras"é reprimida e duramente tachadapela câmarade
SãoBernardo - esquecendo-se
de que é a única fonte de energiatanto para
72
os laresquanto para aspequenasindústrias na regiãol7.Porém, como indicam os dados de entrada de imigrantes na colônia (cf. tabela B, acima), os
italianos mantiveram os números na segundaleva, pelo procedimento dos
colonos já estabelecidosrequisitarem ao governo a colocaçãona colônia (o
custeio daspassagens)
de seusparentesresidentesna Itália. Conflitos semelhantes com o poder local levaram a atitudes diferentespor parte dos imigrantesitalianos e dos imigrantespolonesese húngaros.Os primeiros adaptaram-seaos meios de vida suburbanos,já os outros isolaram-seem seus
lotes e recorreramao consuladode seuspaíses,como no problema do trabalho obrigatório nasobras do município. Isso talvezexplique em parte porque preservou-seuma memória histórica local dos imigrantes italianos e
nenhuma memória dos "polacos" no Grande ABC.
Considerações
Finais
No percurso que realizamos, talvez alguns dados pareçam um pouco
desconexos: uma revolta e muitas pequenas contestações que permeavam o
cotidiano dos imigrantes na sua luta diária pela sobrevivência. Porém, contrariamente à grande história político-social das revoluções e grandes movimentos populacionais, a história local exige outras preocupações, como acentua o sociólogo José de Souza Martins:
"Na história local e cotidiana estãoascirscunstânciasda História. É
nessesentido que a história do subúrbio é uma história ~ircunstancial. O que permite resgatá-Iacomo História? A junção dos fragmentos da circunstância- quando a circunstânciaganhasentido, o
sentido lhe dá a História."
Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectivo do Cidade Vermelho
Juntando os fragmentos dessahistória da derrocadade um projeto das
elitesrurais e das contestaçõesdos colonos contra os que pretendiam fazer
delesapenaspeçasde um sistema,podemos fazer uma idéia dos sujeitos
sociaisque deram origem à atual regiãodo Grande ABC - precursoresdos
operáriosque décadasdepois preservariama tradição de luta pela autodeterminaçãoe pela sobrevivência.
Nos apoiamos na hipótese básicade que a mudança do discurso dos
podereslocais em relaçãoà função do subúrbio e de seusimigrantes acompanha a adaptaçãodessesimigrantes ao meio, no Núcleo Colonial de São
Bernardo. Essa adaptaçãoé compreendida no discurso das elites como
negadorada suaconcepçãode trabalho e do imigrante como "trabalhador
ideal" e "construtor da ordem".
A atitude ambíguaem relaçãoaosimigrantes, concebendo-osao mesmo
tempo como desejadose temidos, agentesda ordem e da desordem,é gerada pelasuaidealizaçãocomo objeto daselites,como "personagens6ccionais"
do seuimaginário.
Na medida em que o investimento de desejodas elites nos imigrantes é
contrariado pelasreaçõesdestesdiante dos problemasdo seucotidiano, ou
seja,quando seautonomizam,aqueleimaginário passaigualmentedo paternalismo ao desprew peloscolonos.Essapassagemdiscursivaé também passagemdo subúrbio da função rural para a função industrial, acompanhada
de suasrepresentações
no imaginário: jardim de cidade e refugo da cidade.
A mudançado discursoem relaçãoao subúrbio e aosimigrantes é acompanhadapelo processode proletarizaçãodestes,dedicando-seàs novasatividadessurgidas:a indústria - como operáriosda ferrovia, dasserrarias,das
olariasou das primeiras indústrias de transformaçãoda região.
Notas
I
Cf GADELHA, Regina M. A. F. Os núcleoscoloniais e o processode
acumulação cafeeira (1850-1920):
contribuição ao estudo da colonização
em São Paulo, São Paulo, 1982 (tese de doutoramento apresentada ao de-
partamento de História da USP) e MIYOCO, Makino
- "Contribuição ao
estudo da legislaçãosobrenúcleoscoloniais no período imperial" in: Anais
do Museu Paulista, SãoPaulo, USP,Tomo XXV, p: 81-130.
73
2
Cf. LANGENBUCH, JuergenR. "OS Núcleosde colonizaçãooficial
implantados no planalto paulistano em fins do século XIX" in: Boletim
Paulista de Geografia,n° 46, p: 88-106, dez/1971.
3Banlieu Coloniale é uma expressãogeográficafrancesa,significa subúrbio
rural, refere-seao cinturão verde construído ao redor de algumascidades.
4 Cf. BERNARDES, Lysia M. C. "Problemasda utilização da terra nos
arredoresde Curitibà' in: RevistaBrasileira de Geografia,Ano XVIII, N o
2, p:169-76, abril/junho de 1956.
5 Cf. AGAZZI, Constantino. Das regiõeslombarda e vêneta ao Núcleo
Colonial de São Bernardo: acompanhandoo imigrante italiano (tesede
mestrado ao departamento de História da USP), p.99.
6 Linhas de colonizaçãoeram asáreasem que foi dividido o Núcleo para a
divisão dos lotes de terra, deram origem aosatuaisbairros de SãoBernardo,
como Bernardino de Campos e Rudge Ramos.
7 Chamamos de levasaos grupos numerososde imigrantes que chegavam
74
anualmenteao Núcleo.
s Cf. SCIFONI, Simone. O verde do ABC: reflexõessobre a questão
ambiental urbana (tesede mestradoao departamentode Geografiada USP),
p: 56-78.
9 Cf. HOLANDA, SérgioBuarquede. "Persistênciada lavoura de tipo predatório" in: Raizesdo Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p:
66-69.
]0Em 1900 foram produzidos no Núcleo total de 7720 tábuaspara soalho,
forro, caibros ou vigas; 120 mil caixaspara charutos, macarrão,velase sabão e 15750 sacosde carvão,totalizando 160: 388 200 reis de exportação.
I1Cf. ZENHA, Edmundo - '~ colônia alemãde SantoAmaro, suainstalação em 1829" in: Revistado Arquivo Municipal, Ano XVI, Vol. CXXXII,
p: 53-106, março de 1950.
]2Cf. Ofício do Vigário da Vila de SãoBernardo,TomásInocêncio Lustosa,
ao Presidenteda província de 11-8-1889, Arquivo do Estado, Ofícios di-
versos- SãoBernardo(1823-1889),caixa462, n o de ordem: 1257.
13Cabe exemplificar a necessidadede vigilância do trabalho pela construção de um Panopticonem Paranapiacaba,na época pertencenteà Vila- de
Diadema
nasce_~_~~AB~~istória
Retrospectiv~a~idade
Vermelha
SãoBernardo. Havia uma torre de observaçãono ponto mais alto da vila
ferroviária, onde residia o Engenheiro Chefe da ferrovia, as casaseram
construídasem forma de anel em torno desseponto, constituindo um espaço de visibilidade total, em que cadaum eravigiado por todos os outros. cf.
FOUCAULT, Michel- "O olho do poder" in: Microftsica do Poder,Rio de
Janeiro,Ed. Graal, 1996, p: 209-227.
14C( MARTINS, José de Souza - Subúrbio - Vida cotidiana e História no
subúrbio da cidade de SãoPaulo: São Caetano,dofim do Império aofim
da República Velha.SãoPaulo, Hucitec, 1992, p: 110-118.
15C( MARTINS, Joséde Souza- "A imigração espanholapara o Brasil e a
formaçãoda força de trabalho na economiacafeeira:1880-1930" in: Revista de História, SãoPaulo, n° 121: 5-26, ago/dez. 1989.
16C( Abaixo assinadosde carroceirosda Vila de SãoBernardode 1-8-1902
e de mercadoresde lenha de Ribeirão Piresde 7-2-1902, pedindo dispensa
de pagar o "imposto de mercador de lenhà'; c( também Abaixo assinado
dos produtores de carvão vegetal de São Bernardo contra o aumento de
80% do imposto municipal sobreo carvão, 20-11-1923, Museu de Santo
André, Avisos ao procurador da Câmara,localização:S18(M1).
75
Download

Os imigrantes do Núcleo Colonial de São Bernardo e a