OFICINA DA PESQUISA Prof. Ms. Carlos José Giudice dos Santos [email protected] www.oficinadapesquisa.com.br APOSTILA 3 INTRODUÇÃO À ENGENHARIA Belo Horizonte 2014 Solução de problemas em engenharia [1] Na visão de Holtzapple e Reece (2013), os engenheiros são contratados para resolver problemas, e a busca de soluções passam quase sempre pela ciência, embora a aptidão do engenheiro seja muito mais artística que científica. Uma vez que concordamos que os engenheiros resolvem problemas, surge uma questão: que tipo de problema os engenheiros resolvem? Vejamos um relato de uma mãe preocupada: “Ah, minha filha é uma pessoa tão boa, tão prendada! É uma pena que ela não arrume um homem bom para casar...”. Uma coisa que posso garantir é que este é um tipo de problema que os engenheiros não estão habilitados a resolver. Pode até ser que a filha desta mulher tenha a sorte de encontrar um engenheiro algum dia, e que ele passe a gostar dela e resolva o seu problema de solteirice. Entretanto, este não é o tipo de problema para o qual as escolas de engenharia preparam os seus alunos. Os problemas para os quais os engenheiros devem ser preparados para buscar soluções são aqueles que envolvem situações de ordem técnica para as quais não há uma solução óbvia. Surge então outra questão: como os engenheiros resolvem este tipo de problema? Solução de problemas em engenharia [2] De acordo com Bazzo e Pereira (2013), existe um certo consenso que os engenheiros são profissionais frios, calculistas e dedicados apenas a problemas técnicos. Embora o engenheiro resolva problemas que demandam o uso de técnicas, esta visão estereotipada da profissão deve ser revista. Os mesmos autores afirmam que “engenharia é uma soma de ciência, arte, técnica, experiência e bom senso” (BAZZO e PEREIRA, 2013, p. 112). Assim, não basta a técnica; o engenheiro depende antes de tudo da sua criatividade. Neste sentido, a criatividade é a base da solução de problemas de engenharia. Estes mesmos autores relatam que a criatividade depende de ideias – em especial, da quantidade, qualidade e diversidade delas. Definir criatividade é uma tarefa muito difícil. Alguns dizem que a criatividade é o parque de diversões da inteligência. Outros, que é a capacidade de pensar diferente. Há ainda aqueles que consideram a criatividade como a capacidade de criar ideias novas a partir de ideias já conhecidas. Eu particularmente, gosto de uma definição que escutei certa vez em um programa de rádio, que dizia: “Criatividade é enxergar o óbvio antes dos outros”. Este pensamento é interessante. Hoje nos parece óbvio que utilizar rodas para mover uma caixa pesada é algo mais sensato... Solução de problemas em engenharia [3] [...] de se fazer do que simplesmente empurrar esta mesma caixa pelo chão. No entanto, alguém teve que pensar isto primeiro, e assim descobriu uma solução. Veremos a seguir alguns tipos de problemas que os engenheiros estão aptos a resolver. Problemas de Pesquisa Na ciência existem casos em que uma teoria apresenta uma ou mais hipóteses, que devem ser comprovadas ou refutadas. A teoria atômica, por exemplo, passou por várias evoluções à medida que experiências empíricas eram realizadas para poder comprovar hipóteses. Durante muito tempo acreditou-se que o átomo fosse indivisível. Após pesquisas, comprovou-se que o átomo era formado por prótons, nêutrons e elétrons. Mas as pesquisas não pararam aí. Novas teorias sinalizaram que estas partículas fundamentais seriam formadas por partículas ainda menores chamadas de quarks. A única maneira de poder comprovar isso seria construindo uma máquina chamada de acelerador de partículas, capaz de acelerar átomos a uma velocidade próxima a da luz. Algumas dessas máquinas foram construídas ao redor do mundo, seguindo a especificação dos cientistas e sob a supervisão de engenheiros. Solução de problemas em engenharia [4] Recentemente a teoria quântica apontou a existência de partículas ainda menores, chamadas de bósons e férmions. Uma destas partículas, o Bóson de Higgs teria se formado apenas no Big Bang, explosão que deu início ao universo. Fora da comunidade acadêmica, esta partícula é carinhosamente chamada de Partícula de Deus. Para comprovar a sua existência seria necessário a construção do maior acelerador de partículas de todos os tempos. Ele foi construído na fronteira entre a França e a Suiça utilizando as mais esmeradas técnicas de engenharia. Ele se chama Grande Colisor de Hádrons (Large Hadron Collider – LHC). É considerado como a maior máquina e o maior laboratório do mundo. Basicamente, é formado por vários túneis, sendo que o principal deles corresponde a uma circunferência de 27 Km de extensão, construído debaixo da terra, a uma profundidade de 100 metros da superfície. Ele está funcionando desde 2008, e a sua construção demandou a colaboração de mais de 100 países, e um custo superior a 10 bilhões de dólares. O sistema de refrigeração do LHC é considerado como o maior frigorífico do mundo, exigindo cerca de 10.080 toneladas de azoto líquido (-193,2ºC) e 120 toneladas de hélio líquido (-271,3ºC) para manter frios os 1232 crioimãs (cada um com 35 toneladas). Solução de problemas em engenharia [5] Quando o LHC é posto em funcionamento, algumas partículas (geralmente prótons) são aceleradas por um período que, em alguns casos, pode chegar a 60 dias. Quando dois prótons estão acelerando, eles chegam a dar mais de 11 mil voltas por segundo na circunferência de 27 Km. No momento da colisão, a energia liberada é tão grande que a temperatura pode chegar a 10 mil trilhões de graus centígrados (cerca de 1 milhão de vezes mais quente que o centro do sol). Todos os números relacionados ao LHC são superlativos e demonstram os desafios técnicos superados pelos engenheiros que o construíram. Problemas de Defeito De acordo com Holtzapple e Reece (2013), os problemas de defeito acontecem quando equipamentos se comportam de forma inesperada ou imprópria. Um bom exemplo ligado a um defeito inesperado está ligado a um equipamento de segurança de voo usado no Brasil na década de 1970. Até o final da década de 1960, para um avião saber da proximidade de um aeroporto ele tinha que utilizar a frequência de rádio para ouvir o sinal de um NDB (Non Directional Beacon – Transmissor não direcional) em código Morse. Solução de problemas em engenharia [6] No final da década de 1960 e início da década de 1970, tornou-se comum um outro tipo de transmissor, mais moderno, chamado de VOR (VHF Omnidirectional Range), um tipo de transmissor que gera um sinal radial que, quando é seguido, coloca o avião na exata direção da cabeceira da pista do aeroporto. Estes transmissores são aferidos periodicamente, porque não podem fornecer informação errada. Quando há qualquer tipo de desvio, por mais leve que seja, o VOR é automaticamente desligado. Quando isto acontece, um sinal de alerta é enviado para a manutenção, que envia um técnico para colocar o VOR em funcionamento de novo. Estas panes aconteciam quase sempre em momentos de chuvas intensas, o que levou um técnico de manutenção curioso a estudar o manual de instalação do VOR. Em geral, o VOR é instalado dentro de uma instalação blindada de ferro circular, em um local mais elevado que a pista, a uma distância mínima de pelo menos 5 Km da cabeceira da pista. Esta instalação é feita por engenheiros dos fabricantes do transmissor. Ao ler o manual de instalação, o técnico descobriu que o VOR tem uma resistência que esquenta a antena, necessária para o funcionamento em países de clima frio, especialmente em casos de queda de neve. O problema era que esta resistência havia sido desligada neste ... Solução de problemas em engenharia [7] [...] transmissor desde a sua instalação. Os engenheiros deduziram erroneamente na época da instalação que, pelo fato do Brasil ser um país tropical, não haveria a necessidade de ligar a resistência de aquecimento da antena. Entretanto, toda vez que havia uma chuva forte, o VOR saía do ar. Isto acontecia geralmente de madrugada, quando as temperaturas normalmente são mais baixas, e a chuva tornava isto ainda pior. Não tinha jeito; em nome da segurança dos voos, o técnico tinha que sair da cama de madrugada e, debaixo de chuva, colocar o VOR em funcionamento de novo. Muitas vezes ele só conseguia fazer isso depois que a chuva cessava. Ligando estes fatos, o técnico resolveu ligar a resistência de aquecimento da antena, e a partir daí, a quantidade de panes por ocasião de chuvas e/ou baixas temperaturas caiu drasticamente. Problemas de Conhecimento Na visão de Holtzapple e Reece (2013), problemas de conhecimento acontecem quando as pessoas se deparam com uma situação que não entendem. Um caso que aconteceu comigo ilustra bem o perigo da falta de conhecimento, ou melhor, o perigo que é ... Solução de problemas em engenharia [8] [...] pessoa achar que sabe, mas ela não tem ideia do que está falando. Certa vez fui atender a um cliente (uma pequena empresa de mineração) que estava tendo muitos problemas com os computadores. O fato da empresa ficar praticamente no meio do mato, e o ambiente ser muito exposto a pó era um grande problema. Além disso, queimas constantes de fontes chaveadas de alimentação dos computadores me levaram a investigar a rede elétrica, e eu descobri que grande parte do problema estava relacionado com isso. Os computadores eram ligados na mesma fase de alguns motores elétricos monofásicos de baixa potência que ocupavam o mesmo galpão, e ainda tinham o agravante de não ter aterramento. O responsável pela empresa falava que os computadores tinham estabilizadores de tensão e filtro de linha, e que criar um circuito separado e um aterramento só para a área de informática era “frescura”. Eu expliquei a situação e falei que se eles quisessem, eu poderia fazer um projeto para separar um circuito e fazer um aterramento para os equipamentos de informática. Reiterei que proceder desta maneira (separar o circuito e criar um aterramento) não seria um gasto, mas um investimento em segurança. Solução de problemas em engenharia [8] O responsável (ou irresponsável) respondeu que ia pensar no assunto, e não voltou a entrar em contato. Algumas semanas depois eu fui chamado à empresa para debelar um “desastre”. Todos os computadores do galpão, sem exceção, tiveram suas fontes queimadas durante uma descarga elétrica em uma tempestade, e ele afirmava que parte da culpa era minha, porque eu insisti que eles fizessem um aterramento, e eles fizeram. Compareci à empresa para verificar como eles tinham feito o aterramento. O responsável acatou uma opinião de um funcionário que falou que as vigas de sustentação do galpão eram de ferro e estavam enterradas no chão. Assim, elas forneceriam um bom aterramento. Eu escutei esse argumento e olhei para o teto do galpão, um telhado de folhas de zinco com uma armação estrutural de ferro. Então eu falei: “Olha, vocês não fizeram um aterramento; fizeram um páraraios”. E completei: “Assumindo que só as fontes dos equipamentos tenham queimado, o conserto de todos estes equipamentos vai ficar muito mais caro do que a implantação do projeto que eu aconselhei, que era separar um circuito para a parte de informática e fazer um aterramento de acordo com as normas”. Juro que me deu vontade de dizer: “Eu avisei!”. Solução de problemas em engenharia [9] Problemas matemáticos Físicos e matemáticos enxergam o mundo como fenômenos físicos e equações matemáticas, respectivamente. Engenheiros enxergam os fenômenos físicos como aplicações práticas, e as equações matemáticas como ferramentas para construir especificações de produtos e processos. Assim, o dia em que vocês estudarem eletromagnetismo e as equações de Maxwell, o que vocês enxergarem como vetores de campo elétrico e magnético e as equações que descrevem essas relações, mais tarde, como engenheiros, vocês enxergarão transformadores, motores elétricos e linhas de transmissão. Problemas de Projeto “Os problemas de projeto são o coração da engenharia” (HOLTZAPPLE e REECE, 2013, p. 56). Esta frase resume os grandes desafios dos engenheiros: projetar algo de acordo com determinadas especificações e descobrir falhas de projeto, que jamais ocorreriam em teoria, mas que podem ocorrer na prática. Vamos ver um exemplo da segunda alternativa. Solução de problemas em engenharia [10] A General Motors (GM) nos Estados Unidos recebeu uma carta de um cliente com uma reclamação inusitada. Esse “causo”, veiculado pela internet, é retratado a seguir: “Esta é a segunda vez que mando uma carta para vocês, e não os culpo por não me responder. Eu posso parecer louco, mas o fato é que nós temos uma tradição em nossa família, que é a de comer sorvete após o jantar. Repetimos este hábito todas as noites, variando apenas o tipo do sorvete, e eu sou o encarregado de ir comprá-lo. Recentemente comprei um novo Pontiac e, desde então, minhas idas à sorveteria se transformaram em um problema... Sempre que eu compro sorvete de baunilha, quando saio da loja para voltar para casa, o carro não funciona. Se compro qualquer outro tipo de sorvete, o carro funciona normalmente. Os senhores devem achar que eu estou realmente louco, mas não importa o quão tola possa parecer minha reclamação. O fato é que estou muito irritado com meu Pontiac”. Essa carta gerou tantas piadas dentro da GM que o presidente da empresa acabou recebendo uma cópia da reclamação. Ele resolveu levar a sério e mandou que um engenheiro fosse conversar com o autor da carta. Solução de problemas em engenharia [11] O funcionário e o reclamante, um senhor bemsucedido na vida e dono de vários carros, foram juntos à sorveteria no fatídico Pontiac. Ao testar a reclamação, o carro efetivamente não funcionou. O funcionário da GM voltou nos dias seguintes, à mesma hora, e fez o mesmo trajeto, e só variou o sabor do sorvete. Mais uma vez, o carro só não pegava na volta quando o sabor escolhido era baunilha. O problema acabou virando uma obsessão para o engenheiro, que passou a fazer experiências diárias, anotando todos os detalhes possíveis e, depois de duas semanas, chegou à primeira grande descoberta. Quando escolhia baunilha, o comprador gastava menos tempo, porque este tipo de sorvete estava bem na frente da sorveteria, pois era o sabor preferido da clientela. Examinando o carro, o engenheiro fez nova descoberta: como o tempo de compra era muito mais reduzido no caso da baunilha, em comparação aos tempos dos outros sabores, o motor não chegava a esfriar. Com isso, os vapores de combustível na câmara de combustão não chegavam a se dissipar, impedindo que a nova partida fosse instantânea. Em outras palavras, havia uma falha não antecipada de projeto. Solução de problemas em engenharia [12] A partir deste episódio, a GM mudou o sistema de alimentação de combustível e o desenho da câmara de combustão, introduzindo a alteração em todos os modelos Pontiac a partir desta época. Mais que isso, o autor da reclamação ganhou um carro novo, além da reforma do carro que não pegava com “sorvete de baunilha”. A GM distribuiu também um memorando interno, exigindo que seus funcionários levassem a sério até as reclamações mais estapafúrdias, “porque pode ser que uma grande inovação de projeto esteja por atrás de um sorvete de baunilha”, segundo a carta da GM. Outros problemas típicos de engenharia Além dos tipos de problemas registrados até aqui (problemas de pesquisa, de defeito, de conhecimento, matemáticos e de projeto), existem outros, como os problemas de recursos ou os problemas sociais. Os dois casos relatados no parágrafo anterior são problemas em que os engenheiros devem utilizar toda a sua capacidade criativa para chegar a uma solução adequada. Talvez o problema mais comum seja o de recursos, pois muitas vezes, um engenheiro deve buscar uma solução para um problema que lhe é ... Solução de problemas em engenharia [13] [...] apresentado, apesar da falta de recursos financeiros, humanos e tecnológicos. Como em quase todas as profissões, os engenheiros são pressionados para mostrar resultados, e muitas vezes, ele esbarra na falta de recursos. Assim, as grandes empresas costumam valorizar muito os engenheiros que, apesar da falta de recursos, conseguem viabilizar soluções que resolvem os problemas. Com os problemas sociais não é diferente. Holtzapple e Reece (2013, p. 56) dão um exemplo de criatividade necessária ao engenheiro de produção, que ao instalar uma fábrica em uma região em que a mão de obra qualificada é escassa, ele ajusta o programa de treinamento dos novos funcionários de forma a permitir que eles aprendam as operações, apesar do baixo nível de leitura deles. Em outras palavras, deve criar estratégias adequadas às mais diversas situações, inclusive as sociais. Uma vez que um problema é apresentado como um desafio a um engenheiro (ou a uma equipe), existem algumas técnicas consagradas que podem se devem ser utilizadas: o projeto, a modelagem, a simulação e a otimização. É o que veremos nas próximas apostilas. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do Vale. Introdução à engenharia: conceitos, ferramentas e comportamentos. 4. ed. Florianópolis: UFSC, 2013. BROCKMAN, John; MATSON, Eric (Orgs.). As coisas são assim: pequeno repertório científico do mundo que nos cerca. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. HOLTZAPPLE, M. T.; REECE, W. D. Introdução à engenharia. Rio de Janeiro: LTC, 2013. LARGE HADRON COLLIDER (LHC). In: Science & Technology Facilities Council. Disponível em: <http://www.stfc.ac.uk/646.aspx>. Acesso em: 12 set. 2014. SIMMONS, John. Os 100 maiores cientistas da história: uma classificação dos cientistas mais influentes do passado e do presente. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.