LIMÕES DE CHEIRO E INDUMENTÁRIAS: A REPRESENTAÇÃO
DO DIA D’ENTRUDO NA AQUARELA DE JEAN-BAPTISTE
DEBRET
Sandra C. A. Pelegrini (UEM).
Mariane Pimentel Tutui - (UEM).
RESUMO: A presente comunicação de pesquisa tem como objetivo ressaltar a
importância dos registros pictóricos do artista francês Jean-Baptiste Debret durante sua
estadia no Brasil nos anos de 1816 a 1831. Debret se identifica com o estilo
neoclássico do mestre Jacques- Louis David e ambos tornam-se artistas prediletos da
corte de Napoleão Bonaparte, a partir de então, sua obra passa a enaltecer ainda mais as
campanhas militares. Com a queda de Napoleão e a vinda da “Missão artística
francesa” para o Brasil, Debret é contratado como pintor da Academia Real de BelasArtes e como tal desenvolve estudos pictóricos que revelam o cotidiano do Brasil
oitocentista, iluminado pelo sol dos trópicos. Será por meio da análise da aquarela Dia
d’entrudo (1823) que iniciaremos nossa discussão sobre a cena de Carnaval,
excepcionalmente retratada por Debret; onde o artista nos revela a exuberância das
cores, das indumentárias e da criatividade.
Palavras-Chave: Jean-Baptiste Debret, limões de cheiro, indumentárias.
O artista Jean-Baptiste Debret nos deixou obras riquíssimas para o estudo do
Brasil no século XIX e através de seus expressivos traços podemos estudar diversos
aspectos da construção da identidade brasileira.
1
Nascido na famosa Paris do século XVIII, Debret cresceu em uma família
composta por artistas: filho de Jacques Debret (um estudioso de arte e história natural) e
sobrinho-neto de François Boucher (grande representante do Rococó), Debret também
era primo do grande mestre do Neoclássico, Jacques-Louis David, com quem tivera
aulas na Escola de Belas Artes de Paris. Seu irmão mais novo François Debret,
futuramente tornou-se arquiteto e membro do Instituto de França e Jean-Baptiste Debret
(nosso objeto de estudo), além de pintor fora também gravador, desenhista, professor,
cenógrafo e decorador.
Juntamente com seu mestre David, disseminou o estilo Neoclássico ao enaltecer
aspectos da cultura da antiguidade grega predominantes neste estilo e trouxe para suas
telas cenas histórias, políticas e mitológicas. Criado nos cânones do Iluminismo, os
quais seguiam os conceitos de igualdade, liberdade e direitos do homem, Debret
vivenciou a Revolução Francesa e integrou o grupo dos Jacobinos ao lado de David 1; a
partir de 1805 começou a fazer parte do seleto grupo de pintores de Napoleão
Bonaparte, o que favoreceu sua participação nos salões e exposições.
A queda de Napoleão em 1815 e a partida do mestre David para a Bélgica,
somadas a perda de seu único filho e a separação de sua esposa, abalaram a vida de
Debret. Diante de tudo isto, ele buscou um novo alento na viagem que faria aos trópicos
como um dos membros da “Missão Artística Francesa”.
Liderada por Joachim Lebreton, a “Missão” composta por aproximadamente quarenta
pessoas, dentre artesãos, pintores, gravadores, arquitetos, assistentes e seus familiares,
reuniu os artistas napoleônicos que se encontravam desprestigiados devido ao contexto
histórico europeu. Debret, Nicolas-Antoine Taunay, Auguste Henry Victor Grandjean
de Montigny, Auguste Marie Taunay, Charles Simon Pradier, entre outros se
aventuraram pelos mares que os trariam ao Brasil.
A proposta era de se criar uma Academia de Ciências, Artes e Ofícios no novo
Reino português nas Américas e levar a “civilidade” para a futura corte de D. João VI. É
válido lembrar que, segundo Norbert Elias, a burguesia francesa era o modelo de
refinamento comportamental e erudito que informava os referenciais opostos ao que
eles entendiam como “barbárie” dos “povos primitivos”. Após a assinatura do tratado de
paz entre Portugal e França em 1816, curiosamente, D. João recebeu em seu “novo”
reino os artistas que registraram os feitos antológicos do ex-inimigo Napoleão, afinal
este havia forçado a transferência da corte portuguesa par o Brasil.
Debret aportou nos trópicos em 1816, com uma formação artística bem sólida
adquirida na Europa e aos seus quarenta e oito anos de idade se deparou com um Brasil
embrionário. Após a morte de D. Maria I e a aclamação do rei D. João VI, o artista
pintou algumas telas encomendadas pela corte, tais como: a chegada da futura
imperatriz D. Leopoldina e seu casamento com Pedro I; a coroação de Pedro I em 1822.
Esta obra merece particular destaque porque nela o pintor expressou a imagem de nação
moderna, representada por meio de uma composição figurativa que oferecia visibilidade
para a liderança exercida por D. Pedro: ele surgia onipotente na tela cercado por vários
tipos humanos tomados como “inferiores”, ou seja, índios, brancos, negros, mulatos –
representação objetiva dos propósitos civilizadores e das benesses decorrentes da
2
presença da corte portuguesa na colônia. Esta obra se diferenciava muito da arte barroca
predominante até então no universo pictórico do Brasil Colonial, no qual as figuras do
alto clero e temática sacra eram privilegiadas, em especial, as visões do inferno e do
paraíso que aterrorizavam os fiéis signatários do Catolicismo.
O desenvolvimento do Neoclassicismo revelou novas vogas europeias neste
território, mas interagiu com o cenário e a população que habitava os trópicos. Debret
havia percebido quão destoante era a ambiência vivenciada pela comitiva portuguesa se
comparada com o luxo da corte de Napoleão e com a partilha de espaços urbanos entre
brancos e negros; eles ocupavam as ruas, desenvolviam atividades diversificadas cujo
interesse implicava a execução de tarefas para os seus senhores e também para eles
próprios.
A escravidão contrariava seus princípios de liberdade e igualdade, mas, a
despeito da violência intrínseca aos direitos do homem, ela propiciava a convivência
entre varias etnias que chamavam a atenção do pintor, pois os negros estavam em todos
os lugares da cidade. Além disso, o céu límpido e o sol radiante do Rio de Janeiro lhe
permitia outras experimentações no âmbito de seu ofício porque a intensa luminosidade
oferecia aos registros da paisagem uma vibração, praticamente impossível na atmosfera
europeia.
As cenas do cotidiano passaram a figurar em quase tudo o que era esboçado ou
retratado por Debret que durante sua estadia no Brasil (quinze anos), não só retratou
todo o Rio de Janeiro, mas também, boa parte do sul do país, lugares que percorreu
durante suas viagens e comitivas.
Em termos técnicos as dificuldades encontradas por aqui eram imensas, a tinta
era um artigo muito escasso e de má qualidade no Rio de Janeiro, além de seu alto
preço; o clima também não favorecia muito a pintura a óleo, pois é uma tinta de
secagem lenta (a qual proporcionava aos artistas a facilidade de correção e de alteração,
assim também como a mistura de cores para a obtenção de tonalidades diferentes).
Consistia em uma mistura de partículas de pigmentos em suspensão em óleo secante; a
espessura da camada utilizada influía em seu tempo de secagem.
Por esta razão, Debret optou pela aquarela e descobre através dela a delicadeza e
a agilidade em seu traçado. De acordo com Siqueira (2006, p.14), apesar de ser
considerada um meio artístico menor e hierarquicamente inferior à pintura a óleo, a
aquarela exigia muito domínio e técnica, pois seria impossível realizar sobre a mesma
um retoque.
Segundo o crítico de arte Rodrigo Naves (1996), o Neoclassicismo e a
escravidão eram uma forma difícil; o estilo Neoclássico parecia não se adequar as
necessidades e temas da pintura nos trópicos: “Debret realiza uma arte vinculada à
realidade do país, sem perder a dimensão da postura neoclássica idealizada”. (NAVES,
1996, p. 72). Durante os anos que passara no Brasil, Debret realiza mais de mil
imagens, dentre elas: retratos da família real, pinturas de caráter taxonômico
enfatizando a flora e fauna brasileira, trabalhos de arquitetura, pinturas de paisagens,
festas e costumes e seus tipos humanos: índios, negros, mulatos...
3
Debret também desenhou a bandeira do Brasil para o governo de D. Pedro I, o
retângulo verde (simbolizava a cor da casa de Bragança) e o losango amarelo (a cor da
casa dos Habsburgo), de Dona Leopoldina. Até hoje, seu desenho é a base para a
bandeira brasileira.
Os escravos sempre apareciam belos e altivos como os atletas gregos, sempre em
destaque no primeiro plano de suas telas; talvez eles não fossem tão fortes e belos assim
devido à crueldade da escravidão.
A arte de Debret ficou marcada pelas cores vivas e gestos expressivos em meio
ao cenário pulsante do Rio de Janeiro oitocentista.
Em quase todas as cenas urbanas, as pessoas são representadas bem de
perto, ocupando com destaque o primeiro plano dos desenhos. A ênfase
naquilo que ocorre – e não no ambiente em que elas ocorrem – faz com que
os indivíduos se destaquem um pouco de seu meio. Na alegria ou na tristeza,
nas festas ou nos trabalhos, são os gestos humanos que atraem a atenção,
tornando praticamente impossível falar numa relação de continuidade com o
meio. Mas Debret articula indivíduos e ambiente de uma maneira particular,
reveladora de sua situação na cidade – ações que não determinam seu
espaço, gestos que não encontram desdobramentos. (NAVES, 1996, p. 86).
Também chamam a atenção do artista algumas festividades e tradições populares
que ocorriam na capital do império: o Entrudo, a Folia do Divino, a Queima do Judas, a
Festa de Nossa Senhora do Rosário, as Cavalhadas, as procissões, as coletas de esmolas
para as igrejas, os casamentos, cortejos de batismo, cortejos fúnebres, entre outras.
A aquarela feita sobre papel, intitulada Carnaval (Dia d’ entrudo) compõe a
prancha de n° 33, a qual integra a obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil – de
Debret. Realizada em 1823, possui pequenas dimensões e muitas cores. O cenário
referido pelo artista é mais uma de suas cenas de rua do Rio de Janeiro oitocentista;
observamos o cenário urbano em meio a construções suntuosas influenciadas pelas
vogas europeias, as quais misturam-se às paisagens que compõem a cena. O horizonte e
a palmeira são visíveis ao fundo da tela; a descontração toma conta do desenho, o pintor
expressa a sua alegria através de múltiplas cores e detalhes. Além dos negros que se
destacam em primeiro plano e também ao fundo, Debret retrata as brincadeiras através
dos jatos d’água e dos limões de cheiro. Os brancos obervavam tudo de suas sacadas ou
então tentavam se proteger, como o senhor com o guarda-chuva bem ao fundo da tela.
Nesta cena de Carnaval, Debret é rico nos detalhes, todos se divertem, até o cachorrinho
parece se enturmar a farra. A vendinha localizada na esquina esconde seus utensílios e
dá espaço para a venda de limões e polvilhos, podemos observar alguns utensílios
pendurados na parede e na porta, como por exemplo, vassouras, garrafas e abanadores.
O entrudo, palavra de origem latina que significa entrada foi introduzido no
Brasil pelos portugueses por volta do século XVI, desde então, efetuou-se o costume
das brincadeiras no período do Carnaval, os três dias de festa que antecediam a quartafeira de cinzas proporcionavam verdadeiras guerras de rua, cujas armas utilizadas eram
os limões de cheiro, o polvilho, cartuchos de pó de goma, entre outras. Sob os olhos de
Debret, o tumulto dominava as ruas.
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De acordo com Debret, o Carnaval se reduzia aos três dias gordos que se
iniciavam no domingo às 5 horas da manhã e encerravam-se na Quarta-feira de cinzas
com a Ave Maria e os jejuns.
O período de matança de porcos, para o preparo de embutidos a consumir
na semana gorda, permitia aos jovens tingir o rosto com cinzas, encapuzarse, vestir-se com sacos, roupas de mulher ou suas roupas ao avesso. Assim
vestidos, assustavam outras pessoas, entravam em casas, comiam, bebiam e
beijavam as moças, que tentavam reconhecê-lo. (PRIORE, 2005, p. 16).
Desde então, a folia do Entrudo propiciava o costume das brincadeiras no
período do Carnaval, assemelhavam-se às guerras de rua, cujas armas utilizadas eram os
limões de cheiro, o polvilho, a farinha, os cartuchos de pó de goma e a água abundante
dos chafarizes. Conforme Debret, a fabricação dos limões de cheiro envolvia toda a
família desde homens, mulheres, idosos, crianças até o pequeno capitalista, a viúva
pobre e a negra livre (que às vezes economizava com dois meses de antecedência para a
produção de limões de cheiro).
O Carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil não lembra em geral
nem os bailes nem os cordões barulhentos de mascarados que, na Europa,
comparecem a pé ou de carro nas ruas mais frequentadas, nem às corridas
de cavalos chucros tão comuns na Itália. Os únicos preparativos do carnaval
brasileiro consistem na fabricação dos limões de cheiro. [...] (DEBRET,
1978, p. 298, v. I).
O limão de cheiro imitava uma laranja envolvida por uma cera transparente, a
qual permitia a visibilidade de um líquido que guardava dentro. Segundo o artista, as
cores variavam do branco ao vermelho e do amarelo ao verde, seu tamanho era o de
uma laranja e vendia-se por um vintém, sendo as menores a dez réis. A fabricação dos
limões consistia em pegar uma laranja verde, mergulhá-la em cera derretida quente e
depois na água fria; cortava-se o molde ao meio retirando a laranja e preenchendo-a
com água perfumada, perfume de canela ou alguma outra essência, e assim estava
pronta a munição mais importante para os dias d’Entrudo.
Algumas negras mais velhas perambulavam pelas ruas com seu tabuleiro à
cabeça repleto de limões de cheiro, todos vendidos em benefício dos fabricantes. De
acordo com Debret, muitos negros de todas as idades eram empregados nesse comércio.
Vêmo-los aí, cheios de alegria e de saúde, mas donos de pouco dinheiro,
satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato
que lhes custa cinco réis. Com água e polvilho, o negro, nesse dia, exerce
impunemente nas negras que encontra toda a tirania de suas grosseiras
facécias; algumas laranjas de cera roubadas aos senhores constituem um
acréscimo de munições de Carnaval para o resto do dia. Ao contrário, um
tanto envergonhada, a infeliz negra despenseira vestida voluntariamente com
sua pior roupa, quase sempre azul-escura ou preta, volta para casa com o
colo inundado e o resto do vestido marcado com o sinal das mãos do negro
5
que lhe enlambuzou de branco o rosto e os cabelos. Quanto ao rosto, ela se
apressou em limpá-lo para evitar o motejo das companheiras, mas ainda
permanecem desenhadas em branco as rugas dos trejeitos que fez para se
lavar; e essa expressão fixa, dominando a mobilidade habitual de seus
traços, dá a seu rosto uma feiura monstruosa difícil de descrever; por outro
lado a face achatada do negro, igualmente pintada de branco, perde suas
saliências e sua expressão. (DEBRET, 1978, p. 300, v. I).
Alguns negros se fantasiavam de europeus e imitavam de maneira jeitosa os
gestos de cumprimento; provocavam os vizinhos a fim de atraí-los as ruas e atirar-lhes
um limão de cheiro no rosto. Era natural que no meio deste combate as pessoas se
retirassem para trocar de roupa (a ducha dos limões equivalia mais ou menos a um copo
d’água, o que era considerado agradável em vista do calor). Para as moças, era sempre
um motivo de orgulho desfilar com vários tipos de vestidos2.
Podemos observar na pintura do artista francês os negros sendo retratados com
vigor e exuberância, a guerra dos limões coloridos proporcionava a criatividade e a
beleza das cores. As indumentárias3 pintadas por Debret também são muito
interessantes, os escravos usavam cartolas, decotes, camisas com gola, vestidos longos
que valorizavam a silhueta; passavam pó branco no rosto para imitar e ridicularizar os
brancos. De acordo com Maria Clementina Pereira Cunha, o festejo não era bem visto
pelas elites da época:
Fora romântico e excitante esmagar no colo de alguma donzela, protegida
entre as paredes de um sobrado, limões de cera cheios de significados; mas
aparecia como um insulto insuportável que molhadeiras ou apalpadelas
fossem ministradas por desconhecidos a senhoras decentes e acompanhadas
que se aventurassem pelas ruas a passeio. (CUNHA, 2005, p. 23).
Os balcões e sacadas eram utilizados como estratégicos esconderijos, fechados
por treliças, os balcões permitiam quem estava do lado de dentro ver quem estava do
lado de fora sem ser visto; já as sacadas, acomodavam as brancas de famílias abastadas
ou medianas a se divertirem arremessando lá de cima seus limões de cheiro em seus
oponentes que se encontravam lá em baixo, nas ruas.
Debret descreve sua aquarela do dia d’Entrudo em sua obra Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil (1834-1839)4 a cena de Carnaval integra a prancha 33 do primeiro
tomo de sua obra:
Eis em resumo, a história do carnaval brasileiro; quanto ao episódio aqui
desenhado, eis a explicação: a cena se passa à porta de uma venda,
instalada como de costume numa esquina. A negra sacrifica tudo ao
equilíbrio de seu cesto, já repleto de provisões que traz para seus senhores,
enquanto o moleque, de seringa de lata na mão, joga um jacto de água que a
inunda e provoca um último acidente nessa catástrofe carnavalesca. Sentada
à porta da venda, uma negra mais velha ainda, vendedora de limões e de
polvilho, já enlambuzada, com seu tabuleiro nos joelhos, segura o dinheiro
dos limões pagos adiantado que um negrinho, tatuado voluntariamente com
barro amarelo, escolhe, como campeão entusiasta das lutas em perspectiva.
Perto deste e da porta pequena da venda, outro negro, orgulhoso da linha
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vermelha traçada na testa, adquire um pacote de polvilho a um pequeno
vendedor de nove a dez anos; em cima, uma negra dispõe-se a vingar com
um limão o punhado de polvilho que lhe recobre a face e parte do olho; ao
lado da mesma porta, outro negro, grotescamente tatuado, está de tocaia. O
vendeiro, tendo retirado precipitadamente todos os comestíveis que de
costume expõe à sua porta, deixou tão-somente garrafas cobertas de palha
trançada, abanadores e vassouras. No fundo do quadro podem-se observar
famílias tomadas da loucura do momento, uma vendedora ambulante de
limões, negros lutando e um pacífico cidadão escondido atrás de seu guardachuva aberto e que circula por entre restos de limões de cera. (DEBRET,
1978, p. 301-302, v. I).
O Entrudo, festa popular, se cessava com a Ave Maria e a resguarda da Quartafeira de Cinzas. É interessante citar aqui o filósofo e pensador russo Mikhail
Mikhailovich Bakhtin, que interpreta a obra de François Rabelais5, sintetizando o
popular e o erudito, o real e o imaginário, ressaltando sua originalidade na antiga
cultura cômica popular e encontrando diferentes manifestações desde a antiguidade até
o medievo:
As festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo. Na sua base,
encontra-se constantemente uma concepção determinada e concreta do
tempo natural (cósmico), biológico e histórico. Além disso, as festividades,
em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de
transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a
ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos
marcantes da festa. E são precisamente esses momentos – nas formas
concretas das diferentes festas – que criaram o clima típico da festa.
(BAKHTIN, 1993, p. 08).
Segundo Julio Bandeira, o entrudo morre aos poucos, “proibido em 1854, ainda
estaria cheio de viço até o final da monarquia”. (BANDEIRA, 2005, p. 39).
Para concluir, podemos dizer que todo o trabalho de Debret é de extrema
importância tanto para a nossa história, como para a preservação das memórias
coletivas. Com base nesta cena do Dia d’Entrudo, podemos ter a dimensão de como
eram os festejos carnavalescos no Rio de Janeiro no século XIX, as brincadeiras, as
indumentárias... Os detalhes expressos na obra do artista nos mostram como aquele
Brasil foi se transformando e como tal. Os registros pictóricos de Debret preservam a
nossa história do esquecimento, entre aquarelas e memórias:
Cabia-me, pois como testemunha estrangeira e como pintor de História,
colher dados exatos e de primeira ordem a fim de servir a uma arte
dignamente consagrada a salvar a verdade do esquecimento. (DEBRET em
Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 1978, p. 14, v. III).
Mesmo depois de sua morte em 1848, obras de autoria de Jean-Baptiste Debret
ainda continuaram a ser publicadas; em 1954 o brasileiro Raymundo Castro Maya
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(grande colecionador de arte) adquire e publica em Paris um álbum in folio com 139
trabalhos inéditos de Debret. Em 1967 é descoberto um novo acervo com mais de 200
peças do artista; vinte anos mais tarde o historiador Mario Carelli encontra o “Carnet de
Voyage de Jean-Baptiste Debret” na Biblioteca Nacional de Paris. Mais 31 obras
inéditas incluindo esboços são adquiridas em 1992 pelo colecionador paulista Ruy
Souza e em 2007, seis novos óleos de Debret são descobertos. As obras do artista estão
disseminadas por museus e coleções particulares no Brasil e no exterior.
Carnaval (Dia d’ entrudo). Jean-Baptiste Debret. Aquarela sobre papel; 18 x 23 cm, Rio de
Janeiro 1823 – Museus Castro Maya, Rio de Janeiro.
Notas:
1- Em 1793 Jacques-Louis David pinta A Morte de Marat, um deputado jacobino que fora seu amigo, o
qual fora assassinado nos tempos da Revolução. Vide obra: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Sol do
Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
2- É interessante destacar aqui o papel das mulheres no dia d’Entrudo. As mulheres que não
participavam do meio social, de certa forma, podiam participar da folia.
3- Debret retratou os costumes da época e também criou trajes para a corte portuguesa, que até hoje são
referências para diretores de arte criarem figurinos e cenários para filmes que se passam no Brasil do
século XIX.
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4- As aquarelas serviram de base para as gravuras que o pintor reúne e publica em formato de álbum
entre 1834-1839, assim que retorna a Europa em 1831. Trata-se de uma obra escrita e ilustrada
elaborada durante os quinze anos vividos no Brasil, com o título: “Voyage Pittoresque et Historique
au Brésil”, é constituída por três tomos, sendo o primeiro lançado em 1834, o segundo em 1835 e o
terceiro e último volume em 1839. Debret pretende mostrar aos leitores uma visão que ultrapasse a
simples ideia de país exótico e longínquo partida do ponto de vista de taxonomistas e da história
natural.
5- François Rabelais (1494 – 1553), médico francês, padre e escritor do Renascimento.
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