IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental
X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental
Tema: O amor e seus transtornos
Curitiba, de 04 a 07 de setembro de 2010
MESA-REDONDA
Corpo: A sensorialidade corporal da dor e do gozo
Os efeito corporais do amor materno em tempos de declínio da função paterna
Pedro Xavier de Morais Neto
Extraímos de Freud (1931) a conclusão de que uma mãe é uma mulher cujo
amor pelo filho deriva de sua falta fálica. Tal caracterização esboça o desenho de uma
função materna, ou seja, daquelas características invariantes que revelam o laço que une
uma mãe ao seu bebê. Já para a criança, a mãe intervém como o primeiro objeto de
investimento, o Outro primordial, a Coisa não simbolizada e a ser simbolizada, “lugar
de um enigma insondável e de uma ameaça obscura” (Soler, 2003, p. 91).
Aqui, o que chamaremos de amor materno é a expressão da alienação do infante
aos significantes da demanda do Outro, articulando tanto o desejo da mãe quanto o seu
gozo. “Nesse caso, seria “amor materno” uma expressão vã? Certamente, não; antes,
trata-se de que, como qualquer amor, ele é estruturado pela fantasia” (Soler, 2003).
Sabemos que a fantasia – ou fantasma – colige sujeito e objeto numa relação que por
vezes é reversível. No entanto, na medida em que o lugar do filho preexiste no fantasma
materno antes mesmo da gestação, é naturalmente como objeto, e não como sujeito, que
o bebê participará desse fantasma. Assim submetido a esse amor em desmesura, o corpo
do bebê, proto-sujeito, fica à mercê do arbítrio da mãe, em seus excessos e
transgressões1.
Por tudo isso se pode considerar que esse amor é um sentimento radicalmente
paradoxal: ele tanto insufla de vida o corpo do bebê, humanizando-o, quanto é capaz de
1
Estes excessos e transgressões dificilmente podem ser determináveis de antemão.
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determinar múltiplos efeitos subjetivos de ordem psicopatológica. Neste texto, porém,
sem a menor pretensão de negar ou sequer diminuir a importância do investimento
amoroso materno, tanto para a sobrevivência física como para a constituição psíquica da
criança, nos interessa refletir sobre os possíveis transtornos decorrentes desse amor, em
particular no que diz respeito ao corpo.
Daí a pertinência da interrogação: O que viria represar o poderio do amor
maternal? Para Lacan (1998), o próprio Freud “nos revela que é graças ao Nome-do-Pai
que o homem não permanece preso ao serviço sexual da mãe (p. 866)”. O Nome-do-Pai
representa o vetor da transmissão da lei que limita o investimento materno e barra o
gozo imanente à relação incestuosa.
Temos aí um processo com uma estrutura claramente metafórica: o desejo da
mãe, desejo de falo, a que a criança se vê premida a atender com seu próprio ser, é
substituído pelo significante Nome-do-Pai. Em tempo, um esclarecimento: de saída a
criança não capta o significado do interesse que a mãe lhe devota; para ela, tal interesse
aparece como misterioso, opaco, e é só a efetuação desta metáfora que concede a esse
interesse materno a significação fálica. Daí porque dissemos que a mãe representa a
Coisa, o inominável para além da representação.
Por conseguinte, a significação fálica do amor materno é um produto da
metáfora paterna, que por aí mesmo afiança o processo de simbolização primordial. É
então esse mecanismo o responsável pela transformação da mãe em objeto perdido, pelo
que a criança é alçada da submissão à vivência imediata e sem mediação que era a sua
na relação com o fantasma do Outro primordial para, na sequência e progressivamente,
assumir-se como sujeito de desejo.
Mas para que esta metáfora exerça todos os seus efeitos, não basta a boa vontade
do pai, genitor da criança. Importa, antes, que haja pai na mãe, isto é, que o
investimento amoroso da mãe possa ser limitado pelo reconhecimento, nela, da incisão
da lei paterna que, outrora, a furtou da condição objetal diante de sua própria mãe. É
crucial que a mãe possa referendar a lei paterna, a fé no Nome-do-Pai. Trata-se, em
suma, de se submeter à Lei que a transcende e arrefecer seu amor pelo filho, sublimar
seu investimento e, como mulher, revelar-se não-toda fálica.
Dar ao mundo o filho – é disso que se trata. Porém, em tempos de notórias
mutações do laço social, com flagrante declínio da função paterna, que condições têm as
mães de hoje de prescindirem dos filhos como suplência fálica? Como se tem tornado
flagrante “no vínculo social de hoje, a mãe ou seu substituto torna-se (...) o parceiro
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preponderante ou exclusivo da criança, ou, pelo menos, o único que é estável” (Soler,
2002, p. 88). (...). Por esta razão as configurações das famílias atuais dão “ao cara-acara da criança com a mãe um peso novo na história, o qual não pode deixar de ter
consequências subjetivas” (ibid).
Dentre estas consequências, destaca-se o aparecimento do corpo como palco
privilegiado das psicopatologias contemporâneas. Sem dúvida, “o corpo é hoje
hiperinvestido
(...),
constituindo-se
como
meio
de
expressão
do
mal-estar
contemporâneo” (Fernandes, 2003, p. 14), como nos casos das somatizações, do excesso
de modelagem cirúrgica do corpo, da toxicomania, das escarificações etc. Com efeito,
isso é o que se observa rotineiramente. Para além desse nível fenomenológico, nossa
hipótese é a de que tais fenômenos têm estrita relação com o declínio do Nome-do-Pai.
Sustentamos a opinião de que a transmissão da lei paterna é propulsionada por
uma certa organização do social em torno de um lugar transcendente, assinalado por
Freud como o lugar vazio deixado pelo pai morto (Freud, 1913/1914). Ora, se esse lugar
vê ameaçada sua existência, como acontece hoje (Lebrun, 2008), um dos principais
efeitos daí consequentes diz respeito, justamente, às possibilidades de transmissão da
lei.
Neste sentido, viceja em nossa época “uma crise inédita da legitimidade”
(Lebrun, 2008, p.21), uma dificuldade dos pais de se colocarem como embaixadores da
função paterna perante seus filhos, limitando-lhes o gozo. A cria do homem é
humanizada pela palavra, pelo convite que lhe fazem seus pais para que entre no
universo do símbolo, a que corresponde necessariamente uma perda de gozo através da
promoção do vazio deixado pela renúncia ao Outro primordial, à Coisa. Hoje, com a
ordem social exortando o gozo a todo custo, não há mais como antes a coação no
sentido da renúncia à Coisa, dando acesso à simbolização e aos objetos substitutivos do
desejo.
É aí que o gozo ganha terreno e, com ele, os fenômenos no corpo. Por quê?
Muito simplesmente porque não há gozo sem corpo (Lacan, 1982). Entendamos melhor:
se o declínio do Nome-do-Pai é o declínio de todos os pais em potencial (Melman,
2003), no sentido preciso das possibilidades operativas do exercício da função paterna, a
relação do bebê humano com a sua mãe, ou com quem exerça essa função, fatalmente
carecerá de simbolização, permanecendo como não-cifrada pela linguagem. É assim que
esse excesso pulsional não-representado dessa relação primordial atinge o corpo. A ele
Lacan (1997) dá o nome de gozo.
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O gozo é aquilo que, radicado no real, não acedeu à simbolização; é o que não
cessa de não se inscrever no campo simbólico da palavra e que por isso afeta
diretamente o corpo. Os fenômenos desta ordem, bastante prevalentes na
contemporaneidade, devem ser distinguidos das conversões histéricas com as quais
Freud se deparou no início de sua clínica. Estas últimas são expressões simbólicas dos
conflitos inconscientes (1895), enquanto o gozo mais se assemelha aos sintomas físicos
do que Freud chamava de neuroses atuais, aquelas manifestações que “não têm nenhum
‘sentido’, nenhum significado psíquico” (Freud, 1915, p. 451).
Hoje, cindida a solidariedade entre o funcionamento social e o da família, que
agora protege a criança do social, sob alegação de não traumatizá-la, pais e mães
encarnam predominantemente a vertente materna do laço primordial, assim
comprometendo o processo de constituição subjetiva através do ingresso no campo da
palavra. Deixa-se de ceder ao Outro simbólico uma parte da substância gozante inerente
à relação fusional que caracteriza do que denominamos amor materno, o que assim
retorna no real do corpo através dos mais variados fenômenos.
Lacan, em sua Conferência de Genebra (1991), mostra como algo dessa relação
originária com o bebê, sujeito em constituição, é capaz de se inscrever no corpo. No
entanto, trata-se de uma inscrição de uma fala não articulada como língua, isto é, de
algo que permanece aquém de qualquer referência simbólica ou ordenamento gramatical
que pudesse moderar o gozo ali presente. Portanto, é uma inscrição refratária ao saber
significante, que lesiona o corpo em sua materialidade, como uma marca enigmática que
não deixa de evocar esse amor materno, verdadeiro abismo insondável.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Fernandes, M. H. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
Freud, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 1969.
_______. (1895). Estudos sobre a histeria. Vol. II
_______. (1913/1914). Totem e Tabu. Vol. XIII
_______. (1915). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Vol. XV
_______. (1931). Sexualidade Feminina. Vol. XXI
Lacan, J. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar 1982.
_______. Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1991.
_______. O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
1997.
_______. Do “Trieb” de Freud e do desejo do psicanalista. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.
Lebrun, J-P. A perversão comum: viver junto sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 2008.
Melman, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC,
2003.
Soler, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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Corpo - Laboratório de Psicopatologia Fundamental