In: Dicionário de Conceitos Históricos - Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva – Ed.
Contexto – São Paulo; 2006
IDENTIDADE
Com o surgimento dos debates em torno da pós-modernidade e do
multiculturalismo, no final do século xx, o tema das identidades veio à tona na História. Na
verdade, a noção de identidade não é nova nas ciências humanas, já sendo bem
conhecida da Psicologia e da Antropologia, mas é uma preocupação recente para os
historiadores, desenvolvida principalmente por aqueles que trabalham com a
interdisciplinaridade. Esse conceito tem atingido relevância tal para a compreensão do
mundo de hoje que alcançou já as salas de aula, o que é visível, por exemplo, na
inquietação dos educadores em promover a conscientização sobre a diversidade cultural
brasileira: o conhecimento dessa diversidade passa pela definição das identidades
étnicas, regionais, entre outras. A noção de identidade tornou-se, assim, um dos
conceitos mais importantes de nossa época.
O conceito de identidade vem levantando muitas questões em diversos campos
das ciências humanas. Sua origem remete à Filosofia e à Psicologia, mas hoje a
Antropologia tem sido uma das ciências mais prolíficas em seu estudo. Além disso, a área
interdisciplinar conhecida como Estudos Culturais - um dos principais frutos da pósmodernidade nas ciências humanas e sociais - também tem questionado a construção de
identidades sob os prismas mais diversos: sociológicos, linguísticos e por meio da teoria
da comunicação. Nesse contexto, a noção de identidade gerou muitos conceitos
diferentes: identidade nacional, identidade étnica, identidade social, cada um deles com
uma gama de significados e métodos de análise próprios.
Partindo de uma definição filosófica, a qual agrega conceituações antropológicas e
psicológicas, Dominique Wolton define identidade como o caráter do que permanece
idêntico a si próprio; como uma característica de continuidade que o Ser mantém consigo
mesmo. Partindo dessa idéia, podemos compreender a identidade pessoal como a
característica de um indivíduo de se perceber como o mesmo ao longo do tempo. Tanto
para a Antropologia quanto para a Psicologia, a identidade é um sistema de
representações que permite a construção do "eu”, ou seja, que permite que o indivíduo se
torne semelhante a si mesmo e diferente dos outros. Tal sistema possui representações
do passado, de condutas atuais e de projetos para o futuro. Da identidade pessoal,
passamos para a identidade cultural, que seria a partilha de uma mesma essência entre
diferentes indivíduos.
Todos temos identidade, a palavra inclusive está em nosso dia-a-dia: no Brasil,
somos registrados em um documento, a carteira de identidade. Tal documento é a
representação oficial do indivíduo como cidadão. Ele é uma representação, entre várias,
de nossa identidade social. Para a Psicologia Social, a identidade social é o que
caracteriza cada indivíduo como pessoa e define o comportamento humano influenciado
socialmente. Nesse sentido, a identidade social é o conjunto de papéis desempenhados
pelo sujeito per si. Papéis que, além de atenderem a determinadas funções e relações
sociais, têm profunda representação psicológica por se referirem sempre às expectativas
da sociedade. A Psicologia Social assume, assim, que a personalidade, a história de vida
de cada um, é bastante influenciada pelo meio social, pelos papéis que o indivíduo
assume socialmente. Nesse sentido, a identidade social é construída para permitir a
manutenção das relações sociais de dominação.
Além disso, tomar consciência da própria identidade, tomar consciência de si é um
primeiro passo para alterar, se necessário, a identidade social, como dominado. Já na
Antropologia, o conceito de identidade serve para uma infinidade de abordagens
diferentes. O antropólogo social Roberto DaMatta, por exemplo, usa a noção de
identidade social para discutir a construção de uma identidade nacional brasileira. Em sua
obra O que faz o Brasil Brasil, DaMatta se preocupa em responder como se constrói
uma identidade social e, mais especificamente, como um povo se transforma em Brasil.
Para ele, a construção da identidade social é feita de afirmativas e negativas, a partir dos
posicionamentos dos indivíduos diante das situações do cotidiano. De acordo com
DaMatta, uma pessoa cria sua identidade ao se posicionar diante das instituições, ao
responder às situações sociais mais importantes da sociedade: como um indivíduo
entende o casamento, a Igreja, a moralidade, a Arte, as leis etc, é o que define sua
identidade social. Esses perfis seriam construídos a partir das fórmulas dadas pela
sociedade, e não criados simplesmente pela escolha individual.
Um ponto de vista muito controverso no trabalho de DaMatta, entretanto, é sua
definição de uma identidade brasileira única. Para ele, o Brasil se define qualitativamente
a partir do futebol, do carnaval, do sincretismo, da sensualidade etc. E muitos são os
pensadores que criticam essa visão, considerando-a muito simplista, por escamotear
todas as diferenças regionais, étnicas e sociais existentes no Brasil e considerar apenas
os estereótipos criados sobre o Brasil.
A questão das identidades tem gerado, ainda na Antropologia, muitas outras
vertentes de trabalho. Na América Latina, diversos têm sido os autores preocupados com
a ligação entre identidade, nação e etnia, que refletem sobre a construção das
identidades étnicas, regionais e nacionais, conceitos muitas vezes interligados. Para
autores como George Zarur e Parry Scott, o conceito de identidade é muito importante
para a compreensão do mundo globalizado, em que o enfraquecimento dos Estados
nacionais tem gerado a fragmentação das identidades nacionais e o ressurgimento de
outras identidades, de gênero, étnicas, justamente dessa fragmentação. Nesse sentido, é
possível estudarmos as identidades com base em muitas premissas, como, a partir do
hibridismo, ou seja, da sobreposição de identidades diferentes, o que é cada vez mais
comum nos países que recebem grandes levas de imigração. Nesses lugares, os
imigrantes de diferentes origens se mesclam, assim como suas culturas, criando culturas
híbridas. Essa Antropologia estuda a identidade em seu caráter relacional, ou seja, uma
identidade se constrói a partir do encontro com os outros.
Recentemente, a História, dentro dos novos interesses gerados pela
interdisciplinaridade e pela pós-modernidade, tem tentado trabalhar com o conceito de
identidade. Talvez um dos principais campos da historiografia a refletir sobre essa noção
seja o dos estudos da memória. Para David Lowenthal, identidade e memória estão
indissociavelmente ligadas, pois sem recordar o passado não é possível saber quem
somos. E nossa identidade surge quando evocamos uma série de lembranças. Isso serve
tanto para o indivíduo quanto para os grupos sociais.
Mas, talvez o campo de estudos que mais tem-se preocupado com a questão da
identidade seja o dos Estudos Culturais. Tal campo, surgido na Inglaterra no final do
século xx com autores como Stuart Hall, tem como objetivo criticar o estabelecimento de
hierarquias culturais, nas quais algumas culturas são consideradas superiores a outras.
Esses estudos têm grande interesse em discutir conceitos como raça, etnia e nação do
ponto de vista da produção cultural, trabalhando com temas como indústria cultural,
cultura popular, colonialismo e pós-colonialismo. Temas para os quais a compreensão da
construção das identidades é fundamental. É dessa perspectiva que Tomaz Silva afirma
que a compreensão da identidade deve levar em consideração sua relação intrínseca com
a diferença, pois a identidade não existe sem a diferença: ao dizer que somos brasileiros,
estamos automaticamente dizendo que não somos alemães, nem chineses, por exemplo.
Kathryn Woodward concorda com essa perspectiva, identificando a identidade como uma
construção relacional, ou seja, para existir ela depende de algo fora dela, que é outra
identidade. Além disso, precisamos considerar que toda identidade é uma construção
histórica: ela não existe sozinha, nem de forma absoluta, e é sempre construída em
comparação com outras identidades, pois sempre nos identificamos como o que somos
para nos distinguir de outras pessoas. A identidade feminina, por exemplo, se constrói
ante a identidade masculina, a identidade dos negros ante a identidade dos brancos etc.
Para Ana Carolina Escosteguy, a construção das identidades culturais no novo
milênio é a temática central dos Estudos Culturais. Vemos, assim, que os interesses se
aproximam muito dos da Antropologia, e não é à toa, pois os Estudos Culturais são um
campo de estudos nitidamente interdisciplinar, ou transdisciplinar como querem alguns.
Mas por que o conceito de identidade é algo tão frisado pelas ciências humanas
do século XXI? Antropólogos e culturalistas acreditam que a globalização aproximou
culturas e costumes e, logo, identidades diferentes.Assim, a convivência com o diferente
faz com que as identidades aflorem. Por outro lado, a crise do Estado nacional e dos
valores instituídos pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial tem trazido a necessidade
de construção de novos valores, buscados sobretudo nas identidades de grupos de
gênero, étnicas, regionais. Vemos, assim, a complexidade da noção de identidade e sua
enorme importância para a construção da cidadania. Ao levantarmos em sala de aula a
bandeira do respeito à diversidade cultural, às minorias, estamos nos inserindo na
discussão sobre a identidade. Nesse sentido, não podemos apenas receber as
conclusões oferecidas pelos livros didáticos, é preciso aprofundamento nos debates sobre
as várias faces da construção das identidades no mundo globalizado.
VER TAMBÉM
Cidadania; Etnia; Etnocentrismo; Gênero; Globalização; índio; Indústria Cultural;
Interdisciplinaridade; Memória; Miscigenação; Negro; Pós-modernidade.
SUGESTÕES DE LEITURA
BARBOSA, Alexandre de Freitas. O mundo globalizado: política, sociedade e
economia. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003.
EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria cultural de A a Z: conceitos-chave
para entender o mundo contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2003.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Cartografias dos estudos culturais: uma versão
latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
LANE, Silvia S. Maurer. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação. 2. ed. São
Paulo:Contexto, 2004.
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. São
Paulo:Contexto, 2003.
SCOTT, Parry; ZARUR, George (orgs.). Identidade, fragmentação e diversidade
na América Latina. Recife: Ed. Universitária - UFPE, 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2004.
Download

IDENTIDADE Com o surgimento dos debates em torno da pós