CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO – JUNHO DE 2008
BURGOS, Marcelo Baumann. Reconciliar o Rio de Janeiro com a Constituição de 1988. Boletim CEDES
[online], Rio de Janeiro, maio e junho de 2008, pp. 27-30. Acessado em: (...) Disponível em:
http://www.cedes.iuperj.br. ISSN: 1982-1522.
RECONCILIAR O RIO DE JANEIRO COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Marcelo Baumann Burgos1
O Rio foi uma das cidades que mais fez pela conquista da Constituição de 88.
Partiu dela boa parte da energia cívica que tomaria conta do país na década de 1980,
quando a Cidade se viu tomada por um intenso e diversificado associativismo em torno
dos bairros e das favelas, da questão operária, ambiental, da infância, das questões da
mulher e racial. Em torno desses movimentos sociais se aglutinaram partidos de centro
e de esquerda, além das universidades e dos intelectuais. Toda essa mobilização
andou junto com uma participação eleitoral de clara oposição ao regime militar e com a
luta pela redemocratização, que culmina na memorável mobilização das Diretas – Já,
em 1984, que levou mais de um milhão de pessoas no comício da Candelária.
Tamanha importância na reconstrução do projeto de país fez do Rio um dos
principais, senão o principal, centro de animação e inspiração do núcleo dogmático da
Carta de 88, cujo espírito foi insculpido no seu generoso preâmbulo, que instaurou os
“direitos
sociais
e
individuais,
a
liberdade,
a
segurança,
o
bem-estar,
o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Ironicamente, vinte anos depois da promulgação da Carta Cidadã, constata-se,
com desalento, que nenhuma das grandes cidades brasileiras parece estar tão distante
do ideário de 88 quanto o Rio de Janeiro. Com índices insuportáveis de violência, uma
sociabilidade marcada pela baixa civilidade, e politicamente loteado em territórios
dominados por “donos do pedaço”, o Rio pouco conseguiu se beneficiar dos incentivos
à participação democrática inscritos em uma Constituição de notável inspiração
municipalista.
Ao contrário, a Cidade parece estar se afastando daquilo que Luis Roberto
Barroso chamou de “sentimento constitucional”, quando definiu a capacidade da
1
Sociólogo, professor da PUC-Rio, assessor da UNIG e membro do Centro de Estudo de Direito e
Sociedade (CEDES/IUPERJ)
27
CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO – JUNHO DE 2008
Constituição para “simbolizar conquistas e mobilizar o imaginário das pessoas para
novos avanços”. E, não por acaso, o Rio de Janeiro é uma das cidades onde os
mecanismos de judicialização da política e da vida social – última retaguarda da
democracia constitucional – mais vêm sendo utilizados, através do recorrente recurso
ao Tribunal de Justiça para a apreciação de ações diretas de inconstitucionalidade
questionando normas aprovadas pela Câmara, do uso intensivo de ações populares e
civis públicas interpelando a improbidade administrativa e a omissão do poder público,
da presença marcante do Ministério Publico na regulação de conflitos da cidade, em
áreas como meio ambiente, e direitos de minorias e de segmentos fragilizados como
crianças e idosos, e, ainda, da crescente dependência da ação fiscalizadora da
representação política exercida pelo Tribunal Regional Eleitoral.
De fato, a Cidade parece estar abandonando suas melhores tradições cívicas.
Com uma administração pública afastada da sociedade civil organizada, e com baixa
capacidade de reação política através da via partidária, sua população não ocupou,
senão muito timidamente, os espaços participativos abertos pela Carta de 88, seja em
torno dos conselhos populares – em áreas estratégicas como educação, saúde e
infância –, seja através do Plano Diretor, instrumento criado para a regulamentação
democrática da vida citadina. Tampouco apostou em canais alternativos para a
discussão pública de temas relacionados à “função social da cidade” de que falam a
Constituição e o Estatuto da Cidade, como são os fóruns populares, o orçamento
participativo, as audiências públicas ou, ainda, as mídias alternativas.
Uma cidade desanimada e amedrontada é o legado das duas últimas décadas, e
que, por isso mesmo, acompanha passivamente a tendência de fragmentação
territorial, cujos efeitos se fazem sentir na crescente submissão de favelas, loteamentos
e bairros às milícias, aos seguranças privados, e a gangsters que usurpam o espaço da
política para se apoderar de parcela da Cidade. Levada ao limite, essa tendência pode
destruir a possibilidade de um projeto comum de Cidade.
Prova maior de sua impotência diante desse quando de ameaça à Cidade é a
sua crônica incapacidade para superar sua principal questão urbana, que é a relação
com as favelas. Diversamente do que as melhores expectativas acalentadas nos anos
de 1980 faziam esperar, as favelas não foram integradas à Cidade, ou pelo menos não
foram integradas à Cidade da Constituição. Malgrado o investimento em urbanização e
em política e ações sociais, que melhoraram sua infra-estrutura urbana e o acesso a
oportunidades e equipamentos coletivos de seus moradores, mais do que nunca as
28
CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO – JUNHO DE 2008
favelas têm sido tratadas como territórios à margem da Constituição e do Estado
Democrático de Direito. Ao jugo do tráfico e da milícia, que submete a população
desses territórios a toda sorte de arbítrio, se junta a ação imprudente e igualmente
arbitrária do Estado, através das polícias civil e militar. Evidências fortes disso são,
para citar apenas os mais recentes, os lamentáveis e injustificáveis episódios como o
da desastrosa e trágica atuação do Exército no Morro da Providência, que resultou na
morte de três jovens; e, principalmente, a mega-operação policial realizada em junho
de 2007, no Complexo do Alemão, que envolveu cerca de 1200 policiais, e que deixou
um rastro de sangue, com vários feridos, inclusive crianças, e 19 pessoas mortas com
claros sinais de execução, além de uma incomensurável seqüela psicológica em uma
população de mais 70 mil habitantes. O descompasso entre o custo humano desse tipo
de operação e o seu resultado prático fica evidente quando se considera que o saldo
da operação teria sido a apreensão de apenas 14 armas.
A experiência vivida pelos moradores do Alemão não encontra nenhum respaldo
na Constituição, e nem mesmo se tivesse sido decretado o “estado de defesa”, previsto
em seu artigo 136 – o que já seria um absurdo – nem assim os direitos à vida, e à
integridade física e psíquica de toda uma população poderiam ter sido violados como
foram. O mais grave, porém, é que a afronta à Constituição não encontrou na Cidade,
senão em setores isolados, a reação indignada que dela se deveria esperar.
Com o novo ciclo eleitoral, abre-se uma janela de oportunidade para a Cidade,
pois uma nova câmara e um novo prefeito poderão jogar um papel importante na sua
reanimação, despertando a memória cívica que nela ainda repousa. Para tanto, seria
importante que a Cidade conseguisse viver o processo eleitoral, debruçando-se sobre
temas municipais como a questão da educação pública, excessivamente fechada no
interior de escolas que já não pretendem funcionar como pólos de civismo; a questão
do transporte público, há muito refém dos lobbies de empresários e do laissez faire das
kombis e vans; da segurança pública, que longe de ser matéria exclusivamente
estadual e federal pode e deve ser estruturada segundo uma perspectiva preventiva de
alcance municipal; da saúde pública, que reclama políticas de aproximação com a
população; da questão habitacional, que deve incluir a participação dos moradores das
favelas na discussão sobre o problema da favelização; e, ainda, da questão
metropolitana, que carece de uma atuação mais positiva do Município do Rio na sua
condução.
29
CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO – JUNHO DE 2008
Mas, o que é realmente indispensável nesse momento é reconciliar a Cidade
com a Constituição que ela tanto ajudou a criar, através do fortalecimento daquilo que
Luiz Werneck Vianna define como as “duas democracias” que ela encerra: a da
dimensão participativa e a da dimensão representativa. Por isso, antes mesmo de
pensar na reforma das políticas públicas setoriais, será necessário lutar para devolver à
Cidade o direito de acesso à Política, da qual ela está momentaneamente privada. Para
tanto, será preciso criar mecanismos e espaços de comunicação que permitam que os
diferentes segmentos da Cidade voltem a se encontrar e a conversar, incorporando,
desta vez, os interesses e as opiniões dos novos seres citadinos oriundos dos
segmentos emergentes das favelas e periferias. Somente assim será possível formular
uma nova imaginação sobre a Cidade, e construir uma agenda pública que a reconcilie
com os valores supremos de que falam o preâmbulo da Constituição.
30
Download

Reconciliar o Rio de Janeiro com a Constituição de 1988