Improbidade administrativa e transação
Nilo Spinola Salgado Filho
22º Procurador de Justiça de
Interesses Difusos e Coletivos
Mestre em Direito das Relações Sociais (PUC)
Mestre em Direito do Estado (USP)
Wallace Paiva Martins Junior
4º Promotor de Justiça do
Patrimônio Público e Social
Doutor em Direito do Estado (USP)
Ao Ministério Público foi confiada a promoção do inquérito civil e da
ação civil pública para proteção do patrimônio público, compreendendo a tutela da
moralidade administrativa e a repressão à improbidade administrativa (Constituição
Federal, art. 129, III; Lei n. 8.625/93, art. 25, IV; Lei n. 8.429/92, art. 17).
Um dos mais potentes mecanismos de execução dessa diretriz se
encontra na aplicação da Lei n. 8.429/92, denominada “Lei da Improbidade
Administrativa”, que descende do § 4º do art. 37 da Constituição de 1988 e do princípio
da moralidade do caput do mesmo artigo.
Agentes públicos e particulares beneficiários ou partícipes responsáveis
pela violação ao dever de probidade estão sujeitos a graves sanções de natureza civil,
sem prejuízo das administrativas, penais e político-administrativas, como perda de bens
ou da função pública, suspensão temporária dos direitos políticos, multa civil,
ressarcimento do dano, proibição temporária de contratação com o poder público ou de
recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios (art. 12, Lei n. 8.429/92),
em razão da prática de atos catalogados como enriquecimento ilícito no exercício de
função pública (art. 9º), prejuízo ao erário (art. 10) e atentado contra os princípios da
administração pública (art. 11).
Improbidade significa desonestidade. É uma imoralidade administrativa
qualificada. Configura o grave desvio ético no exercício de função pública ou no
estabelecimento de relações com o poder público. É certo que nem toda ilegalidade ou
irregularidade caracteriza improbidade senão aquela cuja patologia revele sintomas de
desvio de poder e, enfim, de inabilitação moral do agente.
É preciso também ressaltar que não só a conduta marcada pela
desonestidade fere a moralidade administrativa, mas também a falta de apreço com as
regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração, ainda que a
pretexto de se realizar uma “boa administração”, pois a institucionalização da moral
teve como base o abuso do direito.
É também imoral, na justa lição do eminente Ministro José Augusto
Delgado1, não apenas o ato administrativo que desrespeita o conjunto de solenidades
indispensáveis à sua exteriorização, senão também quando foge à conveniência e à
oportunidade de natureza pública, abusa no seu proceder e fere direitos subjetivos
públicos e privados, ou a conduta é marcada por malícia ou imprudência.
A lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente, afirma José
Afonso da Silva, o que impõe à Administração Pública o dever de agir segundo os
preceitos da ética, da boa-fé e da imparcialidade. Não deve apenas atender formalmente
as regras concernentes aos aspectos formais, mas conduzir-se objetivamente de modo
que exista uma correlação lógica entre o objeto e os seus motivos.
Antonio José Brandão assevera que “a atividade dos administradores,
além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de
corresponder à vontade constante de viver honestamente, de não prejudicar outrem e de
dar a cada um o que lhe pertence - princípios de direito natural já lapidarmente
formulados pelos jurisconsultos romanos. À luz dessas idéias, tanto infringe a
moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins
imorais ou desonestos como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora
movido por zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura
obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda. Em ambos os casos, os
seus atos são infiéis à idéia que tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir
entre todas as funções, ou, embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido,
desviam-no do fim institucional, que é o de concorrer para a criação do bem comum” 2.
Para além, a condenação judicial por improbidade administrativa tem
outro efeito importante: a inelegibilidade em razão da imposição da suspensão
(temporária) de direitos políticos em decisão transitada em julgado ou proferida por
órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe
1
O Princípio da Moralidade Administrativa e a Constituição Federal de 1988, RT 680/35.
Apud Wolgran Junqueira Ferreira, Enriquecimento Ilícito dos Servidores Públicos no Exercício da Função. São
Paulo: Edipro, 1994, p. 30-31.
2
lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito
em julgado até o transcurso do prazo de 08 (oito) anos após o cumprimento da pena
(art. 1º, I, l, Lei Complementar n. 64/90 na redação dada pela Lei Complementar n.
135/10, conhecida como “Lei Ficha Limpa”).
A
Lei
da
Improbidade
Administrativa
não
transige
com
a
indisponibilidade do interesse público consistente na repressão de atos ímprobos. Bem
por isso estampa no § 1º do art. 17 que “é vedada a transação, acordo ou conciliação
nas ações de que trata o caput”. A regra é a indisponibilidade do interesse e a
obrigatoriedade da ação.
Em outras palavras, os legitimados ativos (Ministério Público e pessoa
jurídica interessada) não estão habilitados a celebrar composição em face de ato de
improbidade administrativa como também os magistrados não podem homologar atos
do mesmo jaez. A lei expressamente proíbe. E a razão disso se encontra no § 4º do art.
37 da Carta Magna que determina a punição dos atos de improbidade administrativa.
Di-lo a Constituição de maneira impositiva: “Os atos de improbidade administrativa
importarão...”. Trata-se dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade do
exercício do direito de ação.
Corolário é que o legitimado ativo ao promover a respectiva ação (civil
pública) não pode escolher (porque lhe é indisponível) dentre as sanções legais do art.
12 da Lei n. 8.429/92 aquela que entenda mais acertada, razoável ou proporcional à
espécie. A aplicação cumulativa ou isolada de suas sanções é reservada
exclusivamente ao magistrado, como se infere do art. 12, caput, da Lei n. 8.429/92 na
redação dada pela Lei n. 12.120/09. Portanto, não pertence ao Parquet o juízo de
razoabilidade ou proporcionalidade das sanções da improbidade administrativa no
aforamento da ação civil pública.
Se no pedido da petição inicial o Ministério Público abdicar de uma ou
mais sanções legalmente previstas, nesse ponto estará implicitamente arquivando o
inquérito civil ou as peças de informações a impor o reexame necessário do Conselho
Superior ou da Câmara de Coordenação ou Revisão que há de rejeitá-lo, posto que
contra legem, e determinar a emenda da petição inicial à luz do art. 17, § 1º, da Lei n.
8.429/92, pois, se não pode haver transação, acordo ou conciliação judicial ou
extrajudicial, a fortiori é vedada a renúncia ou disposição de uma ou demais sanções
legais ainda que por transação, acordo etc. prévios ou não.
Embora o compromisso de ajustamento de conduta seja um relevante
mecanismo de composição na modalidade submissão visando à solução negociada para
o cumprimento de uma obrigação legal ou contratual, à disposição do Ministério
Público e dos órgãos públicos legitimados (art. 5º, § 6º, Lei n. 7.347/85 – Lei da Ação
Civil Pública) na tutela de interesses transindividuais, ele é impróprio e inadequado
para a repressão da improbidade administrativa, não obstante ela seja espécie de
interesse difuso e como tal indisponível.
O veto vem exatamente do art. 17, § 1º, da Lei n. 8.429/92, que prevalece
sobre o art. 5º, § 6º, da Lei n. 7.347/85, em razão dos critérios da cronologia e da
especialidade, não bastasse a indisponibilidade do interesse público que interdita a
renúncia total ou parcial do direito de ação que, neste caso, é gizado pelos princípios de
obrigatoriedade e indisponibilidade.
Com efeito, se o membro do Parquet vislumbra diante do caso concreto a
oportunidade de transação, acordo, composição ou compromisso de ajustamento de
conduta ou de dedução exclusiva de pedidos de anulação de atos com ou sem
ressarcimento de dano, é porque não se trata de improbidade administrativa, mas,
simples ilegalidade ou mera irregularidade, ou, quando muito, de improbidade
administrativa cujas sanções, à exceção do ressarcimento do dano (que não é
tecnicamente sanção, mas, dever), estão fulminadas pela prescrição (art. 37, § 5º,
Constituição Federal; art. 23, Lei n. 8.429/92).
Em verdade, a ordem dos fatores é inversa: não verificando o membro
do Ministério Público improbidade administrativa, mas, tão somente, simples
ilegalidade ou mera irregularidade desprovidas dessa adjetivação (ou, ainda, se ocorrida
a prescrição das sanções da improbidade à exceção do imprescritível ressarcimento do
dano), poderá celebrar compromisso de ajustamento de conduta para prestação de
atividade devida, cessação de atividade nociva ou reparação de dano ou ajuizar a
competente ação civil pública para o alcance desses escopos.
Contudo, se ocorrida improbidade administrativa não pode o membro do
Ministério Público: (a) celebrar qualquer tipo de composição para imposição do
ressarcimento do dano acompanhada ou não de uma ou mais sanções da Lei n.
8.429/92; (b) ajuizar ação civil pública para imposição do ressarcimento do dano
acompanhada ou não de uma ou mais sanções da Lei n. 8.429/92; (c) recusar o
aditamento de petição inicial por ele movida ou por outro colegitimado com identidade
de propósitos; (d) promover o arquivamento do inquérito civil em razão do
ressarcimento do dano, cessação da atividade nociva, anulação do ato etc.
Vale dizer, o membro do Ministério Público não pode dispor do
interesse que lhe confiado. Ao fazê-lo, o caso é de arquivamento implícito se
promovida a ação civil pública ou de recusa de promoção de arquivamento se celebrado
compromisso de ajustamento de conduta.
Destarte, se o membro do Ministério Público entender que não houve
improbidade administrativa: (a) poderá ajuizar ação civil pública para prestação de
atividade devida, cessação de atividade nociva ou reparação de dano (e também
anulação ou declaração de nulidade ou ineficácia de atos) sem requerer em juízo
qualquer das sanções previstas no art. 12 da Lei n. 8.429/92 (à exceção do
ressarcimento do dano); (b) celebrar compromisso de ajustamento de conduta (para os
mesmos fins acima expostos), promovendo o arquivamento do inquérito civil; (c)
promover o arquivamento do inquérito civil (se o dano já foi ressarcido ou a conduta já
foi tomada, v.g.).
Na primeira hipótese, todavia, o Juiz de Direito poderá suscitar
arquivamento implícito a ser resolvido pelo Conselho Superior ou Câmara de
Coordenação e Revisão. Frise-se que a legitimidade do Ministério Público nessa
hipótese decorre além do art. 129, III, da Constituição Federal, e do art. 25, IV, da Lei
n. 8.625/93, do art. 5º da Lei n. 8.429/92.
Nas demais, sua convicção de mérito estará sujeita automaticamente ao
reexame necessário desses órgãos revisores do Ministério Público dos Estados e da
União, respectivamente, sendo importante ponderar que nem eles poderão agregar se
convencidos do acerto da decisão (inclusive em face do arquivamento implícito)
qualquer uma das sanções previstas no art. 12 da Lei n. 8.429/92, pois, nesse caso,
então, foi descartada a ocorrência de mera ilegalidade ou irregularidade e reconhecida
improbidade administrativa. Ou seja, devem rejeitar o arquivamento se entenderem
que, no caso concreto, ocorreu improbidade.
O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que não
basta para os fins da repressão à improbidade administrativa a condenação do agente ao
ressarcimento do dano, determinando a adição de uma ou mais sanções típicas da Lei n.
8.429/92. A Corte considera que o ressarcimento do dano é consequência e não sanção
e decreta a insubsistência de decisão restrita ao ressarcimento do dano em face do
reconhecimento da improbidade administrativa, v.g.:
“ADMINISTRATIVO.
RESSARCIMENTO
IMPROBIDADE.
AO
ERÁRIO
ILÍCITO
ANTES
INCONTROVERSO.
DA
CONDENAÇÃO.
AFASTAMENTO DA PUNIÇÃO. INVIABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE
DE ANISTIA OU PERDÃO JUDICIAL NA APLICAÇÃO DA LEI DA
IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA.
APLICAÇÃO
DA
PENA
DE
SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS. DOSIMETRIA MÍNIMA.
1. Hipótese em que o Tribunal de origem aferiu a inequívoca existência de atos
de improbidade (simulação de despesa pública e subtração do pagamento
correspondente). No entanto, tendo em vista que os agentes reconheceram a
procedência da ação e ressarciram o Erário, a Corte local afastou a punição.
2. O ressarcimento, embora deva ser considerado na dosimetria da pena, não
implica anistia do ato de improbidade. Pelo contrário, é um dever do agente
que, se não o fizesse por espontânea vontade, seria impelido pela sentença
condenatória, nos termos do art. 12 da Lei 8.429⁄1992.
3. A Lei de Improbidade não teria eficácia se as penalidades mínimas impostas
fossem passíveis de exclusão por conta do ressarcimento. Entender dessa forma
significa admitir que o agente ímprobo nunca será punido se ressarcir o Erário
antes da condenação. Isso corresponderia à criação jurisprudencial de hipótese
de anistia ou perdão judicial ao arrepio da lei.
4. O reconhecimento judicial da configuração do ato de improbidade (fato
incontroverso segundo o acórdão recorrido) leva, necessariamente, à imposição
de sanção, entre aquelas previstas na Lei 8.429⁄1992, ainda que minorada no
caso de ressarcimento.
5. Aplicação da pena de suspensão de direitos políticos dos agentes ímprobos,
quantificada no mínimo legal, consideradas as atenuantes (reconhecimento
judicial do ilícito por parte dos acusados e ressarcimento).
6. Recurso Especial provido”3.
3 STJ, REsp 1.009.204-MG, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, 01-12-2009, v.u.
Não é ocioso obtemperar que a renúncia total ou parcial à pretensão
das sanções da improbidade administrativa apresenta sérios inconvenientes ao
Ministério Público e, enfim, à sociedade a que deve servir. Essa renúncia se manifesta
quando o Parquet abdica de requerê-las cumulativamente ou celebra qualquer tipo de
composição que implique idêntico resultado prático, pois, tertium non datur: ou é
improbidade administrativa ou não é!
Além de agravos eventuais à impessoalidade sob o vértice da
igualdade, poderá haver comprometimento da incidência da “Lei Ficha Limpa” e
uma abertura de espaço à celebração de compromisso de ajustamento de conduta por
colegitimado para, por exemplo, tomada de obrigação de ressarcimento do dano, multa
civil ou outra sanção “mais leve” que não dê azo à inelegibilidade.
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Improbidade administrativa e transação Nilo Spinola Salgado Filho