E ela, que não era amor de ninguém, compreendeu que estava alforriada pela impostura, que tudo
estaria acabado a partir de agora: finalmente abriu os
olhos, finalmente e a tempo de ver o homem que tombou abatido e inútil a seu lado na cama. Meu amor, ele
ainda ousou repetir, esforçando os lábios numa palavra que não cabia em sua boca, não no meio daquela
cama no meio daquele quarto de solteiro. O homem
limpou-se com o lençol e, antes de fechar os olhos baços rumo ao sono, deu-lhe um sorriso, como se fosse
meigo ou terno, brando só porque esteve nu e se repletou numa mulher.
Ela deu de mão no mesmo lençol, enfrentando,
magoada, a textura úmida. Com as pontas dos dedos,
arremeteu-o aos pés da cama. Afofou o travesseiro e
estendeu-se ao lado do homem, apequenada numa
espécie de resignação: ele fizera nela as coisas que são
só ânsia, às quais não correspondem doçura nenhuma,
nas quais só se ama, ou se diz que se ama, um pouco
antes do fim. Quis, porque era moça, porque se acostumara à maciez da companhia, quis encostar o rosto ao
peito magro, sentir o pulmão respirando em compasso
sereno; quis, como quis, merecer o sagrado de uma pele
que descansa. Não podia, não com aquele homem, não
com aquele cuja imagem fazia nascer um enjôo doce.
No entanto, não sossegava. Como se ainda não
pudesse caber na quietude, apoiou-se sobre o cotovelo e viu o homem de carnação débil e de músculos
frouxos. Viu mais: o homem galante ao entrar na sala
de aula, a fala pausada, um deus de letra redonda,
pensou no que havia pensado que teria com ele, nas
coisas que falava, no amor prometido por descuido,
e reacendeu. Os dedos migraram sobre os pêlos grisalhos do peito, atravessando o ventre alteado, até
espalmar a mão. Um tremor. Retrocedendo séculos,
ela apenas queria, como uma ancestral épocas antes
quisera. Mas era sozinha que tinha de estar com o outro, porque o outro que cabia naquela cama lhe havia roubado, com suas ordens e seu sono, a presença
salvadora. E, vendo o homem que dormia, extinto do
quarto e apagado das coisas, resolveu apaziguar-se.
Com medo de mexer errado em si mesma, foi cuidadosa. Para si mesma, podendo olhar-se inteira, teve
zelo e paciência.
Antes que o mundo lhe sobreviesse, antes de se
tornar fina e limpa a atmosfera, antes mesmo de o prazer surgir da solidão a que fora arrojada, cometeu: beijou os lábios do homem. Foi então que se uniu a ele, só
quando pôde beijá-lo e só naquele instante seco, para
nunca mais. E depois de beijá-lo, depois de compor e
desatar nós, e sem que ele sequer se inteirasse de um
mundo que se construía e desmoronava a seu lado, a
moça deitou-se de olhos abertos. E as pupilas estavam
largas, tranqüilas, vingadas. A penumbra começava a
azular as cores do quarto.
Acordou de um sono muito curto e sobressaltado. Ele continuava lá, de costas para ela. Naquele pouco
tempo, fez-se o movimento das miudezas, e ele, com
sua ausência, havia transformado a nudez e o prazer
de ambos em blasfêmia. Cheia dos odores, acendendo
as luzes pelo caminho, foi até o banheiro e encheu de
água o côncavo das mãos, espargindo rosto e colo. Mas
ainda não era o suficiente, e esqueceu-se muito tempo
sob a água da ducha. Enxugou-se com uma toalha áspera. Foi até o quarto e, tateando, encontrou o interruptor que fez brilhar a lâmpada fraca e amarela. Vestiu-se.
O homem dormia numa fragilidade tão grande de corpo lasso e de músculos frouxos. Cobriu-o com o lençol,
protegendo-o. Piedosa, de volta ao mundo, juntando
sua nova sabedoria, beijou-lhe a fronte.
Bateu a porta. No corredor do edifício, era partida.
Saiu à rua de olhos muito abertos. Pensou que
uma pessoa deveria fazer apenas aquilo que entendesse. E seguiu pela avenida vazia de fascinação.
CÍNTIA MOSCOVICH é escritora, jornalista, mestre em Teoria Literária e
ministrante de oficinas de criação textual. Contista, romancista e cronista, é autora de O reino das cebolas, Duas iguais, Arquitetura do arco-íris,
Por que sou gorda, mamãe? e Anotações durante o incêndio. Com três
prêmios Açorianos, a autora também recebeu o Prêmio Jabuti, e, recentemente, foi agraciada com o Prêmio Portugal Telecom de Literatura e o
Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional por Essa Coisa
Brilhante que é a Chuva. Em Portugal, participou da coletânea Putas: novo
conto português e brasileiro, da editora Quase. Também em Portugal, publicou Duas iguais e Arquitetura do arco-íris, pela editora Pergaminho. Na
Itália, integra a antologia Sex’n’bossa, lançada pela editora Mondadori em
2005, além de ter publicado seu romance Por que sou gorda, mamãe?.
Também foi traduzida para o inglês, para o alemão, para o sueco, para o
espanhol e para o catalão.
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