UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
HILTON COSTA
O PARASITISMO COMO HERANÇA:
O CONCEITO DE HEREDITARIEDADE SOCIAL EM MANOEL BOMFIM
CURITIBA
2009
HILTON COSTA
O PARASITISMO COMO HERANÇA:
O CONCEITO DE HEREDITARIEDADE SOCIAL EM MANOEL BOMFIM
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para
obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Paraná.
Prof. Dr. Alexandro Dantas Trindade
CURITIBA
2009
2
Para Saturnina Santos Costa e Sebastião Costa.
3
AGRADECIMENTOS
Para a realização de qualquer empresa, seja ela qual for, uma das primeiras
coisas que se descobre é a impossibilidade de realizá-la só. A realização do trabalho que
segue só foi possível graças à ajuda direta e indireta de uma série de pessoas. Deste
modo, gostaria inicialmente de agradecer ao meu orientador Professor Dr. Alexandro
Dantas Trindade, agradecê-lo pela paciência e dedicação no trato com este texto e para
com este discente.
É também importante dizer um muito obrigado a alguns professores e
professoras do Departamento de Ciências Sociais e Antropologia: ao Professor Dr.
Dimas Floriani, especialmente pelas discussões em Sociologia III e em Epistemologia
das Ciências Sociais, a Professora Dr.ª Miriam Adelman, pelos inestimáveis préstimos
acerca da ou das teorias feministas, aos professores doutores Adriano Nervo Codato e
Renato Perissinotto. Cabe aqui ainda um agradecimento Professora Doutora Simone
Meucci pelas preciosas informações acerca de como tratar o pensamento freyriano.
Igualmente importante é dizer um “valeu gente” para os novos amigos e
amigas oriundos e oriundas do curso de Ciências Sociais, aqueles e aquelas que
ajudaram tanto na hora de discutir um texto quanto para descontrair no barzinho no final
do dia, Neli Gomes, Camila Tribess, Hugo Loss, Carlos, Douglas, Kassia Smak a vocês
meu muito obrigado! E quem diria até a você Bodhan... valeu! E aos antigos
companheiros de jornada Jonas, Helder, Diosmar, Milton valeu gente, obrigado.
Lennita, obrigado pela paciência, pelo carinho, especialmente por este, pelas
dicas teóricas e metodológicas sempre muito pertinentes e úteis.
A José Maria Cechelero e a Maria Lúcia Picheti, sem aquele incentivo inicial
nada disso seria possível.
E a aqueles que, mesmo sem entender muito bem o que é esse “trem”
denominado Ciências Humanas, sempre apoiaram estas minhas empresas: à Saturnina
Santos Costa e Sebastião Costa.
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RESUMO
O presente trabalho procura discutir alguns aspectos do pensamento social brasileiro da
virada do século XIX para o século XX. Tomando a obra de Manoel Bomfim como
fonte, buscou-se perceber a formação de um pensamento contra-hegemônico no meio
letrado local. Observou-se como este intelectual utilizou o conceito de “parasitismo
social” e especialmente o de “hereditariedade social” como matriz explicativa da
realidade brasileira, em contraposição a explicações e interpretações racialistas vigentes
à época.
Palavras chaves: Manoel Bomfim; Pensamento Social no Brasil; Racialismo;
Hereditariedade Social.
5
ABSTRACT
This research discuss about the Brazilian social thought prevailing during the end of
XIX century and the beginning of the XX century. Using the work of Manoel Bomfim
as main source of investigation, it identifies the constitution of a perspective that is
build against the hegemonic thought in the intellectual field. It observes how this writer
uses the concepts of social parasitism and especially of social hereditarity to understand
the Brazilian reality defying the racialists explanations prevailing at the time.
Key-words: Manoel Bomfim; Brazilian Social Thought; Racialism; Social Hereditarity.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
7
CAPÍTULO I
A crise do escravismo e o pensamento racialista brasileiro:
composição de um pensamento hegemônico
9
CAPÍTULO II
A pena e o florete: o agir letrado no Brasil da virada do
século XIX para o século XX
22
CAPÍTULO III
Manoel Bomfim e o pensamento hegemônico: uma relação
ambígua
29
CAPÍTULO IV
O Conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim
41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
55
7
INTRODUÇÃO
O presente trabalho surgiu de uma série de inquietudes oriundas das leituras
das obras dos letrados brasileiros de fins de século XIX e início do século XX. A leitura
de Raymundo Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Sílvio Romero, por exemplo,
chamou-me a atenção pela similaridade no que diz respeito ao referencial teórico
adotado por estes letrados, os quais, cada qual a seu modo, orientavam suas obras em
grande dialogo com o racialismo, isto é, suas análises e interpretações da realidade
brasileira eram fundamentalmente orientadas por suas interpretações do racialismo. Esta
constatação levou à observação de que em outros intelectuais do período a utilização
deste arcabouço era recorrente, de modo a se constituir em uma espécie “marca” do
pensamento brasileiro. Todavia, como era de se esperar, havia quem discordasse deste
referencial teórico e buscasse outras formas de análise da realidade brasileira.
Com efeito, entre as vozes discordantes da matriz hegemônica a literatura
específica chama a atenção para dois nomes, Alberto Torres (1865-1917) e Manoel
Bomfim (1868-1932). Quanto ao primeiro, foi possível realizar breve estudo em outro
momento e, embora não pudéssemos abordar o segundo letrado, a curiosidade sobre seu
trabalho permaneceu latente, de tal forma que agora nos foi possível fazer uma
investigação mais detalhada sobre sua obra. (COSTA, H., 2004). Manoel Bomfim
nasceu em 8 de agosto de 1868 em Aracaju, na então província de Sergipe, oriundo de
uma família de proprietários rurais. Ele chegou a trabalhar no engenho da família,
porém algum tempo depois se transferiu para a Bahia a fim de estudar medicina, curso
que concluiu no Rio de Janeiro em 1890, retornando ao Sergipe em seguida. Após
problemas familiares, segue novamente ao Rio de Janeiro e neste momento troca a
medicina pela pedagogia, pelo ensino – carreira que seguirá até o fim de sua vida em 22
de abril de 1932. (BOMFIM, L. P., 1993. pp. 355-358). Manoel Bomfim também
manterá uma produção intelectual distribuída em várias áreas do conhecimento:
psicologia, história, sociologia, educação. Assim, para este trabalho enfatizou-se uma
obra que poderia ser caracterizada como uma sociologia-histórica: A América Latina,
males de origem (1905), pertencente à primeira fase do letrado sergipano.
Deste modo, o presente trabalho procurou primeiramente caracterizar o meio
letrado à época em que Manoel Bomfim publicou A América Latina, males de origem,
ou seja, o contexto da virada do século XIX para o século XX. Assim, buscou-se
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articular os movimentos intelectuais do período com outros eventos. Desta maneira, a
crise do escravismo, o fim da Monarquia e o início da República são eventos relevantes
à pauta do meio letrado brasileiro. E estes eventos também são resultados da ação das
pessoas inseridas neste meio letrado. Procurou-se ainda caracterizar a formação de um
pensamento hegemônico no período – pensamento esse orientado e pautado pelo
racialismo.
Em um segundo momento objetivou-se compreender melhor como funcionava
a atuação de um letrado neste período, isto é, como se constituía um determinado agir
para estas pessoas. Assim, pretendeu-se localizar algumas das regras do campo, no
sentido bourdieusiano desse termo. Simultaneamente, buscou-se localizar a posição de
Bomfim, assim como procuramos compreender a relação do autor com o meio letrado e
o pensamento hegemônico.
Por fim, apresenta-se uma discussão acerca do conceito de hereditariedade
social em Manoel Bomfim, destacando como tal conceito é relevante para a construção
e o entendimento do conceito de parasitismo social. O parasitismo social é considerado
pela literatura dedicada a investigar a obra do letrado como o organizador das suas
considerações. Porém, é possível sustentar que este só efetiva se transmitido a gerações
seguintes; nesse sentido, a transmissão da lógica parasitária se daria, segundo a análise
bomfiniana, por meio de um processo de hereditariedade social.
Cabe ainda informar alguns detalhes referentes à organização do trabalho: os
termos “letrados” e “intelectuais” aqui utilizados fazem menção às fontes, ou seja, os
autores do período estudado. Já quando surge o termo “autor” ou “autora” está se
fazendo menção aos que estudaram o período, o tema e as fontes aqui abordadas, isto é,
a bibliografia secundária.
9
CAPÍTULO I
A crise do escravismo e o pensamento racialista brasileiro: composição
de um pensamento hegemônico
O processo de eliminação do sistema escravista no Brasil se deu gradualmente
com uma série de medidas e ações ao longo de pelo menos sessenta e cinco anos. A
questão do elemento servil foi debatida na emancipação política do Brasil na década de
vinte do século XIX. Possivelmente, o nome mais lembrado, e um dos mais
significativos naquele contexto seja o de José Bonifácio. Porém, como indicado por
Emilia Viotti da Costa, não havia no contexto da emancipação política do Brasil um
ambiente favorável para tal discussão. (COSTA, E. V., 2008). Neste sentido a autora
indica, ainda, que as pessoas postas a defender o fim da escravidão não estavam
“vivendo” o ambiente brasileiro, pois Bonifácio vivera boa parte de sua vida fora do
Brasil, bem como Hipólito José da Costa, outro nome de destaque do período a se postar
de modo contrário a escravidão. Assim, a autora indica o questionamento à escravidão
nos primeiros anos do século XIX como elemento exógeno à sociedade brasileira.
(COSTA, E. V., 2008. pp. 16-19).
Viotti da Costa procura demonstrar que dentro da sociedade brasileira a
escravidão era uma instituição legítima, e praticamente incontestável na primeira
metade do século XIX, pois nem mesmo a lei de 1831, aprovada em meio à forte
pressão inglesa, mudara a situação. A ampla aceitação da escravidão foi trabalhada da
seguinte maneira pela autora:
Durante três séculos (do século XVI ao século XVIII) a escravidão foi praticada e aceita
sem que as classes dominantes questionassem a legitimidade do cativeiro. Muitos
chegavam a justificar a escravidão, argumentando que graças a ela os negros eram
retirados da ignorância em que viviam e convertidos ao cristianismo. A conversão
libertava os negros do pecado e lhes abria a porta da salvação eterna. Dessa forma, a
escravidão podia até ser considerada um benefício para o negro! Para nós, esses
argumentos podem parecer cínicos, mas, naquela época tinham poder de persuasão. A
ordem social era considerada expressão dos desígnios da Providência Divina e,
portanto, não era questionada. (COSTA, E. V., 2008. p.13).
10
A autora afirma ainda que a naturalização da instituição, mediante a influência
religiosa, fora central para a ampla aceitação do escravismo na América Portuguesa e
posteriormente no Império do Brasil. De fato, a influência do pensamento católico e da
Igreja no mundo ibérico é algo relevante, assim o aval da Igreja acerca da escravidão era
importante, mas seria este o aspecto central para a ampla aceitação da instituição
escravista? Viotti da Costa reforça o caráter decisivo do papel da Igreja afirmando que
no período,
Acreditava-se que era vontade de Deus que alguns nascessem nobres, outros, vilões, uns
ricos, outros, pobres, uns livres, outros escravos. De acordo com essa teoria, não cabia
aos homens modificar a ordem social. Assim, justificada pela religião e sancionada pela
Igreja e pelo Estado – representantes de Deus na terra –, a escravidão não era
questionada. A Igreja limitava-se a recomendar paciência e benevolência aos senhores.
(COSTA, E. V., 2008. p.12)
Embora a explicação sobre a aceitação do escravismo recaia sobre a centralidade
da Igreja e sua visão de mundo, a autora deixa transparecer outro elemento muito
relevante para o sucesso dessa difusão/aceitação – a relativa facilidade de acesso à
propriedade escrava (ou compra de escravos). Sua análise das leis de proibição ao
tráfico de escravos permite este tipo de inferência, uma vez que até a lei de 1850, a
grande entrada de cativos permitiu larga oferta, tornando os preços relativamente
acessíveis. É viável, então, trabalhar com a possibilidade explicativa de que a ampla
aceitação da escravidão na América Portuguesa e depois no Império do Brasil esteja
associada a uma combinação de elementos, cabendo papel de destaque a acessibilidade
ao cativo e a legitimação da Igreja. (COSTA, E. V., 2008). Ou seja, pensa-se aqui que a
legitimidade dada pela a Igreja à prática escravista não teria o mesmo efeito sem a
grande oferta de cativos que mantinha os preços em patamares acessíveis a uma parcela
considerável da população, tanto da colônia quanto do Império, pelo menos até a década
de 1850.
A perda de legitimidade de escravidão no Brasil é um processo gradual e tem
inicio na década de 1850, pois nos anos posteriores a 1850, com a proibição ao tráfico
internacional de escravos funcionando melhor houve uma redução significativa da
oferta e o aumento dos preços, diminuindo a acessibilidade ao escravo. A diminuição da
oferta e o aumento do preço são elementos importantes na crise do escravismo, pois sob
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estas circunstâncias o número de pessoas detentoras das condições para possuir cativos
se reduzia. A posse de escravos, antes generalizada, ia cada vez mais se tornando um
“privilégio”, sendo que essa especificidade contribuiu para a crise de legitimidade do
escravismo.
Contudo, as análises acerca do escravismo apontam para a Guerra do Paraguai
(1865-1870) como o marco de referência para o início efetivo do declínio do escravismo
no Brasil. Isso porque o inicio do conflito coincide com mudanças significativas na
sociedade brasileira em vários setores.
Nos meios políticos e letrados, a emergência de um pensamento de cunho liberal
garantia uma base teórica para o questionamento da escravidão, basicamente em virtude
da imputação da baixa produtividade econômica do regime escravista em comparação
com a produção assalariada. (SKIDMORE, 1976. pp. 19-49).
Ainda a partir das considerações do liberalismo a escravidão passou a ser cada
vez mais vista como um sério obstáculo ao desenvolvimento do trabalho livre no Brasil,
esse último percebido como essencial ao progresso.
As mudanças de orientação no meio letrado serão ainda mais significativas na
década de 1870 quando, como indica João Cruz Costa em sua Contribuição à História
das idéias no Brasil (1967), chega ao Brasil um “bando de idéias novas”. Dentre elas
estão em posição de destaque o reforço do pensamento liberal e o positivismo.
Cada corrente à sua maneira fará uma critica a escravidão, concordando ser ela
um sinal do “atraso” brasileiro.
Os desdobramentos políticos e sociais diretamente ligados à Guerra do Paraguai
também são centrais para a crise de legitimidade do escravismo. A falta de contingentes
brancos para as fileiras do Exército fez com que se recrutassem escravos para a guerra, e
a presença desses fomentou, de certa maneira, um questionamento da escravidão,
sobretudo entre o oficialato. Com relação à falta de contingentes brancos para compor o
Exército Imperial Brasileiro, também passa pela resistência das famílias brancas, com
mais recursos, a entregarem seus filhos ao serviço militar. Esse elemento, somado ao
número reduzido de brancos na população total remetem à mencionada situação.
(COSTA, H., 2004; COSTA, E. V., 2008).
O conflito no Paraguai ainda obriga o Império, mesmo a certo contragosto, a
“profissionalizar” suas forças armadas, especialmente, o exército, fator este que será
relevante na composição do exército como agente político nos anos seguintes a guerra.
O desenvolvimento das ações de guerra também desencadeou uma crise política entre o
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Partido Liberal e Conservador, dos dois partidos com o Imperador e destes três com o
Exército.
As raízes da incompatibilização dos militares com o sistema parlamentarista do Império
estão também na Guerra da Tríplice Aliança [Guerra do Paraguai] e na forma como a
dinâmica da guerra levou à coalizão entre a racionalidade exigida pelas decisões e as
práticas da política partidária tradicional. O loteamento político-partidário dos
comandos, a vasta corrupção, a incompreensão do mundo político para com as
dificuldades da campanha, foram alguns elementos dessa incompatibilização. Seu
ponto-chave, entretanto, foi o confronto entre Caxias e Zacarias, que redundou na
inversão da forma tradicional de relacionamento entre o exército e o sistema político. A
escolha de Caxias e a consolidação de sua liderança e autoridade se fazia, do ponto de
vista militar, por critérios incontornáveis e exclusivamente profissionais. Ela
representava a solução de um problema de comando em seus múltiplos aspectos,
conforme procuramos demonstrar. No mundo político, entretanto, ela era a
ultrapassagem de um princípio sagrado da cultura política, o monopólio dos cargos pelo
partido no poder. Recuperou-se a lógica da via transversa , a nomeação de uma gabinete
afinado com o general e abriu-se uma crise do sistema que se tornaria endêmica a partir
de então. (COSTA, W. P., 1996. p. 302.).
O trecho acima de Wilma Peres Costa, presente em A espada Dâmocles (1996),
é elucidativa para a compreensão da crise política originada a partir da Guerra do
Paraguai. Aqui a autora mostra as tensões entre a lógica militar e a lógica da política
imperial, sendo que destas tensões surge uma oposição entre os militares, especialmente
os do Exército, com os políticos imperiais.
O outro ponto de tensão entre o Exército e a política imperial era a questão
escravista. Peres Costa dá um importante panorama de como esta situação se
apresentava:
Durante a Guerra, a revelação da escravidão como a chaga secreta que carcomia as
estranhas do Estado Imperial, atingia os militares de múltiplas maneiras. Em primeiro
lugar, porque era utilizada pelo inimigo com arma capaz de desestabilizar o Império.
Embora fundamental, esse não era, durante a guerra, o ponto mais importante, porque as
grandes concentrações de escravos estavam em regiões distantes da zona de conflito, o
que tornava a ameaça de López de rebelar os escravos brasileiros, de difícil
concretização. Permanece, porém o fato de que a escravidão se revela como um
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elemento de vulnerabilidade estratégica, como questão que extrapolava a esfera do
poder privado para se converter em uma questão que afetava a segurança do Estado e da
Nação.
Mais, concretamente, a natureza da guerra – o enfrentamento com um exército de
conscrição universal – fazia ressaltar na escravidão a causa fundamental do despreparo
militar do Império e da inferioridade de seu exército perante o do inimigo. Ela frustrava
os esforços de recrutamento, não apenas porque não podia se armar os escravos, mas
porque impedia a participação de grande contingente de homens livres, ocupados em
manter a disciplina no interior das fazendas, e também da Guarda Nacional, a força
oligárquica mantenedora da ordem, particularmente refratária
nas províncias com
grande concentração de escravos, como Minas Gerais e São Paulo. É, portanto, a
contradição entre o sistema escravista e a existência de um exército profissional de
caráter nacional que emerge a consciência da oficialidade militar a partir da Guerra da
Tríplice Aliança. (Idem, pp. 298-299).
Peres Costa indica nesta passagem, bem como no decorrer da obra como um
todo, que a tensão fundamental do Exército com o sistema escravista residia no
particularismo gerado pelo sistema. Ou seja, ela favorecia a formação e manutenção de
tropas particulares, de caráter patrimonialista, em detrimento de um exército
profissional, uma vez que era necessário controlar a escravaria ante ao temor constante
de uma revolta dos escravos.
Por outro lado, o exercício militar era visto como uma das artes mecânicas, ou
manuais, desprezadas pela elite imperial que associava este tipo de atividade a
escravidão. E a inclusão de ex-escravos no Exército só vinha a reforçar esta imagem,
isto é, “(...) a incorporação de ex-escravos à tropa, nas várias categorias em que isto se
deu, particularmente como substitutos e libertos pela coroa, abastardava por certo o
exército como instituição, travestindo o oficial em sucedâneo do feitor e aprofundando a
violência no interior da corporação”. (Idem, p. 299.). Todos esses elementos levaram o
Exército, de certa maneira, a se aproximar do movimento abolicionista, sobretudo ao
longo da década de 1880. Naquela década, o movimento abolicionista se organiza aos
moldes de um amplo movimento político, ainda que bastante heterogêneo, seja na ação
seja na composição, porém muito efetivo na campanha publicitária para deslegitimar a
instituição da escravidão. (COSTA, E. V., 2008).
Desta feita, é possível perceber que a partir da década de 1880 o escravismo,
enquanto instituição passa a ser visto como ilegítimo e com pouca sustentação. Os
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questionamentos a ele vêm de inúmeros setores da sociedade brasileira. Assim, aos treze
dias do mês de maio de 1888, a Princesa Imperial, exercendo a regência, assina o
decreto que põe fim à escravidão no país.
A Princesa Isabel Regente em nome de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II faz
saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e Ela sancionou a
Lei seguinte:
Art. 1.º - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.
Art. 2.º - Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida
Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se
contém.
O Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e
Interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho
de Sua Majestade o Imperador, o faça publicar e correr.
Dado no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888.
67º da Independência e do Império. (apud. MOURA, 2004 p. 15).
O decreto imperial supracitado já gerou e continua a gerar inúmeros debates.
Neles ele é ora motivo de louvação, ora de defenestração. Aqui, a recuperação do
decreto pretende enfatizar sua significação como marco histórico, de um novo
ordenamento social, uma vez que até esta data a sociedade brasileira tinha a escravidão
como ponto central a sua organização. Ou seja, havia uma desigualdade básica,
reconhecida juridicamente, entre livres e escravos, mesmo a sociedade se pensando
pautada, em última instância pela igualdade. O que diz respeito, uma vez mais, à
questão da igualdade para os iguais, uma hierarquização básica organizadora da visão
de mundo dos indivíduos. E é justamente este universo que o decreto vai abalar, pois a
equiparação jurídica entre todos os indivíduos amplia substancialmente o mundo dos
iguais, altera e rompe a hierarquização básica formadora da concepção de mundo das
pessoas. Todavia, a conformação de uma visão de mundo socialmente aceita exige um
processo mais longo do que aquele necessário ao estabelecimento de um decreto. A
concepção de mundo vigente apresenta dificuldades em aceitar os novos iguais em seu
mundo. (COSTA, H. 2007).
Deste modo, não se constituiu em problema aqui discutir o decreto em si, se ele
de fato inaugurou a igualdade no país ou não e questões análogas, como já citadas. Com
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efeito, o decreto imperial é aqui tomado como um marco da equiparação formal entre os
indivíduos perante a lei, e como tal marco repercutiu nas práticas cotidianas. Como
afirma Maria Clementina Pereira da Cunha: “Tampouco era desejável para uma
assustada classe senhorial, mesmo sua parte mais ‘esclarecida’, perder o posto e mesmo
a velha atitude diante daquela massa de libertos que iam adquirindo rapidamente o
estatuto de cidadãos.” (CUNHA, M. C. P. 2008. p. 15). Ou seja, atitudes e posturas
incorporadas desde muito tempo não mudam com facilidade, ainda mais quando
expressam vantagem as pessoas que as praticam.
A Lei Áurea, teve muito possivelmente um impacto muito maior na visão de
mundo da sociedade brasileira do que a Proclamação da República. Pois, diferentemente
da segunda a primeira, ao menos em termos formais, rompeu a hierarquia e o
ordenamento social anterior, essenciais a uma sociedade dividida entre livres e cativos.
Sustenta ainda a hipótese do impacto da Abolição, ou da iminência da mesma,
a entrada com maior força do jargão racialista entre os letrados brasileiros justamente no
período em que se estava a ponto de findar a desigualdade jurídica que organizava e
orientava a visão de mundo da sociedade brasileira. Ou seja, com fim da escravidão no
plano legal se mostrou necessário à boa parte das elites letradas brasileiras construírem
um novo tipo de argumentação que mantivesse as hierarquias sociais existentes. Sai o
Direito, entra a Biologia.
Maria Clementina Pereira da Cunha indica de modo bastante incisivo a forma
como o discurso biológico, tomado como cientifico e, portanto, tido como isento de
paixões políticas, é utilizado para manter de alguma maneira as hierarquias sociais do
escravismo numa sociedade pós-escravistas.
A desagregação das relações fundadas no vínculo jurídico entre senhores e escravos era
então, no discurso político e em diferentes aspectos da vida diária, colorida pela forma
‘científica’ de ler as desigualdades: novidade confortável, sem dúvida, porque fundada
naquilo que a antiga forma de domínio tinha de mais visível. No período, a raça foi,
pouco a pouco, sendo incorporada como uma maneira genérica de aglutinar antigas
diferenças de etnia, de origem ou de filiações de outro tipo que organizavam a vida
social no regime escravista. Naqueles anos como vimos, a noção se encaixava como
uma luva aos anseios de ex-senhores angustiados. Flexível, pertencia simultaneamente à
natureza e à histórica: biologicamente inferiores e ainda infantilizados, embrutecidos ou
corrompidos pelos séculos de servidão, os negros podiam permanecer legitimamente em
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posição subalterna, sem que isso comprometesse o edifício liberal do abolicionismo e da
república. (CUNHA, M. C. P. 2008. p. 18).
A composição das bases teóricas do pensamento social brasileiro vai, então,
recorrer ao racialismo europeu no intuito de construir novos padrões hierárquicos para o
Brasil, ou melhor, manter as antigas hierarquias sob nova vestimenta. Desta feita, se
constitui no Brasil entre os letrados em fins dos séculos XIX e inicio do século XX um
pensamento hegemônico pautado pelo racialismo europeu.
A formação ou a conformação de uma forma de pensar hegemônica pode ser
atribuída à existência de algo semelhante a um campo no sentido das formulações de
Pierre Bourdieu. Ou seja, a presença de “regras” de inserção e legitimação seria
importante à composição de um pensamento hegemônico. Pois, para se validar enquanto
letrado dever-se-ia de algum modo estabelecer dialogo com essas “regras” e uma delas
seria a utilização de um determinado referencial teórico.
Contudo, para o Brasil do fim do século XIX e início do século XX, é bastante
difícil se falar em campos, no sentido mais ortodoxo das formulações bourdiesianas,
uma vez que soa forçado admitir-se a existência de um campo estruturado da sociologia,
da história, etc, no Brasil daquele contexto. Todavia, com a orientação das
considerações bourdiesianas e valendo-se de trabalhos como os de Nicolau Sevcenko e
Roberto Ventura, é possível falar de um campo intelectual, em sentido amplo.
(SEVCENKO, 1983; VENTURA, 1991).
Com efeito, este campo intelectual é marcado, no período em questão, por uma
forma de pensar hegemônica. As reflexões intelectuais deste momento são orientadas,
em sua maioria, por um referencial teórico comum. Letrados com diferentes posturas
perante a realidade brasileira acabam utilizando o mesmo arcabouço teórico, cujo
referencial comum constrói uma espécie de área de legitimidade, ou seja, para se
adentrar no campo intelectual, debater e polemizar dentro nele dever-se-ia manusear
determinado conjunto de idéias e teorias. Assim, para se fazer ouvir ou para se
conseguir alguma ressonância seria necessário manusear um conjunto de referenciais
teóricos tanto comuns quanto legitimados pelo campo, criando-se, então, uma espécie
de vocabulário teórico normativo. (SKINNER, 1996). A ampla utilização de um mesmo
referencial teórico, de modo generalizado, no interior do meio letrado vem a compor o
que aqui se define como pensamento hegemônico.
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Deste modo, então, se tem no Brasil de fins do século XIX e inicio do XX, um
pensamento social pautado e orientado pelo racialismo europeu. Evidentemente, um
racialismo apropriado por leituras e interpretações bastante singulares. O racialismo é
um ideário bastante importante na compreensão do panorama teórico do século XIX, o
qual, para Tzvetan Todorov, é constituído de algumas proposições básicas, tais como os
destacados a seguir.
Primeiro: a crença na existência das raças. Os grupamentos humanos
apresentariam características físicas comuns, e as diferenças entre esses evidenciariam a
existência da noção de raças, aqui assimiladas às espécies animais. Haveria entre duas
raças a mesma distância que entre o cavalo e o jumento: não é o bastante para impedir a
fecundação natural, mas suficiente para estabelecer uma fronteira que salta aos olhos de
todos. Os racialistas normalmente não se contentam em contar esse estado de coisas,
mas desejam, ademais, que se mantenham. São, portanto, contra os cruzamentos entre
as raças. (TODOROV, 1993. p.108).
Segundo: a continuidade entre o físico e o moral. Esta proposição caminha na
direção de um determinismo específico, o físico ditando o moral e predominando sobre
o segundo. As raças não seriam simplesmente grupamentos humanos de características
físicas próximas, mas com características morais igualmente semelhantes, definidas
pelas primeiras.
Terceiro: a ação do grupo sobre o indivíduo. Aqui o racialismo apresenta suas
características de doutrina coletiva. As ações e comportamentos do indivíduo seriam
determinados e regidos pelo grupo racial ao qual pertence.
Quarto: a hierarquia universal dos valores. O racialista, além de apontar para as
diferenças raciais, que também seriam culturais, aponta para a superioridade de umas
sobre as outras. Tal hierarquia quase invariavelmente é montada em cima de uma base
etnocêntrica, no caso abordado aqui, o eurocentrismo. Os valores que serviriam de
ponto de partida à mencionada hierarquia seriam os da Europa ocidental.
Quinto: a política baseada no saber. O saber acumulado pela cultura superior
geraria uma proposição sobre uma política de harmonização do mundo, segundo as
considerações anteriores. “Assim, a submissão das raças inferiores, ou mesmo sua
eliminação, pode ser justificada pelo saber acumulado a respeito das raças”
(TODOROV, 1993. pp. 110-111). Então, a política baseada no saber também pode ser
lida como uma forma de legitimar a dominação de outros povos, por eles não
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compartilharem do mesmo código de valores do dominador. (COSTA, H. 2004, pp. 3940; TODOROV, 1993. pp. 107-110).
É a essa forma de pensar que parte significativa da elite letrada brasileira vai
aderir na virada do século XIX para o século XX. Evidentemente, o grau de adesão a ela
varia de autor para autor, uma vez que a ampla maioria estava preocupada em
argumentar em prol de um Brasil com possibilidades de avanço e crescimento, desta
feita, uma adesão total às teses do racialismo equivaleriam a negar qualquer
possibilidade de desenvolvimento do país.
Assim, letrados como Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Raymundo Nina
Rodrigues, Graça Aranha, Aluízio de Azevedo, entre outros flertaram com as teses
racialistas para interpretar a realidade brasileira de seu tempo. E mesmo nomes
aparentemente discordantes como o de Alberto Torres também estabelecerá certo
dialogo com o racialismo.
A utilização do referencial racialista entre os letrados brasileiros era diverso,
Euclides da Cunha, por exemplo, em seu texto mais importante, Os Sertões (1902), faz
uma reconstrução sui generis da noção de raça com base nas reflexões darwinianas.
Euclides constrói o sertanejo como uma raça nova, criada da junção entre os lusitanos e
as nativas, sendo esse o brasileiro original. Assim, o sertanejo seria antes de tudo um
forte, diferente dos “mestiços neurastênicos do litoral” (CUNHA, E. 1997. p. 129).
Logo, ele descarta os negros com parte da formação brasileira, ao não ser para
prejudicá-lo, porém simultaneamente a isso Euclides, contrariando as tendências
majoritárias do pensamento racialista admite a possibilidade de desenvolvimento
positivo de um tipo miscigenado. Em suma, Euclides avalia as possibilidades e as
mazelas do Brasil a partir da noção de raça, sendo tal determinismo biológico
compartilhado com o climático e o geográfico, mas o biológico assume importância
central em inúmeros momentos.
Por sua vez, Sílvio Romero possuía uma visão mais ortodoxa do racialismo, ao
menos em sua primeira e terceira fases. A obra de Romero pode ser dividida em três
momentos bem caracterizados: o primeiro é marcado por uma adesão mais ortodoxa ao
racialismo, ou seja, uma defesa irrestrita dos tipos puros, condenação a miscigenação, e
um elogio ao elemento branco como portador natural da civilização. A segunda fase de
Romero tem como obra de referência a História da Literatura Brasileira, 1888, e nesse
momento ele refaz sua leitura do racialismo. Muito possivelmente influenciado por
autores germânicos ele passa a buscar a originalidade da nação brasileira, por entender
19
este elemento como central à definição do Brasil enquanto nação. A originalidade do
Brasil estaria na miscigenação e na mestiçagem, daí Romero passar a construir um tipo
mestiço específico, afastando-se um pouco da ortodoxia racialista: tal tipo, embora
mestiço genotípicamente, seria branco no fenótipo e no agir.
Porém, no inicio do século XX Romero descarta as possibilidades dos tipos
mestiços e retorna, em grande medida, a sua primeira fase, condenando a miscigenação
e defendendo a superioridade da raça branca.
Raymundo Nina Rodrigues é considerado o letrado brasileiro que mais se
aproximou do racialismo. Ele teria sido quem menos fez concessões, ou seja, quem
menos flexibilizou as teorias racialistas em prol da realidade brasileira. Contudo, sua
obra também é marcada por ambigüidades, especialmente, no que diz respeito, a sua
compreensão da miscigenação. Nina Rodrigues assume a defesa dos tipos puros como
os melhores, se posicionando a favor da hierarquia das raças. Porém, com muito maior
ênfase que seus contemporâneos Nina Rodrigues trabalha também com divisões
internas das raças e as hierarquias provenientes destas divisões. Ao fazer isso seu
discurso se torna ambíguo em relação ao valor dos tipos miscigenados. Entretanto, de
um modo geral, é possível afirmar que Nina Rodrigues condenava a miscigenação e sua
análise do Brasil é deveras pessimista justamente em função disso. O Brasil estaria
divorciado das melhores possibilidades de progresso, como se dizia à época, por ser
composto de elementos de raças inferiores e por elementos miscigenados.
Na virada do século XIX para o século XX a adesão ao racialismo era intensa,
como os exemplos acima expostos denotam; todavia, existia quem discordasse de tal
explicação. Dois nomes se destacam nesta direção: Alberto Torres e Manoel Bomfim.
As posições do segundo serão abordadas na seqüência deste trabalho, e com relação às
do primeiro se seguem agora. Alberto Torres em A organização nacional (1914) e em O
problema nacional brasileiro (1914), busca destacar que o problema ou os problemas
do Brasil não estariam no povo, nas raças, mas em sua organização política, e esta
sempre ficou a cargo das elites. Elites que não se viam marcadas pelos vícios do povo,
em especial a miscigenação. Porém, para trabalhar nesta vertente explicativa Torres tem
que fazer uso das categorias disponíveis à época, assim ele tem que se utilizar do
racialismo para refutá-lo. O argumento de Torres, por um lado, pode ser visto como um
ataque às elites, consideradas ineficientes na condução do país, e deste modo uma
defesa do povo. Mas, de outro pode ser pensado como uma defesa do ponto de vista que
somente as elites poderiam reorganizar o país e conduzi-lo para o progresso; nota-se
20
então uma descrença relevante na participação popular na política. Porém, interessa aqui
destacar a posição de Torres em relação às teorias racialistas: ele as descarta como
ponto central à explicação e compreensão da realidade brasileira, ainda que as utilize
tangencialmente.
Ao se observar a obra destes letrados aqui mencionados percebe-se uma pauta
comum de leituras, contemplando autores como Georges-Marie Leclerc Buffon (17071788), Hippolyte-Adolphe Taine (1823-1893), Abel Hovelacque (1843-1896), JosephArthur Gobineau (1816-1882), Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919),
Henry Thomas Buckle (1821-1862), Herbert Spencer (1820-1903) e Edward Burnett
Tylor (1834-1917), Auguste Comte (1798-1857), Georges Vacher de Lapouge (18541936), Gustave Le Bom (1841-1931) Pierre-Guillaume-Frédéric Le Play (1806-1882),
Cesare Lombroso (1835-1909), Charles Darwin (1809-1882) entre outros. Contudo,
com relação a Darwin cabe mencionar que o que se deu foi uma leitura muito mais
intensa dos denominados darwinistas, especialmente, os sociais, do que do próprio
Darwin.1 A apropriação bastante singular das idéias de autores como os citados vão
compor o pensamento hegemônico no Brasil da virada do século XIX para o XX.
Todavia, todo o discurso pode ter um contra discurso, e isso ocorre na maioria dos
casos. O problema reside, enfim, na própria natureza do contra discurso, é minoritário e,
portanto, por vezes não encontra uma maior ressonância, especialmente, na posteridade.
É nessa situação que se buscará compreender a posição de Manoel Bomfim, pois
se valendo das considerações de Ronaldo Conde Aguiar pensa-se esse letrado como o
autor de um tipo de contra discurso. Indica Conde Aguiar que:
Em meio a tantos autores que aceitaram e repetiram sem hesitação ou crítica os cânones
ideológicos, políticos e éticos do seu tempo, surpreendeu-me ouvir a voz dissonante de
Manoel Bomfim. Uma voz que ousava dizer o indizível, um pensador que não temia
pensar o impensável, num meio social mais alienado, conservador e inculto que o de
hoje. Surpreendeu-me, sobretudo, a coerência e a lúcida rebeldia desse médico
1
Sobre a pauta de leitura dos letrados brasileiros do período entre outros autores e autoras ver: AGUIAR,
Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro:
Topbooks/ANPOCS, 2000; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a
antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001; SCHWARCZ,
Lilia Moritiz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São
Paulo: Cia. das Letras, 1993; SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco, raça e nacionalidade no
pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976; SODRÉ, Nelson Werneck. A ideologia do
colonialismo. Seus reflexos no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1965; VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914.
São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
21
sergipano, e o fato, tão raro como admirável, de ter ele dedicado sua vida ao projeto que
julgava ser imprescindível ao nosso esforço de autosuperação: a instrução básica,
popular e plena. (AGUIAR, 2000. pp. 25-26). [grifos no original]
Bomfim, nesta direção, pode ser pensado como o formulador de um discurso
contra hegemônico, especialmente, no texto de A América Latina, males de origem
(1905). Entretanto, antes de discutir propriamente a relação de Bomfim com o
racialismo, observar-se-á sua relação com o meio letrado de sua época.
22
CAPÍTULO II
A pena e o florete: o agir letrado no Brasil da virada do século XIX
para o século XX
Se por um lado é controverso trabalharmos com a idéia de campos específicos
no Brasil da virada do século XIX para o século XX, como propõe Pierre Bourdieu nas
teorias dos campos (BOURDIEU, 1996), o estudo do período permite visualizar um
campo intelectual, em sentido mais amplo, tornando possível localizar certas “regras”
para uma “agir letrado”. Neste sentido, é bastante relevante o texto de Nicolau
Sevcenko, Literatura como missão. Em tal obra é possível notar certos procedimentos
necessários para se ter uma atividade intelectual no período, dentre eles destaca-se “o
exercício intelectual como atitude política”, isto é, o engajamento em questões de ordem
pública era algo essencial neste agir letrado.
Arrojados num processo de transformação social de grandes proporções, do qual eles
próprios eram fruto na maior parte das vezes, os intelectuais brasileiros voltaram-se para
o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz
de selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir
um mundo novo, liberal, democrático, progressista e de perspectivas ilimitadas, como
ele se prometia. (...) O engajamento se torna a condição ética do homem de letras
(SEVCENKO, 1983. pp. 78-79).
O engajamento destes “mosqueteiros intelectuais”2, pode ser vislumbrada no
próprio sentido das obras, como na atuação política direta, fosse ela através da ocupação
de cargos públicos ou das polêmicas mais amplas. Aliás, participar das polêmicas, mais
do que vencê-las propriamente ditas, era algo importante para a legitimação no mundo
letrado, como bem demonstrou Roberto Ventura. (VENTURA, 1991.).
Nesta direção, cabe ressaltar com quem se polemiza, ou seja, seria importante ao
neófito ser criticado por alguém já reconhecido, e as réplicas, tréplicas, etc., dariam
maior visibilidade ao iniciante. No caso de Bomfim, Conde Aguiar observa e discute
que ele teve na publicação de A América Latina, males de origem a chance de adentrar
2
Os escritores do Rio de Janeiro da Belle Époque se autodemoninavam de mosqueteiros intelectuais,
assim indica Nicolau Sevcenko fazendo referência a BARBOSA, Alexandre J., A tradição do impasse.
São Paulo: Ática, 1974. pp. 77-111.
23
numa polêmica que provavelmente lhe proporcionaria bastante projeção, pois seu livro
havia sido alvo da fúria de seu conterrâneo sergipano e renomado polemista – Sílvio
Romero. (AGUIAR, 2000. pp. 317-357). E “as polêmicas eram de fato comum e
constante no campo intelectual da época, [e] coisas como “ética” e “discussão no plano
restrito das idéias” não passavam de frescura naquela época de polemistas iracundos e
de busca desenfreada de “poder intelectual”. (AGUIAR, 2000, p. 321).
Porém, Bomfim opta por não polemizar com Romero, a não ser por uma única
carta pública, como indica Conde Aguiar. (AGUIAR, 2000, pp. 352-355). Contudo, a
carta não estava apta ao combate que as polêmicas da época pediam, pois
O fato é que, na carta, Bomfim não discutiu idéias, nem os temas críticos do América
Latina: males de origem, como o parasitismo social, o racismo científico ou o sistema
oligárquico de dominação, preferindo enveredar pelo caminho do revide aos insultos
pessoais de Sílvio Romero. Em princípio, nada contra as explosões emocionais, desde
que os xingos (eles, afinal, faziam parte das regras da polêmica!) fossem temperados
pela reafirmação incisiva das idéias que Bomfim defendera tão bem em seu livro.
(AGUIAR, 2000, p. 355).
Daí que Conde Aguiar observa que
O biógrafo deve ser o primeiro a reconhecer: Bomfim aceitou como extrema
passividade o bombardeio das idéias que expôs em A América Latina: males de origem.
Quando, pressionado por Walfrido Ribeiro e outros amigos, resolveu responder, acabou
perdendo a oportunidade de ocupar um espaço destacado no campo intelectual da época.
A verdade, portanto, é que Bomfim amargou uma derrota, apesar do sucesso e da
qualidade indiscutíveis do seu livro. (AGUIAR, 2000, p. 356).
Com efeito, mais do que “perder” a disputa Bomfim “infringiu” uma das
“regras” essenciais do campo ao não participar da polêmica, custando-lhe sua carreira
intelectual, uma vez que
Sílvio Romero bateu firme, sem dó, em Manoel Bomfim, que, segundo as regras do
campo intelectual, tinha que pôr o time em campo e responder, um a um, os ataques do
crítico de Lagarto, tal como sugeriu, com evidente interesse editorial, o secretário da
revista Os Anais. Bomfim, na verdade, tinha que tomar a iniciativa no embate, valorizar
24
o seu contradiscurso, defender destemidamente as suas idéias – e não permanecer
praticamente rendido, braços arriados, diante de um pugilista peso pesado como
Romero. (AGUIAR, 2000, p. 357, grifos no original).
A legitimação da pessoa no mundo letrado passava, então, pelo “cumprimento
de algumas regras”, de certas premissas do campo, bem como pela adoção de algumas
estratégias de atuação. Com relação a estas “estratégias” de ação cabe destaque as redes
sociais, ou seja, os vínculos que se estabeleciam com outras pessoas do meio,
preferencialmente influentes, e com instituições. Neste sentido, a outra opção de
Bomfim é controversa: sua negativa em participar da Academia Brasileira de Letras.
Segundo Conde Aguiar, o ensaísta sergipano teria negado por duas vezes e ou
demonstrado desinteresse em participar deste espaço de legitimação e consagração.
Em primeiro, lugar Manoel Bomfim não aceitou determinadas regras e comportamentos
do campo intelectual brasileiro, apesar de fazer parte dele. O sociólogo sergipano, por
exemplo, recusou o convite de Machado de Assis para participar da fundação da
Academia Brasileira de Letras, compondo o elenco dos quarenta primeiros “imortais”.
Na década de vinte, também não aceitou uma sugestão de Graça Aranha – e não
concorreu à cadeira 21, aberta com a morte de Mário de Alencar. Bem verdade que a
recusa de pertencer à Academia Brasileira de Letras (e ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro) significou pouca coisa, mas o constante desinteresse de Bomfim
em vincular-se às “instituições legitimadoras” (Bourdieu) do campo intelectual impediu
também, de usufruir o prestígio e renome de pertencer a elas. (AGUIAR, 2000, p. 510,
grifo no original).
Entretanto, Bomfim não “contraria” todas as “regras” desse mundo letrado; ele
“respeita”, por exemplo, o engajamento político, representado no “amor” ao país.
Assim, essa “regra” do meio letrado do período se expressa bem na forma como
Bomfim apresenta A América Latina, males de origem: “Este livro deriva diretamente
do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americano pela América.”
(BOMFIM, 1993, p. 34). E continua afirmando que, com o passar do tempo,
as notas se amontam, o livro se forma a pouco e pouco – observações e reflexões,
colhidas em cada uma das crises, desalentos, dúvidas e entusiasmos da vida que, entre
dificuldades, vamos vivendo. Chegando aqui, à Europa, não só a natural saudade
25
daqueles céus americanos, como a apreciação direta dessa reputação perversamente
malévola de que é vítima a América do Sul, provocaram a reação afetiva que se traduz
nestas páginas. (BOMFIM, 1993, p. 35).
Com efeito, essa é, pode-se dizer, a forma como Bomfim abre ao público a obra
A América Latina, males de origem, informando de onde teria emergido seu texto. Essa
informação lembra a dada por outro grande intelectual brasileiro alguns anos mais tarde,
Gilberto Freyre, na qual afirmava o seguinte:
(...) creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se
mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que
conheci Boas. Era se como dependesse de mim e dos da minha geração; da nossa
maneira resolver questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me
inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos
maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos
– descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklyn.
Deram-me a impressão de caricaturas de homens. (...) Faltou-me quem me dissesse
então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia,
que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos que eu julgava representarem o Brasil,
mas mulatos e cafuzos doentes. (FREYRE, 1981, p. lvii).
De modo análogo a Bomfim, Gilberto Freyre também informa o público de onde
teria emergido sua obra. Dentre as várias possibilidades interpretativas que surgem a
partir destas “informações”, destacar-se-á aqui a questão da viagem de formação ou da
viagem como parte da formação. A viagem ainda também pode ser observada como
uma “legitimadora” do saber adquirido. E nesse sentido ela aparece como uma das
“regras” do mundo letrado. Outro aspecto da viagem é o da descoberta, em especial, a
de si mesmo. Ou seja, a descoberta do Brasil, de maneira mais efetiva, se dá no exterior.
A viagem pode ainda ser entendida como um elemento formador de
comunidades, no sentido proposto por Benedict Anderson. Este autor argumenta que a
partir da formação dos regimes absolutistas na Europa, deu-se início a um processo de
peregrinação de funcionários destes novos Estados. Fato que se tornara ainda mais
presente, segundo Anderson, na formação dos Impérios Coloniais no século XV e XVI,
particularmente entre o império português e espanhol, onde um número crescente de
funcionários criollos perpetrava viagens não só de formação, como também de trabalho,
26
e neste interregno tais pessoas, muito distintas entre si, a despeito de sua trajetória
comum, acabam se aproximando, formando uma espécie de comunidade, análoga a
comunidade de peregrinos religiosos, distintos na origem e próximos na fé que
compartilham. (ANDERSON, 2001. pp. 94-100).
Em sentido análogo, os letrados brasileiros em suas viagens acabam se
aproximando um dos outros, mesmo que em alguns momentos isso se dê apenas nas
leituras. Isso se dá porque estes companheiros de viagens têm objetivos comuns, como a
formação e a legitimação do saber na Europa, e especialmente, disputaram as mesmas
vagas, na maioria dos casos, no aparato burocrático estatal. Porém, mesmo assim eles
formaram uma espécie de comunidade de letrados dentro ou às margens do Estado e
com características semelhantes no que diz respeito à trajetória de formação.
A viagem como algo relevante à formação intelectual é algo que se destaca no
mundo letrado ocidental desde o Iluminismo, pelo menos. Mário Carelli, em seu estudo
sobre os intercâmbios culturais entre Brasil e França, indica a importância da viagem
para a formação do intelectual no contexto do Iluminismo. Por exemplo, ao analisar a
produção de Ferdinand Denis, explica que sua vinda ao Brasil também estaria vinculada
a este propósito – formação e descoberta. Assim, o “estudo do caso de Ferdinand Denis
deve ser recolocado em um quadro ideológico mais amplo: o do impacto das Grandes
Descobertas, e em seguida da função da viagem no pensamento das Luzes.” (CARELLI,
1994, p. 64).
Existe um espaço de quase cem anos entre a viagem de Denis ao Brasil e a de
Bomfim para a França, contudo, o peso da viagem na formação letrada parece não ter
diminuído, ao menos entre os brasileiros. Nesta direção, a compreensão de Bomfim
também passa pelo entendimento do papel da viagem na trajetória do intelectual. A
viagem de estudos para a Europa é algo, praticamente, intrínseco à formação brasileira,
mesmo antes do Brasil ser o Brasil, ou seja, durante a dominação lusitana os nascidos
em terras americanas buscavam na Europa sua formação letrada, neste momento
Coimbra era destino quase que invariável.
Cabe mencionar que no período colonial a proibição de instituições de ensino
do porte de uma universidade obrigava quem quisesse ter uma formação maior ir a
Europa. Todavia, a “prática” se enraizou numa tradição letrada brasileira, pois mesmo
depois da emancipação política e da criação de espaços de ensino superior a ida à
Europa se mantinha quase que como obrigatória. Especialmente, para aqueles imbuídos
de conseguir maior destaque e legitimação no meio letrado. Contudo, no transcorrer do
27
século XIX e durante o século XX (e muito possivelmente no início do século XXI)
Coimbra e Portugal foram substituídos por Paris e a França. Assim, a obra de Carelli
mais uma vez mostra-se interessante neste ponto, pois indica a relevância da França
para formação da intelectualidade brasileira. “Durante todo o século XIX, as elites
políticas e intelectuais brasileiras encontraram em Paris os modelos que lhes permitiram
colocar os fundamentos de sua nação, que se consolidou entre o Império e a instauração
da República.” (Idem, p. 189).
Porém, este “encontro” não acontecia somente “de fato”, ou seja, com a pessoa
indo a Paris ou a França, mas também por meio da leitura de vasta bibliografia francesa
(Idem, pp. 190-191). Aliás, o domínio da língua francesa era também uma das “regras”
para se militar no meio letrado brasileiro da virada do século XIX para o século XX.
Segundo Carelli, a língua francesa era considerada na Belle Époque brasileira com única
digna para o exercício intelectual. (CARELLI, 1994, p. 173). Entre parêntesis, essa era a
posição hegemônica, o que significa dizer que também existiam posições discordantes
como as de Monteiro Lobato. (Idem, ibidem).
Logo, a viagem de Bomfim à Europa, entre 1902-1903, exemplificava algo
recorrente, porém fundamental para quem buscava espaço no mundo letrado. E
Bomfim, no seu “estágio” francês cumpre, em certa medida, as funções há pouco
citadas: ele cumpre um estágio de formação que lhe serve de momento de
“autodescoberta”.
A autodescoberta se faz no sentido exposto no inicio desta seção, de se estando
fora do Brasil se ver, se perceber brasileiro e passar a se preocupar com o país. Essa
posição se revela nas considerações supracitadas do próprio Bomfim e de Freyre, pois
ambos, em momentos diferentes, “descobriram-se” ou se “redescobriram” brasileiros
em terras estrangeiras. Em relação à formação intelectual, Bomfim entra em contato na
França com um arcabouço teórico e com condições que lhe possibilitam, especialmente
em A América Latina, males de origem, desenvolver outra explicação para a situação
dos países neo-ibéricos, a qual não deixou de causar certa surpresa e estranhamento em
analistas de sua obra como o brasilianista para Thomas E. Skidmore. (SKIDMORE, pp.
136-141).
A surpresa do brasilianista faz-se em uma nota, onde destaca que a refutação às
teses racialistas feita por Bomfim estava articulada a mais recente discussão científica
de sua época, coisa que poucas pessoas faziam na Europa ou nos Estados Unidos. Como
bem anotou Aluízio Alves Filho, a surpresa de Skidmore não se justifica uma vez que
28
os letrados brasileiros estavam muito bem articulados às discussões e debates científicos
de seu tempo. A observação de Skidmore sobre o fato dos referenciais utilizados por
Bomfim não serem usados com freqüência nem europeus e estadunidenses seria um
tanto quanto rasa, pois segundo Alves Filho, tais referenciais estavam disponíveis aos
homens de letras, bastava sair da corrente hegemônica (SKIDMORE, 1976, pp. 130141).3
Sair da corrente hegemônica é, além de uma opção intelectual, um
posicionamento político; com relação ao segundo ponto, Bomfim estaria agindo
conforme as “regras”. Com efeito, a investigação do meio letrado do período permite a
localização de algumas “regras” básicas, a saber: domínio da língua francesa, o
engajamento em questões de ordem pública, “o exercício intelectual como atitude
política”, a participação em polêmicas, as redes sociais, a viagem de formação.
“Regras” estas que devem ser consideradas para compreender o “agir letrado” no
período focado.
A partir das considerações acima, cabe a pergunta: seria Manoel Bomfim
efetivamente um pensador contra hegemônico?
3
A critica de Alves Filho a Skidmore aparece em: ALVES FILHO, Aluízio. Pensamento político no
Brasil. Manoel Bomfim um ensaísta esquecido. Rio de Janeiro: Achiamé/Socii, 1979 e ALVES FILHO,
Aluízio. Manoel Bomfim: combate ao racismo, educação popular e democracia radical. São Paulo:
Expressão Popular, 2008.
29
CAPÍTULO III
Manoel Bomfim e o pensamento hegemônico: uma relação ambígua
A seção que segue visa discutir a relação de Manoel Bomfim com o
pensamento hegemônico de sua época. Uma vertente analítica da obra bomfiniana
defende a posição de que o ensaísta sergipano era portador de um contradiscurso, ou
seja, teria adotado uma postura contra-hegemônica, posição essa que lhe custaria
isolamento intelectual. O ostracismo a que obra de Manoel Bomfim foi relegada durante
anos sustenta o argumento do isolamento. A não reedição de suas obras e sua exclusão
das coletâneas e listas de trabalhos relevantes à interpretação da realidade brasileira,
durante muito tempo, podem ser indícios significativos na direção de compreender o
ensaísta sergipano como um outsider. Inúmeros autores e autoras caminham nesta
direção: Aluízio Alves Filho, Ronaldo Conde Aguiar, Flora Süssekind, Roberto
Ventura, Vamireh Chacon. (ALVES FILHO, 1979, 2008; AGUIAR 2000;
SÜSSEKIND e VENTURA, 1984, CHACON, 1965).
Mas, seria de fato Manoel Bomfim um outsider em relação ao meio letrado
brasileiro? Como já indicado na seção anterior, Bomfim manteve uma relação no
mínimo ambígua com meio letrado de sua época. Ele não respondia positivamente a
algumas das “regras” fundamentais do campo intelectual, e por vezes caminhara em
sentido divergente ao traçado pela maioria. Tomando por base os comportamentos
típicos do agir letrado no Brasil da virada do século XIX para o século XX pode-se
perceber o posicionamento, relativamente diferenciado, de Bomfim.
Conde Aguiar aponta o trabalho de Manoel Bomfim em termos de um
“contradiscurso”, ou seja, uma obra posta a indicar um caminho inverso ao traçado pela
maioria. (AGUIAR, 2000). Alves Filho também teria incorrido nesta vertente. (ALVES
FILHO, 1979; 2008). Ainda neste caminho é possível inserir, com algumas ressalvas, as
considerações de Süssekind e Ventura. (SÜSSEKIND e VENTURA, 1984). Estes
autores sustentam que Bomfim trazia uma nova postura, um novo discurso, embora num
estilo narrativo não tão novo assim. “Apesar da crítica à ciência da época, Manoel
Bomfim não inaugura outro horizonte de linguagem. Sua obra apóia-se nas categorias
comuns a essa ciência, deslocando-as, porém, de um emprego homológico para uma
utilização metafórico.” (Idem, p.16).
30
Essa transição do homológico para o metafórico teria sido, segundo Süssekind e
Ventura, muito mal assimilada por uma parte considerável de seus contemporâneos,
com destaque para o também sergipano Sílvio Romero, crítico ferrenho da obra de
Bomfim. (Idem, p. 20-22).
A metáfora bomfiniana seria ainda, para Süssekind e
Ventura, a grande responsável pela situação marginal a que sua obra foi relegada,
especialmente após sua morte.
A nebulosidade do objeto e da linguagem tornam nebulosa a própria recepção deste
texto. Sua ruptura torna-se estranheza. A tentativa de definição, ambigüidade. A
opacidade que o objeto e a investigação oferecem a Bomfim, transfere-se ao leitor na
leitura de seu texto. O que explica a ambígua e indefinida posição que lhe coube na
história intelectual brasileira. (SÜSSEKIND; VENTURA, 1984 p. 56).
Desta feita, Süssekind e Ventura, afirmam que o discurso bomfiniano, em
função de sua estruturação, com eixo na metáfora do parasitismo, seria responsável pela
marginalização a que o ensaísta sergipano teria recaído. De modo geral, esta vertente
explicativa considera a argumentação bomfiniana como um contradiscurso e isso o teria
levado a ficar à margem das estratégias de consagração vigentes em sua época. De
modo a ser esta a condição central para seu isolamento e a condição de ostracismo a que
foi relegada sua obra durante tantos anos.
A leitura de Süssekind e Ventura da condição de Manoel Bomfim no meio
letrado apontam que as explicações teórico-metodológicas apresentadas pelo autor no
início de A América Latina, males de origem não teriam surtido efeito. Dizia o letrado
acerca da de sua opção teórica-metodológica:
Está um tanto desacreditado, em sociologia, esse vezo de assimilar, em tudo e para tudo,
as sociedades aos organismos biológicos. Muito se tem abusado deste processo de
crítica, cujo vício, em verdade não consiste em considerar as sociedades – digamos – os
grupos sociais – como organismos vivos, sujeitos por conseguinte, a todas as leis que
regem a vida e a evolução dos seres, mas em considerá-los como simples organismos
biológicos. (BOMFIM, 1993, p. 51).
Bomfim indica a não adequação da simples transposição, feita de forma acrítica,
de postulados das ciências biológicas para as humanas, porém ele concorda com a
31
possibilidade do estabelecimento de “leis fatais” que regem o desenvolvimento das
sociedades. (BOMFIM, 1993, pp. 51-52).
Partindo destas considerações Bomfim busca demonstrar como se deu a
construção de sua opção teórico-metodológica:
Procedamos como procederia um sociólogo avisado; analisemos este passado, e
vejamos até que ponto por ele se explicam os vícios atuais, até que ponto os vícios
atuais derivam da herança e educação recebida. Estudemos as condições sociais e
políticas, o caráter e as tradições dos povos que formaram as nacionalidades sulamericanas; estudemos os processos que presidiam à constituição primeira destas
sociedades. Acaso estarão aí as origens destes vícios – dos maus hábitos, que hoje tanto
pesam sobre estes povos infelizes. Vejamos como formaram costumes políticos,
reconhecidamente maus, de que somos implacavelmente acusados. (BOMFIM, 1993,
pp. 53-54).
O ensaísta sergipano busca na colonização ibérica as bases da situação latinoamericana à sua época, demonstrando de certo o modo sua adesão a um tipo de
metodologia sócio-histórica. E ao mesmo tempo evidencia-se a presença do
evolucionismo em suas considerações, significando com isso sua concordância com o
pensamento hegemônico.
Dentro desta “metodologia”, Bomfim desenvolveu um conceito para efetivar tal
investigação: o parasitismo. A metáfora advém das ciências biológicas: Bomfim versa
que nas sociedades humanas existem grupos parasitados e grupos parasitários e que,
como na biologia, os primeiros sustentam os segundos. De certa maneira ele identifica
ao leitor o porquê da metáfora biológica, e segue por ela para explicar o conceito de
parasitismo. O parasitismo “social” é uma forma de organização social na qual um
grupo ou uma sociedade vive da exploração de outros grupos e/ou sociedades. Ou seja,
um grupo vive à custa de um “hospedeiro” e tal prática, além de degenerar o organismo
parasitado, o “hospedeiro”, também resulta na degeneração do parasita, pois este perde
a capacidade de viver por si próprio. (BOMFIM, 1993, pp. 53-65).
Alves Filho, ao fazer um balanço das avaliações que A América Latina, males de
origem recebeu dos coevos a Bomfim, aponta que praticamente todas eram negativas. O
autor utiliza tal informação para enfatizar a posição não hegemônica do pensamento
bomfiniano e a reforça ao indicar que avaliações posteriores tenderiam a diminuir a
32
relevância de sua obra. (ALVES FILHO, 1979; 2008). Conde Aguiar diverge um pouco
desta postura e indica que obras de Bomfim, em especial O Brasil na América, de 1929,
e O Brasil nação, de 1931, tiveram à época de seus lançamentos uma recepção
favorável, mesmo ele apontando ser Bomfim um letrado relativamente marginal.
(AGUIAR, 2000).
Rebeca Gontijo, ao trabalhar as considerações bomfinianas sobre a história e a
produção historiográfica brasileira, também o percebe num sentido divergente daquilo
que vinha sendo discutido em termos de pesquisa histórica à época. (GONTIJO, 2003,
pp. 129-154). De fato, a obra do ensaísta sergipano foi posta de lado por mais de
cinqüenta anos.
O posicionamento teórico de Bomfim demonstra certa discordância da matriz
teórica daquele momento. Nisso, praticamente toda a fortuna crítica recente de sua obra
concorda. E o grande ponto de divergência da argumentação bomfiniana é a tentativa de
refutação da interpretação e análise da realidade brasileira seguindo o critério racialista.
(ALVES FILHO, 1979, 2008; AGUIAR, 2000; GONTIJO, 2003; REIS, 2006;
SÜSSEKIND e VENTURA, 1984). Ou seja, Bomfim não incorre no determinismo
biológico e vai buscar em outros aspectos da formação sócio-histórica do Brasil os
motivos da situação em que o país se encontrava à sua época.
Existem ainda alguns outros que colaboram na sustentação desta tese, por
exemplo: em A América Latina, males de origem existem inúmeras questões retomadas
por outros autores coevos e que não fazem menção ao seu trabalho. Autores que
retomam pontos centrais à sua discussão tais como o “caráter”, o “tipo de colonização”
realizada pelos povos ibéricos mundo a fora e em especial na América, o “cadinho de
raças”, etc.
A caracterização feita por Bomfim acerca da colonização ibérica na América,
orientada pelo ethos da aventura e da pilhagem, lembra em muito as considerações
feitas anos mais tarde por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, de 1936. Em
seu texto, Holanda caracteriza o lusitano como predisposto ao ethos da aventura, um
“semeador”, e o espanhol como o “ladrilhador”, preocupado com a ocupação “racional”
do espaço. Bomfim, em A América Latina aplica a ética da aventura à colonização
ibérica como um todo.
Com efeito, para o ensaísta sergipano a lógica da colonização da América por
portugueses e espanhóis se fundava no ethos ibérico que para ele, formou-se a partir da
33
guerra. A guerra constante seria o agente formador da Ibéria, assim, questiona-se
Bomfim:
Qual o efeito destes onze séculos de guerra constante e generalizada sobre o caráter das
nacionalidades ibéricas?... De que forma esse passado vem a influir sobre o futuro?...
Duas foram as conseqüências deste passado de lutas permanentes sobre os povos
ibéricos, conseqüências que se combinaram maravilhosamente para os impelir às
aventuras que constituem a sua vida posterior: a educação guerreira, exclusivamente
guerreira, a cultura intensiva dos instintos belicosos de centenas de gerações sucessivas;
o regime a que eles se afizeram durante esses longos séculos – de viver de saques e de
razias; o desenvolvimento sempre crescente das tendências depredadoras; a
impossibilidade, quase, de se habituarem ao trabalho pacifico. (BOMFIM, 1993, p. 74).
Essa posição mudará anos mais tarde, quando da publicação de O Brasil na
América (1929). Ao longo desta obra é possível perceber, senão uma “inversão” da
posição de Holanda, reconhecendo o português como “ladrilhador” e o espanhol como
“aventureiro”, ao menos a tentativa de se criar uma imagem do português como um
colonizador de fato. Contudo, neste mesmo livro Bomfim ainda se mantém fiel às
proposições anteriormente apresentadas em A América Latina, males de origem,
reafirmando o seguinte sobre os ibéricos:
O vigor do desejo guarda a mesma veemência nos dois caracteres. No português, porém,
sob o freio da vontade, fez-se cobiça, ânsia de fortuna, a ele não se poupa à atividade
fácil desde que esteja certo de tirar riqueza imediata. Não será um produtor, nem
propriamente um trabalhador, se considerarmos que de fato, pouco produz, e prefere,
por toda a parte, a atividade de traficância, sobretudo porque aí, pode ver, em cheio a
margem de lucro. Não é realmente um ativo, pois que sua aspiração insistente é o
repouso – o ócio garantido pela fortuna. De todo o modo, o espanhol colonizador é bem
o oposto: se não é lorpamente preguiçoso, mantém-se inativo – porque despreza o
trabalho, e não se deixa tentar pela produção, desde que não seja a colheita imediata do
ouro, no saque, ou na mina. Não esqueçamos que, Sancho: não gasta seu bom senso em
preocupações de lucros e zelos de acumular. (BOMFIM, 1997, p. 79, grifo no original).
34
A proximidade dos argumentos bomfinianos aos defendidos por Holanda é
relativamente grande, e sendo ambos os textos anteriores a Raízes do Brasil, causa
estranheza a inexistência de menção ao ensaísta sergipano nesta última.
Outro canône do pensamento social brasileiro também não faz menção a
Bomfim: Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (1933), mesmo considerando a
mestiçagem e a miscigenação de modo muito próxima à maneira bomfiniana, o faz sem
reconhecer qualquer dívida para com Bomfim. A idéia de cadinho de raças, por
exemplo, é trabalhada por Bomfim, porém ao trabalhar com o mesmo tema, Freyre, não
lhe faz menção alguma. Ao considerar a formação espanhola o ensaísta sergipano assim
o faz:
Nos fins do século XV, a Espanha está constituída nação moderna, livre, organizada,
vitoriosa e à custa dos seus próprios esforços. Esse trabalho íntimo de organização fora
prodigioso, único talvez, do que se conhece na história dos povos. Daqueles aluviões
sucessivos de gentes – fenícios, celtas, cartagineses, romanos, godos, suevos, alanos,
mouros, árabes...ela fizera uma nacionalidade única, perfeitamente caracterizada,
homogênea e forte. Foi um cadinho de povos e raças, tradições e costumes – depurou,
eliminou os elementos irredutíveis, irritantes; fundiu, congregou, numa massa única.
(BOMFIM, 1993, p. 72, grifo nosso).
Esta espécie de fórmula, adotada por Bomfim para explicar as origens da
Espanha, será adotada também para explicar o Brasil, e tal fórmula descarta, como se
pode observar, a pureza de raça, uma vez que a Espanha surgira de um “cadinho” delas.
É verdade que na seqüência de sua análise o letrado criticará essa mesma Espanha por
ter adotado a lógica parasitária. Todavia, interessa aqui a fórmula utilizada por ele para
explicar a origem da Espanha e o Brasil, muito semelhante à construída por Gilberto
Freyre.
As considerações bomfinianas sobre os indígenas em O Brasil na América
também são bastante próximas das realizadas posteriormente por Freyre, sem que este
mencionasse o ensaísta sergipano. Localiza-se um momento onde Freyre faz menção à
obra de Bomfim que, segundo Alves Filho, ocorre no segundo volume do livro
Sociologia. (ALVES FILHO, 2008; FREYRE, 1957), menção essa que, todavia, revela
uma visão bastante negativa da obra de Bomfim.
35
Poder-se-ia incluir ainda nos elementos que colaboram para tese do isolamento
de Bomfim algumas de suas opções. Neste sentido, as considerações de Regina Abreu
em seu estudo sobre Miguel Calmon demonstram alguns mecanismos importantes e
mesmo essenciais à consagração e a “imortalização” no Brasil do início do século XX
(ABREU, 1996). Ou seja, o reconhecimento em vida só seria um dos passos da
consagração, sendo o outro, e talvez mais relevante, manter-se reconhecido após a
morte – a “imortalização”. Segundo Abreu, este segundo passo, o reconhecimento postmortem, teria “regras” próprias para se efetivar: uma delas estaria na vinculação com os
“denominados” espaços de memória e consagração (Idem). Desta feita, localizam-se a
partir das análises de Abreu, pelo menos, duas estratégias básicas para esse tipo de
reconhecimento. Uma delas é a apresentada pela autora no estudo do caso de Miguel
Calmon – os/as herdeiros/as: figuras que poderiam trabalhar na perpetuação da pessoa
após sua morte. Nesta situação a viúva de Calmon, Alice da Porciúncula Calmon du Pin
e Almeida, ligou a memória do marido ao Museu Nacional, garantindo assim certa
“imortalidade” a Miguel Calmon. (Idem).
Outra estratégia fundamental seria ainda em vida se vincular de modo efetivo a
espaços de consagração. Bomfim, em função da suas opções pessoais não se vinculou a
esses espaços de modo a garantir uma longa lembrança. Em especial sua recusa a
vincular-se efetivamente a um espaço de consagração por excelência como a Academia
Brasileira de Letras pode ter colaborado em muito para o seu esquecimento.
Todavia, seriam essas condições suficientes para sustentar a argumentação de
Bomfim como um outsider? De fato, a observação primeira da obra de Bomfim aponta
para esse caminho; contudo, outros tantos argumentos apontam para outra condição,
muito mais próxima a um estabelecido. Pois, ele como se pode observar, estava inserido
no meio, circulava com certa fluidez, no entanto, a forma como ele procedia nesse agir
destoava da maioria.
Assim, em vários momentos ele se apresentava em plena consonância com as
vozes do pensamento hegemônico, por exemplo, em sua avaliação da escravidão. Além
de considerar o sistema escravista como uma das grandes expressões da lógica
parasitária, Bomfim via outro problema na escravidão: a inserção das populações negras
no Brasil sob uma condição degenerativa. A idéia de degeneração no caso bomfiniano
deve ser pensada mais em termos sociais do que biológicos.
36
Nesta direção a leitura bomfiniana do regime escravista é próxima àquelas
realizadas por Joaquim Nabuco e mesmo de Nina Rodrigues. Manoel Bomfim afirmava
que
A escravidão na América, com o ser de uma perturbação à evolução normal do trabalho
– já que era, geralmente, livre e pacífico, em todo o Ocidente (deixemos de lado, por
ora, a moral e a justiça) – a escravidão produziu aqui males especiais. Estabelecidos em
terras feracíssimas (sic), ou em face da mina, e não tendo outro intuito que o lucro
imediato, o colono encontrou na escravidão o processo sonhado: algumas centenas de
escravos e um chicote para cada turma – eis tudo que lhe era preciso. Ele não tinha que
apurar a inteligência, nem desenvolver atividade. (BOMFIM, 1993, p. 130).
Tal leitura é muito próxima àquela esposada por Nabuco, para quem
O poder, porém, do tráfico era irresistível e até 1851 não menos de um milhão de
africanos foram lançados em nossas senzalas. A cifra de cinquenta mil por ano não é
exagerada. Mais tarde, teremos que considerar a soma que o Brasil empregou desse
modo. Esse milhão de africanos não custou menos de quatrocentos mil contos. Desses
quatrocentos mil contos que sorveram as economias da lavoura durante vinte anos,
cento e trinta e cinco mil contos representam a despesa total dos negreiros, e duzentos
sessenta mil os seus lucros. Esse imenso prejuízo nacional não foi visto durante anos
pelos nossos estadistas, os quais supunham que o tráfico enriquecia o país. (NABUCO,
2003, p. 94).
Para ambos o regime escravista seria um entrave ao desenvolvimento do país,
imobilizador das forças produtivas. Nabuco ainda indica que a
Escravidão e indústria são termos que se excluíram sempre, como escravidão e
colonização. O espírito da primeira se espalhando, mata cada uma das faculdades
humanas, de que provém a indústria: a iniciativa, a invenção, a energia individual; e
cada um dos elementos de que ela precisa: a associação de capitais, a abundância de
trabalho, a educação técnica dos operários, a confiança no futuro. (NABUCO, 2003, p.
157).
O sistema escravista, segundo os letrados em questão, criava uma determinada
lógica posta a impedir o desenvolvimento do empreendedorismo de um lado, e de outro,
37
criar um ambiente impeditivo aos investimentos na formação de mão-de-obra. E mesmo
ao fim do regime a herança escravista se manteria, pois não fora feito qualquer esforço
na formação de mão-de-obra. E novamente Bomfim se aproxima de Nabuco. O ensaísta
sergipano assim via tal situação:
Havia a escravidão, mas reconheciam todos que, sobre ser uma injustiça ignóbil, a
permanência dessa instituição era também um obstáculo ao progresso econômico do
país, e que nesta hora não pode haver prosperidade com o trabalho escravo. ‘É preciso
que o trabalho seja livre’; e foi isto unicamente que todos pediam, absolutamente certos
de que fora o bastante dizer em lei que o trabalho é livre, para que se estabelecesse o
regime de um trabalho. Ninguém se deteve a examinar o caso e procurar os meios
eficazes de se fazer a transformação na produção. Não viam, sequer, que o trabalho livre
deve ser inteligente e aperfeiçoado, e que era mister, antes de mais nada, educar o
trabalhador, instruí-lo, levar o produtor a melhorar os seus processos, meio único de
compensar a barateza do trabalho escravo que se perdia. Decretou-se a libertação, e
foram-se todos, considerando a reforma como acabada; (...) (BOMFIM, 1993, p. 169,
grifo no original).
Algo muito próximo ao declarado anos antes por Nabuco:
O abolicionismo, porém, não é isso e não se contenta com ser o advogado ex officio da
porção da raça negra ainda escravizada; não reduz a sua missão a promover e conseguir
– no mais breve prazo possível – o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra – de
reparação, vergonha ou arrependimento, como queiram chamar – da emancipação dos
atuais escravos e seus filhos é apenas tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há
outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos,
é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a
casta dos senhores, e que fez o Brasil o Paraguai da escravidão. Quando mesmo a
emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime daria lugar a uma
série de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do
país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois
que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para
a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso debastar por meio de uma educação
viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo,
superstição e ignorância. (NABUCO, 2003, pp. 27-28).
38
Ambos concordam que abolir a escravidão consiste também em terminar com
seu legado, isto é, com a “obra da escravidão”, porém como fazer isso? Nabuco
taxativamente indicará que após o fim da escravidão “(...) será ainda preciso debastar
por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de
cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância.” (NABUCO, 2003, p. 28). A
solução proposta por Bomfim, em seu primeiro momento será muito parecida – a
instrução popular. (BOMFIM, 1993; ALVES FILHO, 1979; ALVES FILHO, AGUIAR,
2000).
Cabe ainda notar que o célebre abolicionista pernambucano, como a maioria de
seus contemporâneos, mantinha relações com o pensamento racialista. Nabuco verá a
cor negra como maldição e dirá: “Depois que os últimos escravos houverem sido
arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor (...)”.
(NABUCO, 2003, p. 28). Ele falará em outros momentos em “raça infeliz”, o que
sugere algum tipo de adesão ao principio básico do racialismo, qual seja, a crença na
existência das raças. (NABUCO, 2003, p. 40). Porém, em Nabuco não aparece de
modo explícito a defesa da hierarquia racial, embora isso se dê de modo mais sutil numa
oposição do tipo “nós e os outros” presente, por exemplo, no terceiro capítulo de O
abolicionismo (1883) – O mandato da raça negra:
O mandato abolicionista é uma dupla delegação, inconsciente da parte dos que a fazem,
mas, em ambos os casos, interpretada pelos que a aceitam com um mandato a que não
se pode renunciar. Nesse sentido, deve-se dizer que o abolicionista é o advogado
gratuito de duas classes sociais que, de outra forma não teriam meios de reivindicar os
seus direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os escravos e os ingênuos. Os
motivos pelos quais essa procuração é tácita impõe-nos uma obrigação irrenunciável
não são puramente – para muitos não são mesmo principalmente – motivos de
humanidade, compaixão e defesa generosa do fraco e do oprimido. (NABUCO, J., 2001,
p. 37)
Observa-se em passagens como esta Nabuco, assim como os demais
abolicionistas, se percebendo como defensor de dois grupos sociais em tese desprovidos
de meios para sua autodefesa e representação, e ao fazê-lo se coloca dentro de um
determinado “nós”, relativamente indefinido, em oposição a um “outro” a ser defendido,
este sim bastante bem definido – os escravos e os ingênuos. Os critérios postos para tal
39
divisão remetem aparentemente a uma divisão de grupos sociais: os livres e os não
livres. Contudo, os significados destas duas condições no Brasil oitocentista são amplos
e ambíguos, ou seja, os critérios podem ser puramente jurídicos, mas podem também
camuflar critérios racialistas.
O racialismo de Bomfim seria ainda mais especifico. Segundo José Carlos Reis
em As identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim: a favor do Brasil: direita ou
esquerda?, o racialismo do ensaísta sergipano não se faz tão nítido em A América
Latina, males de origem, mas sim em O Brasil na América, racialismo esse que se
apresentaria pela omissão. (REIS, 2006). Ou seja, Bomfim enfatizaria a presença
indígena na formação brasileira e negligenciaria a negra, manifestando-se nesse sentido
o racialismo bomfiniano: diminuindo e obliterando a presença negra. (REIS, 2006).
Entre parêntesis: dentre os vários letrados criticados por Bomfim, um dos mais
censurados é o historiador Francisco Adolfo Varnhagen. Este praticamente ignora a
presença negra na formação do Brasil em sua História do Brasil, construindo o Brasil
como obra quase que exclusiva dos lusitanos. Porém, em O Brasil na América, Bomfim
incorre em postura bastante próxima.
A matriz de pensamento racialista era comum, como mencionado, a inúmeros
letrados do período, existindo formas diferenciadas de adesão. A literatura sobre o
assunto é quase unânime em indicar o médico maranhense radicado na Bahia,
Raymundo Nina Rodrigues como aquele que fora mais longe na adesão ao racialismo.
Nesta direção apontam os trabalhos de Thomas E. Skidmore, Lilia M. Schwarcz, Mariza
Corrêa entre outros. (SKIDMORE, 1976; SCHWARCZ, 1993; CORRÊA, 2001).
Entretanto, há aspectos que aproximam Nabuco, Bomfim e Rodrigues, e um
desses é análise sobre a escravidão. Nina Rodrigues também percebe o escravismo
como nefasto à formação do Brasil, porém a ênfase da sua crítica reside não no legado
cultural da escravidão, mas sim no legado biológico. O foco primeiro de sua crítica à
escravidão é por considerá-la responsável por ter inserido as populações negras no
Brasil, considerando-as enquanto um fator de atraso. Sua crítica segue inferindo que o
regime escravista seria igualmente responsável pela ampla mestiçagem existente no
país, uma vez que, para ele, o regime escravista criara um ambiente propício para tal. E
para Nina Rodrigues, pior que as raças consideradas inferiores eram os tipos mestiços
(RODRIGUES, 1988).
Assim, se há três letrados cujas ideais são distintas no que diz respeito à
relação com o racialismo, ambos se aproximam em um ponto chave na compreensão da
40
formação da sociedade brasileira – a escravidão. E no caso brasileiro, especificamente,
tratar de escravidão é de alguma forma tratar das populações negras trazidas da África
para a América. Evidentemente, a escravidão não vitimou apenas tais populações,
todavia, no Brasil a escravidão negra foi decisiva para a formação do país.
Desta feita, objetivou-se aqui apontar para uma relação mais ambígua de
Bomfim com o meio letrado de sua época. Assim, para pensar o ostracismo a que foi
lançada sua obra durante muito tempo buscou-se fazê-lo dentro de um conjunto de
situações. Consideraram-se, então, o caráter de contradiscurso de sua obra, as
implicações da sua narrativa para uma recepção tortuosa da sua produção, bem como,
suas opções pessoais para compreender o isolamento a qual sua obra foi relegada
durante tantos anos. Em grande medida seguiu-se as sugestões presentes no texto de
Conde Aguiar. No entanto, aqui se buscou sustentar que o isolamento intelectual de
Bomfim era relativo, que ele tinha proximidades significativas em sua argumentação ao
pensamento hegemônico e que o esquecimento da sua obra, muito possivelmente, se
deu em função de uma combinação de fatores. Vários deles ligados, diretamente, a
dinâmica interna do meio letrado e as posições de Bomfim em relação a ela.
Entretanto, mesmo ao se argumentar que Manoel Bomfim mantinha uma relação
ambígua com o meio letrado e que seu isolamento em relação a tal meio era relativo ao
menos enquanto ele vivia, é inegável que ele buscava outra matriz explicativa para
compreender o Brasil. Procurava Bomfim uma interpretação da realidade brasileira que
saísse da biologia, no entanto, foi justamente da biologia ou na biologia que o letrado
encontrou inspiração para um dos conceitos fundamentais utilizados em A América
Latina, males de origem – o parasitismo.
Todavia, é possível verificar que conjuntamente ao conceito de parasitismo
Bomfim opera com outro tão importante quanto este para sua obra especialmente em A
América Latina, males de origem: a herança cultural ou, em seus termos, a
“hereditariedade social”. Uma análise sobre a forma como Bomfim constrói este
conceito – hereditariedade social – é o que se segue.
41
CAPÍTULO IV
O Conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim
As análises acerca da obra de Manoel Bomfim são concordantes em inúmeros
pontos, como se vem indicando, e dentre estas similitudes está a leitura sobre o conceito
de parasitismo. A literatura acessível acerca do Bomfim de A América Latina, males de
origem indica, especialmente, o parasitismo social como a categoria central à
compreensão do texto bomfiniano. Todavia, para além da categoria “parasitismo”, o
conceito de “hereditariedade social” também ocupa posição de destaque nessa obra.
Bomfim, como se buscou demonstrar, procurava construir outra interpretação
da realidade Latino-americana e brasileira, uma interpretação que conseguisse escapar
do biologismo racialista hegemônico no contexto, ainda que, em alguns momentos ele
também se mostrasse influenciado pelo racialismo. Assim, o ensaísta sergipano
procurava outros motivos para a situação vigente no Brasil de seu tempo. Retomemos a
seguinte afirmação:
Procedamos como procederia um sociólogo avisado; analisemos este passado, e
vejamos até que ponto por ele se explicam os vícios atuais, até que ponto os vícios
atuais derivam da herança e educação recebida. Estudemos as condições sociais e
políticas, o caráter e as tradições dos povos que formaram as nacionalidades sulamericanas; estudemos os processos que presidiam à constituição primeira destas
sociedades. Acaso estarão aí as origens destes vícios – dos maus hábitos, que hoje tanto
pesam sobre estes povos infelizes. Vejamos como formaram costumes políticos,
reconhecidamente maus, de que somos implacavelmente acusados. (BOMFIM, 1993,
pp. 53-54).
Partindo destas premissas Bomfim busca desabilitar a explicação ou a
interpretação mediante a qual a situação do Brasil adviria de uma transmissão biológica
de caracteres culturais e sociais. Ou seja, ele procura construir uma resposta aos adeptos
da degeneração mestiça ou ainda da inferioridade dos não-brancos.
Assim, ele buscará construir um argumento onde a transmissão de caracteres
culturais e sociais se dá não pela biologia, mas sim pela socialização das pessoas. A esse
processo Bomfim denomina de “hereditariedade social”. A construção bomfiniana da
42
hereditariedade cultural se assemelha muito àquela desenvolvida por Émile Durkheim
em O suicídio, 1897.
Não foi possível encontrar em A América Latina, males de origem, referências
diretas a Durkheim, porém a temporada francesa de Bomfim, mais a proximidade do
pensamento brasileiro em relação às discussões produzidas na França, permitem
hipotetizar que de alguma forma as formulações durkheiminianas não fossem
completamente desconhecidas do letrado.
Durkheim ao buscar os motivos e/ou motivações sociais para suicídio o faz
primeiramente explicando quais fatores não seriam decisivos ao suicídio. Deste modo,
no primeiro livro da obra O suicídio, denominado de Os fatores extra-sociais, está à
secção O suicídio e os estados psicológicos normais. A raça. A hereditariedade.
Nesta secção Durkheim explica que o suicídio não estaria relacionado a uma
herança biológica. Para ele, de um modo geral, a raça, principal vetor de transmissão da
herança biológica no pensamento do período é algo questionável. Ao avaliar a noção de
raça e seu peso sociológico, Durkheim afirma que as “(...) observações preliminares nos
advertem de que o sociólogo tem de ser circunspecto quando empreende pesquisar a
influência das raças num fenômeno social qualquer.” (DURKHEIM, 2000, p. 73). Essa
observação se constrói porque Durkheim acha bastante difícil o processo de distinção e
ou caracterização das raças. (Idem, p. 73). Ao considerar, por exemplo, os povos
germânicos, Durkheim indica primeiramente a dificuldade de se estabelecer uma
unidade germânica, daí que os denomina de “povos germânicos”, percebendo que os
alemães se suicidavam mais que os demais grupos germânicos e mais que outros grupos
europeus. E a análise durkheiminiana da situação indicaria que: “Os fatos convergem
então para demonstrar que, se os alemães se matam mais que os outros povos, a causa
disso não está no sangue que corre em suas veias, mas na civilização em cujo seio eles
são educados.” (DURKHEIM, 2000, p. 79). Em assim sendo, a hereditariedade decisiva
para Durkheim, no caso do suicídio, seria a herança social e não a biológica.
Bomfim, como observável na passagem supracitada, segue em direção análoga,
ou seja, semelhantemente a Durkheim o letrado brasileiro denota outro sentido a
hereditariedade, em relação ao que se fazia a época: ao invés do enfoque na transmissão
biológica privilegiava a transmissão social.
Nesta direção, o conceito de hereditariedade social no ensaísta sergipano é
recorrentemente utilizado conjuntamente com o de parasitismo social, a questão é assim
posta por Bomfim:
43
São de três categorias os efeitos especiais do parasitismo ibérico sobre as nacionalidades
sul-americanas: herança, educação e reação.
Antes de analisar os fatos que se ligam à hereditariedade social, cumpre indagar: em que
consiste a hereditariedade social? Consiste na transmissão, por herança, das qualidades
psicológicas, comuns através de todas as gerações, dão a cada grupo social um caráter
próprio distintivo: transmissão por herança, no grupo anglo-saxônico, das qualidades
que caracterizam o tipo anglo-saxônico; perpetuação nos judeus das qualidades típicas
da raça. Em resumo, hereditariedade social é a mesma psicológica. (BOMFIM, 1993, p.
155).
Bomfim se aproxima das discussões da psicologia, área que fora estudar na
França, porém ele tenta trazer essas discussões para o campo da sociologia, buscando
enfatizar que o que caracteriza uma raça não é a biologia em última instância, mas sim
sua socialização, a socialização do grupo ou dos grupos.
Aparentemente, como já indicado, não há menção direta em relação às
considerações durkheiminianas; todavia, o ensaísta sergipano faz referências explícitas a
outro autor francês relacionado à psicologia, Ribot.
Théodule Ribot (1839-1916) teria sido segundo Paul Foulquié em A psicologia
contemporânea, o inaugurador da psicologia experimental na França, além de ser o
responsável pela separação entre psicologia e filosofia. “Conquanto menor figura de
pioneiro, Théodule Ribot exerceu, na França, durante cerca de quarenta anos, influência
análoga à Wundt. [Wilhelm Wundt, 1832-1920] Tomou a si, como tarefa, destacar
definitivamente a Psicologia da Filosofia e constituí-la ciência independente, análoga as
ciências naturais.” (FOULQUIÉ, 1969, p. 29). Outra característica da psicologia
proposta por Ribot seria a análise dos fenômenos psicológicos a partir das suas
manifestações externas. Ribot também apontaria, em grande medida, que as pessoas
herdam de seus pais, além das características físicas, determinados aspectos formativos
externos, como por exemplo, os hábitos de classe. Sua argumentação é bastante próxima
a de Durkheim, não obstante sejam ambos contemporâneos. (Idem, pp. 23-32).4
4
A obra utilizada por Manoel Bomfim seria L’heredite psychologie, 1873, texto onde Ribot defende a
idéia que as pessoas herdam dos pais mais do que aparência física. RIBOT, Théodule. L’heredite
psychologie. 1925. 11.ª. Paris: Ed. Lib. Felix Alcan.
44
Com efeito, ao tomar por inspiração as considerações de Ribot para construir seu
argumento sociológico Bomfim, mesmo sem citar, se aproxima das considerações de
Durkheim.
Existe, de fato, esta hereditariedade? Todos os psicólogos a admitem e, por isso mesmo,
têm como incontestável a hereditariedade social. (...) Refletindo um pouco sobre o
assunto, reconhece-se que seria um absurdo negá-la. É incontestável que o homem
herda dos seus progenitores os caracteres da classe, da ordem e da espécie; e, herdando
os caracteres da espécie, herda também os caracteres individuais dos pais. (BOMFIM,
1993, pp. 155-156).
Esta passagem ilustra como Bomfim organiza seu argumento. Ele afirma que a
pessoa não herda dos pais apenas a aparência física, mas também elementos da classe,
da educação, da posição social de seus genitores. (BOMFIM, 1993, p. 156). O letrado
sergipano, ao deslocar este tipo de análise para as sociedades, em especial as sociedades
latino-americanas, as percebe como herdeiras de um padrão de socialização. Padrão este
orientado pelo parasitismo social, socialização a qual as nações latino-americanas
haviam recebido como herança e que trariam consigo, segundo a visão bomfiniana,
inúmeros problemas.
Com efeito, é este o ponto a diferir Manoel Bomfim da maioria de seus
contemporâneos, especialmente à época da publicação de A América Latina, males de
origem: ele desloca os denominados problemas nacionais de uma discussão biológica
para uma sociológica. Assim, o letrado sergipano desloca aquilo visto pela maioria da
elite intelectual na virada do século XIX para o século XX como problemas de raça,
ligados à miscigenação e a mestiçagem, para problemas de ordem sócio-histórica.
Com efeito, se por um lado a construção durkheiminiana é extremamente útil a
compreensão da construção do conceito de hereditariedade social em Manoel Bomfim.
De outro, para um melhor entendimento do papel deste conceito na análise bomfiniana
do Brasil e da América Latina mostram-se mais úteis as considerações de Norbert Elias
e John Scotson presentes em Os estabelecidos e os outsiders.
A utilidade das considerações de Elias e Scotson está no sentido de que o
trabalho dos autores demonstra, com bastante clareza, a força de um processo de
socialização. Além disso, esta obra apresenta, em grande medida, a forma em que se dá
a efetivação do processo de socialização. Para o caso aqui analisado, destaca-se a força
45
da narrativa e do discurso nela contido em relação à formação dos grupos sociais, em
especial no que diz respeito à constituição de uma auto-imagem, seja ela positiva ou
negativa.
A constituição desta auto-imagem pode ser reveladora de um sistema
hierárquico central, visando à compreensão de uma determinada realidade social.
Entende-se ser este o caso brasileiro: a maioria dos seus letrados na virada do século
XIX para o século XX incumbiu-se, é verdade, de defender o Brasil, porém nesse
processo eles criaram uma imagem negativa do povo brasileiro e consequentemente, a
descrença diante do desenvolvimento do país. A imagem negativa do povo se dá em
função da adesão ao racialismo: o povo brasileiro era, como ainda é, fortemente
marcado pela presença africana, indígena e mestiça e isso segundo o pensamento
racialista seria um fator determinante para o “atraso” do país.
Com efeito, esta idéia de país de povo inferior, inviável, etc., produziu um
processo de socialização e como tal um sistema hierárquico. No centro deste processo
está o pensamento racialista, que afirmava que o problema brasileiro estava na raça.
Esta visão das coisas foi internalizada pelas elites e pelo próprio povo, transmitida para
as gerações seguintes por meio de uma herança social.
Na argumentação bomfiniana, existe a tentativa de deslocar a explicação
racialista e biologicizante em nome de uma explicação sócio-histórica. Ou seja, para
Bomfim o problema não estaria necessariamente na raça, mas em um processo de
socialização pautado no parasitismo social, parasitismo esse transmitido de geração a
geração, num processo de transmissão social – a herança social.
Para uma melhor compreensão desta proposta acredita-se ser válido recuperar
parte da discussão proposta por Elias e Scotson. Em Os estabelecidos e os outsiders os
autores buscam compreender como numa comunidade aparentemente homogênea, a
observação externa guardava uma organização muito mais complexa, pautada por um
forte sentido hierárquico.
Esta hierarquia era em grande medida a organizadora da vida social na
comunidade estudada por Elias e Scotson, e o entendimento de como havia se
estruturado tal hierarquia e de como ela se reproduzia eram pontos absolutamente
centrais à investigação dos autores. Desse modo, eles localizam primeiramente no
critério
antiguidade/novidade
as
bases
fundamentais
desta
hierarquia.
Por
antiguidade/novidade entende-se o tempo de fixação de um grupo de pessoas a uma
determinada região. Para o caso estudado por Elias e Scotson os moradores mais antigos
46
da comunidade teriam criado um forte sentimento de coesão, o que teria colaborado
para a criação de certa auto-imagem do grupo, transmitida às gerações seguintes, e
juntamente com ela o sentimento de superioridade em relação aos habitantes mais
novos. Porém, as gerações posteriores ao primeiro contato continuavam a manter este
tipo de relação, mesmo quando os “novos” moradores já não eram tão novos. Como tal
situação era possível? Elias e Scotson, de maneira contundente, apontaram os processos
de socialização. As pessoas que descendiam das famílias mais antigas sofriam um
processo de socialização tal a se verem como antigas, melhores, superiores aos novos,
mesmo esses novos já estando ali há muito tempo. Ou seja, esse grupo recebia uma
herança social (sociológica) que os posicionava perante si mesmo e perante o mundo.
Esses grupos se constituíam então como os “estabelecidos”. (ELIAS; SCOTSON,
2000).
Se o grupo há pouco observado era marcado pela coesão, aquele denominado
de “novo” seria marcado pela ausência de coesão. E esta ausência de coesão também
seria resultado de um processo de socialização, embora pesadamente influenciado pelo
grupo definido como estabelecido, uma vez que este “imporia” aos chamados novos
uma auto-imagem negativa, fazendo com que gestos e atos entendidos como ruins de
uma minoria virassem o retrato da maioria. Isso se efetiva, entre outros mecanismos,
pelo uso da fofoca. A fofoca ocuparia um papel central na divulgação e reificação de
imagens tanto de um quanto de outro grupo, entretanto, cumprindo funções diferentes.
Ao grupo antigo ela reforçaria sua auto-imagem positiva e para o grupo entendido como
novo ela reificaria a auto-imagem negativa. E na análise desta situação os autores
percebem como o peso da maioria ou da minoria é relativo e está associado a quanto
poder cada grupo detém. Assim, para o caso dos “novos” o peso da minoria seria
inversamente proporcional ao seu tamanho. Seus atos e ações seriam generalizadas para
todo o grupo. Especialmente, se tais atos e ações corresponderem ao horizonte de
expectativa do grupo estabelecido. (ELIAS; SCOTSON, 2000).
Com efeito, a herança social (sociológica) destes grupos reforçaria a ausência de
coesão, pois os indivíduos não queriam ser associados aos arruaceiros, imagem
atribuída “aos novos” pelos estabelecidos, tomando posições de certo isolamento, sendo
essa atitude lida como mais uma comprovação da inferioridade dos “novos” perante aos
“antigos”, que eram unidos e se ajudavam mutuamente. Assim, esse grupo “novo”
continuava sempre “novo”, sempre fora, os outsiders. Deste complexo jogo de poder,
47
retira-se a importância do legado social para a composição de uma sociedade. (ELIAS;
SCOTSON, 2000).
Ao analisar especificamente o comportamento dos jovens do grupo dos
“novos”, denominado de outsiders, Elias e Scotson afirmam:
É freqüente se estudarem tendências comportamentais como a desses jovens em apenas
uma geração. Quando alguém chega a considerar uma seqüência de gerações, em geral é
por presumir que essas tendências se devem a alguma espécie de herança biológica.
Mas, é muito mais provável que elas se devam, como sucedia neste caso, a uma forma
de herança sociológica. O padrão especifico e sobretudo os mecanismos de transmissão
da herança sociológica ao longo das gerações ainda não foram suficientemente
estudados, mas aqui está um exemplo: o comportamento dos pais de famílias
desestruturadas como essas, que levava à rejeição delas e a sua posição inferior na
hierarquia de status, gerava em seus filhos tendências comportamentais que, por sua
vez, faziam nos ser rejeitados quando eles começavam a levar sua própria vida. Os
padrões de caratês específicos de uma geração e a configuração social particular de que
ela fazia parte mostraram, nesse caso, uma tendência a se perpetuar na geração seguinte
– a induzir nos filhos padrões de caráter que sustentavam uma configuração social
semelhante. (ELIAS; SCOTSON, 2000. p.145).
As considerações de Elias Scotson são úteis para compreender boa parte da
argumentação bomfiniana. Evidentemente, o texto de Elias e Scotson é posterior ao
trabalho de Bomfim, porém ele fornece ferramentas para a compreensão de inúmeras
posições do ensaísta sergipano.
Bomfim utiliza literalmente em seu texto A América Latina, males de origem, a
expressão – hereditariedade social –, marcada evidentemente, por seu tempo, o que
significa dizer que a homologia, ou metáfora, com relação à biologia também é
empregada em sua obra.
A utilização da idéia de hereditariedade por Bomfim foi, em muito,
interpretada como biologismo ou resquício de biologismo, particularmente grave em
alguém que se propunha romper com esse mesmo biologismo. Assim, se entende aqui a
utilização de um vocabulário oriundo da biologia: isso se daria na medida em que o
biologismo era o argumento vigente e válido à época, uma espécie de vocabulário
normativo no sentido da formulação de Quentin Skinner. (SKINNER, 1996). Para
Skinner cada momento delimita formas de expressão, incluso as escritas, cientificas etc.,
48
ou seja, a maneira como se pode apresentar e/ou questionar algo estaria delimitado pelo
vocabulário disponível e especialmente legítimo.
Tal observação caminha em sentido oposto àquela realizada por Süssekind e
Ventura, (1984), e se aproxima das considerações postas, entre outros autores, por
Sevcenko e pelo próprio Ventura em outro momento, que permitem localizar “regras”
para um agir intelectual no Brasil da virada do século XIX para o século XX.
(SEVCENKO, 1983; VENTURA, 1991). Dentre estas regras está não só a utilização de
um mesmo referencial teórico, como também de um mesmo vocabulário. Assim, a
metáfora e a analogia biológicas em Bomfim fariam parte, ao mesmo tempo, de um
“espírito de época” e de um conjunto de regras próprias ao agir intelectual.
Isto posto é possível partir para a observação da hereditariedade social em
Manoel Bomfim. A hereditariedade social foi assim entendida por Bomfim: “Em que
consiste a hereditariedade social? Consiste na transmissão, por herança, das qualidades
psicológicas comuns e constantes e que por serem constantes e comuns através de todos
dão a cada grupo social um caráter próprio distintivo (...).” (BOMFIM, 1993, p. 155).
Ainda em um vocabulário típico e válido naquele momento Bomfim procura
localizar o “caráter nacional”, sendo este “caráter” seria a herança social, ou seja, um
conjunto de valores, posturas, uma visão de mundo transmitida de geração a geração por
um processo de socialização. E neste sentido cabe mencionar que em A América Latina,
males de origem, a psicologia destacada pelo ensaísta sergipano é mais uma psicologia
coletiva, social, do que individual, ela é, então, definida como um conjunto de valores
aprendidos socialmente. Uma herança.
Nesta direção é mais uma vez útil a já mencionada análise realizada por
Bomfim do regime escravista no Brasil, pois ela também é elucidativa no sentido de
perceber o conceito de hereditariedade social construído. O ensaísta sergipano, ao
discutir a presença da escravidão na América Latina, em especial, no Brasil, constrói um
argumento semelhante ao de Nabuco, como exposto no capítulo anterior, e de maneira
muito próxima àquela que será desenvolvida anos mais tarde por Florestan Fernandes.
(FERNANDES, 1971; FERNANDES, 2008). Com efeito, Bomfim definirá a escravidão
com uma das maiores expressões do parasitismo social, e este gera uma herança. A
escravidão teria legado ao Brasil uma visão de mundo posta a depreciar o trabalho e
quem trabalha, ela impediu o desenvolvimento das “forças” produtivas, primeiro na
colônia e depois no Império. E mesmo na República a visão de mundo escravocrata se
mantinha como um empecilho ao desenvolvimento do país.
49
Em termos do período denominado como colonial Bomfim afirma que:
Quanto à vida social propriamente dita, moral e intelectual, o regime parasitário tem (e
não podia deixar de ter) uma influência funesta. O primeiro efeito desses processos de
exploração, desenvolvidos pela metrópole, foi preparar o uma população heterogênea,
cindida em grupos, possuídos de ódios entre si, desde o primeiro momento, formada
quase que de castas distintas. Nos campos, o colono fazendeiro, arremedo do senhor
feudal, constitui desde logo uma fidalguia onipotente, sobre a camada de escravos,
índios ou africanos. Nos interstícios dessa malha de feudos, uma população de
mestiçagem, produto de índios e negros, negras e refugos de brancos, indígenas e
escravos revéis, uma mescla de gentes desmoralizadas pela escravidão, ou animada de
rancores, uma população vivendo à margem da civilização, contaminada de todos os
seus vícios e defeitos, sem participar de nenhuma de suas vantagens, reduzida ao viver
rudimentar das hordas primitivas. (BOMFIM, 1993, pp. 144-145).
Assim, o ensaísta sergipano, além de definir o que seria a seu ver o regime
parasitário na colônia, entende que através dele é possível perceber a herança social
legada por este regime – “uma mescla de gentes desmoralizadas pela escravidão”.
O regime monárquico, ao manter a escravidão, seguindo a reflexão bomfiniana,
nada mais fazia do que se apropriar da sua herança. Herança esta que também traria em
seu bojo o conservadorismo, e segundo o argumento bomfiniano, o entendimento deste
é essencial para compreender a manutenção da escravidão após a emancipação política
do país. Pois, para Bomfim, “das qualidades a nós transmitidas, a mais sensível e mais
interessante – por ser a mais funesta – é um conservantismo, não se pode dizer
obstinado, por ser, em grande parte, inconsciente, mas que se pode chamar propriamente
– um conservantismo essencial, mais afetivo que intelectual. (BOMFIM, 1993, p. 159).
O conservantismo seria afetivo porque não seria um movimento político
fundamentado numa reflexão teórica e geradora de uma ação. Bomfim analisa a
presença deste conservantismo, endêmico na sociedade brasileira para ele, nas camadas
dirigentes. E denota que as elites até poderiam adotar ideais reconhecidos como
progressistas, mas apenas enquanto palavras, quando muito como uma postura aparente.
“Adotam as idéias, aceitam as palavras, mas não podem aclimatar-se às coisas que essas
palavras designam.” (BOMFIM, 1993, p. 160).
Não obstante,
50
Na América do Sul, essa política conservadora mais se agrava porque é generalizada –
para todos os partidos. Não é só por interesse é por herança, por educação. Mesmo os
mais ousados entre os homens públicos, os mais revolucionários, são tão conservadores
como os conservadores de ofício. Ou pela ambição do poder, ou mesmo pelo desejo real
de concorrer para o bem do país, cujo mal-estar provoca as revoluções, eles entram
nelas, subscrevem reformas, proclamam novos direitos; mas, são tão impróprios para os
cumprir como os mais pétreo dos conservadores. São revolucionários até a hora exata de
fazer a revolução, enquanto a reforma se limita às palavras; no momento da execução, o
sentimento conservador os domina e o proceder de amanhã é a contradição formal as
idéias. (BOMFIM, 1993, p. 164).
Ao seguir por esta linha de raciocínio, Bomfim apresenta em O Brasil na
América, mais do que em A América Latina, males de origem, sua explicação do porque
de a “revolução” da Independência ter sido feita sem a emancipação dos escravos, e
porque a “revolução” da República não a fez e; aliás, seria a moribunda Monarquia que
realizara a “revolução” da abolição. Com efeito, a manutenção da escravidão e da visão
de mundo oriunda do mundo escravista pode ser analisada a partir das considerações
bomfinianas como uma irritante coerência.
Com efeito, as pessoas no interior da sociedade brasileira eram socializadas de
modo a reproduzir a lógica parasitária, assim como a comunidade analisada por Elias e
Scotson: tal reprodução passava de geração a geração. Ou seja, a visão de mundo
pautada segundo Bomfim pelo parasitismo, isto é, pelo escravismo, se mantinha graças
a um processo de transmissão social. Os jovens do loteamento internalizavam sua
condição “inferior” em Winston Parva em função de um processo de socialização que
os induzia a isso, dificultando sua ação para modificar a situação; da mesma maneira as
jovens nações latino-americanas eram induzidas a assumir uma posição de inferioridade
perante a Europa em função também de um processo de socialização, em especial, de
suas elites intelectuais, sociais e políticas.
Ainda nesta direção as nações latino-americanas reproduziam em seu interior
essa lógica, ou seja, essas elites reproduziam internamente aquilo que a Europa fazia
com a América Latina. Fazia-se com que a população de um modo geral internalizasse
uma inferioridade transmitida de geração a geração, fator a dificultar uma ação popular
mais efetiva; de outro lado as elites assumiam uma postura se superioridade posta a
desconsiderar o povo, e isso era nefasto aos países latino-americanos como um todo.
51
Assim, ao desconsiderar o povo por entendê-lo como inviável, as elites latinoamericanas não investiam em políticas sociais, como por exemplo, para o caso brasileiro
a educação popular. E o povo, em grande medida por se entender inferior, incapaz e
também marcado pelo conservantismo que recebera de herança em sua socialização,
ficaria a esperar um “salvador”, não se organizando de modo efetivo para mudar a
situação. Eis o dilema latino-americano, segundo a análise de Manoel Bomfim.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho procurou primeiramente destacar aspectos do meio letrado
brasileiro na virada do século XIX para o século XX, especialmente a orientação teórica
hegemônica do período – o racialismo. Nesse sentido, pode-se dizer que
O racismo científico dominou, a partir de 1880, o debate político e cultural brasileiro
sendo adotado, com variantes pela intelectualidade da época. Bem verdade que as
discussões sobre a desigualdade das raças estiveram sempre ligadas à questão nacional,
ou seja, à possibilidade de se constituir uma nação a partir de gente predominantemente
inferior – negros, índios e mestiços. (AGUIAR, 2000, p. 322).
Mesmo sendo este o panorama dominante, houve quem discordasse e buscasse
outras maneiras de interpretar a realidade brasileira. É o caso de Manoel Bomfim.
Entretanto, fazendo uso da sugestão de Quentin Skinner, Bomfim fora formado e estava
inserido em um meio que lhe forneceu determinado vocabulário, e assim, mesmo
discordando de boa parte dos argumentos vigentes à sua época, o fez dentro da narrativa
vigente. (SKINNER, 1996). Algo que vai causar estranheza e despertar as críticas de
Flora Süssekind e de Roberto Ventura. Fato é que Bomfim busca construir outra
interpretação da realidade brasileira escapando ao determinismo biológico. A literatura
mais acessível acerca de Manoel Bomfim concorda em apontá-lo como um quase
outsider no meio letrado brasileiro, e isso se daria, em grande medida, por sua postura
em defender um contradiscurso. Entretanto, Ronaldo Conde Aguiar, também defensor
desta postura, fornece indícios para se pensar que o isolamento de Bomfim era relativo,
pois entre outros elementos o lançamento de seus livros tinha repercussão no meio
letrado. E isto é sinal de que ele não era ignorado pelo meio. E mais significativo do que
isso, um letrado ignorado não seria convidado duas vezes para fazer parte da Academia
Brasileira de Letras. (AGUIAR, 2000).
Entre parêntesis, atualmente o ingresso na Academia Brasileira de Letras é ainda
algo reconhecido como marca de consagração intelectual, mas como seria isso no início
do século XX? Qual seria o impacto de ingressar nesta instituição? Teleologicamente é
possível inferir como fez Conde Aguiar que isso seria fundamental a uma carreira
intelectual de sucesso, um passo importante à consagração e à imortalidade. (AGUIAR,
53
2000). Contudo, qual seria o impacto, à época, de negar o ingresso numa instituição
como a Academia Brasileira de Letras? Isto é algo que este trabalho não contemplou,
ficando tal tema para pesquisas futuras.
Com efeito, se buscou aqui denotar uma relação mais ambígua de Bomfim com
o meio letrado de sua época. Sem negar o isolamento a que sua obra foi relegada
durante pelo menos seis décadas, em termos de reedições. A proposta foi de indicar que
o ostracismo da obra bomfiniana seu deu efetivamente após sua morte.
Ou seja, a posição intelectual de Bomfim era minoritária, e isso poderia ser
tomado como um tipo de isolamento no meio letrado, mas ao mesmo tempo ele estava
inserido neste meio. Todavia, esta posição contra-hegemônica de seu discurso pode ter
remetido sua obra ao ostracismo na posteridade.
Num segundo momento buscou-se analisar o conceito chave da obra
bomfiniana, o parasitismo, por meio de outro conceito central no trabalho do ensaísta
sergipano: a hereditariedade social. Manoel Bomfim constrói sua argumentação
referente à formação e o desenvolvimento da América Latina orientado por este
conceito, o parasitismo. Segundo Süssekind e Ventura, a utilização desta metáfora não
seria algo de todo novo no período. (SÜSSEKIND, VENTURA, 1984). Porém, para o
caso brasileiro isso seria algo senão novo ao menos diferenciado.
Desta forma, Bomfim defende que as sociedades latino-americanas se
formaram sob a égide do parasitismo. Primeiramente, as colônias eram parasitadas pelos
Estados Metropolitanos; após as independências, as elites criollas, herdeiras dos
Estados Metropolitanos, assumiriam o papel de parasitas sobre o restante da população.
O sistema parasitário, tal como proposto por Bomfim, incidiria, de um lado, num
processo de dupla degeneração e de outro, alimentaria a construção de uma lógica do
não trabalho. O duplo processo de degeneração residiria na observação de que a vida
parasitária degeneraria o parasita que se atrofia e perde suas melhores qualidades, ao
passo que o parasitado tem suas forças esgotadas em função da ação do parasita. E a
grande expressão do sistema parasitário estaria na lógica do não trabalho – colher os
frutos sem plantar a árvore. Logo, ao assumir o parasitismo como grande responsável
pelas mazelas do país o ensaísta sergipano desabilita, ou busca desabilitar, o argumento
biológico – a raça – visando colocar os problemas do país em termos sócio-históricos.
Para vigorar, o sistema parasitário dependia de um processo de socialização
especifico. Assim, para sustentar o conceito de parasitismo, Bomfim desenvolve o
conceito de hereditariedade social. Para compreender como ele construiu seu conceito
54
de hereditariedade social recorremos à obra de Émile Durkheim, porém para
compreender o peso deste conceito em seu trabalho entendeu-se serem úteis as
considerações de Norbert Elias e John Scotson, pois elas falam da força de um processo
de socialização. A partir desta combinação foi possível uma melhor compreensão da
obra de Bomfim: entender o parasitismo como gerador de um processo de socialização
o qual, por sua vez, gerou todo um legado cultural e uma herança social completamente
nefasta ao país, na visão do letrado.
Assumir o parasitismo e sua herança social como responsáveis pelas mazelas do
Brasil é ir, por assim dizer, na contramão daquilo que era formulado no meio letrado da
época. Ao contrário da interpretação realizada por Süssekind e Ventura, a narrativa
bomfiniana não seria inadequada para trazer um novo discurso, ela seria em verdade a
mais legítima e legitimada, pois estaria dentro do vocabulário normativo do período.
Assim, a investigação da obra de Manoel Bomfim, dentre outros fatores, mostrase pertinente para demonstrar a complexidade do meio letrado brasileiro; além disso, tal
empresa pode ser reveladora das tensões, ambigüidades e apropriações presentes a este
meio, bem como, suas implicações para a construção do país enquanto idéia e realidade.
55
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