As faces do Positivismo Criminológico: O criminoso nato de Lombroso e a sua
correlação com o conto “O Alienista”, de Machado de Assis.
Renata Rodrigues1
RESUMO: Este ensaio apresenta o conceito de Positivismo Criminológico, com análise
de seu contexto histórico e menção a um de seus personagens principais, o médico
italiano, Cesare Lombroso. Trata-se de um estudo sobre criminologia positivista
correlacionando às teorias de Cesare Lombroso, descrita em sua obra ―O Homem
Deliquente‖, com a obra ―O Alienista‖, do escritor brasileiro Machado de Assis. O
estudo consiste de uma análise da literatura como um saber que também se indaga sobre
o seu tempo e questiona a verdade e o poder estabelecidos. Contará com apontamentos
de escritores e de estudiosos do tema, seja na área criminal, médica ou literária com
ênfase à realidade do Brasil e do mundo na virada do século XIX ao XX.
Palavras – Chaves: Machado de Assis, positivismo, criminoso, loucura
1
Advogada, Bel.em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais.Pós Graduada em Ciências
Criminais pela Universidade Cândido Mendes; aluna especial do Mestrado em Desenvolvimento Social
da Universidade Estadual de Montes Claros; aluna regular do curso de Doutorado em Direito Penal da
Universidad de Buenos Aires.
The faces of criminological positivism: The Lombroso's born criminal and its
correlation with of the story "The Alienist", by Machado de Assis.
ABSTRACT: This paper introduces the concept of criminological positivism, with
analysis of their historical context and mentions one of its main characters, the Italian
physician Cesare Lombroso. This is a study correlating positivist criminology theories
of Cesare Lombroso, described in his book "The Man delinquent", with the work "The
Alienist", the Brazilian writer Machado de Assis. The study consists of an analysis of
literature as a knowledge that also inquires about your time and questions the truth and
power set. Will feature notes of writers and scholars of the subject, whether in criminal
or medical literature with emphasis on the reality of Brazil and the world at the turn of
the nineteenth century to the twentieth.
Keyword: Machado de Assis, positivism, criminal, madness
I - INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda o contexto histórico do positivismo criminológico e a
realidade social do Brasil e do mundo na virada do século XIX ao XX. Analisa o
despontar da criminologia como ciência além de correlacionar a teoria do criminoso
nato do médico italiano Cesare Lombroso, baseada no livro ―O Homem Deliquente‖,
com o conto ―O Alienista‖, do escritor brasileiro Machado de Assis.
Em ―O Alienista‖, originalmente publicado entre 1881 e 1882, como parte da
coletânea ―Papéis Avulsos‖, Machado expressa a crítica ao cientificismo do século XIX
e, por extensão, ao positivismo, que, segundo a doutrina filosófica, propõe fazer das
ciências experimentais o modelo por excelência do conhecimento humano em
substituição às especulações metafísicas ou teológicas, essa presença é notória em suas
obras.
Sabemos, pois, que a narrativa permite a reflexão sobre a literatura enquanto um
saber que também se indaga sobre o seu tempo e questiona a verdade e o poder
estabelecidos. Embora a literatura seja compreendida como uma arte vinculada ao
subjetivismo, entendida como o espaço íntimo do indivíduo, qual se relaciona ao mundo
social para a construção de crenças e valores, esse estudo trata-se de outro saber, qual
não se pretende ater apenas ao cientificismo, mas que se faça legítimo a essa ciência.
Portanto, sob a luz da literatura, pretendemos, neste estudo, destacar noções históricas
do pensamento penal e o despontar da criminologia no tocante às ideias de Lombroso
no universo do positivismo criminológico.
II - DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO
Para entender melhor o que vem a ser ―Positivismo‖ verificamos que o mesmo
possui distintos significados, englobando tanto perspectivas filosóficas e científicas do
século XIX, quanto outras do século XX. Desde o seu início, com Augusto Comte2
(1798-1857), na primeira metade do século XIX, até o presente século XXI, o sentido
2
Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (Montpellier, 19 de janeiro de 1798 — Paris, 5 de
setembro de 1857) foi um filósofo francês, fundador da Sociologia e do Positivismo.No conto ―O
Alienista‖, Machado faz uma crítica às ideias positivas e assim como o personagem principal da narrativa,
Augusto Comte morreu ensandecido: da ficção para a realidade.
da palavra mudou radicalmente, incorporando diferentes sentidos, muito deles opostos
ou contraditórios entre si.
No tocante ao positivismo no campo do direito penal tem-se que a ―Escola
Positiva pode ser dividida em três fases distintas, com três autores símbolos em cada
uma delas: fase antropológica: Cesare Lombroso (L’Uomo Delinqüente); fase jurídica:
Rafael Garofalo (Criminologia) e fase sociológica: Enrico Ferri (Sociologia
Criminale)3‖.
A relação histórica que abarca o surgimento das ideias positivistas se deve ao
desenvolvimento sociológico do Iluminismo, bem como das crises sociais e morais do
fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial - processos que tiveram
como grande marco a Revolução Francesa (1789-1799), pois a razão é estimulada,
deixando de lado os valores da monarquia e do clero. A nova classe dominante, a
burguesia, precisava legitimar-se.
Em linhas gerais, o Positivismo propõe à existência humana valores
completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica (embora as
incorporando em uma filosofia da história). Assim, o Positivismo associa uma
interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana
radical, desenvolvida na segunda fase da carreira de Comte.
Nesse contexto, dado ao desenvolvimento das ciências sociais, como a
Antropologia e a Sociologia, quais eram notórias, a Escola surge buscando proteger a
sociedade de forma mais efetiva contra a ação dos delinquentes, dando-se prevalência
aos direitos sociais em relação aos individuais. Isso, porém, dar-se-á a um confronto de
ideias ―Escola Clássica versus Escola Positiva‖ - a primeira exalta o princípio
individualista, em detrimento da sociedade; porquanto a segunda dizia-se socialista.
Para Noronha (2003) a concepção de direito era outro fator de divergência entre
ambas as escolas. Para a Clássica, ele preexistia ao homem, isto é, era transcendental,
dado pelo Criador. Para os Positivistas, ele é o resultante da vida em sociedade e sujeito
às variações no tempo e no espaço, consoante a lei da evolução.
Sem sombra de dúvida, esse foi o marco histórico e científico capaz de reunir
todas as condições indispensáveis para que a criminologia começasse a se despontar
como ciência e a explicar os mistérios do delito e do delinquente como patologias
individuais e sociais dentro e fora do campo do direito penal.
3
Ver Régis, Luiz e Cezar Roberto Bitencourt, Elementos de Direito Penal, cit., v. 1, p. 32.)
Como parte importante nessa constituição, marca-se também o advento da obra do
inglês Charles Darwin (1809-1882) denominada ―A origem das espécies‖ 4. Nessa obra
Darwin descreve o processo de seleção natural, afirmando que a humanidade não
resultou de um processo criativo repentino e sim de uma evolução biológica natural,
espontânea e complexa em constante interação e transformação, diferente das teorias
capazes de explicarem o universo estático de Deus. Nesse sentido, o professor
argentino, Ricardo D.Rabinovich Berkman, acentua o seguinte:
El auge del positivismo se potencia por el clima de optimismo científico y
tecnológico que viven Europa y América en la segunda mitad del siglo XIX.
Sin embargo, a fines de la centúria,ya se alzan voces de alerta, que buscan
prevenir al mundo contra los eventuales peligros que podrían derivarse de
una aplicación al derecho de ciertos positivismos,en especial, del biológico,
que había cobrado um auge sin precedentes a partir de las obras del inglés
Charles Darwin (1890-1882), especialmente, el Origen de las espécies por
médio de la selección natural (1859). (RABINOVICH, 2007,p208)
Um dos grandes representantes da Escola Positiva da Criminologia e pioneiro da
Criminologia Clínica na América Latina foi o argentino José Ingenieros5, qual, em sua
obra "Criminologia" (1907) apresentou o primeiro tratado do ramo publicado no
continente. Os ideais positivistas sociológicos, na área penal, foram apropriados então
pela Medicina Legal, que, encabeçada por Raimundo Nina Rodrigues6, no Brasil,
defendia os ideais de pureza da raça e combatia a miscigenação, tratando-a como
motivo de degeneração. Nessa interinidade, o médico Nina Rodrigues realizava
pesquisas sociais com traços diretos da antropologia criminal baseados em estudos
feitos pelo médico italiano Cesare Lombroso.
As ideias positivistas chegaram ao Brasil trazidas por brasileiros que foram
completar seus estudos na França, sendo, pois, alguns deles alunos de Auguste Comte7.
4
Esta obra foi publicada em 1859, causando uma revolução científica paradigmática, caindo por terra
tudo que a ciência havia construído naquele momento no campo das idéias biológicas e antropológicas e
mesmo sem contar com publicidade especial e recurso de comunicação, esta obra resultou também em
recorde editorial para aquela época, vez que em menos de uma hora, dos 1200 (um mil e duzentos)
exemplares dela já haviam se esgotado, tornando Darwin em celebridade nacional.
5
Era médico, sociólogo e psiquiatra. Nasceu em Palermo, Itália em 1877 e faleceu em 1925 em Buenos
Aires. Publicou diversos trabalhos no campo da psiquiatria e da criminologia. Foi um dos maiores
intelectuais da Argentina e América Latina, tendo defendido as posições dos positivistas à época.
6
Ver RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. São Paulo:
Companhia Editorial Nacional, 1938.
7
Naquela época o Brasil contava com senhores de engenho ou de fazendas de café cujo seus filhos ou
herdeiros faziam curso de humanidade em colégios jesuítas e complementavam seus estudos inicialmente
Percebe-se, contudo, que a "cultura intelectual" dentre a virada do século XIX ao
XX era mais literária de que científica, porquanto, as classes dirigentes procuravam em
geral as profissões jurídicas. Somente os militares do exército e da marinha, por um
lado e por outro, os engenheiros e os médicos, dedicavam-se aos estudos científicos.
Desde o início do século XIX, o Brasil passava por problemas da escravidão
africana e, dentro deste contexto, não possuía uma filosofia definida capaz de fazer aos
brasileiros aspirarem por ideias que lhes dessem uma nova concepção de valores e
orientassem seus atos, e, desse modo, o positivismo se instalou trazendo respostas
válidas para a época cientificista e mesmo materialista a esse século.
Os representantes da geração 1870 deram início a uma reação à ordem imperial,
porém, eles não representaram uma ruptura completa com seus valores. Sendo assim, os
intelectuais-bacharéis lutavam por maior participação política, tornando-se a
constituição de meios e instituições paralelas características em suas expressões. De
qualquer forma, o movimento reformista mantinha, e até mesmo aprofundava, o culto
da ciência iniciado com o Segundo Império. Voltava-se contra a idealização romântica
do indianismo oficial, mas apenas para afirmar uma nova concepção da nacionalidade
baseada nas teorias científicas naturalistas, portanto, somente estendendo a influência da
ciência às artes, e, além disso, mesmo que seus membros fossem abolicionistas, e
muitos republicanos, eles tendiam em manter intocada a hierarquia racial, qual se
caracterizava a estrutura social brasileira8.
Nesse ínterim, mais precisamente no ano de 1881, Machado publica sua obraprima ―Memórias Póstumas de Brás Cubas‖, que, dentre os marcantes personagens, se
destaca Quincas Borba, qual personagem, de louco e ex-mendigo, se torna o criador da
hilária teoria do humanitismo, uma verdadeira paródia da corrente positivista. Todavia,
é importante ressaltar que Auguste Comte, o principal nome do positivismo, morreu
provavelmente ensandecido.
No ano seguinte, Machado, já consagrado um grande escritor, publica então a
coletânea de contos ―Papéis Avulsos‖, encabeçado pelo conto ―O Alienista‖. Sua
na Universidade de Coimbra e depois retornavam ao Brasil e iam estudar nas faculdades de Direito
Brasileiras (Recife e São Paulo). Cada bacharel era o "doutor" de um determinado setor da realidade que
era visto como um corpo autônomo.
8
Ver artigo Machado de Assis, o Outsider Estabelecido: Um estudo sobre as relações entre ciências,
literatura e nação no Brasil finissecular, do autor Richard Miskolci, apresentado no XI Congresso
Brasileiro de Sociologia, realizado nos dias 1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP .
colaboração é solicitada nos melhores jornais, onde escreve contos acompanhados
também pela extraordinária evolução expressa nas ―Memórias Póstumas‖.
Em 15 de dezembro de 1896, Machado de Assis inaugura a Academia Brasileira
de Letras, recebendo o título de patrono e presidente da mesma. No ano seguinte, ele
assiste à publicação do libelo de Silvio Romero, ―Machado de Assis: estudo
comparativo de literatura brasileira‖, em que esse crítico - adepto ferrenho da Escola do
Recife – procura desqualificar o mérito do escritor, a partir de justificativas
pseudocientíficas, embalado na retórica positivista.
Veremos adiante a relação do conto ―O Alienista‖, com o criminoso nato de
Lombroso sob a perspectiva de Machado de Assis, no tocante à condição humana nos
limites da sanidade e da loucura.
III - DO CRIMINOSO NATO
Cesare Lombroso (1835-1909), antropólogo e médico-psiquiatra italiano, veio
abrir novos horizontes aos estudos sobre o criminoso e a pena, atentando-se à figura do
homem delinquente, observando-o antes mesmo de observar o crime. Lombroso parte
da ideia básica da existência de um criminoso nato, cujas anomalias constituir-se-iam
um tipo antropológico específico.
Como bem recorda Zaffaroni (2011), Cesare Lombroso, da Escola Positiva
Italiana, teorizou uma verdadeira "estética do mal", sustentando que a própria
fisionomia do sujeito poderia nos indicar a sua "tendência delitiva".
Segundo ele, o delinquente descrito por Lombroso era um ser atávico, um
europeu que não culminava seu desenvolvimento embriofetal, ou seja, um europeu que
nascia mal terminado e devido a isso se parecia a um selvagem colonizado. Não tinha
moral, se parecia fisicamente ao índio ou ao negro, era insensível a dor, infantil e
perverso, etc. O estado de guerra hobbesianno se havia cientificado e era o dos
colonizados e dos delinquentes. A esses delinquentes, caracterizados como atávicos ou
selvagens - por sugestão de Ferri - Lombroso os chamou de ―delinquentes natos‖,
expressão plagiada a um frenólogo espanhol: Cubi e Soler9.
Lombroso fora influenciado por Charles Darwin e com base no estudo de um
criminoso famoso de sua época, cujo crânio mostrou algumas anomalias, que eram
9
Ver Zaffaroni, Eugênio Raul. Manual de Derecho Penal, 2ªEd. Buenos Aires, 2011, Ed.Ediar pg.240.
comuns na antiguidade, chegou a uma conclusão em que o agressor é o elo perdido na
evolução das espécies, pois, o macaco se torna um homem, deixando um espaço
pequeno onde entra o ofensor do sexo masculino, este é um ser que não chegou a se
desenvolver adequadamente, de modo que foi deixado em um estágio intermediário
entre o macaco e o homem.
A priori, Lombroso não buscava uma teoria crimino-genética, senão um critério
diferencial entre o enfermo mental e o criminoso, mas ao deparar-se com esse
descobrimento, começa a elaborar o que denominaria Antropologia Criminal.
Em 1872, Lombroso publica um livro denominado ―Memória sobre os
Manicômios Criminais‖, afirmando, pois, nele, sobre a necessidade de que devam
existir manicômios para criminosos e a necessidade de que os loucos não estejam nas
prisões, mas em instituições especiais.
Nesse mesmo ano Lombroso escreve um livro denominado ―O Gênio e a
Loucura‖, onde ele expõe que na realidade todos os gênios estão loucos e que o gênio é
um anormal e expõe como o Gênio e a Loucura; a Loucura e o Gênio, na realidade, não
existem, mas que a uns passos.
Para Calhau (2003), Lombroso apontava as seguintes características corporais do
homem delinquente: ―protuberância occipital, óbitas grandes, testa fugida, arcos
superciliares excessivos, zigomas salientes, prognatismo inferior, nariz torcido, lábios
grossos, arcada dentária defeituosa, braços excessivamente longos, mãos grandes,
anomalias dos órgãos sexuais, orelhas grandes e separadas, polidactia. As características
anímicas, segundo o autor, são: insensibilidade à dor, tendência a tatuagem, cinismo,
vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo.
Conforme o seu pensamento foi evoluindo, Lombroso passou a considerar novas
tipologias de delinquentes, bem como a influência de fatores exógenos. São tipos de
delinquentes: nato, por paixão, louco, de ocasião e o epilético 10. Embora pretendesse
provar suas ideias, experimentalmente, Lombroso não obteve sucessos; porém, seus
estudos sobre as causas biopsíquicas do crime serviram de grande influência para a
evolução da sociologia criminal.
Segundo Molina (2002), a contribuição principal de Lombroso para a
Criminologia não reside tanto em sua famosa tipologia (onde destaca a categoria do
"delinquente nato") ou em sua teoria criminológica, senão no método que utilizou em
10
Ver Cezar Roberto Bittencourt, Tratado de Direito Penal, vol.1, p. 56
suas investigações: o método empírico. Sua teoria do delinquente nato foi formulada
com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinquentes e seis mil
análises de delinquentes vivos; e o atavismo que – consoante ao seu ponto de vista caracteriza o tipo criminoso - ao que parece - contou com o estudo minucioso de vinte e
cinco mil reclusos de prisões europeias.
Se, naturalmente, com a sucessiva especificação das ciências, estas ideias
revelaram-se passíveis de complementação - especialmente pela ciência sociológica,
então em franca ascensão - Lombroso exerceu ainda por muito tempo, após as críticas
que lhe foram feitas, importante influência no Direito Penal do mundo, sendo dos
primeiros a defender a implantação de medidas preventivas ao crime, tais como a
educação, a iluminação pública, o policiamento ostensivo - além de outras tantas ideias
inovadoras referentes à aplicação das penas. Na América Latina, de forma muito
especial, encontramos até os anos de 1930 seguidores da Escola antropológica italiana,
insigne, esse, a que se atribui aos estudos de Lombroso.
IV - DO CONTO “O ALIENISTA”
A obra, ―O Alienista‖
11
, classificada como a um conto, do escritor brasileiro
Machado de Assis, é dotada de humor e ironia. Para alguns especialistas, essa obra
trata-se de uma novela, outros, porém, consideram-na um romance. Portanto, sendo ―O
Alienista‖ constituído por uma narrativa breve e concisa, menor que o romance e
contida de uma única ação: com pequeno número de personagens em torno de um único
ou poucos incidentes, considerar-se-á um conto.
Com o narrador onisciente em terceira pessoa, Machado de Assis consegue
mostrar e explorar o comportamento humano além das aparências, expondo com grande
ironia toda a vaidade e egoísmo do homem. Verificam-se, nesse conto, elementos
típicos da produção realista de Machado de Assis, principalmente a análise psicológica
e a crítica social. Ele nos propõe em seu enredo o problema da fixação de fronteiras
entre o normal e o anormal da mente humana e tece nesse conto a crítica da importação
11
Fora publicada em 1882, quando aparece incorporado ao volume Papéis Avulsos, havia sido publicado
previamente em A Estação (Rio de Janeiro), de 15 de outubro de 1881 a 15 de março de 1882. É a base
para o tipo de conto brasileiro que viria a seguir, assim como peça fundamental do Realismo. Para muitos,
é considerado como o primeiro romance brasileiro do movimento realista.
indiscriminada de teorias deterministas e positivistas no Brasil através do personagem, o
médico Dr. Simão Bacamarte, demonstrando a sua obsessão científica e as suas
consequencias para a vida na cidade de Itaguaí.
Fernando Tola de Habich, em uma recente edição mexicana de ―El Alienista12,
comenta no prólogo da edição, o seguinte:
El alienista muestra en sus pocas páginas un resumen de las principales
preocupaciones no exteriorizadas de Machado de Assis. La identidad, la
separación entre lo normal y lo anormal, la lucha y los trasfondos políticos, la
relación matrimonial, la amistad, las preocupaciones sociales, el dinero, el
status.
Simão Bacamarte é o protagonista, médico conceituado em Portugal e, na
Espanha, decide enveredar-se pelo campo da psiquiatria e inicia um estudo sobre a
loucura e seus graus, classificando-os. Instalou-se em Itaguaí, onde funda a Casa Verde,
um hospício, e abastece-o de cobaias humanas para as suas pesquisas. Ele passa a
internar todas as pessoas da cidade a que ele julga serem loucas: o vaidoso, o bajulador,
a supersticiosa, a indecisa, etc. Costa, rapaz pródigo que dissipou seus bens em
empréstimos infelizes, foi preso por mentecapto. A prima de Costa que intercedeu pelo
sobrinho também foi trancafiada. O mesmo acontece com o poeta Martim Brito, amante
das metáforas, internado porque se referiu ao Marquês de Pombal como o dragão
aspérrimo do Nada. Nem D. Evarista, esposa do Alienista escapou: indecisa entre ir a
uma festa com o colar de granada ou o de safira. O boticário, os inocentes aficionados
em enigmas e charadas, todos eram loucos. No começo a vila de Itaguaí aplaudiu a
atuação do Alienista, mas os exageros de Simão Bacamarte ocasionaram um motim
popular, a rebelião das canjicas, liderados pelo ambicioso barbeiro Porfírio. Porfírio
acaba vitorioso, mas em seguida compreende a necessidade da Casa Verde e alia-se a
Simão Bacamarte. Há uma intervenção militar e os revoltosos são trancafiados no
hospício e o alienista recupera seu prestígio. Entretanto Simão Bacamarte chega à
conclusão de que quatro quintos da população internada eram casos a repensar. Inverte
o critério de reclusão psiquiátrico e recolhe a minoria: os simples, os leais, os
desprendidos e os sinceros. O alienista, contudo, imbuído de seu rigor científico percebe
que os germes do desequilíbrio prosperam porque já estavam latentes em todos.
Analisando bem, Bacamarte verifica que ele próprio é o único sadio e reto. Por isso o
12
Ver a tradução em espanhol do livro ― O Alienista‖ disponível em:
http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/por/machado/alienis.htm > .Acesso em jun.2012.
sábio internou-se no casarão da Casa Verde, onde morreu dezessete meses depois.
Apesar do boato de que ele seria o único louco de Itaguaí, recebeu honras póstumas.
José Maria Boutckosky da Silva destaca algumas simbologias dos personagens
do livro ―O Alienista‖ a começar por Simão Bacamarte, protagonista do conto. Segundo
ele, o personagem central, Simão Bacamarte, representa uma clara sátira ao homem de
ciência do positivismo, pois, no primeiro parágrafo da história, o médico é descrito de
forma hiperbólica, como autoridade das autoridades científicas. No decorrer da leitura
do conto, percebe-se que as entranhas do ―Alienista‖ são descritas como egrégias. Pois
onde já se viu entranhas que sejam admiráveis? Bacamarte é o retrato satírico do
cientista que, dentro do mundo racional, está fora do mundo real; do homem que chega
a escolher a esposa não pelo caráter, mas por "prendas" estritamente biológicas. Um dos
pontos que confere humor ao texto é o fato de que, mesmo o médico sendo
extremamente sagaz e genuinamente inteligente, isso não o impede de recair em erro.
José Maria Boutckosky da Silva afirma, sob a égide de sua perspectiva que os
personagens Dona Evarista e Crispim Soares poderiam ser vistos como os seguidores
cegos do Alienista, que em momento algum colocam em xeque suas ideias insanas, já
que a autoridade atribuída ao médico não deve ser posta em dúvida. Portanto, ele afirma
o seguinte:
Eles representam aqueles que se dobram diante de uma doutrina sem antes analisála friamente, alvos perfeitos da ideologia: os que a aceitam sem refletir acerca dela.
O boticário, inclusive, é a clássica figura do puxa-saco, sempre presente na obra de
Machado, e um farmacêutico que poderia ser visto como um "médico menor". Daí
que ele siga o Alienista e lhe repita todas as sentenças, hiperbolizando-as.
Do lado dos antagonistas de Bacamarte, temos o padre Lopes. Sempre querendo
deixar as coisas exatamente como estão, à moda da Igreja, e sempre alerta para o
exagero do estudo. Como símbolo da Igreja no conto, ele deve afastar tudo o que
constituir perigo para a fé. O conflito de Simão com o padre Lopes pode ser visto
como uma representação das dissidências havidas entre Igreja e Império durante o
Segundo Reinado. Há um delicado equilíbrio: o intelectual tem do seu lado a
razão, mas teme o poder da Igreja que, por sua vez, é poderosa, mas, cega de fé, se
torna tola. Entretanto, é o padre quem dá a sentença final do encarceramento do
Alienista em seu próprio manicômio. Temos, assim, a vitória da teologia sobre a
ciência.
Por fim, há Porfírio, o barbeiro, que lidera os cidadãos na revolução contra a
opressão da Casa Verde. Assim que um pouco de poder lhe cai nas mãos, ele passa
a ansiar por mais e acaba conseguindo dissolver a Câmara. Só que quando ele
consegue chegar ao Alienista, prefere entrar num acordo do que assassiná-lo, como
a multidão ordena a altos brados. O barbeiro é a representação do velho ditado que
diz que o poder corrompe (Silva [2012]).
O enredo tem como tema principal a ―loucura‖ fazendo com que o personagem
principal se entregasse de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as
leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas.
A grande questão da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a
escandalosa noção de periculosidade, cuja ideia significa que ―o indivíduo deve ser
considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades”
13
. E isso dialoga com a
questão mesma da construção do rótulo de desviante e com toda crítica dirigida ao
positivismo criminológico como legitimador de essências, tais como maldades e feiúras.
Se o positivismo criminológico é caracterizado por uma ―racionalização que
consiste em querer prender a realidade num sistema coerente, e tudo o que, na realidade,
contradiz este sistema coerente é afastado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão
ou aparência‖ 14.
Para Moacyr Scliar, médico, escritor e membro da Academia Brasileira de
Letras, Machado foi um intérprete agudo e sensível da realidade brasileira, funcionando
como um sismógrafo do Brasil na virada do século XIX para o XX. A maior
contribuição de Machado à Ciência talvez tenha sido os estudos e observações acerca da
sociedade brasileira no fim do Império, perdurando, pertinentemente, até aos dias de
hoje, por sinal.
Nos estudos sobre o criminoso nato, Cesare Lombroso elabora uma teoria de que
também seleciona o enfermo mental e o criminoso, utilizando do método empírico. Já
no enredo de ―O Alienista‖, o personagem Simão Bacamarte realiza um estudo sobre a
loucura colocando dentro da Casa Verde várias pessoas afirmando sê-las acometidas por
patologias psíquicas. A cada caso investigado, Simão Bacamarte vai elaborando novas
teorias, tornando-as uma verdadeira crítica ao positivismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O positivismo propõe que todas as questões filosóficas, sociológicas e políticas
fossem analisadas por meio de uma ótica humana, colocando-se de lado tudo o que
13
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado et. al. RJ: NAU
Editora. 2005, p. 85.
14
Ver MORIN. Introdução ao Pensamento Complexo. p. 70.
fosse metafísico ou teológico. A doutrina positivista vai de encontro à idealista, pois
prioriza a experiência sensível (ou dados positivos) à experiência extra-sensorial (dados
subjetivos). Em outras palavras, o positivismo tem por base tudo àquilo que pode ser
observado e deixa de lado o que só pode ser intuído.
Na ânsia de estudar o crime e suas causas, Lombroso ficou bastante conhecido
pelas suas teorias sobre o ―delinquente nato‖, ou seja, aquelas ideias de que as
características físicas, fisiológicas e mentais dos indivíduos demonstravam se a pessoa
era predisposta ao crime ou não. Em poucas palavras: um criminoso poderia ser
diagnosticado pelas condições anatômicas de seus corpos. Sua teoria embora naquela
época fosse muito importante para o direito, sofreu severas críticas quanto à sua
comprovação, vez que prejudicava as classes menos favorecidas.
Para Recacho (2009) o cientificismo biológico foi um capacete ideal para o
pensamento de Lombroso. Fazendo uso de levantamentos quantitativos dos defeitos
físicos dos presos, ele elaborou um esquema de normatização do anormal. Lombroso
atuava dentro do esquema de habitus específico dos discursos científicos de então – os
discursos normativos do que seria a verdade garantida pela ciência.
Em contrapartida, o personagem Simão Bacamarte estudou na Europa e, ao
regressar ao Brasil, com trinta e quatro anos de idade, instalou-se em Itaguaí, onde criou
a Casa Verde, asilo para recolher os loucos e estudar as patologias cerebrais a partir de
sua primeira formulação da loucura:
"Suponho o espírito humano uma vasta concha; o meu fim é ver se posso
extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos
definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito
equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia‖ 15.
Sendo assim, na concepção naturalista, a verdade só é obtida através do
conhecimento científico. O desfecho do conto focaliza exatamente nesse ponto, quando
Simão Bacamarte se isola na Casa Verde à procura de uma teoria científica consolidada,
tomando a si mesmo como objeto tanto da teoria quanto da prática.
Não é à-toa a aproximação foucaultiana entre criminoso e louco, no cerne
daquela ânsia lógica que caracteriza a vontade de verdade. Ora, ―Desgraçado do tempo
em que os loucos guiam os cegos‖, afirmou Shakespeare pela boca de Glaucester, que,
15
Entre Livros, nº 20, pp. 34-35. São Paulo. Dezembro 2006.
cego, não sabia explicar as causas de sua suposta e estranha queda e, por isso, agarrouse a uma enganadora lógica16.
―O Alienista‖ trabalha incisivamente a questão da loucura, podendo ser lido de
forma a fornecer uma crítica dupla ―contra as fantasias de onipotência da ciência, ávida
de fatos chamados positivos, e como uma demonstração fatal da cegueira individual
causada por uma ideia fixa‖.17 No dizer de Frosh, somente depois que a Casa Verde foi
construída é que a loucura foi inventada e consubstanciada como problema social – ou
seja, é ―a existência do asilo que provoca a loucura generalizada‖.
16
SHAKESPEARE, Willian, Rei Lear.Trad,Millôr Fernandes.Porto Alegre:L&PM, 1997,PP 97 e 110.
FROSCH.O Tenebroso Problema da Patologia Cerebral: algumas considerações acerca d’O Alienista
machadiano. p. 291.
17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. 2ª ed.São Paulo: Martin Claret, 2006.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2009
ELBERT, Carlos Alberto.Manual básico de criminologia. 1ªEd.Buenos Aires: Editorial
Universitaria de Buenos Aires, 1998.
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado et. al.
RJ: NAU Editora. 2005
FROSCH.O Tenebroso Problema da Patologia Cerebral: algumas considerações acerca
d’O Alienista machadiano.
LARRAURI Elena. La herencia de la criminología crítica.2ª Ed. Siglo XXI de España
editores, S.A.Madrid, 2000.
MAGALHÃES NORONHA, Edgard. Direito Penal, V.1 ao 4. São Paulo: Saraiva. 2003
MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia, 4a edição,
São Paulo, RT, 2002
PRADO, Luiz Regis. BITENCOURT, Cezar Roberto; Elementos de Direito Penal,
Parte Geral. São Paulo: RT, 2005.
RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo David. Un viaje por la historia del derecho. 1ª
Ed. Buenos Aires: Editorial Quorun, 2007.
RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no
Brasil. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1938.
SHAKESPEARE, Willian, Rei Lear.Trad,Millôr Fernandes.Porto Alegre:L&PM, 1997.
SILVA GARCÍA, German. Criminologia, Teoria sociológica Del delito, 1ªEd.Bogotá:
ILSA, 2011.
SILVA, José Maria Boutckosky da. O humor machadiano em O Alienista.Disponível
em:< http://literatura.uol.com.br/literatura/figuras-linguagem/26/artigo159392-2.asp>.
Acesso em 08 de abril de 2012.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Derecho Penal, 2ª Ed. Buenos Aires, 2011.
Download

As faces do Positivismo Criminológico