ESCRITA NA PSICOSE: PONTUAÇÕES NUMA “ESCRITURA HEMORRÁGICA”
Iza Maria Abadi de Oliveira1
“O louco aprende a ser sábio a sua própria custa.” (Homero)
Certo dia, não qualquer momento de seu tratamento, aquele homem de intelecto
espetacular, estudioso da Sagrada Escritura, poliglota, com informações preciosas sobre
a infusão medicinal de várias plantas, dirige-me um pedido, imperativamente:
“- Quero que você escreva o que tenho a falar!”
Sem hesitar, e me vindo à lembrança uma passagem em que Lacan, no
Seminário As Psicoses (1955-56), propõe sermos “secretários do alienado”, levanto-me
de minha poltrona, procurando um papel em branco e uma caneta. Começa, então, o
formato de uma cena em que empresto meu corpo para que aquela mensagem direta do
Outro tome alguma corporiedade. No entanto, a partir de um certo tempo, começam a se
apresentar dores em minha mão, e meu traçado não consegue mais acompanhar aquela
“hemorragia de palavras” (Pommier, 2002). Peço-lhe pausas. Ele cede. Dessa forma é
possibilitado que aquela errância de palavras seja, minimamente, pontuada. É certo que
são vírgulas um tanto deslocadas, pontos finais um tanto espaçados, um sintaxe
ambígua, descontínua. Mas, talvez, seja uma forma encontrada de possibilitar um pouco
de descanso ao seu espírito vagante.
São pelas pausas que aquele tempo se compõe numa temporalidade que a
sonoridade das palavras necessita. Trata-se de um dispositivo clínico no tratamento nas
psicoses? Não de uma técnica instrumental, mas de um procedimento em que, através da
materialidade da letra, se possa produzir um pouco de descanso a esta entrega absoluta
ao Outro? Dentro deste setting clínico, um texto-corpo (ou corpo textual) vai se
produzindo. Mas que corpo estamos referenciando?
Os estudos de Ana Costa, principalmente aqueles em Corpo e escrita (2002),
indicam caminhos. Ela propõe pensar a escrita como um suporte corporal que recorta os
restos não assimiláveis, os detritos, ou seja, o que retorna de uma separação nunca
concluída. A escrita reúne, também, dois objetos pulsionais privilegiados, o olhar e a voz.
Segundo ela, a dimensão corporal só se sustenta pelo recorte destes objetos.
1
Psicóloga/CAPS/Ijuí; mestre em Literatura Brasileira pela UFSM; membro do Laboratório de Psicopatologia
Fundamental da Unicamp e do Espaço Psicanalítico de Ijuí, RS.
Por essa via, é possível pensar a escrita na psicose como um suporte de
registro corporal, no entanto, não de um resto (porque não houve separação), mas do
próprio corpo? Uma produção simbólica que tenta se inscrever no real?
Os entrecruzamentos entre psicose e escrita podem ser concebidos como um
legado da clínica psicanalítica freudiana-lacaniana. Uma referência inaugural neste campo
é o estudo de Sigmund Freud sobre a psicose paranóica (1911), empreendido através da
autobiografia de Paul Schreber (1995 [1903]). Neste relato de suas internações e seus
delírios, Schreber acredita que se referia a uma das “obras mais interessantes que já
foram escritas desde que o mundo existe” (p.306). Sem dúvida, este material se tornou
precioso na literatura psicanalítica, bem como o estudo empreendido por Freud.
Por sua vez, na obra de Jacques Lacan, se encontram distintos momentos
dedicados a este tema. No entanto, destacaremos sua produção de 1932, quando
escreve sua tese de doutoramento, “Da psicose paranóica em suas relações com a
personalidade” (1932), em que apresenta um estudo sobre o caso “Aimeé”. Uma das
produções delirantes desta mulher denominada por Lacan como “a namorada das
palavras” (1987, p. 190) era o de ser uma grande escritora, chegando a levar dois
romances para serem publicados, os quais foram recusados pelas editoras. Segundo ele,
seus escritos apresentam “grande valor clínico” (p.175), podendo ser encontrado, no estilo
destas escrituras, o próprio “ritmo psíquico do doente” (p.188). No entanto, lhe surpreende
o fato de que as expressões que ela utiliza não serem de origem automaticamente
imposta, o que daria a impressão de uma estereotipia do pensamento (p.177). Este é um
fato novo nos estudos que ele vem empreendendo: nos escritos da paciente faltam
anomalias sintáticas clássicas dos escritos paranóicos.
Lacan, na sua tese, apresenta a função da escritura nos delírios
erotomaníacos de Aimée: um ato metafórico que a protege de um outro ato no real, como
aquele que ela empreendeu contra a atriz Huguette ex-Duflos. No entanto, ela não
consegue acolhimento (aceite de publicação) a essa construção delirante. Outro fato
interessante, que durante sua internação, embora seja lhe oferecido “caneta e papel”, ela
se recusa a escrever.
Um dos ensinamentos deste trabalho de Lacan, tão atual para a clínica de
nossos tempos, é a de que, muitas vezes, precisamos emprestar nosso próprio corpo
para a construção de uma corporiedade em que plasmas e glóbulos possam encontrar
caminhos para verterem oxigênio. Emprestar pontuações nessas narrativas tão entregues
à demanda voraz do Outro pode ser uma forma deste corpo não padecer naquilo que não
consegue conter. É isso que nos remete a narrativa de Thomas Bernhard sobre Paul
Wittgenstein, este ser de sentido tão aguçado e de grande riqueza intelectual,
diagnosticado de maníaco-depressivo:
Mas é que Paul jogava continuamente pela janela os tesouros de seu espírito
com sua fortuna, mas enquanto sua fortuna rapidamente foi definitivamente
jogada pela janela e completamente esgotada, os tesouros de seu espírito eram
realmente inesgotáveis: ele os jogava continuamente pela janela e (ao mesmo
tempo) eles só faziam crescer e se multiplicar, quanto mais ele jogava os
tesouros do espírito pela sua janela (e sua mente), mais eles aumentavam, o que
caracteriza pessoas desse tipo, que são primeiro um pouco loucas e que
terminam sendo chamadas de completamente alienadas (p.31).
Referências bibliográficas:
BERNARD, T. O sobrinho de Wittgenstein: uma amizade. Rio de Janeiro, Rocco, 1992.
COSTA, A. Corpo e escrita – relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume&Dumará, 2001.
LACAN, J. Da psicose paranóia e suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.
___. O Seminário, Livro 3, As psicoses [1955-56]. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
POMMIER, G. Nasimiento y Renacimento de la Escritura. In: Letra e Escrita na clínica Psicanalítica, Revista Literal da
Escola de Psicanálise de Campinas, n. 5, jan. – jun./2002.
SCHREBER, P. Memórias de um doente dos nervos. [1903]. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
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