AINDA EXISTEM FLORES NO JARDIM!
Monólogo de: PAULO SACALDASSY
PERSONAGEM
ROSA
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CENÁRIO: QUARTO SIMPLES, UMA JANELA ENCOBERTA POR UMA CORTINA DE RENDINHA, UMA PORTA, AO CENTRO, UMA CAMA, SOB A CABECEIRA DA CAMA, UM TERÇO EM FORMA DE CRUCIFIXO, EMBAIXO DA
CAMA, UMA MALA, DO LADO DA CAMA, UM CRIADO-MUDO, SOBRE ELE,
UM ABAJUR. UMA CADEIRA DE BALANÇO, UM VELHO ARMÁRIO DE DUAS PORTAS, TENDO DE UM LADO, UM MANCEBO E DO OUTRO, UM ESPELHO DE CORPO INTEIRO.
AO ABRIR A CORTINA, UMA SENHORA ESTÁ SENTADA EM UMA CADEIRA DE BALANÇO, CANTA UMA CANTIGA:
ROSA
Se essa rua, se essa rua
Fosse minha
Eu mandava, eu mandava
Ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas
De brilhantes
Para o meu, para o meu amor
Passar...
OUVE-SE BARULHO DE MÓVEIS SENDO ARRASTADOS DO LADO DE
FORA. ALGUÉM BATE A PORTA, ROSA VAI ATENDER.
ROSA
Olha lá! Acho que eles chegaram, Antônio!
ROSA VOLTA COM UMA CARTA NA MÃO.
ROSA
De quem será esta carta?... Justo hoje!?
ROSA FAZ MENÇÃO DE ABRIR A CARTA, MAS RECUA. DOBRA-A E COLOCA-A ENTRE OS SEIOS.
ROSA
É Antônio, estou ficando preocupada. Daqui a pouco a
mudança acaba e eles não chegam. Quase todo mundo já
foi embora, acho que só eu ainda estou aqui!... Filha!... Filho!... Pra onde é que eu vou? A clínica vai fechar de vez!
Por onde andam vocês, meus filhos?... Vocês me prometeram que se a clínica fechasse, vocês viriam me buscar!
Eu nunca pensei que a solidão fosse ser minha compa2
nheira!... Quantas da minha idade já foram para um lugar
melhor... A clínica vai fechar mesmo, acho que o melhor
que tenho a fazer, é morrer!... Na verdade, acho que já
morri pra eles!... Quem sabe se eu rezar e pedir com toda
a minha fé, um anjo que talvez esteja de plantão, leve
meu recado à Deus?... Melhor, vou falar direto com
Deus!...
ROSA SE APROXIMA DA CAMA, AJOELHA-SE E COMEÇA REZAR.
ROSA
Olha aqui, meu Deus, hoje não vou fazer nenhuma oração, não dessas que as pessoas conhecem e rezam
quando sentem dificuldades. Hoje eu quero conversar,
uma conversa definitiva. Quero pôr um ponto final nisso
tudo. Já não tenho o que agradecer, não tenho o que me
queixar. Hoje, meu pedido é único, não tem rodeios e nem
promessas a cumprir. Hoje, eu quero lhe pedir que me
mande os meus filhos, pois se eles não vierem, quero que
me leve!... Isso mesmo! Prefiro morrer!
ROSA COMEÇA A CHORAR, LEVANTA-SE E APANHA UMA MALA QUE
ESTÁ DEBAIXO E A PÕE EM CIMA DA CAMA E CAMINHA PELA CENA.
ROSA
Lembra, Antônio, quando a gente se conheceu? Você pegava todo dia o mesmo bonde que eu... ficava me olhando... me paquerava... E, eu? Toda exibida, fazia de conta
que nem era comigo, mas por dentro, morria de vontade
de falar com você. Teve um dia, quando saí do colégio e
apanhei aquele bonde e não vi você, que dor!... Meu coração apertou tanto dentro do meu peito, que achava que
ele ia sair pela boca. Enchi minha cabeça de minhocas...
Está vendo, sua exibida, quem mandou não dar bola pra
ele? De certo, ele já arrumou outra garota! Foi a volta pra
casa mais triste desde o dia em que te conheci! Mas, para
minha surpresa, você estava lá. (ROSA SURPRESA) – O
que você está fazendo aqui, Antonio? Vai embora! Se
meu pai pegar você aqui, ai, meu Deus! (IMITANDO A
VOZ DE ANTONIO) – Vim pedir para namorar contigo!
Não, papai vai me matar!... Seu louco!... Fiquei vermelha,
sem graça, mas, já estava completamente apaixonada por
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você, e você por mim, não é mesmo, Antônio? E eu que
nem tinha falado nada em casa, nem para minha mãe, fiquei toda orgulhosa de você, que chegou lá, peito aberto
e o enfrentou. Quando meu pai chegou e me chamou com
aquela sua voz forte – Rosa, vem cá! Tremi! Minha mãe
pegou minha mão e fomos as duas até a sala certas de
que um castigo me esperava. E você, Antonio, já havia
amansado a fera e papai todo orgulhoso, deixou que eu
namorasse você...
ROSA VAI ATÉ O ARMÁRIO E COMEÇA A PEGAR ALGUMAS PEÇAS DE
ROU-PAS E AS LEVA ATÉ A MALA.
ROSA
... Quando você me beijou pela primeira vez, um frio subiu
da ponta do pé até último fio do meu cabelo! Que saudades daquela sensação! (ROSA VAI E ABRAÇA O MANCEBO) E a nossa primeira vez? Resisti o quanto pude,
mas, não consegui resistir até o casamento! Tenho que
confessar, eu também queria!... Foi uma noite de sonhos!... (ROSA DEITA-SE COM O MANCEBO) – Você
vai ser, carinhoso e delicado comigo? (IMITANDO ANTONIO) - Não fique preocupada! – Aí, estou tão nervosa!
(IMITANDO ANTONIO) - Não chore! Não precisa tremer
de medo! Vou apagar a luz, tá? (ROSA LEVANTA-SE) A cada dia, mais e mais eu me apaixonando por você!
Você, meu príncipe, iguais aqueles das histórias de contos de fadas, só não tinha cavalo branco. Como tudo vira
poeira! De repente, me vi sem chão! Como eu pude me
deixar chegar nessa situação? Logo eu, que sempre fui ativa, decidida! Não acredito que me entreguei desse jeito!
ROSA AJEITA AS ROUPAS NA MALA. OUVEM-SE VOZES E BARULHOS
DE MÓVEIS ARRASTADOS. ROSA VAI ATÉ A PORTA, FAZ QUE OLHA
PELA FE-CHADURA.
ROSA
Vem ver, Antônio, vem ver! Os filhos da Dona Chiquinha
já estão levando ela embora!... Enfermeira!... Enfermeira!... Meus filhos já deram notícias?
ROSA PEGA OUTRA VEZ A CARTA ENTRE OS SEIOS E AMEAÇA ABRI4
LA.
ROSA
Que será que tem aqui dentro?...O que você acha, Antônio?... Acho melhor eu me arrumar, afinal hoje nós vamos
embora daqui Antônio!
ROSA SE PÔE EM FRENTE AO ESPELHO.
ROSA
É Rosa, você está um caco, hein? Parece uma morta viva! Também, quem mandou se fechar desse jeito?... Eu
sempre tive horror de cabelos brancos! Olha só isso, Rosa!... Eu já não me conheço mais, logo eu que sempre fui
vaidosa! Ah, minhas pernas, meu rosto, meus seios...
Como é difícil envelhecer! (ROSA ANDA PELA CENA) O
pior é se entregar do jeito que eu me entreguei! Nossos filhos não podiam ter feito isso comigo, viu Antônio! Se não
querem ficar comigo, por que não falam? Acham que eu
ainda não sei me virar sozinha? Mas me abandonar aqui,
eu não merecia esse castigo! Ah, se eles soubessem como dói a solidão! Ah, se eles sentissem com eu, as dores
que nunca foram minhas, e que eu sentia a cada injeção
que eles tomavam, a cada sofrimento que eles passavam... Mas a culpa é tua Rosa, agora tua vida ficou pequenininha, sem sentido, sem razão... Pra onde você vai?
Me diz, meu Antônio!... Será?
ROSA SE AJOELHA NOVAMENTE E SE PÕE A CONVERSAR COM DEUS.
ROSA
Olá aqui, meu Deus! Acho que chegou mesmo a minha
hora! Não tenho mais nada pra fazer por aqui! Não tenho
mais filhos, eles me abandonaram, meus netos, eu não
vejo há tempos! (ROSA VAI, PEGA O MANCEBO E COLOCA AO SEU LADO) Vai, meu amor reza comigo! Eu
lhe peço meu Deus, me de forças pra enfrentar a morte!
Me leve daqui! Minha vida é tão sem nada, que não tenho
nem mais pecados para confessar! Só lhe peço, meu
Deus, que minha morte seja hoje, e que seja de uma forma sem dor!... Vem Antônio, deite-se aqui! (ROSA COLOCA O MANCEBO EM SUA CAMA E DEITA-SE AO
LADO) Vou fechar os olhos, e o senhor, meu Deus, me
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mata!... Vai Antonio, você também! Só não demore, meu
Deus! Me mate antes da mudança acabar...
ROSA VIRA-SE PRA LÁ E PRÁ CÁ, DE REPENTE, COMEÇA A RIR E LEVAN-TA-SE EXPLODINDO NUMA GARGALHADA.
ROSA
Desculpe, meu Deus! Mas falando de morte desse jeito,
me lembrei de uma brincadeira que fiz contigo, lembra Antonio? Você morria de medo de morrer, não podia nem tocar no assunto com você, que você se arrepiava todo!
(ROSA ANDA PELA CENA) Eu devia ter uns quarenta
anos, um pouco mais talvez, sabe como que é, dois filhos,
o corpo da gente muda, e como muda!... Resolvi fazer
plástica! Você não queria, porque não queria que eu fizesse. (COMO FOSSE O ANTONIO) – Você continua linda! Puro galanteio. Você sempre foi um homem romântico, jamais diria algo que me magoasse! Mas, eu estava
decidida, e acabei te convencendo. Marquei a plástica.
Mesmo contrariado, você me acompanhou e ficou aguardando, estava mais nervoso de que quando eu tive meus
filhos, suava que nem bica. Graças a Deus a operação foi
bem sucedida, fui pro quarto e quis fazer uma brincadeira
contigo. (IMITANDO ANTONIO) – Então, satisfeita? (ROSA COM A VOZ MOLE) – Ai Antonio, não sei!... Cuide de
tudo!... Acho que a minha hora chegou... (IMITANDO ANTONIO) – O que você tem?... Enfermeira!... Enfermeira!...
(ROSA COM A VOZ NORMAL) – Eu estou bem, Antônio!
Foi só uma brincadeirinha!... Quase que te matei de susto,
não foi Antonio?... Realmente fiz uma brincadeira de muito mau gosto com você. Mas à noite, pareceu castigo,
passei tão mal que achei que fosse morrer de verdade!
Você que tinha saído com raiva de mim, nunca acreditou
que quase morri de verdade. Ficou um bom tempo de cara virada comigo!...
ROSA PEGA UMA FOTO DE ANTONIO E ABRAÇA O MANCEBO.
ROSA
Perdão Antonio, perdão! A solidão faz a gente lembrar de
cada coisa! (ROSA SILENCIA POR UM INSTANTE) Acho
que estou me acostumando com o silêncio! Na maioria
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das vezes é ele que enche o meu tempo. Será que perdi o
juízo? Falo, falo, falo! Lembro, lembro, lembro! Acho que
o fato da clínica fechar e essa ansiedade da espera pelos
nossos filhos, está me angustiando. Minha cabeça está
um turbilhão!
ROSA SENTA-SE NA CADEIRA DE BALANÇO.
ROSA
Já falei que não quero ser transferida para outra clínica!
Não vou! Eu sei me virar sozinha!
ROSA LEVANTA-SE E VAI EM DIREÇÃO A PORTA.
ROSA
Seu Claudio!... Ô, seu Claudio! O senhor já foi? Não tenho
nada com ele, viu Antônio? Enfermeira!... Enfermeira!...
Como as coisas devem ter mu-dado, não é mesmo?... Enfermeira! Alguma notícia dos meus filhos?...
ROSA ANDA PELO PALCO.
ROSA
Queria ser mais decidida como eu era! Como as pessoas
mudam com o passar dos tempos. Eu mudei! Tenho certeza que mudei! Até hoje não acre dito ter ficado passivamente tanto tempo nesse lugar! Lembro que dificilmente eu me amedrontava diante de qualquer situação!... Mas
o que teria me feito ficar desse jeito? Tão indecisa, tão
angustiada, tão sem saber o que fazer?
BATEM FORTE NA PORTA. OUVEM-SE VOZES. BARULHO DE CARRO.
ROSA VAI ATÉ A JANELA.
ROSA
Tchau, Dona Cleide! Depois que eu for pra casa dos
meus filhos, eu lhe ligo pra marcar uma visita!
ROSA VOLTA A DIRIGIR-SE AO MANCEBO.
ROSA
Olha aí, Antônio, mais uma já foi, e nada dos nossos filhos!
ROSA APANHA NOVAMENTE A CARTA, RASGA O ENVELOPE, MAS NÃO
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ABRE O PAPEL QUE ESTÁ DOBRADO. RECOLOCA-A ENTRE OS SEIOS.
BATEM A PORTA.
ROSA
Eu não vou! E não adianta insistir, que hoje não vou tomar
remédio nenhum! Chega!... Eu nunca fui de tomar remédio! Antonio não gosta que eu fique tomando remédio! Fala pra eles, Antônio! Conta que você não deixava tomar
remédio nem quando tinha uma dor de cabeça. E só foi
eu vir pra cá, que eles me entopem de comprimidos!...
Vou contar um segredo: Acho que estou viciada, viciada,
viciada... Mas, olha só, Antônio! Não conte pra ninguém!
(ROSA VAI ATÉ O ARMÁRIO E COMEÇA A TIRAR
COMPRIMIDOS DOS BOLSOS DAS ROUPAS E JOGA
PELO CHÃO) Escutem só vocês aí fora! (ROSA VAI ATÉ
A PORTA) A minha filha vem me buscar e nunca mais
vou tomar remédio na minha vida. Meu remédio vai ser
cuidar dos meus netos, viu, seu viciadores! (ROSA VOLTA E COMEÇA A PEGAR OS REMÉDIOS NO CHÃO)
Porque eles, são uns viciadores de remédio, viu Antônio?
E viciam a gente pra ganhar dinheiro, eu sei de tudo!
(GRITANDO) - Vocês acham que estou caducando, mas
eu escuto a conversa de vocês, viu! (IMITANDO A ENFERMEIRA) - Dá esse remedinho pra ela que ela fica
calminha!... Aqui pra vocês, ó! (E FAZ O GESTO DE UMA
BANANA).
VOLTA ATÉ A PORTA E GRITA.
ROSA
Eu não vou tomar remédio nenhum! Eu vou encontrar os
meus netos!
ROSA SE SENTA NA CADEIRA DE BALANÇO. BALANÇA RÁPIDO, DEMONS-TRA NERVOSSISMO.
ROSA
Você acha que eles vêem, Antônio? Como eu queria cuidar dos nossos netos! Sonho anos com isso! Poder fazer
aqueles bolinhos de chuva, brincar com eles pelo chão,
enchê-los de mimos e fazer todas as suas vontades...
Talvez Deus tenha me castigado pela brincadeira de mau
gosto que fiz com você, viu Antonio? Mas, não merecia
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um castigo desse tamanho! Ser esquecida pelos próprios
filhos é muito castigo para uma mãe!
E ROSA REPETE A CANTIGA.
ROSA
Se essa rua, se essa rua
Fosse minha
Eu mandava, eu mandava
Ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas
De brilhantes
Para o meu, para o meu amor
Passar...
ROSA SE PÕE A CHORAR. AINDA EM SOLUÇOS, LEVANTE-SE E SE AJOELHA EM FRENTE À CAMA.
ROSA
Meu Deus, acho que não quero morrer ainda, não sei, acho que estou confusa. Não, acho que é melhor morrer
mesmo, a solidão não é uma boa companheira. Espere só
um pouco, meu Deus!
ROSA LEVANTA-SE, VAI ATÉ O ARMÁRIO E APANHA UM VESTIDO CHIQUE E SE VESTE.
ROSA
Se for pra eu morrer, preciso estar linda, não é mesmo
Antônio? Olha só isso, Antônio! Esse vestido ainda está
novinho, nunca tive coragem de usar! Você me comprou
para gente comemorar quarenta anos de casamento, os
quarenta anos mais felizes de toda minha vida, mas pra
tristeza da minha vida, isso não chegou a acontecer! Nunca tive coragem de vesti-lo, mas agora, a ocasião merece,
afinal, estou indo ao encontro de nossos filhos, nossos
netos... Aposto que vai ser uma surpresa daquelas! (IMITANDO ANTONIO) – Adoro te ver bonita, alegre, sorridente!... Isso mesmo, Antonio, chega dessa melancolia!...
Por onde andam meus batons, minhas maquiagens, minha alma que transbordava de felicidade? Preciso sorrir!
Lembra da minha gargalhada, Antônio? (COMEÇA A RIR
ATÉ DAR UMA GARGALHADA)...
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ROSA ABRE AS GAVETAS DO ARMÁRIO, REVIRA SUA MALA, A PROCURA DE SUAS MAQUIAGENS. O BARULHO DE MÓVEIS ARRASTANDO
CONTINUA.
ROSA
Por onde andam minhas pinturas?... Acho que não te contei essa história, Antonio! Me lembro de uma vez, estava
perto dos meus quinze anos, re-solvi passar uma maquiagem no rosto e, quando meu pai me viu com a cara pintada, me deu um tapa que rodei e me estatelei no chão.
(REPETE O GESTO). - O que eu fiz, papai? (LEVANTASE) Meu pai era uma pessoa boa, mas quando ele bebia,
ficava transtornado, nunca admitiu que nem eu, nem a
mamãe, usássemos maquiagem no rosto. (COMO FOSSE O PAI) - Onde vais desse jeito? És vagabunda? E era
só um batom, coisa pouca, servia mais para proteger os
lábios, do que realçar o rosto... Mas, chega de tristeza!
Preciso de alegria, não é, meu amor?
ROSA APANHA O MANCEBO E COMEÇA A DANÇAR UMA VALSA.
ROSA
Preciso confessar uma coisa: Há muito tempo eu não me
lembrava de certas coisas! Não sei como me veio esse
turbilhão de recordações, mas estou sentindo uma sensação deliciosa! Ter ficado sem tomar aqueles remédios me
fez bem! Poder lembrar de você, sempre me faz bem!
Dança Antônio, Dança!
ROSA VAI DANÇANDO POR TODO PALCO, FELIZ, CANTAROLADO UMA
VALSA.
ROSA
Sabe, Antonio, acho que ainda posso viver! Acho que vou
esperar um pouco pra morrer!... Desculpe, Antonio! Acho
que vou recomeçar!... Mas, olha só Antonio! Eu sempre
vou te amar, pra sempre!... Não quero que você sinta ciúmes de mim!
OUVE-SE O TELEFONE TOCAR LÁ FORA. ROSA PÁRA DE DANÇAR,
LARGA O MANCEBO E CORRE ATÉ A PORTA.
ROSA
Enfermeira!... Dona Maria!... É para mim?
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ROSA VAI ATÉ A JANELA, OLHA, MAS NÃO RECONHECE NINGUÉM.
ROSA
Acho que não é aqui!... Ô Antonio, levanta desse chão!
Que você está fazendo ai?
ROSA COLOCA O MANCEBO DE PÉ, VAI E VASCULHA SUA BOLSA, ONDE ENCONTRA SEU ESTOJO COM AS MAQUIAGENS. CAMINHA E SE
PÕE EM FRENTE AO ESPELHO.
ROSA
Hoje eu vou ficar mais bonita do que nunca! Vou remoçar!
Quero que quando nossos filhos chegarem, me encontrem bem! Vou ficar linda! Vou... Quando a solidão aperta,
a gente perde o juízo, não é mesmo? Eu tive uma vida feliz! Eu tenho coisas boas para lembrar!... Quando eu engravidei do primeiro filho, fui a mulher mais feliz do mundo! Primeiro: por sentir aquela nova vida crescendo dentro
de mim. Segundo: pela satisfação de ter dado um filho
homem, pra o meu Antônio. Lembra como você ficou feliz,
Antonio? (IMITANDO ANTONIO) – Obrigado querida, obrigado!... Olha só? Vai se chamar Antonio! E quando
nasceu nossa filha Tereza? Você ficou numa felicidade
só! (IMITANDO ANTONIO) – Flores para mãe mais linda
do mundo! (ROSA FAZ QUE PEGA O BUQUÊ)... Meus filhos me adoravam! (ROSA SE DEIXA ENTRISTECER
NOVAMENTE E RABISCA O ESPELHO COM BATOM).
ROSA ABRE A GAVETA DO PEQUENO CRIADO-MUDO E PEGA ALGUMAS FOTOS, SENTA-SE NA CAMA.
ROSA
Toninho sempre foi um menino inteligente! Tereza sempre
foi uma menina linda! Por que vocês me esqueceram aqui, meus filhos? Por quê? Eu não vou dar trabalho pra
vocês! E posso ajudar a cuidar dos seus filhos! Contar
histórias, assim como eu fazia com vocês!... E posso contar todas aquelas histórias que contei pra vocês! Levá-los
ao parque, ao circo, ao teatro, ao cinema... Ai meu
Deus!...
BATEM A PORTA, ROSA SE AGITA. CORRE ATÉ A PORTA E VOLTA AO
CENTRO DO PALCO.
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ROSA
Eles chegaram Antonio, chegaram!... Espera! Já estou indo! Preciso guardar as coisas! É tanta coisa que acabei
deixando tudo desarrumado no quarto... Enfermeira,
manda ela esperar!
ROSA VAI ATÉ O ESPELHO NOVAMENTE E COMEÇA A SE MAQUIAR.
ROSA
Só mais um minutinho! Preciso retocar o batom!...
ROSA APANHA NOVAMENTE A CARTA. SEGURA FIRME NA MÃO, MAS
NÃO ABRE. VAI DE NOVO ATÉ A PORTA E VOLTA.
ROSA
Já estou indo!... Lembra como você ficava uma arara comigo, não é mesmo Antonio? Toda vez quando a gente tinha que sair, eu trocava a roupa mais de mil vezes. No
verão, você suava tanto, que de tanto eu trocar de roupa,
você acabava sempre tendo de trocar a camisa que ficava
toda suada. Engraçado, me lembrei do dia em que você
me levou para conhecer sua família. Uma família distinta,
Seu Onofre, um cavalheiro! Homem elegante, sempre
bem vestido. Não admitia de jeito nenhum que qualquer
homem que fosse, andasse pela sua casa sem camisa.
Seu irmão Alberto que era um sarrista sem tamanho, fazia
questão de desfilar sem camisa, só pra irritar o seu pai,
lembra? Seu pai ficava sempre sem graça, e seu irmão
fazia de propósito sempre que eu estava lá. Não tem importância, seu Onofre! Eu já sou de casa! (IMITANDO
SEU ONOFRE) - Isso é falta de educação, Alberto, respeite a moça! Já a sua mãe, Dona Candinha sempre foi
bem cordial comigo. É verdade que nunca chegamos a
ser grandes amigas, mas também nunca tivemos nenhuma desavença. Nunca se intrometeu no nosso casamento. Éramos uma família feliz, não éramos, Antônio?
OUVE-SE VOZES, ROSA VAI ATÉ A PORTA E VOLTA DECEPCIONADA,
SE PÕE A CHORAR.
ROSA
Está vendo, Antônio, não são eles! Eles não vêem, eles
não vêem! Acho que é melhor morrer!
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AS VOZES AUMENTAM DE VOLUME. ROSA VAI ATÉ A PORTA E ESBRAVEJA.
ROSA
Calem essa boca! Não me encham!... E agora, o que eu
vou fazer? A culpa é sua Antônio!... Preciso tomar meu
calmante!... Droga! Quando a gente envelhece, vira estorvo, ninguém quer! Eu preciso tomar coragem pra fazer alguma coisa da minha vida! Vou ter que sair daqui de
qualquer jeito. E agora, Rosa? Vai mergulhar na solidão
ou vai criar coragem, se levantar e caminhar sua vida?
Chega de fugir, não é mesmo? Se seus filhos não te querem, e daí? Mas, se você quer morrer, precisa morrer logo, aqui, agora! Assim, não atrapalha a mudança!... O
que você acha, Antônio?
ROSA APANHA A MALA, PÕE SOBRE A CAMA, VAI AO ARMÁRIO APANHA MAIS ROUPAS E RECOMEÇA A ARRUMAR A MALA.
ROSA
Quanto tempo eu tenho? Eu tenho tempo pra me refazer?
Claro que tenho! Não posso e não vou me entregar desse
jeito!... Quando meu pai morreu, eu suportei tudo! Quando minha mãe morreu, eu suportei tudo! Por que ficar
nessa vidinha? Já perdi tempo demais! Sabe o que são
dez anos jogados pela janela? Porque é esse o tempo
que estou aqui, não é Antônio? Quantas coisas eu deixei
de viver por me deixar convencer pelos meus filhos? Aqueles ingratos! Eles vão ver do que eu ainda sou capaz!
Quando a ditadura te prendeu Antônio, eu cuidei deles, fui
pai e mãe! Nunca, nunca deixei que faltasse qualquer coisa que fosse pra eles! Eles não puxaram você, Antônio!
Pra proteger os seus amigos, você passou três anos preso pela ditadura militar, lembra? (ROSA CORRE ATÉ A
PORTA E GRITA) Seus ingratos! Como puderam largar
sua mãe aqui! (ROSA VOLTA A ARRUMAR A MALA)
Mas não tem importância, já que estou abandonada
mesmo, vou me agarrar a vida e seguir em frente! Graças
a Deus, eu tenho saúde, tenho meus calmantes, tenho
minhas lembranças, tenho a aposentadoria, tenho a memória sadia, tenho vontade, tenho coragem, eu vou!...
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ROSA FECHA A MALA E ARRUMA A CAMA. OUVI-SE BARULHO DE
CARRO. ROSA VAI ATÉ A JANELA, ACENA A ALGUÉM, MAS VOLTA DECEPCIONADA.
ROSA
Não eram eles, Antônio!... Sabe de uma coisa? Eu não
me lembro muito bem o dia em que eu cheguei aqui! Você
lembra?... Só me lembro que me disseram que estava em
depressão, mas por quê? Acho que perdi um pouco a noção das coisas! Lembro que nos primeiros anos, nossos
filhos vinham me ver, me davam força, me reanimavam,
traziam até os nossos netos, não era isso que acontecia,
Antônio?... Mas de repente, de uma hora pra outra, não
vieram mais! Foram me abandonado aos poucos... O que
aconteceu, hein Antônio?
ROSA AGARRA O MANCEBO E COMEÇA A SACUDI-LO. DEPOIS O EMPURRA AO CHÃO. SE ARREPENDE.
ROSA
Meu Deus! Perdão Antônio, perdão! (ROSA VAI E LEVANTA O MANCEBO DO CHÃO) Eu ando muito nervosa! Será que eles não vêem, Antônio? (ROSA CORRE
ATÉ A PORTA) Enfermeira Maria!... Enfermeira! Meus filhos já ligaram?...(OUVE-SE PASSOS E MURMURINHOS, ROSA VOLTA CONTENTE) Devem ser eles, Antônio! Eu sabia que eles não me deixariam aqui! Chega do
abandono desse lugar frio! Vou passear pelas ruas, conhecer pessoas, me relacionar de novo. Só não quero um
novo amor! Meu amor foi único e será eterno! (ROSA SE
DIRIGE AO MANCEBO) Não se preocupe, viu Antônio?
Vou logo procurar a Berenice, ela sempre foi uma boa amiga, a única que de ano em ano vinha me ver! Sempre
me chamou para morar com ela! Ela sim, sempre foi amiga! Foi ela que teve a coragem de me contar que nossos
filhos venderam tudo! A nossa casinha! (FICA NERVOSA)
Sabia, Antônio? É, os teus filhos tiveram a coragem de
vender nossa casa!... Como eu pude deixar? Berenice
sempre me dizia: (IMITANDO A AMIGA) Não é bom ficar
mergulhada em lembranças num lugar frio como esse,
você precisava reagir!... Mas, nunca consegui reagir, ainda mais quando soube que os nossos filhos venderam tu14
do!... A última vez que a Berenice esteve aqui me disse:
(IMITANDO A AMIGA) Vamos! Vem morar comigo! Eu
disse: Não! Tenho certeza que meus filhos vão me tirar
daqui! E esse dia vai ser hoje! Tem que ser!
OUVE-SE BARULHO DE MÓVEIS SENDO ARRASTADOS. ROSA ESTÁ
NERVOSA. ABRE NOVAMENTE A MALA, CONFERE AS ROUPAS. VAI ATÉ
O ARMÁRIO. SE PÕE EM FRENTE AO ESPELHO.
ROSA
Estou me sentido como no dia do nosso casamento! Ter
que começar uma nova vida, sair da casa dos meus pais,
dividir os dias e as noites com uma outra pessoa... Olha
só isso, mamãe! O vestido não me entra, será que eu engordei? Mamãe!... Mamãe!... A grinalda arrebentou! Olha
só isso, o penteado está horrível! Assim eu não quero! Tinha que chover? Justo hoje! Olha só, parece que está caindo o mundo! (ROSA IMITA AS VOZES DAS PARENTES QUE ESTAVAM NA CASA NO DIA DO SEU CASAMENTO) Essa calcinha é minha! Ei, devolve o meu sutiã! Alguém viu a toalha?... Não enche! Mamãe, não consigo fechar! Olha a hora! Já estou mais de duas horas atrasada para chegar a igreja!... (ROSA PEGA O MANCEBO E ANDO COMO ESTIVESSE ENTRANDO NA IGREJA. TOCA A MARCHA NUPCIAL) Você está lindo, Antônio! Parece um príncipe!... A festa está linda, não está
Antônio? (ROSA FAZ QUE VAI JOGAR O BUQUÊ) Olha
lá, vou jogar o buquê!... É um!... dois!... e já vão os... dois
e meio... e agora... três! (ROSA FAZ O MOVIMENTO DE
JOGAR O BUQUÊ) Raquel!... A Raquel pegou o meu buquê!.... Nunca mais ouvir falar da Raquel!... Lembra dela
Antônio? Me lembro que logo depois do nosso casamento, ela mudou de cidade, mas, nunca mais soube dela.
Ah, agora me lembro! A última vez que soube dela, me falaram que ela continuava solteira! E dizem que quem pega o buquê casa logo! Eu nunca acreditei nisso!... Agora
estou me sentido como que se fosse casar novamente!
Dá medo, mas é bom!...
ROSA APANHA A CARTA ENTRE OS SEIOS, ABRE, PASSA OS OLHOS,
PÔE AS MÃOS NOS OLHOS E COLOCA A CARTA SOBRE A MESINHA AO
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LADO DA CAMA, VAI ATÉ A PORTA E GRITA.
ROSA
Maria!... Enfermeira!... Ainda falta muita gente para ir embora?... Se meus filhos chegarem, me avise logo, viu?
ROSA VAI ATÉ O ESPELHO E COMEÇA A CANTAROLAR UMA MARCHINHA DE CARNAVAL.
ROSA
Lembra, Antônio?... (APANHA O MANCEBO E COMEÇA
A DANÇAR PELO PALCO CANTAROLANDO MARCHINHAS) Engraçado! Por que será que me lembrei dessa
música logo hoje?... Deve ser de alegria! Carnaval é uma
coisa tão alegre que... Como a gente gostava de carnaval,
não é Antonio? Todo ano a gente ia para o clube, você
sempre de calça branca, camisa florida e um quepe de
marujo e eu, me vestia sempre de melindrosa! (IMITANDO ANTÔNIO) - Já disse que não gosto que você use essa roupa!... Já vai fazer bico? Olha só seu bico!... Vamos
pro salão, Antônio! (ROSA TRAZ O MANCEBO PARA
JUNTO DE SI COMO SE APERTASSE ALGUÉM) Ai,
Antônio! (IMITANDO O ANTÔNIO) Chega mais perto!
Sabia que você fica demais de melindrosa? Gostosa! Pára Antônio, já estou ficando toda vermelha de vergonha!
Pára com isso! Velho assanhado!... Não belisca aí! Está
todo mundo olhando. (IMITANDO O ANTÔNIO) Ninguém
tá vendo! (E CONTINUA DANÇANDO COM O MANCEBO PELO PALCO) Lembra daquele ano, Antônio? É, o
ano e que a gente se casou!...Acho que não, nós já tínhamos uns três anos de casado... Onde você foi mesmo? No bar ou ao banheiro? Não consigo lembrar... Gozado, quanto tempo eu não lembrava dessa história!... E
você, Antônio? (ROSA SOLTA O MANCEBO E DANÇA
SÓ, CANTAROLA) “A estrela Dalva... (COM SE AVISTASSE ALGUÉM) - Oi, quando tempo? Não, não estou
sozinha não! O Antônio foi pegar uma bebida... Você está
bonito de Sheik, hein?... Não Antônio, não!... (ROSA FICA
NA FRENTE DO MANCEBO COMO QUEM TENTA APARTAR UMA BRIGA) Pára! Essa briga não vai levar a
nada!... Que briga mais feia!... Ele não fez nada! Coitado!
É o meu amigo Agostinho!... Pára com isso Antônio...
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Como você é esquentado, hein Antônio?...
ROSA APANHA O MANCEBO, CANTAROLA UMA MARCHINHA E VAI
DANÇANDO PELO PALCO.
ROSA
Quanto tempo nós não íamos a um baile de carnaval!... E
as matinês? Lembra, Antônio? Depois que as crianças
nasceram, você fez sempre questão de levá-los a matinê.
Vestia o Toninho sempre de pirata e a Tereza de bailarina... E saía com os dois pelo salão, jogando confetes e
serpentinas... (ROSA FAZ OS MOVIMENTOS DE QUEM
JOGA CONFETE E SERPENTINA) Engraçado eu me
lembrar disso justo hoje! A última vez que nós fomos a um
baile de carnaval, quando foi, hein Antonio?... Quando foi
mesmo? Não consigo me lembrar direito!...
E DANÇA ABRAÇADA AO MANCEBO CANTAROLANDO A MARCHINHA.
ROSA
Isso!... Claro!... Foi isso, sim!... Tenho certeza! Agora estou me lembrando!... Você estava feliz como nunca naquele carnaval! Uma felicidade que transbordava! Me disse até assim: (IMITANDO O ANTÔNIO) - Hoje não vou
nem beber! Hoje vai ser o carnaval das nossas vidas, não
vou nem beber para não deixar a tristeza chegar perto. E
lá fomos nós! Você com a sua calça branca, sua camisa
florida e seu quepe de marujo e eu é claro, de melindrosa.
Foi a primeira vez que você não se importou com a minha
fantasia. E como dançamos pelo salão... Ficamos no baile
até o fim, e saímos dançando e cantando pelas ruas até
chegar no carro... Aí meu Deus! Agora me lembro de tudo! (ROSA JOGA O MANCEBO E CORRE DESESPERADA PELO PALCO. A MARCHINHA VAI TOCANDO
BAIXINHO) Entramos no carro, cantávamos, riamos...
Você levava o carro bem devagar, até que... Irresponsável!... Irresponsável! Aquele carro veio e acertou em cheio... Eu me lembro! Você caiu no meu colo, sua calça
branca, estava vermelha de sangue... Só escutei: Foge
que o homem morreu! Foge que o homem morreu! Olhei
aquele menino com o braço sangrando saindo correndo...
Você no meu colo... tudo rodando... passei a mão na mi17
nha cabeça, vi sangue... Olhei você... Antonio!... Antonio!... Tudo escureceu!... Como eu pude me esquecer disso? Aquele moleque irresponsável matou você Antonio!...
Que dor meu Deus!...Aquela cena...
ROSA DESABA NO CHÃO A CHORAR. A MÚSICA PÁRA.
ROSA
Irresponsável!... Moleque irresponsável!...
AOS POUCOS ROSA, COM O APOIO DO MANCEBO, VAI SE LEVANTANDO. PÕE-SE DE JOELHOS.
ROSA
Perdão, meu Deus!... Perdão, Antonio!... Eu não pude me
despedir de você!... Toninho me contou que fiquei em estado de choque... Eles me esconderam tudo! Eu não lembrava!... Por que não me levaram pra casa? Será que foi
por isso que me trouxeram pra cá? Como eu não pude me
despedir de você?... Eles tinham que deixar!... Eu tinha
que ter me despedido de você! Perdão, Antônio!... Quanto
tempo essas lembranças ficaram escondidas?... Sempre
evitavam falar na sua morte, agora entendo!... Por você,
meu amor, vou mudar minha vida! Eu vou sair daqui!
Mesmo que eles não venham!
OUVEM-SE BARULHOS. ROSA VAI ATÉ A PORTA E COMEÇA A SOCÁLA.
ROSA
Cadê meus filhos!... Cadê meus filhos!
ROSA VOLTA, ENXUGA O ROSTO, PEGA A MAQUIAGEM, VAI ATÉ O ESPELHO, SE ARRUMA.
ROSA
Eu vou!... Vou sim!
ROSA APANHA A CARTA. DOBRA-A NOVAMENTE E SEGURA FIRME NA
MÃO.
ROSA
Acho que saí daquele acidente hoje!... Eu juro que vou recomeçar! Só preciso encontrar um jeito de retomar minha
vida! Quem sabe procurar minhas velhas amigas que não
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se entregaram a velhice, a solidão? Daqui pra frente, minha vida vai ser outra! Ainda tenho um pouco de saúde, e
vou dar um jeito de me sustentar, não sei como, mas
vou!... Só uma coisa já decidi: Não vou para outra clínica,
isso não vou!... Você não acha que estou certa, Antônio?... Só preciso me cuidar!... Talvez cortar o cabelo! Ou
quem sabe passar uma tintura? Vou ficar loira!... Não,
Ruiva!... Acho que não vou ficar bem! Melhor eu pintar o
cabelo de preto, afinal, essa sempre foi a cor dos meus
cabelos... Preciso comprar uns vestidos novos, esses
meus estão todos sem vida... Confesso que estou com
medo! Talvez, por isso, me escondi aqui, aceitei o abandono! Não, eu não me escondi, me esconderam aqui, ou
melhor, me abandonaram aqui!... A clínica vai fechar, já
não escuta a voz de quase ninguém... Eu ainda não acredito que meus filhos não vêem me buscar! O que eu faço?
ROSA CONFERE DE NOVO A MALA. PEGA O TERÇO PENDURADO NA
PAREDE E COLOCA DENTRO DA MALA. SENTA-SE NA CADEIRA DE BALANÇO E RESOLVE LER A CARTA.
ROSA
“Olá Rosa! Quanto tempo, não é mesmo? Fiquei muito
triste quando soube do acidente com você e o Antônio... A
gente gostava tanto de carnaval, lembra?... Fiquei sabendo que a Clínica em que teus filhos te colocaram logo depois da morte do Antônio, vai fechar, então... Não me entenda mal, viu Rosa? Eu sei que seus filhos te abandonaram aí, venderam tudo o que vocês tinham, e o pior! Acho
que você nem sabe. Eles te interditaram!... (ROSA PÁRA
POR UM SEGUNDO, RESPIRA FUNDO, E CONTINUA)
Como eu tinha certeza que eles não viriam te buscar, quero que você me espere, que antes da clínica fechar, estarei chegando por aí para te apanhar!... Estou viúvo também, e tenho um cantinho para você na minha casa, não
precisa se preocupar, não quero nada de você! É só pela
nossa amizade!... Ah, ainda sou advogado, e vou te ajudar a cancelar a interdição que teus filhos pediram... Até
já!... Um beijo carinhoso... Agostinho!
OUVEM-SE BARULHOS DE JANELAS SENDO FECHADAS. OUVE-SE UM
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CARRO ESTACIONANDO. ALGUMAS BUZINADAS. ROSA LEVANTA-SE
VAI ATÉ A JANELA, ACENA, VOLTA E PÕE-SE EM FRENTE AO ESPELHO.
ROSA
Agostinho!... Não acredito!...
NOVAS BUZINADAS. ROSA CORRE ATÉ A JANELA E ACENA. ROSA
VOLTA, ESTÁ SURPRESA.
ROSA
Nunca pensei que ele gostasse tanto assim de mim!
ROSA VOLTA ATÉ A JANELA, ESTÁ ANSIOSA.
ROSA
Você veio me buscar, Agostinho?
VÃO SENDO DADOS TOQUES DE BUZINAS, COMO SE FOSSE UMA BREVE CONVERSA. ROSA SE MOSTRA FELIZ. DANÇA.
ROSA
Isso, Rosa! Agora você pode ir!... Você ainda tem coragem! Já que você tem que mudar, mude de verdade! Coragem! Coragem, Rosa!... Você não acha que perdeu
muito tempo aqui dentro?... Não foi em vão o tempo que
passei aqui! (NOVA BUZINADA) Já vou!... Ai, meu
Deus!... Não foi em vão! Passei pra poder ter o meu Antonio sempre perto de mim, das minhas lembranças! (ROSA
CORRE NOVAMENTE ATÉ A JANELA, ACENA E VOLTA) Mas vou voltar a ser quem eu era!... Agostinho, já estou indo!... Bem que a Berenice dizia que ele no fundo
sempre foi apaixonado por mim!
ROSA VAI ATÉ A JANELA. NOVAS BUZINADAS COMO RESPOSTAS PARA OS ACENOS.
ROSA
Já estou indo Agostinho!
ROSA VOLTA E SE AJEITA.
ROSA
... Não pensei que pudesse ter uma nova chance de viver!...
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OUVEM-SE NOVAS BUZINADAS. BARULHOS DE PORTAS E JANELAS
FECHANDO. ELA APANHA AS FOTOS SOBRE A CAMA, APANHA A MALA, OLHA EM VOLTA COMO QUEM SE DESPEDE DO LUGAR.
ROSA
Estou indo, Agostinho!... Adeus! Agora vou olhar a vida
daqui pra frente, pois ainda tenho um sonho: voltar a ser
feliz! E sei, que apesar de tudo, ainda existem flores no
jardim!
ROSA SAI DECIDIDA. APAGAM-SE AS LUZES. FECHAM-SE AS CORTINAS.
- FIM -
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AINDA EXISTEM FLORES NO JARDIM!