Nem tudo é identidade: o desafio de letrar
Maria Cecilia Mollica (UFRJ/CNPq/FAPERJ/IBICT)
Samara Moura (PIBIC/UFRJ)
Thaís Pedretti Lofeudo (PIBIC/UFRJ)
Foco de pesquisa
Este artigo discute questão antiga na Linguística segundo a qual os falantes
lançam mão de empregos linguísticos identitários para marcar sua origem sócio-histórica
ou procuram evitá-los, em geral motivados por fatores estigmatizantes, ou por
necessidade de ascender socialmente, ou mesmo para experimentar sentimento de
pertencimento a comunidades etárias, antropológicas e de outra ordem. Neste estudo,
mostramos que algumas marcas, aparentemente regionais, ou rurais, não foram ou não
são mais traços caracterizadores de perfis sociolinguísticos dos usuários.
O problema focalizado mantém estreita relação com o processo de letramento,
uma vez que a “palavra de ordem” a partir de Paulo Freire e de autores mais recentes
considera o conhecimento prévio do aprendiz e seus traços mais intrinsecamente
caracterizadores um arsenal de que não se pode dispensar no letramento escolar. De fato,
é verdade e proveitoso partir do que o aprendente tem armazenado, seja de forma inata,
seja por meio da experiência, e introduzir habilidades específicas de leitura e escrita.
No entanto, há que se conhecer muito bem o que o aluno realmente traz em sua
“bagagem de mundo” para lograr êxito na ensinagem, já que resultados de pesquisa na
área vêm demonstrando alguns equívocos do professor ao identificar o aluno
sociolinguisticamente de forma pouco clara. Nesse sentido, temos o objetivo de atestar
que achados de investigação científica por vezes surpreendem até fortes intuições.
Este é o caso do emprego do pronome tudo, quantificador indefinido que, no
contexto usado e em certas construções, ganha valor de intensificador. Eis um caso,
alegado como marcador dialetal, processado por informante da amostra de Natal, do
Projeto Discurso & Gramática, “tomei umas seis injeções... meus braços já
tava tudo dolorido...”, extraído do site http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/.
Assim, após proceder à breve leitura sobre quantificadores indefinidos em
gramáticas atuais, focalizamos neste texto as construções em que tudo quantificador
apresenta também, em alguns casos, valor de intensificador. Paralelamente, destacamos
outras construções do seu emprego com distintos valores funcionais no português
coloquial e não coloquial.
Temos a meta de confirmar que certos usos não são específicos de pessoas que
residem no Nordeste e em uma dada zona rural, como alguns chegariam a pensar, de
modo a demonstrar, assim, a importância de (a) determinar, com razoável grau de certeza,
os traços linguísticos de identidade de comunidades discursivas e (b) de letrar,
consequentemente, com bases sólidas e provenientes de investigações científicas. Em
última análise, procuramos questionar, e por que não dizer “quebrar”, o que ficou
tradicionalmente conhecido como “educação culturalmente sensível” (Bortoni-Ricardo,
2004).
Questões, hipóteses e objetivos
O
corpus
em
rede
que
constituímos,
postado
e
acessível
em
http://www.stellabortoni.com.br/, apresenta uma única evidência desse emprego
produzido por uma mulher, proveniente da Paraíba, agora já com 57 anos, “o piolho tudo
enganchado”, mesmo tendo chegado ao Rio de Janeiro com 12 anos, enquanto os demais
falantes da amostra, também de origem rural e/ou proveniente da região Nordeste do
Brasil, não apresentam construção similar.
O primeiro impulso após o exame das construções empregadas pelos migrantes no
corpus em rede, acima mencionado, é o de afirmar que todos os falantes da amostra
apresentam orientação para o prestígio (Labov, 2008 [972]), quando optaram por
“deixar/desistir” de construções “reveladoras” do lócus sociogeográfico de origem e
esforçaram-se por acomodar-se (Giles, 1980) às novas formas linguísticas de
comunidades de fala com as quais passaram a interagir, sob a alegação de serem mais
aceitas e, deste modo, obter mais oportunidades na vida. De fato, esses são fortes motivos
para que processos de contaminação linguística se desenvolvam, conforme mostram os
estudos de Trudgill (1989), Bortoni-Ricardo (2010[1985]) e muitos outros.
Em oposição, também segundo William Labov, os falantes podem optar por
manter seus traços sociodialetais, de forma consciente e voluntária, se os interesses estão
justamente voltados para marcar suas identidades e, desse modo, ser identificados e
respeitados. Assim, o autor oferece duas vias que se opõem diametralmente.
Uma das questões, no entanto, que importa esclarecer é a de verificar a
procedência da dualidade da equação laboviana, ao levantar a hipótese de que, muito do
que se diz que caracteriza uma região, linguisticamente falando, pode encontrar-se em
outras comunidades de fala, de modo que uma posição dual nem sempre necessariamente
confere com a realidade linguística no Brasil e até em outros países em que se falam o
Português.
De fato, os informantes da amostra D&G em Natal, dentre outros empregos,
utilizam o tudo com valor de intensificador, com função semelhante à utilizada pela
informante da amostra em rede, exemplificado acima. Vejam-se os exemplos (1) e (2)
extraídos dessa amostra.
(1) vamos buscar uma solução ... quando reúne as cabeças tudo junto ninguém mais
sabe ... entra em desespero e diz ... “vamos deixar a corda correr solta” ou então
demite ...;
(2) lúcido de novo ... aí a gente veio ... no caminho ... o carro ficava no meio da pista
... no meio da pista e a gente tudo preocupado ... parecia que eu que vinha dirigindo
sabe?
(3) minha mãe pedindo socorro no meio da rua ... só quem ficou assim ... acordada foi
minha mãe e o Emerson ... e a gente tudo morto ... como mortos ... minha mãe pedindo
socorro ... aí passou um carro de reportagem ...
(4) mas foi uma luta muito grande ... tomei umas seis injeções ... meus braços já tava
tudo dolorido ...
Os exemplos de (1) a (4) mantêm similaridade funcional com o tudo intensificador em
contexto sem concordância tal como a nossa informante produziu. Contudo, como se nota
nas ocorrências (5), (6), (7) e (8), extraídas da amostra D&G no Rio de Janeiro, esse tipo
de intensificador, produzido no mesmo contexto, não é específico dos falantes
provenientes do Nordeste.
(5) é/ não... dois anos depois de:: de/ você se forma... você começa a pagar as
coisas tudo corrigidas... entendeu?
(6) escola... está péssima... escola está péssima... paredes muito... pixadas... os
banheiros tudo arrebentado... que não sei o quê... e... os próprios alunos mesmo...
sabe? tanto do dia tanto da manhã... que fazem isso... sabe
(7) aí... o cara “não... não... o senhor vai comigo...” que não sei o quê...aí o meu pai
“não e... e... os policiais/ os ladrões estão tudo armado aí dentro do ônibus... eu vou
me arriscar? nada...” que não sei o quê...
(8) e::... tem uma subida muito estranha lá que parece... cheio de favela... tá
entendendo? as casas tudo mal acabada... não tem nada... nada... concreto legal... tá
entendendo? muito... favela legal... tá entendendo?
Há, ainda, o tudo intensificador em que não há comprometimento de ordem flexional,
mas que apresenta estranheza e ou incompatibilidade entre os traços do adjetivo ruim,
como em (9).
(9) o namorado dessa ... do namorado dessa ... dessa moça ... é porque eu num me
lembro o nome ... aí fica tudo ruim a gente contando um filme assim ... se saber o
nome.
Encontramos também empregos um pouco ambíguos, em que tudo pode ter sua função
interpretada ou como intensificador (em ambiente também sem concordância) ou como
quantificador, ou receber valor resumitivo, equivalendo a todas as coisas, como na
expressão já congelada quebra tudo em que tudo vem posposto ao verbo e toma o lugar
de um objeto. Examine-se o trecho (10).
(10) porque os meninos são tudo desleixados ... num liga com nada ... deixa as portas
aberta ... quebra descarga ... quebra tudo ... aí mais à frente é o das meninas ... bastante
organizado ...
Este também é o caso do tudo em quebra tudo (10), todavia já diferente do encontrado
em (12) e (13) em que a tudo quebrado e tudo sujo são intensificadores usuais e aceitos
pela norma em expressões muito frequentes, tal como tudo arrebentado, tudo arrumado e
inúmeros empregos que poderiam também ser aqui listados.
(11) no começo do ano eram brancas ... hoje em dia tão todas riscadas ... rabiscada
pelos meninos ... que risca tudo ... é lá na sala ...
(12) os aramezinho pra colocar ... já tá tudo quebrado ... as paredes ... no começo do
ano eram brancas ...
(13) e a gente às vezes sai da aula tarde ... porque a gente fica limpando as carteiras
pra num deixar suja ... aí quando chega lá tá tudo sujo ...
É de se notar que a estranheza dos empregos de tudo, que parecem marcar ruralidade ou
rurbanidade (Bortoni-Ricardo, 2004), se deve à falta de concordância em (13) e à
combinação inusitada de traços em (14):
(14) tem dia que a gente limpa as carteiras ... deixa tudo branquinha ...
na sala da gente né ... funciona a quinta série... aí como tem menino pequeno
(15) ... aí bagunça tudo ... quebra as carteira ...
Note-se que o emprego em (15) já está incorporado em todos os falantes de todos os
estratos sociais com diferentes graus de letramento, assim como o uso em (16) já se
encontra ainda mais aceito, se projetamos um continuo de mudança em que a
aceitabilidade como critério fosse distribuída de um polo negativo a um polo positivo.
(16) tem o banheiro de homem e mulher ... aí tem:: aí tem:: a biblioteca ... aí o resto é
tudo sala ... cinco sa/ é ... dez sala de um lado ... aí no outro lado ... no outro lado ...
onze sala ... aí vai ... na ... na ... dez sala ... que passa ... aí tem a minha sala ...
(17) I: ah ... porque o lençol é bonitinho ... da cama ... adulto é tudo feio ...
O presente estudo objetiva demonstrar que: (a) traços que aparentam ser
característicos de comunidades de fala não o são necessariamente; (b) a funcionalidade de
tudo vai além das suas funções primárias de quantificador, intensificador, de pronome
indefinido; (c) nem todos os empregos de tudo são compreendidos e, alguns deles, em
acordo com a norma standard, são também empregados por falantes pouco letrados;
outros, porém, ocorrem em todos os níveis de letramento e nas modalidades falada e
escrita; (d) mediante o desafio de entender a complexidade de usos de tudo e seus
contextos, coloca-se então a questão de letrar, impondo-se a necessidade de discernir os
usos previstos daqueles em pleno movimento.
Ora, sabemos que, enquanto usuário e nativo de sua língua, o falante processa
mudanças que devemos entender. Urge que a qualificação de professores e alunos deva
acompanhar a dinâmica do sistema linguístico para ser implementada adequadamente.
Vale recorrer a Bechara que nos informa: “tudo refere-se às coisas consideradas em
sua totalidade ou conjunto e, normalmente, se apresenta como termo absoluto,
desacompanhado de determinado: Nem tudo está perdido e Põe a esperança em tudo.
Para o gramático, o seu emprego absoluto apresenta duas exceções: quando se combina
com os demonstrativos isto, isso, aquilo ou quando é seguido de oração adjetiva
substantivada pelo artigo: Tudo isso é impossível. Isso tudo é impossível. Onde você
comprou tudo aquilo? Desconhecemos tudo o que eles disseram. Em tais construções, o
demonstrativo funciona como núcleo do sintagma nominal e o indefinido como seu
adjunto, bem como da oração adjetiva substantivada.”
Os dados levantados nas amostras, porém, não apresentam empregos equivalentes
aos descritos. Os falantes pouco usam tudo conjuntamente com demonstrativos, mas com
outros dêiticos tipo aí. O exame de tais usam mereceriam outra pesquisa ainda mais
abrangente.
Multifuncionalidade de tudo e seu emprego em todo o território nacional
Na seção anterior, oferecemos ocorrências de tudo em apenas uma amostra da
região nordeste do país. O processo se torna mais instigante quando verificamos que, em
amostras mais antigas de regiões diferentes no Brasil, tudo ocorre em abundância, com
múltiplas funções.
Primeiramente, cabe a leitura atenta de alguns outros gramáticos atuais com o fito
de entender de que modo formas como todo, e suas flexões, e tudo são classificadas e
compreendidas.
Para Perini (2010: 302), todo e suas formas flexionadas se enquadra na classe de
artigos e predeterminantes. Segundo Perini, o artigo é um elemento que vem em primeira
posição, precedendo um núcleo nominal em exemplos como “uma menina”, ou
precedendo outro determinante, em “as duas pobres meninas”. Este é o caso semelhante
de “todas meninas” e “ todas as meninas” ou “ todas essas meninas”. Nada foi
encontrado sobre a forma tudo, sua classificação e valor na gramática. A análise de Perini
se atém a critérios estruturais.
Castilho (2010: 505-9) arrola a forma todo e seus derivados dentre os
quantificadores indefinidos. Várias classes, segundo o autor, operam para marcar
quantificação na língua, desde morfemas de plural, pronomes, advérbios quantificadores
e alguns itens do vocabulário, nos substantivos coletivos, por exemplo.
Por “indefinido” entenda-se mais amplamente desde um número
indeterminado de objetos (muitos dias) até uma quantidade indeterminada
deles (bastante água), na dependência de ser/contável/ou/não contável/ o
substantivo que funciona como núcleo do sintagma nominal respectivo. (p.
505).
Dentre os exemplos de quantificadores indefinidos, Castilho fornece as sentenças
na cidade todo mundo estava comentando o filme (DID SP 234), na cidade todas as
pessoas estavam comentando o filme, na cidade as pessoas todas estavam comentando o
filme, na cidade as pessoas estavam comentando o filme... todas (p. 506).
Alerta-nos Castilho que os quantificadores indefinidos integram uma classe
heterogênea por apresentar diversas propriedades, tais como: a de ser especificador no
sintagma, a possibilidade de mover-se ou não e, neste caso, há alteração de sentido, ou ter
movimento longo, colocando-se antes ou depois do núcleo, até mesmo ultrapassando os
limites do sintagma, sem alteração do sentido. Segundo Castilho (2010: 506), o
movimento longo tem sido descrito como flutuação de quantificadores.
No quadro 11.8, à página 506, Ataliba de Castilho lista os itens (quantificadores
indefinidos no português), indica se são ou não sujeitos a flexão, classifica-os com traço
positivo e negativo quanto à posição no SN e, finalmente, descreve as propriedades
semânticas de cada um. No quadro, todo pode receber flexão, pode se movimentar em
relação ao SN e possui propriedade semântica afirmativa. No entanto, tudo não é
flexionado, tem marca negativa de movimento quanto ao SN e possui traço afirmativo
quanto a propriedades semânticas.
Castilho enriquece a análise ao distinguir as propriedades gramaticais,
propriedades semânticas e propriedades discursivas dos quantificadores indefinidos (p.
507-9). No quadro 11.9, à página 508, todos figura como o único quantificador indefinido
que pode ocupar a primeira posição pré-nuclear no SN e ainda ocupar a segunda posição
coocorrendo com os (todos os) e, como outra opção, ocupar a terceira posição pré-nuclear
ao SN coocorrendo com os e meus (todos os meus).
Quanto às propriedades semânticas dos identificadores, conjunto unitário,
conjunto vazio e conjunto global, todo aparece na lista 1, do conjunto vazio, em que “o
quantificador especifica apenas um elemento do conjunto, variando o termo de acordo
com o traço semântico do substantivo” (p. 508). Castilho acrescenta também que pode
haver subclasses de quantificação universal, sendo exatamente o caso de todos.
Já em relação às propriedades discursivas, Castilho (2010: p. 509) afirma que “os
quantificadores indefinidos concorrem para que um texto tenha um caráter de
indefinitude, imprecisão”. Sintagmas nominais como alguma coisa, itens como alguém,
algum, negócio, coisa, forma, qualquer e similares são empregados para imprimir
imprecisão no processamento verbal. No quadro 11.10, à página 510, em que classifica os
especificadores, todos aparece como um quantificador, tal como dois, poucos, muitos,
sendo indefinido e não definido, como trinta, quarenta.
Castilho (2012: p. 117) retoma de forma mais didática tanto as noções quanto as
classificações já expostas em Castilho (2010). A exemplificação é farta nos casos de todo
mundo, todas as pessoas, as pessoas todas e o uso de todas num movimento longo, como
em “na cidade as pessoas estavam comentando o filme... todas.”.
Bagno (2011: 825) reúne como quantificadores as classes dos numerais e dos
pronomes indefinidos. Quanto ao numeral, não há qualquer razão de constituir uma classe
à parte que expresse quantidade exata, uma vez que é um constituinte do sintagma
nominal que pode ocupar a posição nuclear ou não nuclear. Os numerais ordinais
correspondem aos quantificadores definidos; já os pronomes indefinidos se classificam
como quantificadores indefinidos, de fato.
Á página 826, Bagno apresenta um quadro distinguindo os traços gramaticais e
semânticos dos quantificadores indefinidos, indicando-lhes a flexão positiva ou negativa
de gênero e número tanto quanto sua posição nuclear ou determinante. Inclui também os
traços semânticos, referindo-se ao do antecedente e ao que se refere à polaridade
afirmativa da sentença.
Por tais critérios, todo está sujeito a flexões e pode ocupar a posição nuclear ou a
de determinante, como já vimos em Castilho. Recebe ou não os traços do antecedente
[+humano] e mantém polaridade no par afirmativo a exemplo de fiz todo o bolo/ comi o
bolo todo, com clara diferença de sentido. Em contrapartida, a forma tudo não é
flexionável, pode ser núcleo e determinante. Recebe traço [+ e – humano] do antecedente
e mantém a propriedade de polaridade, alterando o sentido a depender da posição, como
em dei tudo de mim/ fiz de tudo. Esses quantificadores todo e tudo, ressalta Bagno
(2011:828), estão no rol dos poucos quantificadores indefinidos que podem aparecer no
diminutivo como em todinho, todinha, todão, tudinho.
Importante salientar também que Bagno (2011:829), tal como Ataliba de Castilho,
assinala como os quantificadores indefinidos podem admitir mais de uma classificação,
situação diferente da maioria das palavras da língua. Por meio de processos de reanálise,
metáfora, metonímia, os quantificadores indefinidos “ativam a gramaticalização e a
discursivização” (BAGNO, 2011:829). Podem passar da categoria de adjetivo para
substantivo, para advérbio e até para a de marcador conversacional: eu revistei toda a
fila/ eu revistei a fila toda; estava tudo direitinho/ eu decorei toda a lição, tudo bem?
Moura Neves (2000:550) inclui também as formas todo e tudo no capítulo
dedicado a indefinidos e quantificadores. Como os demais autores, exibe exemplos de
todo e suas formas flexionadas antes e depois do núcleo nominal. A autora chama-nos a
atenção para empregos como “as mulheres todas assomaram a varanda, a velha com um
Xale na cabeça, negro”, o quantificador indefinido enfatiza a referência a cada um dos
membros do grupo, ainda que considere todos os elementos do grupo: “ vendi todas as
profecias, também as poesias minhas e as dos outros”; “e deixou os livros todos para
você, você herdou os livros” .
Insiste Moura Neves na possibilidade de flexão de todo e na distinção de que a
forma todos frequentemente significa “todas as pessoas”, seja em geral, como em “a
educação é um direito de todos quantos possam pagá-la”, seja com referência a pessoas
determinadas, como em “espere um pouco..vou ver se todos estão dormindo”. Moura
Neves (2000: 551), assim, introduz sutil diferença semântica nos empregos do
quantificador indefinido todos, considerando alguns mais opacos semanticamente que
outros. A autora ainda lembra várias expressões adverbiais, como de uma vez por todas,
sob todos os pontos de vista, de todos os tempos, para todo o sempre de que se pode fazer
uso no português (Moura Neves, 2000: 551-2), que não aparecem nas outras gramáticas
consultadas.
Alguns dos dados analisados neste estudo classificam-se de acordo com a
proposta de Castilho, Bagno e Moura Neves. Temos, nas amostras consultadas, exemplos
semelhantes aos expostos nas gramáticas, incluindo o emprego de tudo como conjunto
global sem qualquer concordância e em expressões já congeladas populares (cf. exemplos
na primeira seção deste texto). Tais ocorrências são semelhantes ao emprego de tudo
apresentado no começo do artigo “tomei umas seis injeções... meus braços já
tava tudo dolorido...”, da informante paraibana, que nos parecia ser uma construção
típica da sua região de origem, no entanto revelou-se uso coloquial dos falantes nativos
do português de toda parte do país.
Vale relembrar que esta pesquisa vem então comprovar que, a depender da
amostra examinada, é frequente a ocorrência da forma tudo, em tela, especialmente nos
menos letrados. Examinem-se os exemplos em negrito, extraídos da amostra MOBRAL
(MOVIMENTO DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS), que reúne indivíduos com
pouco ou nenhum letramento escolar, cuja fala foi gravada no início da década de 70.
(18) As fantasias de escola-de-samba falãu de um povo de tradição, bastante’antigo. É,
o Rei Salomão, como dizem ... como se diz, o Nordeste, todas essas coisas, o folclore,
essas coisas, é tudo misturado, eu relembram os tempos antigos, que eles vestiãw
aquela roupa e aí cantavãw.
Então esse negócio de briga num é cumigo, falô em briga eu to correno as distância.
Se pudé desarpartar assim, eu vô, deixa pra lá, se o cara me dá uma tapa eu seguro ele:
“ô, num é nada disso, cara, po deixa isso pra lá, pronto, tá bom, tá legal, vô me imbora,
cada um pro seu lado, tudo jóia”, pronto.
Nos trechos aqui transpostos da amostra, os gramáticos preveem alguns usos, mas
nem todos, como em o Nordeste, todas essas coisas, o folclore, essas coisas, a forma
todas vem na primeira posição pré-nuclear do SN, coocorrendo com os. Já em tudo jóia,
reconhecemos uma expressão coloquial, fixada na língua e congelada. Os demais
empregos, no entanto, são da forma tudo, não exatamente como conjunto global, segundo
Castilho, mas como quantificador indefinido invariável que parece ter um valor de
intensificador, adjacente à forma adjetival, como em (a) é tudo misturado, ou ainda
adjacente a um gerúndio, como em (b) aí quando os cara voltaru qu tá tudo durmindo.
Na primeira construção (a), tratar-se-ia de um processamento sem concordância
equivalendo a estão todos misturados? Tal interpretação é menos opaca na segunda
construção (b) cuja interpretação poderia corresponder a estão todos dormindo?
Cabe esclarecer aqui que exercícios de compreender (a) e (b) à luz dos usos
prestigiados operando-se a flexão não constitui o objetivo desse estudo, portanto não se
incluem no escopo de nossas metas e hipóteses nem oferecem o impacto que os usos reais
encontrados nas amostras provocam em relação a problemas concernentes a letramento.
Sob a perspectiva adotada no presente artigo, interessa-nos ademais outros empregos de
tudo que ocorrem com frequência, quando posposto ao núcleo sem qualquer flexão:
(19) Ah, uma vez eu ia descendo... subi o morro aí fui descê lá... para esse morro tem
saída lá, tem saída por aqui, saída prali tem leste, oeste, sul, tá entendendo? Saída pra
tudo quanto é lado, esse morro aqui. Então, aí eu subi pelo morro aí fui saí lá dotro
lado. Mas lá é... a barra é muito pesada, sabe, aí pô esses cara tudo de metralhadora,
vinha eu e mais dois colega, aí po se esconderu tudo no mato, veio dois: Mão na
cabeça, cum cada metralhadora que num era brincadeira: calma chefe, calma, que aqui
é todo mundo trabalhador, tá todo mundo com documento, num sei que lá. Aí, mas
mas era uns cara legal: tá enconta aí na parede, vô dá uma geral ni vocês.
De acordo com Castilho, o quantificador todos apareceria na posição pós-nominal
num movimento pequeno. Note-se, porém, que a concordância esses caras todos,
esperada pelo cânone gramatical, não foi operada, levando-nos à interpretação de tudo
como resumitivo. Há outros casos que ilustram bem isso.
(20) Que larga a arma o quê, é bom vocês abaixar isso se não eu dou um processo em
vocês tudo.
(21) E: Qual dos dois que luta boxe, é o Sílvio?
F: É o Sílvio.
E: Depois tem outros menores?
F: Tem, tem um só.
E: Tudo homem?
F: É, tem uma irmã tamém
F: [...]Tudo criança, né, mas é tudo influenciado por marginalidade, acha que é uma
coisa bacana matá os otro. E tem mais, um deles foi agarrado aí, agarra os outro, né.
Aí, que que eles faz, que que eles faz cuma criança dessa?
Encontramos alguns empregos em que o movimento modifica o sentido, previstos
por Castilho, quando tudo é empregado como quantificador global.
(22) (...) ele falou mas não podia falar porque meu pai morreu de assassinato com um
tiro na cabeça como é que ia falar e agora acreditar nela aí ela ficou recebendo tudo aí
cabô, (...) nós recebíamos até uma certa idade mas depois deixamos de receber aí
pronto aí cabô tudo né... meu irmão casô saiu fora de casa e agora tá...
Em posição pré-nominal, tudo recebe a interpretação de todos recebendo. Com o
movimento de tudo, quantificador global, a forma se mantém no singular, segundo a
norma, e recebe outra interpretação, exemplificada nos trechos “ela ficou recebendo
tudo”, “ mas depois deixamos de receber aí pronto aí cabô tudo né..”.
Note-se que Castilho tem razão em destacar as propriedades discursivas e a
influência do movimento. No exemplo a seguir, temos o movimento do quantificador
indefinido sem haver mudança de sentido, pois não se trata de um quantificador global.
(23) Aí eles tavam tudo numa rua tomando conta do garoto. Aí falô com o motorista
dele pegá o carro aí o motorista dele foi pegá o carro, aí o garoto começô a olhá pra
dentro do carro aí o motorista tá apertando o acelerador, tá batendo notro carro e não
tá vendo aí o cara: “O que que é isso que você tá fazendo?”
A ocorrência de tudo com a concordância, portanto na forma todos, se operada,
não mudaria o sentido. A interpretação no contexto é a de totalidade dos elementos
expressos pelo pronome eles, ainda que com traço /não contável/. O trecho abaixo ilustra
emprego semelhante, no entanto o contexto final “revela” o número de elementos.
(24) Não, a única casa de comércio boa que tem lá, que tá fazeno uma vida, que desce
até pessoal de obras, estações pra fazê compra lá, é a casa Senda né. Só. Ah, tem o
Ideal tamém, mas é muito fraquinho o Ideal. É 2 casa grande de comércio que tem. E
os oto é tudo aquele, cumé que se diz? Aquele... 2 potinha.
À guisa de conclusão
Este artigo buscou fornecer subsídios para demonstrar que, em que pese inúmeros
trabalhos que confirmam a legitimidade de traços linguísticos de identidade de
comunidades de fala, há ocorrências linguísticas que não são exclusivas contextual e
regionalmente de grupos étnico-culturais. Tal fato, por si só, consiste num imenso desafio
para o letramento, uma vez que os empregos que evidenciamos em todas as amostras de
várias localidades do território brasileiro vêm se espalhando pelas periferias das grandes
cidades e se encontram atualmente na fala de distintas redes sociais.
Identificar o perfil sociolinguístico do falante (Mollica, 2003; Mollica et al, 2012)
torna-se, portanto, imperioso para os processos de alfabetizar e letrar, porém não constitui
tarefa nada fácil. Conhecer as construções identitárias dos falantes do ponto de vista de
critérios sociogeográficos não é trivial num país em que a migração é intensa desde os
seus primórdios.
Tal preocupação tem que passar a ser item de pauta para o professor agente
letrador (Bortoni-Ricardo, 2010). A inversão demográfica da população do campo para a
cidade, que hoje se encontra numa relação de quase 80% nas cidades e pouco mais de
20% no campo, é um alerta aos linguistas, atentos que estão a traços característicos de
redes sociais virtuais e não virtuais. Pesquisas na área, antigas e mais recentes (Mollica,
1995; Mollica et al, 2012) demonstram que não encontramos redes encapsuladas em
grandes centros urbanos, tal como Bortoni-Ricardo (2010 [1985]) pôde observar e atestar
na construção de Brasília.
À época, a pesquisadora já demonstrara a efetivação do fenômeno de
contaminação e acomodação linguística (Giles, 1980) por parte dos homens operários que
mantiveram contato estreito com os falantes de variedades de prestígio, engenheiros e
arquitetos que lá estiveram para edificar a nova capital, comparativamente às mulheres e
crianças que não tiveram qualquer contato e não se deslocavam de suas redes sciais.
Debruçou-se Bortoni sobre o fenômeno da concordância, assim como Naro&Sherre
(2010: 79-90), que puderam, ao longo desses 30 anos ou mais de pesquisa, verificar e
confirmar o princípio que aponta tensão entre fluxos e contrafluxos no português do
Brasil.
Boa parte, (senão todos), dos fenômenos descritos inicialmente como exclusivos
do Português do Brasil e ou atinente à classe dominante já se encontrava em Portugal. É
proposital lembrar aqui que a tese da deriva vem sendo predominante, entre os linguistas
brasileiros, no debate em sobre as origens do português brasileiro (NARO&SCHERRE,
2007).
Na mesma direção, torna-se bem oportuno perguntar se o uso de tudo
quantificador indefinido com valor intensificador não teria tido origem já na Península
Ibérica por contato com crioulos de África. Como quantificador universal em línguas de
substrato, teria havido uma assimilação já em variedades do português europeu e
transmitido a socioletos falados pelos nativos menos letrados?
Verificando-se ou não a pertinência da questão aqui lançada, os desafios de letrar
adequadamente permanecem. Supomos, finalmente, que esta pesquisa deu uma pequena
ideia de quanta cautela há de se ter quando se pretende verificar identidades por critérios
linguísticos. Desta feita, cremos ter alertado para as numerosas e consequentes
dificuldades no processo de letramento que pressupõe o preparo dos profissionais para
discernir os reais obstáculos do alunado para fins de atingir domínio pleno no
processamento linguístico falado e escrito de construções prestigiadas.
Referências
BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola
Editorial, 2011.
BORTONI-RICARDO, S.M. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto,
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