GUIGNARD EM PROSA E VERSO
•
Cecília Meireles
O que é que Ouro Preto Tem?
Tem montanhas e luar;
Tem burrinhos, pombos brancos
Nuvens vermelhas pelo ar;
Tem procissões nas ladeiras
Com dois sinos a tocar;
Opas de todas as cores
Anjinhos a caminhar...
Tem Rosário, São Francisco
Santa Efigênia, Pilar...
Tem altares e oratórios
Cadeirinhas de arruar.
Tem casas de doze janelas,
Estudantes a cantar...
Tem saudades e fantasmas
Ouro por todo lugar.
Tem santos de pedra- sabão
Calçadas de escorregar,
E ali, na Rua das Flores,
Na varandinha do bar,
Tem a figura risonha
Do grande pintor Guignard
Que Deus botou neste mundo
Para Ouro Preto pintar.
Improviso para Guignard
(Álbum-arquivo de Guignard, 1947)
Árvores de nuvem
e flores do mar
- levai-me a esse mundo
do Rei Guignard! (...)
As rochas, de espuma.
As conchas, de luar.
O sonho pousado
em ramagens de ar...
Levai-me a esse reino
do Rei Guignard.
•
Carlos Drummond de Andrade
(Correio de Minas, Belo Horizonte, 26 de junho de 1962. p. 3. Caderno 2. “Viola de Bolso”)
A GUIGNARD
Caro pintor Guignard, que está enfermo:
daqui desta cidade, onde perdura
o eco fantasista de teus passos
pelos caminhos claros da pintura:
daqui, onde retratos de meninas
continuam meninas, murmurando
um segredo infantil de seiva e bruma,
desvendado por ti, anjo pintando:
do Rio, onde teus quadros mais festivos,
evadindo-se às lindes da matéria,
à prisão dos museus, ao pobre tempo,
voam livres no céu, em luz etérea;
desse Rio amoroso e cristalino,
onde algum banco de azulejo
e casas de ilusão abrem cenários
para as moças que pintas, e que eu vejo,
onde Stendhal, turista mais sensível,
correria os cafés, sem que jamais
sua procura atenta e minuciosa
neles recuperasse teus murais,
sem registro civil, incorporadas
ao puro mito poético da Jovem,
que a todo mal resiste, e resplandece
quando, em torno de nós, os males chovem;
pois o São Sebastião, as caravelas,
em Barata Ribeiro, e os verdes ramos
ofertados aos pobres, já sumiram,
só florescendo em nós, que os recordamos;
daqui te mando, amigo, esta mensagem
à casa de saúde onde repousas
do teu muito pensar em nuvens e anjos,
que entre todos os bens, são tuas cousas.
e da grande madona que confiaste,
a um sorveteiro humilde, nada resta,
em porta material se convertendo,
o que é porta do céu para a alma em festa;
Aníbal e Rodrigo – dois apenas
citarei, mas não muitos, e o flamante
fuzileiro naval e sua noiva,
comigo fraternizam neste instante.
daqui, porém, onde outros testemunhos
falam de ti às gentes distraídas,
como no hotel essa parede súbita
que multiplica, ao sol, as nossas vidas,
Amigos e modelos, em conjunto
afetuoso, por sobre a Mantiqueira,
fazem-te esta visita sem palavras,
fruto de simpatia verdadeira.
cantando em passarinhos e folhagens,
em cores mais sutis que a própria cor,
de vez, Guignard, que pintas o teu sonho,
e na raiz do sonho vela o amor;
Volta, Guignard, de corpo restaurado,
ao mundo material, de onde extraías
o delicado mundo guignardiano,
entre balões, nas altas serranias.
voam livres no céu, em luz etérea;
a um sorveteiro humilde, nada resta,
em porta material se convertendo,
o que é porta do céu para a alma em festa;
onde Stendhal, turista mais sensível,
correria os cafés, sem que jamais
sua procura atenta e minuciosa
neles recuperasse teus murais,
pois o São Sebastião, as caravelas,
em Barata Ribeiro, e os verdes ramos
ofertados aos pobres, já sumiram,
só florescendo em nós, que os recordamos;
e da grande madona que confiaste,
daqui, porém, onde outros testemunhos
falam de ti às gentes distraídas,
como no hotel essa parede súbita
que multiplica, ao sol, as nossas vidas,
cantando em passarinhos e folhagens.
•
Angelo Oswaldo de Araújo Santos
(Minas Gerais, Suplemento Literário, agosto de 1996)
EM OURO PRETO
Guignard parado no alto do morro
perlustra a paisagem
a luz dourada atravessa
sem alarde
a contemplação dos templos
o homem só no adro
apropria-se do cenário
bandeirante das serras
antes buscadas
em belos horizontes
desde friburgo
itatiaia
santa teresa
montanha tornada linha invisível
ergue casarios
soltos
nos altos da folha branca
capelas levitam
ladeiras sobem ao céu
picos diluídos no fundo do quadro
como em da Vinci
(dois Guignard abstratos dados a Mário Pedrosa)
bruma entrecortada por pipas e balões
entre igrejas
hasteadas
no mastro
dos coqueiros
flores exuberantes
aromatizam a tarde encantada
a menina Albergaria na Ponte Seca
acelera o coração
solitário
guirlandas na porta do armário de Dona Lili
saúdam os turistas
na janela cega da casa de Rodrigo
é onde assiste
a minha Marília bela
e dezenas de desenhos
voam da velha mesa do Toffolo
Ouro Preto encontra
o seu melhor intérprete
o homem só no chão de pedra
caminha
para a história
o cemitério de São Francisco de Assis
aparece na névoa
panteão à espera do artista
... 40 anos depois ...
a Casa Guignard
na Rua Direita
anuncia :
aqui é o castelo do Rei Guignard
(coroado por Cecília Meireles)
aqui é a igreja do Santo Guignard
(canonizado por Oswald de Andrade)
entre que a casa é sua
•
Rodrigo Andrade
(Cadernos da Casa Guignard, março de 1987. Sem título)
Guignard não morava nesta casa
Ela, como a cidade, é que morava nele
Tudo ao revés
Puro encantamento
Primeiro tínhamos o prédio
depois o consagramos ao nome
Para então ocupá-lo de idéias
O acervo, por último
Não era o mais importante
Principal era tê-lo aqui abrigado
como ele próprio prendera
a luz e o mistério da cidade
ou como o menino, que por gostar,
cativa o passarinho
(afinal ele era um e outro)
Falar de esteios, frechais, barrotes
madres, ombreiras, contrafeitos
seria a retórica do restauro
Importa mais lembrar quem vai fazer viver a casa
sem de fato, jamais tê-la habitado.
•
Gélcio Fortes
(Junho de 2000. Sem título)
A Casa de Guignard é Ouro Preto
Aqui deixou o quarto arrumado
Tinha uma cama pintada
uma garrafa pintada
um oratório pintado
um desenho “amor – inspiração”
A imagem de São Sebastião
O livro de Da Vinci sobre a cômoda
Violão e o auto retrato
Para o museu imaginado.
•
Portinari
(Catálogo do Museu da Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, MAP, 1972. Exposição Guignard)
A GUIGNARD
Bom e grande Guignard, pintor
do vento e do imperceptível. Nosso
São Cristóvão. Conversas com a água
branca do rio e em teus ombros de aço
nos transportas através do fogo ou
do mar. Anjo da guarda da alegria
com os pés na terra vives no paraíso.
Não ouves a voz do mal.
Nos campos brincas com os passarinhos
e colhes o silêncio da luz sutil e
nos presenteias obra de mestre.
Enxergas o que outros não vêem.
(...)
•
Amílcar de Castro
(Catálogo Museu Lasar Segall, 1992)
Foi um grande pintor, excelente desenhista e ótimo professor.
E alegre.
E brincalhão. E grande amigo. (...)
Ensinou a desenhar a lápis 7, 8, 9H.
Esse método pelo desenho trouxe o gosto pelo bem feito.
Sem sombras.
Pelo que é sensível sem exageros sentimentais.
Pela comunicação direta, sem adjetivos ou preciosismos.
Foi o que nos deu o conhecimento da linha.
Ela mesma.
O caminho.
O ritmo.
O que separa e valoriza os espaços.
O que é força e suavidade ao mesmo tempo que sem intermediários.
Música necessária.
Solo de tempo contido na precisão do espaço.
E trama e tece teia de poesia linha e luz
Sobre Ouro Preto que amanhece agora.
Foi o que fez com absoluto talento e sabedoria. Grande Mestre.
Guignard – Pintor
Revela pleno, plana, palma
O mundo em silêncio franco.
Que bonito é viver.
Olhar e ver a dança das cores
Ritmo do mundo.
Cor é emoção e pensamento
descoberta e procura
certeza e espanto
fundamento e caminho.
E caminhar com cores
É testemunhar com o silêncio da luz.
Cor
Não existe uma.
E muitas
Quando uma sustenta a outra
Todas
Solidárias tramam
Intrigam
Comprometem o tempo e o espaço
No lugar
Onde a beleza acabou de nascer verdade.
E assim esse pintor fundou Ouro Preto em cor. Grande mestre.
•
Priscila Freire
(Catálogo do Museu da Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, MAP, 1972. Sem título. Exposição
Guignard)
... Guignard tinha uma cultura adulta e o comportamento de um menino. Em 44 vem para
Belo Horizonte dirigir um curso livre de desenho e pintura. Conheci Guignard 10 anos
mais tarde. Tinha um andar pesado, mancando ligeiramente, a cor clara e rosada, os
cabelos brancos já ralos escondidos por uma boina, uns olhos penetrantes atrás das lentes
dos óculos. Nunca ouvi Guignard se queixar. Ganhava pouco, as instalações da escola
eram precárias, morava em repúblicas pobres com três ou quatro estudantes no mesmo
quarto (guardava quadros e desenhos embaixo da cama por falta de espaço), sofria de
dores reumáticas e quando elas pioravam pintava o famoso São Sebastião cheio de flechas.
A pureza e a espontaneidade de seus quadros se devem a dois motivos: a economia de
tinta (cada vez usando menos massa e mais solvente) e a velocidade. Sua obra não sofreu
influência de nenhuma corrente pictórica de sua época. Foi classificado por um diretor de
museu de Nova York como o “único pintor autêntico brasileiro”.
•
Lúcia Machado de Almeida
(Catálogo do Museu da Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, MAP, 1972. Exposição Guignard)
RECORDAÇÃO DE GUIGNARD
Muito já se tem focalizado Guignard como desenhista e pintor. Preferimos recordar o
grande, comovente ser humano que ele sempre foi, e aquela candura e virgindade de alma
que o punham em permanente estado de graça diante dos seres e das coisas. Guignard era
uma criança, não no que esta tem de negativo, mas sim em sua inocência e faculdade de se
maravilhar ante as pequeninas descobertas do cotidiano uma flor inesperada, surpreendida
em solitário jardim, a forma de uma nuvem, um passarinho que lhe pousava à janela...
Tudo o que era frágil, desprotegido e humilde, o enternecia: uma criança doente, a
moça desprezada pelo namorado, o menino magrinho e sujo que encontrava na rua,
usando paletó de gente grande, com mangas arrastando pelo chão.
Manso como poucos, tinha tal ojeriza por rixas, que preferia passar por tolo a participar
de discussões. Essa alienação aparente escondia, entretanto, uma sensibilidade de poros
abertos, que o fazia captar e discernir perfeitamente as atitudes e as pessoas.
Bem me lembro da primeira vez em que – mal chegado a Belo Horizonte, o vimos
entrar em nossa casa, trazendo afetuosa recomendação de meu irmão Aníbal. E foi quando
o levamos na mesma tarde, a visitar uma exposição de passarinhos no Parque da
Gameleira. Em certo momento aproximamo-nos de Guignard, (que se afastara para ver as
aves) e percebemos que ele estava emocionado e de olhos úmidos. “Que foi isso
Guignard?” perguntamos. Ele sorriu e mostrou-nos uma das coisas mais lindas que já vi
em minha vida: um minúsculo pássaro “Gold mirabilis”, de pena azuis, amarelas e roxas,
brilhantes como lamê, em sua gaiola dourada.
-“Como pode caber tanta beleza num corpo tão incrivelmente pequeno?” comentou
ele, comovido. (Foi esse o primeiro contato que tivemos com a sensibilidade de GuignardGente).
E vem-me à memória a última vez em que o vimos: estava eu a escrever junto de uma
mesa, de costas para o corredor, absorta no trabalho. De repente comecei a sentir alguma
coisa a roçar-me de leve a orelha. Assustei-me, e, virando para trás, dei com Guignard, que
acabara de colocar delicadamente uma rosa vermelha em meus cabelos.
•
Samuel Koogan
(Catálogo do Museu da Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, MAP, 1972. Exposição Guignard)
GUIGNARD
Desde jovem tive o prazer de participar do meio de artistas plásticos do Rio de Janeiro,
tendo convivido com vários deles dentro de sua arte e como amigo. Um dos que me
deixaram mais profundo sentimento, de homem e de artista, desde o tempo do Rio de
Janeiro e de Itatiaia, na pensão Donate, foi o mestre Guignard. Maior felicidade ainda, tive
ao chegar a Belo Horizonte e encontrar o mestre trabalhando na escolinha do parque, atual
Escola Guignard.
Guignard com sua alegria espontânea e sua bondade, era para todos um verdadeiro
anjo, impressionava sua felicidade cotidiana de encontrar sempre os amigos, transmitindo a
todos o grande valor de artista que era o mestre. Tinha sempre uma palavra de incentivo e
de estímulo que hoje se reflete na geração atual de artistas plásticos mineiros. Infelizmente
perdemos o homem Guignard, mas o artista será eterno, nas artes plásticas brasileiras,
usando a expressão que ele usava sempre – deixa lá, deixa lá – onde exprimia totalmente
todo o seu modo de viver.
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