NASCER
E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2004, vol. XIII, n.º 2
Uma história de balões e…?
Miguel Félix
Há brincadeiras que são quase
universais. Quantos de nós, em criança,
não brincamos com um pequeno fragmento de um balão de borracha, estendendo-o como uma membrana em frente
dos lábios, aspirando para formar uma
pequena bolinha que depois se rebentava
com os dentes?
Assim fazia o Bruno, de 6 anos, na
sua aldeia perto de São João da Pesqueira, quiçá para enganar o tédio estival
da primeira semana de Agosto de 1995.
Então, subitamente, ao rebentar uma
das tais pequenas bolinhas, ficou atrapalhado, com uma respiração ruidosa,
fala quase impossível, rouco… Nas horas
seguintes recusou totalmente comer e
continuava com uma respiração estranha. No dia seguinte, de manhã, é
levado pelos pais preocupados ao Hospital mais próximo. Fez duas “chapas”,
do pescoço e dos pulmões, que nada
mostraram. Decidem enviá-lo ao Hospital
Pediátrico de Coimbra. Não havia grande
estridor ou dificuldade respiratória, mas
uma disfonia tão marcada que não se
entendia nada que dissesse. Seguiu-se
o procedimento usual: Bloco Operatório,
anestesia geral, broncoscopia rígida.
Sem grande surpresa, encontraram-se
e retiraram-se pequenos fragmentos do
balão de borracha que se encontravam
acima das cordas vocais. Na traqueia e
brônquios, nada.
Como de costume, ficou na enfermaria de Medicina para a recuperação
que se esperava sem problemas e alta
após um ou dois dias.
Pediatra - Serviço de Medicina do Hospital Pediátrico
de Coimbra
164 pequenas histórias
No dia seguinte, observei-o. Era
então interno de pediatria e confesso
que fiquei atrapalhado: nos casos de
corpo estranho que tinha visto, no dia a
seguir à remoção, os miúdos pareciam
sempre óptimos, com o alívio de uma via
aérea restabelecida após algum tempo
de obstrução. Ora o Bruno não estava
nada assim. Até esse momento tinha
recusado comer ou beber o que quer que
fosse. Se bem que respirasse aparentemente sem dificuldade, estava muito
sonolento, com uma rouquidão tão importante que mal se adivinhava o que dizia.
Tinha um ar estranho, sem mímica facial,
com pálpebras muito caídas (tipo “bandeira a meia haste!), que o obrigavam a
inclinar muito a cabeça para trás para
nos olhar. Para completar o ramalhete,
uma midríase bilateral importante com
muito pobre reacção à luz. A mãe era
peremptória: “O Bruno antes não era
nada assim… será da anestesia?”
Fui ter com o colega mais velho
(será politicamente mais correcto dizer
“mais experiente”…): “Oh pá, não gosto
nada do aspecto daquele miúdo! É
estranho… e para além disso, com 6
anos, como é que não se desenvencilhou
de uns pedacitos de borracha?” Fomos
vê-lo os dois. Confirmados todos os
achados e depois de alguns minutos de
conversa, o meu chefe sorri e diz: “Tu
queres ver!...”, e para a mãe: “Oh minha
senhora, o miúdo não comeu uns
enchidos, presunto?...” Surpreendida
pelos aparentes dotes divinatórios deste
médico da cidade, assentiu, que sim,
uns três dias antes do acidente tinha
comido um magnífico presunto caseiro,
de lavra familiar.
“Miguel, isto de certeza é um botulismo!”. E era mesmo: assim confirmou a
identificação positiva da toxina, conhecida dias depois.
Estava o Bruno internado há três ou
quatro dias quando propusemos à mãe
que telefonasse para casa a pedir para
nos trazerem o presunto: seria a “cereja
no topo do bolo” identificar a toxina no
dito. No dia seguinte disse-nos que
infelizmente era impossível: ao saber
que o problema do Bruno teria sido
causado pelo saboroso naco de fumeiro,
o pai tinha-o deitado fora. No entanto,
três semanas depois desta conversa, a
irmã do Bruno, de 15 anos, era internada
nos Hospitais da Universidade de
Coimbra com?…adivinharam! Embaraçada, a mãe admitiu: não se tinham de
facto livrado do presunto, a não ser
comendo-o…
O resto da história, longa, conta-se
curta: o Bruno esteve connosco cerca de
um mês; porque lhe era totalmente
impossível comer, teve que andar de
“esparguete” no nariz (leia-se SNG…) e
teve uma obstipação pertinaz durante
umas semanas. Não teve, felizmente,
qualquer sintomatologia respiratória.
Quando teve alta estava bem.
Terminando, e correndo o risco de
ser injusto com os pais do Bruno, não
posso no entanto deixar de fantasiar a
conversa telefónica entre os dois quando
pedimos o presunto:
“Olha, traz o presunto cá a Coimbra
que os médicos querem analisá-lo!”
“Oh mulher! Tu nem penses nisso!
Não vês que eles querem é comê-lo?...”
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Uma história de balões