PARA LER E DEPOIS QUEIMAR
Nos anos 60, um sociólogo inglês, John Goldthorpe, entrevistou 80% dos operários de
um fábrica de automóveis instalada em Luton, Inglaterra. Ele estava interessado em saber acerca
do nível de “consciência de classe” desses trabalhadores. Os dados indicaram completa apatia,
conformismo e isolamento quanto à capacidade de mobilização política da classe. Os interesses
comuns da categoria haviam cedido lugar aos prazeres individuais, à realização pessoal fora do
trabalho e à dedicação do tempo livre ao lazer e ao descanso inerte. Ninguém acreditava na
possibilidade, ou sequer na necessidade, de mudar tal estado de coisas. A conclusão do sociólogo
não poderia ser outra senão a de que nada poderia acontecer.
Alguns militantes - desses que não recuam mesmo diante do fim do mundo conseguiram cópias do relatório Goldthorpe antes mesmo de sua publicação. Eles reproduziram
e distribuíram o material entre os operários. Uma semana depois, de fato, nada aconteceu. Até
que uma notícia, divulgada num canto de página de um jornal qualquer, informava sobre os
lucros da fábrica naquele período. Os militantes, mais uma vez, circularam a informação entre os
operários. Foi o suficiente: eles juntaram as cópias do relatório e as notas sobre os lucros da
fábrica, fizeram uma montanha de panfletos e atearam fogo. Depois, paralisaram as atividades,
reuniram-se no pátio, invadiram os escritórios à caça de seus gerentes e entraram em confronto
com a polícia que foi chamada para reprimir violentamente “os distúrbios” que dominaram a
fábrica. As manifestações duraram dois dias.
Pois bem, no meio acadêmico, o caso Goldthorpe é um exemplo de como não se deve
fazer pesquisa social entrevistando isoladamente os indivíduos nem extrair disso conclusões
sumárias. Seu erro foi supor que a soma dos estados de apatia vividos por cada um dos operários
resultaria, assim, numa apatia coletiva. A ironia objetiva é que o relatório que concluiu sobre a
acomodação e o desânimo dos trabalhadores, em par com a notícia sobre os lucros da fábrica,
serviu também como um gatilho que disparou o rompimento do estado de letargia antes
diagnosticado. O relatório teve o peso de um acontecimento.
No entanto, mais do que isso, esse episódio ilustra bem a astúcia própria de uma
determinada forma de velar e tornar invisível o descontentamento com certo estado de coisas.
Primeiro, a aparência de que nada pode acontecer, nada pode mudar, cai com o peso de uma
bigorna sobre as cabeças dos desalentados. Depois, os indivíduos entram numa espiral de
lamentações, queixando-se amarguradamente de sua situação e se deixando cair num estado
melancólico engessador. Poucos percebem, mas esse é exatamente o modo como eles entoam
suas lamúrias à espera de um acontecimento, mesmo que não tenham exata consciência disso.
Assim, produzem as condições necessárias, mas não suficientes, para que algo aconteça. Então,
quando algo ocorre, por maior que seja sua contingência, sua eventualidade, logo se torna uma
necessidade irrefreável, desencadeando tudo aquilo que é, a um só tempo, previsível e impossível
de prever, tal como se pode dizer sobre ação política da classe trabalhadora, unida e organizada.
Um acontecimento, portanto, é capaz de mobilizar afetos insuspeitos, interromper a repetição
insípida de uma ordem estacionária e estabelecer relações onde antes havia apenas o vazio.
Nos últimos meses, os representantes do nosso sindicato, militantes que são, circularam
entre nós, professores e técnicos, operários da fábrica de ensinar, as notícias sobre os cortes do
governo federal e suas implicações. A primeira assembleia que discutiria tais consequências
padeceu esvaziada. Uma semana depois, de fato, nada aconteceu. Os militantes insistiram e
convocaram nova assembleia. Mais uma vez os servidores não compareceram.
Mesmo assim, apesar do evidente desânimo, eles perceberam a gravidade do fato e
começaram a se queixar sobre o quão eram descabidos e injustos os cortes anunciados. Agora era
possível ver, por esse buraco, a montanha de escombros escondida atrás da porta. Girando em
seus calcanhares, os servidores, essa gente comum que não desaprendeu a pensar, se
perguntavam sobre como tudo isso se tornou possível, como se pôde ir tão longe. Entraram
numa espiral de lamentações, queixaram-se amarguradamente e caíram em melancolia,
convencidos de que o pior estava por vir.
Dado este estado de coisas, era difícil supor qual fato poderia ter o peso de um
acontecimento, capaz de mobilizar estes afetos insuspeitos que nos ligam por fios invisíveis e
interromper a continuidade repetitiva de uma ordem estagnada, como essa que sempre colocou
nossa Instituição na vanguarda do conservadorismo. Uma nova assembleia foi convocada. Às
vésperas, a Reitoria circulou uma “Nota Oficial”, lembrando aos servidores os avanços da atual
gestão. Os servidores compareceram em massa, como nunca antes. A greve foi deflagrada.
Alguns dizem que as situações trágicas são aquelas que não podemos nem aceitar e nem
transformar. A tragédia é, portanto, o contrário do acontecimento. Mesmo os que contemplam a
catástrofe, sabem que não é o fim, há algo por acontecer: algo que possa tudo mudar ou algo
ainda pior. O momento que ora vivemos, o início de mais uma greve, reflete bem esse dilema.
A greve é a interrupção necessária, é o acionamento dos freios de emergência de uma
locomotiva desgovernada, indo a todo vapor rumo ao abismo. Por isso mesmo, evitar que o pior
aconteça será o grande acontecimento. Esse não pode ser o gesto de um ou de outro, mas de
todos – professores, técnicos e estudantes. E toda nota oficial que disser o contrário, ignorando a
gravidade da situação e desacreditando o poder de mudar seu destino, é como o relatório
Goldthorpe: é para ler e depois queimar!
(Fortaleza, 23 de julho de 2015. Comando de Greve do campus Baturité)
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