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Um mundo que teima em
morrer: A crítica de
Nietzsche ao niilismo
Américo Pereira
2010
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Covilhã, 2010
F ICHA T ÉCNICA
Título: Um mundo que teima em morrer: A crítica de Nietzsche ao
niilismo
Autor: Américo Pereira
Colecção: L USO S OFIA :P RESS – Ensaios
Direcção: José M. S. Rosa & Artur Morão
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: José M. S. Rosa
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2010
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Um mundo que teima em morrer:
A crítica de Nietzsche ao Niilismo
Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa
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A matriz da posição teórica de
Nietzsche: o par Dioniso-Apolo
Contrariamente ao que uma apressada vulgata insiste em afirmar,
Nietzsche é fundamentalmente um pensador da positividade ontológica. Na matriz de seu pensamento, desde sempre e mantida em absoluta fidelidade, está a intuição, que prossegue uma
tradição tão remota quanto a mesma caminhada semântica da humanidade, acerca de um absoluto ontológico, a que nada pode
fazer obstáculo, que se impõe como forma espontânea irruptiva
totalmente incondicionada, absolutamente livre, de manifestação
de pura presença vital, independentemente de qualquer atitude ou
posição humana, a favor ou contra.
Radica nesta independência – verdadeiramente metafísica – da
matriz ontológica de tudo, a por si proclamada inanidade de qualquer moral ou outra qualquer forma normativa – não natural, cultural, portanto – de condicionamento ontológico do que se manifesta. A posição de crítica radical aos fundamentos da cultura
nasce, em Nietzsche, deste sentido de uma total impossibilidade
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real, isto é, não ilusória, de moralização da força vital de que tudo
nasce, que tudo justifica, no que é, como é, sem mais.
Assim sendo, para Nietzsche, há uma infinita e irrepressível
força ontológica, que constitui não apenas a matriz deste mundo,
tal como manifesto, mas de todos os possíveis mundos manifestáveis,
de todos os possíveis seres, individual ou universalmente considerados. Esta força matriz fundamental, e apenas ela, justifica que haja
algo e não o nada: em aparente paradoxo com toda uma cosmética
promocional de sua obra, propositadamente adversa a uma forma
tradicional de pensar, a posição metafísica central de Nietzsche é,
ainda, uma posição clássica, no que à compreensão fundamental
da relação do ser como o nada diz respeito. O modo de manifestação dessa posição é que é muito diferente, para mais oculto numa
linguagem poética de grande beleza.
Só que a posição profunda, por detrás da máscara com que se
apresenta, de Nietzsche assume, pretendendo superá-las, todas as
posições clássicas anteriores, sobretudo aquela a que mais se opõe,
a cristã, na sua forma culturalizada, no que se refere à potência absoluta do princípio. Para Nietzsche, esta potência, que é mesmo absoluta, isto é, irrestritamente absoluta, não conhece qualquer forma
de oposição. Mesmo tudo o que parece surgir como sua regulação
mais não é do que, ainda, uma forma adaptada de manifestação,
sendo, mais do que um logro, uma forma de preenchimento ontológico de um possível que não pode deixar de ser e, assim, é.
Não há leis ou princípios a respeitar, não há um “Deus legal”,
que ponha ou imponha princípios normativos quaisquer, anterior
ao “Deus criador”, interventor na história, que haja que respeitar,
que seguir: tudo é um spielen infinito, em que o divino é o próprio
jogo irrestrito da criação.
Não há uma qualquer ortótese prévia possível: o que é é o que
é, no absoluto de seu acto, que a nada obedece, senão ao mesmo
profundíssimo impulso de ser e de vida de que é fruto.
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A crítica de Nietzsche ao niilismo
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Não é que Nietzsche desconheça a existência histórico-cultural
de leis ou nunca tenha ouvido falar das analógicas “leis da natureza”, mas, também tudo isto mais não é do que uma forma –
apolínea – de a força absoluta da vida se manifestar, subtil e enganadora, pois pervade isso mesmo que era suposto controlá-la.
Mas, paradoxalmente, neste ímpeto incontrolável de ser e para o
ser, porque tudo é este mesmo ímpeto em acto, nada é senão bom,
não como fruto de um qualquer juízo avaliador, mas como coincidência ontológica pura com o que se é, sem mais.
E é o sentido clássico do absoluto do bem de cada acto do que
é que renasce com Nietzsche. O nome que se atribui a isso que
assim é pouco importa: há um absoluto próprio em cada algo que
é, que manifesta precisamente o absoluto de vida que nele e por ele
assim irrompe. Esta intuição permanece, mesmo quando se fala
em valor, pois a essência própria do valor não reside em qualquer
forma psicológica de eleição, mas na aceitação, ao modo da criança
inocente, do que há-de vir. O valor corresponde não a um acto
de avaliação exercido sobre o cadáver de um ser, sempre pretérito
quando passível de ser assim avaliado, mas na disponibilidade para
que isso que tem de vir ao ser venha. Implica um sim absoluto
a tudo, sem qualquer forma possível de condicionamento, sempre
forma de morte. Então, se não é a este sentido de bem, como pureza
ontológica do que é, que Nietzsche se opõe, a que “bem” se opõe
ele?
Nietzsche opõe-se à redução moral – isto é, cultural, dado que
a moral, como toda e qualquer forma de actividade humana, é cultural por essência e substância – do bem ontológico, da vida em
sua mais auroral forma auto-criadora. Não se trata, nesta redução,
de uma mera questão de valoração, em sentido corrente, fraco, mas
da utilização perversa da capacidade criadora do ser humano: a
transmutação de valores que se procura não é uma mudança superficial de uns valores por outros, quaisquer, também eles fruto de
uma avaliação em sentido comum, isto é, de um acto psicológico,
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subjectivista, de alguém, mas a passagem a um regime ontológico
em que o valor seja ele próprio transmutado, quer dizer em que
o valor não seja fruto de uma avaliação, sempre moralizadora de
algo ontológico, mas seja o acto criador de novo ser, possível apenas num horizonte de absoluta abertura ao devir.
Este novo ser não é algo de estático ou mesmo de estável, embora o estável como apolíneo tenha lugar próprio, em sua essencial
instabilidade – tudo é instável e meramente instante –, mas o acto
criador, enquanto tal, isto é, apenas enquanto acto de criação, como
que porta de passagem de algo que transcende quer o acto criador
quer o seu operador, como isso que se manifesta por meio de tal
acto. O ser humano mais não é do que um acto de portabilidade
manifestante de algo que o transcende e que dele se serve para
ser, efemeramente. É este o amor ao facto, facto que não é algo
que transcenda o ser humano como algo que lhe é exterior e que
tem de aceitar, amando, mas que o transcende porque a ele não fica
ligado, como a água que percorre o rio de Heraclito não fica a ele
ligado, mesmo que o rio nada seja ou possa ser sem a água que
o percorre, criando-o. Mas nada prende coisa alguma e, mesmo
que algo dependa absolutamente para ser de outro algo, este não
o pode reduzir, não lhe pode retirar a sua realidade própria, ainda
que efémera: para Nietzsche, nada é redutível a coisa alguma, no
que tem inteira razão.
Toda a manifestação é, assim, absoluta: Apolo não é mais ou
menos ser do que um grão de pó, enquanto absoluto de manifestação: ambos são Dioniso, que se mostra, mas Dioniso só se pode
mostrar total e absolutamente se puder ser e for Apolo e grão de
pó.
O amor ao facto não é uma forma estulta de relação com o que
se dá, acriticamente considerado, mas o acto de pura aceitação do
absoluto do que não tem outra possibilidade senão ser: o que é
não é, assim, bom ou mau, em sentido comum, mas apenas absoluto em seu mesmo ser, em sua mesma absoluta presença. A
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doença é tão boa como a saúde, porque é. E é porque é possível
que fosse. E esta possibilidade de ser é o que há de verdadeiramente “divino”. Isso que mesmo os cristãos nunca perceberam,
segundo Nietzsche. Nasce nesta falha de percepção toda a forma
negadora e doentia própria do cristianismo: se tivessem os cristãos
percebido a grandeza absoluta do bem de ser, do bem de se ser que
proclamam, a sua vida seria a vida precisamente de uma criança
que brinca com o absoluto do possível, como se fosse Deus.
O mundo de Nietzsche é, assim, um mundo em que não há
bem ou mal, em sentido comum, mas apenas manifestações de um
poder sem limites, em que tudo o que pode vir ao ser vem ao ser,
sem que seja possível qualquer forma de restrição. Tal implica que
não haja qualquer forma de eleição que seja superior a uma outra
qualquer, pelo que tudo se equivale quanto ao seu valor ontológico
fundamental, pois tudo é inalienável presença de uma potência cuja
única alternativa é o nada. Na eleição que limita o poder – que tem
a ilusão de limitar – da potência geradora de tudo, reside uma
radical vontade de morte: toda a limitação do poder ser do possível é uma forma de eleição do nada, uma forma de morte, uma
forma de condenação da realidade do mundo à fraqueza e à morte.
Toda a cultura, se fosse produto de um ser criador que entendesse
profundamente o seu papel ontopoiético, seria um hino criador à
criação, isto é, mais não seria do que um puro acto de criação, uma
ode alegre ao absoluto do poder ser e do ser, em sua permanente
transiência.
A única forma de niilismo presente em Nietzsche corresponde à
sua vontade de aniquilar todas as formas de niilismo – e de niilistas
– que atentam contra o absoluto da vida em manifestação livre.
Como é óbvio, Nietzsche inclui os cristãos neste grupo que há que
destruir, pois, para ele, são os niilistas por excelência. A própria
“morte de Deus” significa a necessidade e depois a realidade da
morte de tudo o que atenta contra o divino direito de a potência de
ser poder ser. Neste sentido, “Deus”, este deus da fraqueza, é o
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maior obstáculo à pura emergência inocente da força vital, isto é, o
maior assassino de possibilidades ontológicas, pelo que tem de, em
nome do absoluto da vida, morrer. Trata-se de matar o deus menor
da fraqueza valorativa e electiva em favor de uma total liberdade
metafísica.
Não se trata, em Nietzsche, primacialmente, de libertar o ser
humano, o que será sempre uma tarefa secundária comparada com
a grande tarefa de libertar a realidade do ser humano, seu opressor, mas de libertar o movimento expressivo, poético-ontológico
do todo da realidade, incluindo o que passa pelo ser humano, que,
quanto mais livre for, melhor dará expressão a esta mesma possibilidade de onto-auto-poiése da matriz da realidade.
Radica aqui a sua metafísica de artista, em que a matriz do todo
da realidade se revela como um infinito poeta do ser, sem qualquer
restrição de qualquer tipo. Mas a grande obra metafísica é sempre
pertença não do ser humano, mas da força que o ergue e através
dele se expressa, a mesma força criadora de tudo, a mesma vida,
que recebe várias designações, ao longo da obra de Nietzsche.
A mais radical, porque coincide com a própria matriz da intuição fundamental, é a de “Dioniso”. Independentemente da forma
como surgiu na cena cultural helénica, a figura do deus Dioniso
incarna tudo o que diz respeito, não a algo de novo importado de
um oriente sempre abstracto, mas ao que de fundamental encerrava
a matriz mítica cosmológica e cosmogónica das gentes abrangidas
pelas grandes narrativas fundadoras do espaço noético helénico.
Assim, Dioniso assume tudo o que nos antigos mitos fundacionais era formalmente pertença da parte irracional da ontologia
geral da realidade total: se todo o esforço de pensamento mítico se
tinha norteado pela vontade de discernir no real o que era racionalmente enquadrável do que o não era, relegando para o campo do
intocável, por ontologicamente perigoso, tudo o que não fosse enquadrável por categorias racionais, tal não significava que tivesse
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conseguido aniquilar isso que não foi capaz de enquadrar racionalmente.
Pelo contrário, uma análise cuidadosa dos mitos – por exemplo,
como contados por Hesíodo – revela que o mais importante, o verdadeiramente essencial e substancial do ponto de vista ontológico,
ficou por enquadrar racionalmente, tendo a cultura helénica plenamente manifestado quer a sua presença inconsequentemente abafada
quer o terror que tal presença inculcava.
No mais profundo das origens do mundo helénico, que tanto
fascinou e deu que pensar a Nietzsche, estava a intuição de que
a mais profunda origem do real era algo de incomensurável com
o modo comum de realidade: no princípio de tudo está não uma
divindade definida qualquer – um qualquer Zeus, bem pobre “deus
dos deuses” –, mas o Khaos. Este abismo hiante, este nada de
forma, em que toda a possibilidade de forma reside e de onde toda a
forma emerge, não conhece realidade anterior e está absolutamente
onde como que ocupa o “lugar metafísico” da única “alternativa”
possível, o nada absoluto.
Deste confuso infinito informal surge toda a forma e todas as
formas, mediadas primeiro por um Eros, que se manifesta na forma
primeira da mãe terra, depois passa pelo Céu, pelo tempo e outros titâs e monstros primevos vários, terminando na geração, já
aparentemente apolínea, dos olimpianos. Mas, como se pode ver
no comportamento constante do próprio Zeus, a marca da informalidade caótica permanece, tendo como consequência uma série
de percursos trágicos, de que se pode relevar o da família desse
que vai ser Édipo, marcada, desde o início, pela hybris do Zeus
que seduz enganosamente Europa.
As grandes narrativas helénicas, sem excepção, nelas incluindo
a mesma lírica e também a filosofia em seus inícios, são o repositório
público desta preocupação e da reflexão que provoca acerca do fundamento último e primeiro da realidade como algo que não obedece a uma lógica apolínea, isto é, humanamente dominável. Rewww.lusosofia.net
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side aqui a própria essência do sentido do trágico da vida, nesta
impossibilidade de humano controlo de uma actividade real, que
transcende necessariamente todas as formas de tentativa de moralização. Todas.
Ora, também no mundo dos povos bíblicos, este sentido de
uma força desmesurada e humanamente impossível de governar
está clarissimamente presente: o Deus que se lhes manifesta não
cessa de mostrar as razões pelas quais não é dominável, redutível.
Aliás, só vale como precisamente Deus isso que está para lá de
todo o controlo. Mas esta constatação surge em todas as tradições
religiosas de todos os tempos: o divino é exactamente isso que não
é redutível, de modo algum, a uma qualquer função humana.
O divino, isto é, o que na realidade é o absoluto fundamento
motor, independentemente da caracterização cultural particular, é
o que nunca é moralizável. E tal é válido mesmo quando uma
religião parece não ser mais do que a tentativa de violentação desta
relação, tentando o ser humano controlar o divino através dos mais
variados processos litúrgico-rituais.
A história da humanidade pode ser vista como esta dialéctica
entre a recepção de uma manifestação de força, que tudo de humano transcende, e uma contra-manifestação de força humana, que
tenta funcionalizar aquela mesma força transcendente. Esta dialéctica corresponde a um processo de morte da força vital. Numa
suprema ironia, trata-se da própria força vital que, numa expressão
perversamente fraca, se volta contra si própria e tenta, neste movimento negativo anti-vida, aniquilar-se.
Ora, para Nietzsche, passados os momentos aurorais em que a
humanidade se constituiu una com o movimento vital que a erguia,
a vida do ser humano passou a ser uma luta contra a própria vida
que o ergue. E é contra este niilismo que Nietzsche se ergue, este
niilismo que Nietzsche combate. Deste ponto de vista, Nietzsche
é a antítese perfeita de um niilista. O interesse próprio de Niet-
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zsche reside em refundar uma humanidade que volte a ser o vaso
de eleição da manifestação da vida, não o seu esquife.
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A fraqueza como forma anti-dionisíaca
por excelência – o ressentimento como
origem de toda a morte
Esta atitude niilista é uma atitude que manifesta uma forma de vida
fraca. Como o camelo, patente nas metamorfoses de Assim falava
Zaratustra, toda a forma de vida que se limita a carregar-se a si
própria –sem alegria porque, em vez de ser uma forma poética, em
alacre poema de si própria – sobrevive como real negação do impulso vital fundamental. No mais íntimo de si própria, a dinâmica,
que poderia e deveria manifestar abertamente a pura alegria de ser,
procede antiteticamente, negando essa mesma manifestação como
algo de pleno: esta diferença entre a plenitude possível – a plena
irrupção do Dióniso presente em cada ser – e a real concretização
constitui uma forma de morte e é a matriz de todo o niilismo.
Esta incapacidade de aceitação da plenitude da força que em
cada ser clama por se expressar, esta real fraqueza do ser que moraliza a vida, vida que é sempre excessiva em si, dá-se sempre na
forma de um acto que se confunde com um sentimento, precisamente o ressentimento. Este nasce da evidência da diferença vital
manifestativa e manifestada entre o acto fraco do ser que moraliza a manifestação da vida em si e o acto do ser que tal não faz.
Este último, no qual a vida se manifesta em todo o seu esplendor,
constitui a nobre estirpe dos aristocratas; os primeiros constituem
a estirpe dos escravos.
Ora, constata-se que os escravos são em número muito superior
aos aristocratas. Contra estes, erguem aqueles uma muralha de
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preceitos morais, que invertem os verdadeiros valores de força e
vida: impostos a partir da sua bem amada fraqueza, os novos e
anti-vitais valores de fraqueza tornam-se na medida absoluta dos
padrões de vida doravante considerados como “bons”. Assim,
tudo o que disser respeito à livre expressão da vida passa a ser
condenado, triunfando tudo o que suportar manifestações fracas e
doentias de vida. Por exemplo, a nobre compaixão do corajoso é
degradada numa forma de tolerância para com a fraqueza alheia,
numa ânsia de transcendentalizar a mesma fraqueza como valor
humano.
Todas as virtudes consideradas por Nietzsche como “dadivosas”,
gratuitas, outorgadas a partir da simples e pura grandeza ontológica da força vital do aristocrata, passam a ser substituídas por formas meramente comerciais de troca de favores, que impedem qualquer real nobreza de acto, pois a mera troca anula o excesso de
grandeza de acto que o dom gratuito implica e carrega. Com tais
grandes virtudes dadivosas, perde-se o específico da grandeza propriamente humana, ficando a humanidade presa de e a uma uniformidade activa, que a torna num pântano de indiferenciação ontológica, onde tudo se equivale e o próprio de cada pessoa se torna
realmente impossível, pois apenas a diferença própria pode erguer
o traço apolínio formal de um acto de vida dionisíaco, efémero,
sim, mas propriamente diferenciado nessa mesma forma. O reino
da fraqueza é o reino da morte quer de Apolo e de toda a forma
própria quer da mesma possibilidade de Dioniso.
O ressentimento, o ódio ontológico à grandeza ontológica própria
do acto alheio é, assim, a forma matriz de toda a morte e o inimigo
de toda a vida, o inimigo mortal de Dioniso. Mas, como não há
forma alguma de vida que não seja manifestação qualquer de Dioniso, tal significa que a possibilidade e a realidade da morte estão
presentes no seio mais profundo da excessiva dinâmica ôntica e ontológica da própria vida. É a forma que Nietzsche tem de interpretar a funda intuição mítica acerca da matricialidade aparentemente
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paradoxal do khaos, de um khaos que é concomitantemente absoluta erótica vivencial, mas que, nesta mesma erótica, em seu pleno
desenvolvimento, transporta a possibilidade da morte. Ironizando,
podemos dizer que aqui é o ponto em que Nietzsche descobre a
sua versão do “pecado mortal”, que não é coisa de homem, mas do
próprio núcleo matricial da mesma vida.
3
O caminho metamórfico da vida
humana, desde Dioniso à criança
O que se diz acerca da realidade profunda de tudo como forma
vital matriciada pelo excesso radical de acto que é Dioniso vale
mesmo para tudo: todas as formas são manifestações de Dioniso.
Tal é válido também para o ser humano. No que precisamente a
este diz respeito, há uma evolução possível, em que a força dionisíaca se formaliza, isto é, ganha dimensões apolíneas, que passam
pelas metamorfoses necessárias, que vão desde a negatividade em
acto de passividade querida e assumida do camelo, ao acto de negatividade activa do leão que mata o dragão – senhor dos valores
negativos, “Deus” do “tu deves”, que é uma forma de mortal “não”
–, à forma definitiva da criança, forma ainda apolínea, mas pura,
em que Dioniso se revela formalmente, mas já como puro amor de
si mesmo, em que a forma mais não é do que um puro sim ao que
há-de vir. A criança é Dioniso que se ama brincando a ser-se.
Pode, assim, verificar-se que todo o percurso apolíneo, isto é,
formal, da emergência de Dioniso na forma de ser humano, contempla uma série de etapas em que a mesma vida se experimenta
sob todas as formas matriciais possíveis, sempre no limite, e no
limite mais extremo, como possibilidade de morte, isto é, como
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negação absoluta de si própria. O significado de tal escolha de Nietzsche é profundo: nenhuma vida se pode experimentar em toda a
sua grandeza se não for capaz de se experimentar no limite terminal de si mesma, no extremo do abismo em que vida e não-vida são
tangenciais, mas que é o único topos em que o ser humano pode
saborear o real travo da grandeza de algo como a vida, que é tudo,
mas que só se pode inteligir como tal precisamente no limiar da
sua total perda, da sua mesma aniquilação.
O momento, não da morte, mas da contemplação ante-fáctica
da sua possibilidade, é o único momento em que o ser humano
pode dizer que está verdadeiramente vivo, pois pode contrastar o
absoluto da vida que é com o absoluto da morte que pode ser. O
niilismo tenta por todos os meios evitar este mesmo momento e,
por tal, limita-se a viver uma vida sem grandeza, uma meia-morte,
sempre invejosa da grandeza vital dos que assumem a possibilidade
do abismo da aniquilação, o olham bem nos olhos e não desviam
dele o seu olhar. Evitando o confronto com a morte, o ser humano
fraco recusa-se a viver a vida em toda a sua plenitude, pelo que
acaba por ser uma forma de activa negação da vida, não da vida
em seu sentido comum, que coincide com o que se é, mas da vida
como o máximo possível de grandeza própria. Tal é o homem que
quer morrer, não apenas num qualquer fim derradeiro, mas que
quer morrer em cada acto que realiza. Quando o realiza, faz sempre
algo que está abaixo do máximo possível, pelo que constantemente
mata o possível, contribuindo para a morte da vida como um todo,
em sua manifestação.
3.1
Todas as formas anteriores à criança
como formas de negação da vida
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Deste modo, todas as formas de vida anteriores à criança são formas em que a vida como possibilidade máxima de ser – toda esta
vida é formal, apolínea – é constantemente negada, pelo que, sendo
todas elas formas propriamente “morais”, se percebe que toda e
qualquer forma de moralidade é uma forma de morte. A vida, em
seu puro surgimento, desconhece a moral: está “para lá de bem e
mal”, em sentido moral.
A graça absoluta da manifestação de Dioniso não é compatível
com qualquer forma de constrangimento. Não se quer com isto
dizer que não é possível constrangê-la; pelo contrário, é o comum.
Mas quer-se dizer que todo o constrangimento sobre esta irrupção
gratuita de vida, na forma do ser, significa um Apolo mais fraco,
menos luz, menos ser. Dioniso continua sendo o que é, a sua força
continua manifestando-se, mas é pervertida pelo “não”.
Todo o “não” desvia a vida do seu caminho próprio, parasitandoa, absorvendo a força vital. O não cresce à medida que vai negando
a vida. Mas, como forma de vida que também é, vai acabar por não
aguentar tanta vida negada, mas impossível de eliminar, vai ter de
explodir. Esta explosão de vida acaba por ser a própria criança
nascendo. Por isso tem o leão – que assume, negando-a, a negação
do camelo, mas que assume também a negação do que o camelo
nega – de ser negativo, como fase extrema da possibilidade de constituição da criança.
Percebe-se, assim, que a criança é o florescimento dionisíaco –
vestido com as roupas do belo Apolo – de toda a afirmação, mas
de toda a afirmação negada, pois, suprema ironia da vida, ainda
a negação, mesmo auto-complacente, é uma forma de a vida se
manifestar. A negação constitui, assim, uma etapa necessária para
a afirmação final, sendo que a afirmação final não é algo como o
culminar de uma dialéctica, por exemplo, ao modo hegeliano, mas
um salto ou ressalto da própria vida, que, neste salto, acaba por
coincidir, sem solução de continuidade possível, consigo própria.
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Finalmente, Dioniso assume-se na forma eternamente lúdica de
um Apolo, que sabe que é o brilho do mesmo Dioniso, assumindose como brilho que é, efémero ou perene, tanto monta. Finalmente,
o ser coincide com o seu acto e a realidade mais não é do que a contemplação de seu mesmo acto, sem distância ontológica, sem judicação ou sua possibilidade. Note-se que, aqui, não há, já, qualquer
possibilidade de discurso acerca de valores ou da sua transmutação:
a criança não cria propriamente valores, é uma pura emergência
ontológica da vida. Tal não tem ou pode ter qualquer valor. É
puro ser. Apolo, em sua pureza, como Dioniso, não são valores. A
grande transmutação de todos valores corresponde à aniquilação da
possibilidade de todo o valor, substituída pela simples coincidência
com a gratuidade dadivosa de Dioniso, da vida.
3.2 A vida como Wille zu Macht e esta
como um brincar
Assim sendo, a Wille zu Macht corresponde ao mesmo jorrar irrepreensível da vida. Como forma pura de manifestação de Dioniso, Macht não remete para uma qualquer forma de “poder”, antes
para um sentido muito profundo de “potência”, de “possibilidade”,
mas de uma possibilidade e de uma potência que são como que
“acto antes do acto”, que são tesouro de todo o acto possível. O
que se quer, o que esta Wille quer, o que esta Wille é, pois não há
uma Wille anterior ao querer que, depois, queira, é tanto a possibilidade em seu absoluto – que seja possível! – como o acto dessa
mesma possibilidade.
Assim, a criança quer, melhor, coincide com o acto de vontade de querer que a vida, como um todo e em cada uma de suas
manifestações contínuas, seja, sem mais. Mas quer também que
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seja como forma sua de consentimento. A criança, como forma
apolínea da Wille zu Macht, mais não é do que a possibilidade de
tudo que se assume como tal, isto é, como possibilidade de tudo na
forma apolínea de manifestação, e que, assim se assumindo, imediatamente se transforma na mesma vida que se dá. A criança é a
forma solar de a Wille zu Macht se manifestar em sua mesma plenitude. Tudo o que não é criança, é também forma de manifestação
da Wille zu Macht, mas de forma não plena, isto é, afectada por
um índice de morte. Esta morte não afecta a Wille zu Macht, que
é também a mesma morte como acto, mas isso que, pela morte,
não pode atingir uma plenitude possível, plenitude possível que é
a mesma Wille zu Macht como possibilidade.
Toda a acção em que a Wille zu Macht não é assumida em
sua mesma plenitude possível, sendo, assim, actualizada, é uma
forma de vida marcada pela morte que, em última análise, significa uma vontade perversa não de vida – que só é mesmo vida, se
plena –, mas de aniquilação da mesma. A vida ou se vive em sua
mesma plenitude ou caminha inexoravelmente para a sua mesma
aniquilação. Mas pensar que tal afirmação tenha um alcance universal é laborar em ilusão: a sua suposta universalidade aplica-se
apenas ao campo apolíneo da vida humana, pois, com esta ou sem
esta, Dioniso é sempre. O que deixa de ser, o que deixa mesmo
de ser possível é a humanidade, pois negou em seu mesmo acto, a
dádiva de possibilidade que a vida lhe outorgou. A vida humana
poderia e deveria ser apenas um consentimento gratuito à graça
dadivosa da própria vida matriz. Não é.
3.3
A contemporaneidade de Nietzsche
Para além de toda a importância da influência superficial que o
pensamento de Nietzsche exerceu na contemporaneidade, mesmo
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Américo Pereira
quando involuntariamente inspirou néscias gentes a nele se fundamentarem a fim de produzirem uma qualquer estrutura teórica
para seus delírios perversos de poder que nada dizem respeito à
grandeza dadivosa do poder como o pensador a entendia, permanece
a sua análise – rigorosa, por sob uma camada poética de grande
beleza, mas, por vezes, enganadora – da acção humana, no pano
de fundo de uma cosmologia em que há um predomínio absoluto
do movimento e da vida sobre tudo o mais e em que o vetusto terror do nada marca o limite abissal para toda a acção e para toda a
reflexão.
Clássico nestas preocupações, segue Nietzsche a luta pela afirmação do sentido da vida como único absoluto. Único absoluto
possível. A realidade é movimento. Contra o horror do nada e negando a realidade metafísica de um absoluto pessoal divino, terá
de ser, na falta de melhor, movimento de movimento, um eterno
retorno sem razão. Mas o que não pode ser admitido é o clamor
dos que vociferam contra a vida. O que não pode ser admitido é o
blasfemar contra a única realidade, o movimento vital, pai e mãe
de tudo.
Muito se tem discutido o carácter supostamente profético de
certas partes do pensamento de Nietzsche. Para lá de discussões
sempre em perigo de bizantinização, há que reconhecer que a análise
de Nietzsche suscitou o relevo teórico de fases de negação da vida
por parte da própria vida, fases que podem ser aproximativamente
entrevistas na realidade ética e política do século XX e também do
ainda incipiente século XXI.
O fenómeno do nazismo, e dos fascismos em geral, em que
se podem incluir formas tipicamente fascistas ditas de “esquerda”,
representou e representa ainda a maior experiência de negação da
vida, por vezes disfarçada de formas celebrativas da mesma, servidas por liturgias políticas de uma grandeza ímpar. No entanto, todas estas formas terminaram em literalmente imensos massacres de
seres humanos – mas não só, há uma dimensão ecológica negativa
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A crítica de Nietzsche ao niilismo
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implicada que é de grande monta –, no que constitui precisamente
o acto litúrgico culminante de uma verdadeira celebração não da
vida, mas da morte.
A ideia com que se fica, depois de muitos anos a estudar o
fenómeno do nazismo, é que, de facto, há nele uma celebração
da vida, que se pode inocentemente intuir como forma de celebração da vida de todo um povo eleito, mas que, numa visão mais
atenta, parece ser apenas a celebração da vida de uma oligarquia,
terminando por ser, após o testamento de Hitler, perceptível apenas como a celebração do absoluto de vida do tirano e de nada
mais: perdendo o tirano a vida – tirano que se julgava a fonte de
toda a vida de seu povo –, há que condenar todo o povo à morte e
toda a nação à simples aniquilação, sendo expedidas ordens nesse
sentido, o que faz com que esta interpretação não seja uma mera
especulação.
Mas o interesse maior de Nietzsche, para lá do folclore da espectacularidade literária da imagética que usa, reside não na análise
de movimentos éticos e políticos já havidos, mas nas lições que
pode antecipar relativamente a movimentos possíveis, a haver.
A denúncia de todo o movimento que é contrário à vida pela
vida deve imediatamente centrar a reflexão e a atenção do ser humano em todas as propostas em que a vida seja, directa ou indirectamente, posta em causa: todas elas representam formas de atentado contra a única realidade que humanamente há, a da vida, todas
elas devem ser rejeitadas, em nome da mesma vida.
Todo o movimento no sentido da indiferenciação da pessoa,
todo o movimento no sentido da sua diluição social e política, todo
o movimento que atente contra a sua liberdade ética profunda, isto
é, que mate nela a capacidade de brincar ontologicamente como
poeta de si própria, deve ser imediatamente anulado ou irá anular a
vida, mais tarde ou mais cedo.
A questão que fica é a de saber se o evidente mal-estar espiritual
em que se vive hodiernamente nesta suposta aldeia-global, muito
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Américo Pereira
longe de ser materialmente redutível a inquietações económicas ou
outras, não se deve precisamente à noção, ainda que difusa – mas
tanto mais inquietante porque impossível de definir – de que a vida
está constantemente a ser negada e que, assim, estamos todos a
caminhar para uma forma superior de aniquilação, talvez indolor,
mas, ainda assim, inexorável?
Esta questão só tem uma resposta boa e não é, de modo algum,
uma resposta teórica.
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Um mundo que teima em morrer: A crítica de Nietzsche