SOBRE A CONCEPÇÃO DA CRIATURA COMO SENDO NADA EM SI:
APROXIMAÇÕES ENTRE AS IDÉIAS DE RUDOLFF OTTO E MESTRE ECKHART
Adriana Andrade de Souza - Doutoranda em Ciências da religião - UFJF
Orientador: Prof.ºDr. Faustino Teixeira
Resumo: Este artigo é uma tentativa de pensar as aproximações que Otto – em sua obra
“O Sagrado” – estabelece entre o sentimento do numinoso surgido perante o poder do indizível
(majestas) – sentimento a que chamou “sentimento do estado de criatura”, com os fenômenos de
pobreza e humildade na mística de Mestre Eckhart.
Palavras chave: sagrado, criatura, irracional.
Mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força
dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo:
ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E
Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza...
Guimarães Rosa.
A
obra de Rudolf Otto (1869-1937) intitulada: “O Sagrado” (1917) fala do elemento
não-racional e sua relação com o racional na idéia de Deus. O que está em jogo nessa relação
é a primazia do não racional sobre o racional. Primazia não no sentido de que o não racional é
mais importante que o racional, mas no sentido de ser primeiro – princípio, começo.
Poderíamos mesmo dizer que a questão chave desta obra é que o racional já é sempre um
segundo momento e que assim o sendo não é capaz de esgotar a totalidade do Sagrado. Pois
neste está sempre imbricada a relação destas duas dimensões (o não racional e o racional).
Para Otto, o não racional é a essência do Sagrado, ou seja, aquilo que é e permanece sempre
sendo o que é. Essência que só pode ser indicada dentro da própria experiência religiosa.
Experiência que é movida e comovida por um estado de arrebatamento despertado por algo
que é fora. A esse algo Otto chamou o Numen. Mas o que é propriamente este poder que
arrebata? Diante dele todo discurso se cala, todo barulho e agitação se recolhem no mais
profundo silêncio e repouso. No espaço aberto pelo Numen não cabe nenhum conceito,
nenhuma definição. O que implica que toda tentativa de aprendê-lo racionalmente está fadada
ao fracasso. Só se deixa acenar dentro e a partir da experiência. Ou seja: o Numen faz brotar
um sentimento que lhe corresponde: o sentimento do Numinoso – sentimento cuja semente já
estava lançada. Essa correlação está implicada em toda experiência religiosa. Poderíamos
mesmo dizer que o Numen só se deixa e faz ver pelo sentimento do Numinoso. Há aqui uma
pertença mutua, de modo que um não pode ser sem o outro. Perguntamos então: onde está o
Numinoso? Otto responde: “Só se pode indicar através do tom e do conteúdo particular da
reação do sentimento que provoca o seu aparecimento na consciência e que é necessário
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experimentar em nós próprios”.1 Diríamos então: o Numinoso só se deixa acenar no âmbito da
experiência vivida: não é um conceito que diz, mas a própria vivência. O que implica dizer que
buscar essa essência quer dizer passar por dentro – ou se se quer: estar num interesse (inter
= meio, esse = ser), estar no meio do ser. Estar no meio é estar todo dentro da experiência,
sendo que essa experiência é, para Otto, também uma possibilidade de cada um. Essa esfera
do vivido – o não racional – só num segundo momento assume-se em sua racionalidade.
Para evidenciar essa dimensão do começo, do não racional – que é a própria essência da
religião, Otto usa a Mística como base empírica. Ele mesmo diz:
(...) sabemos perfeitamente que todas as <<extravagâncias místicas>> não
tem relação alguma com a <<razão>>. Seja como for, esta crítica é um
estímulo salutar; incita-nos a observar que a religião não se esgota nos seus
enunciados racionais e a esclarecer a relação entre os seus elementos, de tal
modo que claramente ganha consistência de si própria.2
Pois bem, assumiremos, aqui, a tarefa de pensar as aproximações que Otto estabelece nessa
sua obra entre um sentimento numinoso que brota em reação ao poder do indizível (majestas)
– sentimento a que chamou “sentimento do estado de criatura” – com os fenômenos de
pobreza e humildade na mística de Mestre Eckhart. Para Otto, a grandeza desse poder nos
arrebata e faz brotar o sentimento do nada que nós mesmos somos. Não é um simples poder,
mas é – como diz Otto – um poder “como é aquele”. Um poder perante o qual tudo não passa
de pó e cinza. É o que deixa ver a frase de Abraão (Gênesis 18, 27): “Tive a ousadia de falar
contigo, eu que não passo de pó e cinza” (citado por Otto nesta obra). Pó e cinza traduz a
pobreza da criatura que diante do seu criador se recolhe no seu próprio nada. E o que é o pó
e a cinza? É o apoio frágil que a cada vez pode ser levado pelo sopro vazio de um vento. É o
firmar-se no nada. E a criatura não é mais que pó e cinzas... Não é mais que nada. Nada feito,
nada acabado: a criatura carrega o fado de uma falta, de uma imperfeição, de um não. Ou
seja: a criatura é sempre parcial, o que significa que a cada nascer do sol precisa reconquistar
seu mundo, pois este lhe é dado sempre num a cada vez. Para Eckhart, a criatura precisa
sempre de novo participar no ser de Deus (do princípio) para garantir seu ser, sendo que
nessa participação é preciso que ela mesma a cada vez deixe de ser. Pois bem, é desde essa
compreensão que a aproximação aqui proposta entre o que Otto chama o sentimento de ser
1
2
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 19.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 20
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criatura e o que Eckhart tem por pobreza e humildade ganha sua tonalidade. E é desde essa
perspectiva que nos empenhamos nessa tarefa.
Mas o que Eckhart, propriamente, tem por pobreza e humildade?
No Sermão 52 Eckhart começa com a frase de São Mateus: “Bem-aventurados os podres em
espírito, pois deles é o reino dos céus”. Para o autor a pobreza de que fala a palavra da
sabedoria traduz uma experiência interior radical, o que implica desconsiderar aqui o conceito
desgastado e corriqueiro de uma pobreza exterior. Perguntamos então: o que é um homem
pobre? É o Mestre que nos responde: “... é um homem pobre quem nada quer e nada sabe e
nada tem”.3 O que se deixa ver aqui é que em Mestre Eckhart a busca pela pobreza remete
sempre a um nada, a um vazio. Pois que privar-se na vida de todo querer, saber e ter é “bater
de frente”, “topar-se” com o próprio vazio. E estar vazio, para Eckhart, é quando se desprende
de tudo que é outro. Em outra formulação: o estar vazio implica o não estar remetido a outro, o
não estar na referência a um outro como um ser para isso ou para aquilo. Remissibilidade,
referência são palavras que trazem no seu bojo a sina traiçoeira da criatura de ser sempre um
ser do limite – um ser que se constitui desde a relação com o outro. O limite se dá sempre
numa referência. Assim, por exemplo: o quintal da minha casa se determina como tal na
referência à rua, ao quintal do vizinho, ou seja, a um outro que não ele mesmo. O muro ou a
cerca é o limite, o diferencial que dimensiona o que é meu e o que é de outrem. É o que me
permite dizer que esse é o meu quintal e o é porque não é a rua e nem o quintal do vizinho.
Pois bem, o estar dentro dessa teia de remissões (teia no sentido de que cada ponto remete
ao outro), ou seja, o estar condicionado por outro permite uma relação de intimidade e
segurança com o mundo. Mundo no qual nós realmente nos sentimos em casa. E é justamente
no seio dessa familiaridade com mundo – familiaridade que é antes uma cristalização do ser
como isto ou aquilo - que se perde, se esquece o sentido mais radical, do ser criatura. E qual é
esse sentido? É o sentido nenhum. É ser tão somente nada (o vazio) - nada substancial. Ou se
se quer: é ser pobre. E ser pobre é estar no ser de Deus (na dimensão do princípio) como pura
dinâmica de perder e conquistar, de chegar e de partir. Poderíamos mesmo dizer: ser pobre é
estar como um estrangeiro em sua própria casa.
E porque assim o é, o ser de Deus se traduz para a criatura como uma conquista constante.
Ou seja: a cada vez precisa participar no ser de Deus para garantir seu ser, pois este é a cada
vez o estranho. Pois que só assim a criatura pode concretizar-se em sua finitude. Finitude que
3
ECKHART, Maître. Sobre a pobreza – sermão n. 52. In. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos.
Petrópolis: Vozes, 1991, p. 190.
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traz no seu seio a possibilidade da morte, pois todo ser pressupõe um deixar de ser. É preciso
dizer que dentro do Catolicismo a experiência da eucaristia nos parece traduzir essa condição
de finitude da existência humana. Pois o católico, o crente precisa sempre de novo participar,
comemorar do princípio, do começo que é Deus. Precisa se unir a Deus em comunhão
(comum-união). Comunhão que traduz sempre uma transformação: o pão e o vinho
(transformação da uva e do trigo) se fazem corpo e sangue – algo deixa-se morrer para deixar
nascer. A comunhão – poderíamos mesmo dizer – implica um nascer de novo, um nascer
desde si mesmo como outro.
Nesse sentido, o homem pobre é aquele que sempre e a cada vez precisa perder para ganhar,
precisa deixar de ser para poder ser, precisa morrer para nascer. Morrer para todas as
certezas, morrer para todo o pronto e acabado e deixar nascer o verdadeiro sentido da
existência, que é colocar-se desde o movimento no qual a vida se concretiza. É o que nos
parece dizer aquela passagem do Evangelho: “Aquele que, em nome do Reino, terá deixado
tudo sobre a terra terá cem vezes mais.” Não sem alguma precipitação, diremos: aquele que
deixar todas as determinações que nos seduz e nos induz a tomar a existência como algo
substancial, ou melhor, aquele que em sua própria casa (na familiaridade das determinações)
for tomado pela mais profunda estranheza terá “cem vezes mais”, quer dizer: terá a pura
possibilidade. Possibilidade que é o próprio nada; não um simples nada, mas um nada que é
tudo, que é cem vezes mais.
Então é preciso perguntar: o que é isso, um nada que é tudo (que é cem vezes mais) no qual
radica essa pobreza? E ainda: em que medida essa pobreza diz também o sentido mais
profundo da humildade? Pois bem, o Sermão Jesus entra! deixa ver essa questão com
expressividade. Nele Eckhart faz um comentário de uma passagem de São Lucas (10, 38) a
qual traduz assim:
Nosso Senhor Jesus Cristo entrou num pequeno povoado e foi recebido por
uma virgem que era mulher4
Uma virgem que era mulher: eis como Eckhart traduz o ser Marta. E o que é ser Virgem? O
Mestre nos responde: “(...) designa alguém que é liberto de todas as imagens, assim como
quando ainda não era.”5. O que eqüivale dizer: ser virgem é estar recolhido no que nos há de
mais íntimo: lá onde nenhuma imagem pode fixar-se. Por isso, Marta – enquanto virgem –
4
SCHÜRMANN, Reiner. Maître Eckhart ou la joie errante. Sermons Allemands Traduits et Commentés par
Reiner Schürmann. Paris: Éditions Planète, 1972, p. 16.
5
Op. Cit, p. 17.
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representa o mais íntimo da alma, ao que Eckhart chamou o fundo da alma. Fundo sem fundo,
pois que nele todo apoio se esvanece, todo o chão - ou seja, todas as certezas que nos detém
numa relação de proximidade com o mundo - se converte no mais profundo abismo, na mais
profunda estranheza. Fundo que, segundo o Mestre, diz o ser quando ainda não era. E ser
quando ainda não era é ser só o puro possível no qual está radicada a unidade de Deus.
Unidade que, nesse sentido, só pode ser experienciada quando ousamos dar um passo atras
– passo que é já um saltar-se da base para o abismo, para o nada. Nada que, por sua vez,
trás em si a possibilidade de tudo que é. Nada desde onde o mundo se concretiza em seu ser.
Esse passo atrás é o voltar-se do homem para baixo, para o pó, a cinza desde onde veio e
para onde retornará – é fazer o percurso ao revés. O hino de Tersteegen, citado por Otto na
obra aqui em questão, diz a emoção dessa experiência:
Deus está presente,
Que tudo se cale em nós
E se curve perante Ele
É isso a humildade: o curvar-se do homem para a terra – terra que recolhe e espera a vida.
Terra que é mãe, que é mulher: que faz nascer, desabrochar a vida. Terra que não só recebe,
mas que na sua generosidade de mãe, nos presenteia com seus muitos frutos. Frutos que
brotam desde o seu íntimo acolhedor – que resguarda e fecunda. Nesse sentido, a humildade
em Marta é sua proximidade com a terra. Marta é aquela que está recolhida na unidade de
Deus – no ainda não concreto, não efetivo, não determinado. Marta é, assim, virgem para
receber Deus e, assim o sendo, o recolhe para o seu interior. Mas qual a nobreza desse
permanecer em recolhimento? Para Eckhart o permanecer recolhido nesse interior – que diz a
virgindade de Marta – será sempre insuficiente, por mais radical que seja. Pois é preciso que o
ser virgem deixe ser o ser mulher, deixe ser a sua feminidade: Marta é
virgem e é também mulher. Dela (do fundo da alma) brotará muitos frutos – cem vezes mais.
Assim o Mestre diz:
Se o homem permanecer sempre virgem, nenhum fruto jamais brotaria dele. Se
ele deve tornar-se fecundo, é necessário que ele seja mulher. <<Mulher>>: eis
a palavra que se possa dirigir a alma, e é bem mais nobre que virgem. Que o
homem receba Deus nele, isto é bom, e por esta recepção ele é virgem. Mais
que Deus torne-se fecundo nele, isto é melhor; porque a fecundidade de um
dom é só a gratuidade pelo dom (...)6
E mais:
(...) Uma virgem que é mulher, livre e desimpedida de todo apego, é em todo
tempo próxima de Deus e dela mesma. Ela carrega muitos frutos, e que são
grandes, nem mais nem menos que o é Deus ele mesmo. É esta virgem que é
6
Op. Cit, p.18.
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mulher que produz este fruto e este nascimento, e ela carrega frutos, cem ou
mil vezes ao dia, sim, sem nome, dando nascimento e tornando-se fecunda a
partir do fundo mais nobre: em verdade, a partir do mesmo fundo que o Pai
gera seu Verbo eterno, daí, fecunda, ela gera de acordo.7
Marta, sendo virgem, está pronta para receber Deus. Mas segundo o Mestre é preciso que ela
seja também mulher, de modo que deste mesmo Deus torne-se prenhe, cheia. Mulher para
conceber, fecundar de graça o que lhe fora dado de graça. E eis que Deus irá nascer em cada
movimento seu, em cada fazer-se do seu cotidiano - nascer como o outro, como filho, como
tempo – o bendito fruto que é tempo. Donde podemos dizer que esse nascimento que se dá no
que o Mestre chama fundo da alma – fundo que se traduz no ser Marta, é o limiar desde onde
se dá a união e a privação, a conquista e a perda de Deus. Pois que todo nascer de Deus
como filho, como tempo acaba por afastar a alma deste mesmo Deus, uma vez que esta vem a
fixar-se novamente nas determinações, nas imagens. Por isso Marta – o fundo da alma – ao
deixar Deus nascer deste mesmo Deus se priva, se nega; e o faz para poder novamente
conquistá-lo – conquistá-lo na concretude crassa e sem brilho do nosso dia a dia. Isso explica o
seu parentesco com a terra. Terra, cujo ciclo, já é sempre o abandonar-se ao jogo de afirmação
e negação, de nascimento e morte. A terra resguarda a semente em seu íntimo e desde então
a faz nascer como outra – como árvore. Árvore que é então a negação da semente – a
semente deixa de ser semente para se concretizar como árvore e flor, ou seja, toda afirmação,
todo nascimento se efetua desde a negação, desde a morte. A semente trás em si a
possibilidade da sua própria morte. A árvore é a possibilidade realizada, possibilidade que
enquanto tal continua reverberando na superfície concreta dessa realização. Pois a flor trás no
seu seio a possibilidade do fruto, ou seja, a sua negação. O fruto é o não ser mais flor e o
ainda não ser semente, ou seja, o fruto está fadado à negar-se na semente. Temos então que
o movimento da terra implica sempre e a cada vez um retorno ao princípio (à semente).
Princípio que continua vigorando no silêncio do mundo.
Pois bem, o concretizar-se de Deus no tempo – que implica na sua perda - é desde onde se
abre a possibilidade de para ele de novo retornar. Retorno que consiste em abandonar-se ao
vazio de Deus – vazio que nos fala, nos apela na calada do nosso cotidiano. Marta precisa a
cada novo dia arrumar a casa. (na continuação desta passagem do evangelho Marta é aquela
que estando ocupada com os afazeres domésticos deixa passar quase despercebida a
presença de Jesus). Arrumar para desarrumar, fazer por fazer – só pelo inútil do fazer. Fazer
sem prever, fazer sem porquê. Fazer desde o nada no qual está radicado a dinâmica da vida.
Arrumar quer dizer por em ordem – dispor cada coisa no seu ser, no seu limite. O que significa
7
Op. Cit, p.20.
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que desarrumar é a desordem, a perda de todos os limites, perda da clareza, das certezas –
perda do próprio. O próprio faz-se estranho.
Segundo Eckhart, o homem poderá contemplar Deus na medida em que for capaz de
desapropriar-se de tudo aquilo que lhe é próprio, inclusive de si mesmo. Poderíamos mesmo
dizer: o homem que deseja chegar a Deus tem que esquecer - esquecer para lembrar.
Esquecer do mundo e de si mesmo. Esquecer até mesmo de Deus encarnado no filho, pois a
plenitude de todo ser tem morada onde todas as criaturas são esquecidas. Assim, poderíamos
dizer que Marta, ao se ocupar com os serviços da casa, e ao manter-se afastada de Jesus,
esquece do próprio Deus feito filho. E assim o faz para lembrar de Deus na experiência do
abandono à inutilidade das ações cotidianas, na qual esse mesmo Deus manifesta-se
resguardando-se. Esquecer para Lembrar. Para lembrar que o nada ser da nossa existência
que implica propriamente num deixar ser o nada, é estar radicalmente aberto para receber, é
estar livre para a dinâmica da vida, dinâmica da unidade que é Deus. Deixar ser o nada que é
a nossa própria existência é tornar-se radicalmente externo ao mundo estando no mundo.
Para Eckhart, Marta está na mais radical experiência da existência – está no mundo, mas o
mundo não está nela. Por isso está continuamente num movimento de origem: precisa perder
para ganhar. Precisa perder Deus para ganhá-lo. Marta é aquela para a qual o familiar é
sempre estranho. Por isso Marta – o fundo da alma – vive na similaridade de Deus. Deus é
aquele que a cada vez precisa ser conquistado, experienciado como se fosse a primeira vez,
pois a cada vez é o estranho - a cada vez nasce como outro de si mesmo - numa dinâmica de
garantia da própria vida. Vida que assim se descobre como o eterno fazer-se do mesmo.
Mesmo que deve ser aprendido e surpreendido igualmente em todas as coisas.
Pois bem, a isso que Eckhart chamou fundo da alma é, segundo Otto, onde repousam os
elementos irracionais do Sagrado. E nas palavras de Otto: “Os elementos irracionais da nossa
categoria do Sagrado conduzem-nos a algo de mais profundo ainda do que a <<razão pura>>
tomada no seu sentido habitual, ao que o misticismo chamou, com razão, <<o fundo da
alma>>...” 8. E é desde esse fundo – no qual radica o sentimento do Numinoso – que provém o
elemento racional. Nesse sentido, também para Otto, o interior (não racional) deve eclodir para
o exterior (racional) - o ser virgem deve deixar ser o ser mulher. Pois o Sagrado se constitui
desde essa reciprocidade. Mas ao se exteriorizar, ao se racionalizar – ou poderíamos mesmo
dizer - ao se definir neste ou naquele conceito, esse interior (o não racional) se retrai. Isso
significa que o racional jamais esgota a totalidade do Sagrado. A divindade compreendida
como Onipotência, Onisciência, Espírito ou como quer que possa ser dita racionalmente já é
8
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 150
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sempre um manifestar-se desse fundo (desse não racional que é, para Otto, a essência do
Sagrado), mas um manifestar-se ao modo do recolhimento. Diremos então: que é desde o
racional que o não racional se mostra e se esconde, transborda-se e economiza-se.
A grande questão é que Otto tende à – poderíamos dizer – elevar o elemento racional. Pois,
para ele, quanto mais racional a religião mais excelente ela é. Ele mesmo diz:
O Cristianismo comporta noções; são de uma clareza e de uma precisão
superiores e formam um conjunto completo. É uma das características, não a
única, sem dúvida alguma, nem mesmo a principal, mas uma das essenciais
que marcam a superioridade do cristianismo relativamente a outros graus e
outras formas da religião.9
A mística, por sua vez, num sentido próprio, volta-se mais sobre o elemento irracional da
religião. Como vimos acima, a experiência de Deus, em Mestre Eckhart, é a experiência da
perda de toda clareza e medida. É o lançar-se na escuridão sem limites, no abismo da
desmedida. Para ele, o estar na presença de Deus já é sempre um estar no mundo desde o
abandono, o desprendimento. O abandono de todo nome, de todo isto ou aquilo. Abandono de
todo discurso fundamentado em razões. A mística de Eckhart fundamenta-se no afastamento
de toda conceituação empenhada pelo homem, pois que esta se dá sempre no âmbito
estagnado e disperso do seu ser criatura – seu ser parcial.
Concluindo as nossas aproximações entre o sentimento do numinoso a que Otto nomeia
sentimento do estado de criatura e os fenômenos de pobreza e humildade na mística de
Mestre Eckhart, diremos que ambos falam de um momento originário; de um momento que é
primeiro. Primeiro no sentido de ser o princípio. E conceber a criatura como sendo nada é já
admitir a presença ausente de um ser criador. Talvez o grande diferencial seja que em Mestre
Eckhart a experiência do nada, do desprendimento é a experiência da proximidade absoluta
com Deus – com a unidade que é Deus. Aí tudo é um: o disperso se faz unidade, o barulho
repouso, o criado se faz incriado. Esta experiência se dá num salto, num instante. Este salto,
por sua vez, implica um sair do criado para o criado, ou seja, a criatura sai de si para si, pois
está sempre no limite de si mesma, está sempre no limite do seu ser criatura. Desde o limite
de si mesma a criatura se faz outra, nasce desde si mesma como outra, ou seja, se descobre
numa nova possibilidade. A criatura, neste sentido, está constantemente se fazendo no ser de
Deus (o princípio que é a possibilidade absoluta), num constante deixar de ser para poder ser,
que diz a sua própria finitude. Para Eckhart a experiência da pobreza e humildade é a
experiência da conquista do caminho de volta a esse princípio, ao fundo original – o puro
9
Op. Cit, p. 10.
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possível. Caminho que se abre sempre como um raio – com a duração de um piscar de olhos.
Pois a criatura já é sempre criatura: já é sempre determinação, limite, isto ou aquilo e, portanto,
o princípio já sempre se perdeu na superfície tosca e sem brilho do nosso dia a dia. O que
significa que este caminho de volta precisa sempre de novo ser conquistado desde a
experiência da nossa finitude. Já em Otto, por sua vez, esse sentimento do nada nos é
despertado por algo que nos é fora. Não se fala de uma unidade com o criador. O sentimento
de criatura, do nada é um efeito do terror provocado por um objeto fora do eu – o Numen. A
grandeza desse poder nos desperta para o nada que nós somos: somos finitos, parciais,
limitados. O infinito, a totalidade é algo que me é fora – o totalmente outro.
Mas tanto Eckhart quanto Otto, quando apontam em direção ao fundo original, estão se
remetendo a uma instância que já é sempre pressuposta, que é sempre anterior a toda
conceituação e familiaridade com o mundo.
E sobre esse momento originário deixemos que nos fale uma poesia de Manyo-shuu, à guisa
de finalização deste trabalho.
No silêncio claro,
O luar.
Abre-se a flor,
Apenas branca,
À noite serena
Do céu.
Na espera de ti,
Meu Senhor.
Referências Bibliográficas:
ECKHART, Maître. O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos. Petrópolis: Vozes,
1991.
HARADA, Hermógenes. Do Sermão 52 de Eckhart. In: Scintilla-Revista de Filosofia e Mística
Medieval. FFSB: Curitiba, 2004
LIBERA, Alain de. Indroduction a la Mystique Rhenane – d’Albert le Grand à Maître Eckhart. Paris:
O.E.I.L, 1984
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70.
SCHÜRMANN, Reiner. Maître Eckhart ou la joie errante. Sermons Allemands Traduits et
Commentés par Reiner Schürmann. Paris: Éditions Planète, 1972.
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