Embondo, que nada!
Ditados populares não existem à toa. Eles são verdades que
surgem da lida diária e traduzem fatos e versões da vida comum. Sou
destas pessoas que acreditam na força do palavreado curtido em
cultura popular. Sem fome, comece a comer. Sem sono, comece a
contar.
Quando criança, eu guardava comigo um segredo que, hoje
bem sei, era insônia. Varava noites em claro sem relatar minhas
aventuras para ninguém. Poderiam pensar que era manha, mentira
ou embondo. Para me defender do medo e da solidão da madrugada,
comecei a contar. Contava não só as malditas ovelhas, mas tudo.
Acreditem: essa fascinação ainda me acompanha.
Sem palavras, via o dia virar noite. Vivia munido de
passatempos que me fizessem esquecer a existência da luz apagada.
Era óbvia para mim a hora em que meu pai, pé ante pé, se deitava.
Ele era sempre o último. E eu o seguia com os ouvidos, por temer
esse momento. Dali para frente, tudo ficava sem cor, mudo e surdo.
Um silêncio de doer.
Nas primeiras noites de atividade noturna, numerei os parentes.
Quantos primos, tios e tias! Cansado disso, comecei a contar os
amigos, os vizinhos e os professores. Isso foi chato demais porque,
mesmo durante o dia, eu continuava minha matemática. Fazia conta
de tudo. Vejam.
Feliz da vida, eu visitava a capital, de vez em quando. Eram
oportunidades para contar caminhões pela estrada: sem egoísmo, eu
os dividia com meus irmãos, que também viajavam. Afinal, seria sem
graça ser dono, sozinho, de um mundo de caminhões. Eu escolhia
contar os vermelhos (que eram maioria) e eles que se virassem com
os azuis, verdes e amarelos.
Criei outra brincadeira meio maluca. Deitados no chão,
deveríamos contar as estrelas; e ninguém nos interrompia. Essa
paranoia durava horas, já que não bastava contar as primeiras, que
eram poucas. Como redemoinhos, os olhos giravam em busca do
infinito escuro lá de cima. Os desenhos das constelações viravam
mania. Nossa mãe aparecia com pastéis, não sei para quem.
A vida toda passa por isso. No ano passado, tive grata surpresa
ao assistir à atriz Mariana Rios, em entrevista ao Jô Soares, revelando
detalhes da infância que pouca gente valoriza. Ela relatou seu amor
por uma vaca. Vira e mexe, lembro-me da batalha: não é que até as
vacas eu contava? Também os eucaliptos, em fila, até me perder,
mas eu os contava.
A qualquer momento, as lembranças ressurgem e nos acordam.
Aguardando atendimento do meu dentista, numa sala esmirrada,
observo, monótono, uma mesa de centro abarrotada de revistas de
fofoca. Sem preguiça, inicio a prática de contar. Penso nos reais que
pagaram por aquela montanha de entulho. São 12 volumes de uma
coisa só: fotos de gente rica, ou supostamente famosa, celebrando!
Com exatos 225 sorrisos.
Nem bem me levanto-me da cadeira e já começo a contar outra
vez. Chegou minha hora e faltam dez, nove, oito, cinco, dois
segundos para me sentar na cadeira do trauma de criança.
Autor: Samuel Guimarães
Aluno do 8º período de Jornalismo – PUC Minas – Coração Eucarístico
Rua Pitangueiras – 57/201 – Santo Antônio/Belo Horizonte
31-8456-3533
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