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5 •
Relações Sociais de Gênero,
Raça e Relações Interétnicas
SANDRA AZERÊDO
TEORIZANDO SOBRE GÊNERO
E RELAÇÕES RACIAIS
111 presos Indefesos, mas presos são quase todos pretos
ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos.
Caetano Veloso e Gilberto Gil, "Haiti"
Algumas militantes feministas tentam minimizar a questão racial.
Não vejo como é possível fazê-lo diante desses dados. A questão racial
não é um agravantezinho. É uma coisa séria, terrível. Fundamental
para se pensar o movimento feminista senão não é possível
dar conta de perto da metade da população feminina brasileira.
Sueli Carneiro'
RacIsm is fundamentally a femlnist issue because it isso
interconnected with sexist oppression.
bell hooks2
(t)he reasan racIsm is a feminist Issue is easily explained by the inherent definition
of feminism. Feminism Is the political theory and practice to free ali women: women of color,
working-class women, poor women, physically challenged women, lesblans, old women, as
well as white economically privileged heterossexual women. Anything less than this is not
feminism, but mereiy femaie self-aggrandiz.
Barbara Smith3
'Depoimento na seção "Negras", Mulherio, 521, 1985, p. 17.
2 Feminist Theory: from margin to conter. Boston: South End Press, 1984, Capítulo 4, Sisterhood: Political
Solidarity between Women, p. 51-52.
3 Citado em MORAGA, Cherrie e ANZALDÚA, Gloria. This Bridge Called My Back: Writings by Radical
Women of Color. Wintertown, Mass. Persephone Press, 1981, p. 61.
ESTUDOS FEMINISTAS 203 N E./94
-INeste trabalho, comparo teorias e práticas feministas nos Estados
Unidos e no Brasil, de modo a entender por que em um país racista e desigual
como o Brasil, em que a experiência de escravidão foi tão marcante, a
questão racial permanece silenciada em grande parte de nossa produção
teórica e prática, contrastando com os Estados Unidos, onde a questão racial
tem sido incorporada em cheio nas produções feministas. Até hoje, entre nós
feministas no Brasil, a questão racial tem geralmente ficado a cargo das
mulheres pretas, como se apenas estas fossem marcadas pela raça. No
entanto, como mostra Collete Guillaumin em seu artigo "Race and Nature: The
System of Marks. The ldea of a Natural Group and Social Relationship", todos
os grupos têm a ver com a marca, na medida em que esta é feita através de
relações de poder e só depois imposta aos grupos como se fosse natura1 5 . Não
se trata de o movimento feminista pensar a questão racial apenas para dar
conta "de perto da metade da população feminina brasileira", como sugere
Carneiro, ou mesmo de se perguntar, como ela o faz no final de seu depoimento, "quem neste país não tem um pé na senzala?", mas de começarmos a
compreender que raça, assim como gênero, se constitui em relações de
poder e, portanto, determina tanto a vida das mulheres e homens brancos
como a de homens e mulheres pretos. Como mostra Ruth Frankenberg, em seu
livro White Women: Race Matters/The social construction of whiteness
(Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993), "qualquer sistema de diferenciação modela tanto os que se beneficiam dele quanto aqueles a quem
ele oprime" (p. 1).
Acredito que a visão da complexa relação de gênero com outras
categorias de opressão, especialmente num país desigual como o Brasil, abre
caminhos para uma ação em direção a uma sociedade onde todo mundo
possa viver melhor. Em outras palavras, acredito que podemos aprender
algumas coisas com as experiências que as feministas nos Estados Unidos estão
tendo em seus esforços de estudar e mudar relações de gênero, incorporando
outras diferenças em seus estudos. Certamente, nossas formas diferentes de
teorizar sobre gênero têm a ver com as formas diferentes como se dão as
relações raciais e de classe nos dois países. Comecei a buscar entender essas
diferenças em meu trabalho sobre relações entre empregadas domésticas e
as mulheres que são suas patroas (Azerêdo, 1989) e neste trabalho continuo
a estudar essas diferenças. Porém, desta vez, gostaria de centrar o foco da
4 Feminist lssues, vol 8, n2. 2, outono 1988, p, 25-43. Originalmente publicado em
Plurlel, n2. 11, 1977.
5 Guillaumin comenta sobre a ingenuidade da pergunta comum sobre as razões da "redução dos
pretos à escravidão". Segundo Guillaurnin, nenhuma pessoa preta foi reduzida à escravidão - "os
escravos foram feitos, o que é muito diferente" (p. 33). Ela mostra que o fato de a captura dos escravos para a América, no final do séc. XVII e princípio do XVIII ter sido feita apenas em uma região do
mundo desempenhou "o papel de catalisador na formação da Idéia de raça, que se fez por meio
da clássica 'marca'". Porém, "a marca se seguiu à escravidão e de modo algum precedeu o
agrupamento de escravos. O sistema de escravidão já estava constituído quando se delineou a
Invenção das raças" (p. 33).
ANO 2 204 2. SEMESTRE 94
questão não na forma como se dão as relações raciais e de classe no Brasil,
comparando e contrastando essas relações com os Estados Unidos, mas nos
contrastes entre nossas formas de fazer teoria, que certamente deverão refletir
aquelas relações e, por outro lado, determinam nossa prática. Além de nos
apontar caminhos em direção a modos de convivência que não sejam
baseados em dominação, acredito que esta reflexão poderá também nos dar
alguma luz para entendermos as dificuldades que os núcleos de estudo sobre
gênero estão tendo para se firmar na universidade, apesar de sua recente
proliferação no Brasil. Acredito que estas dificuldades têm a ver com uma
tradição acadêmica patrilinear, que impede a entrada de outras vozes,
Inclusive a voz das mulheres, mesmo quando estamos fazendo teoria feminista. Certamente nossa prática está avançando, sobretudo na área da saúde,
mas aí também continuamos a sofrer pressões, seja nos convites que nos fazem
para participarmos de seminários apenas para legitimá-los (especialmente
agora que incluir a questão de gênero nos estudos passou a ser uma das
condições para financiamento de pesquisas), seja nas dificuldades de compreensão das especificidades da condição das mulheres em questões de
saúde.
• Em um colóquio sobre Formação, Pesquisa e Edição Feministas na
Universidade - Brasil, França, Quebec, tomo os Estados Uhidos como base para
minhas meditações sobre produção feminista e relações raciais no Brasil pelo
fato de a experiência de escravidão ser um marco importante da forma como
vivemos essas relações nos dois países. Pude perceber isto pessoalmente, ao
Iniciar um contato mais próximo com os Estados Unidos em 1981, quando
comecei meu curso de doutorado na Universidade da Califórnia em Santa
Cruz, Até então, meu interesse em tentar entender a questão da opressão da
mulher se concentrava no estudo de gênero. Certamente, eu entendia que
havia diferenças de classe entre as mulheres, mas o que mais importava era
o fato de sermos mulheres e compartilharmos experiências de subordinação,
ainda que estas experiências fossem muito diversas. Quanto às relações
raciais, estas simplesmente não existiam para mim. Foi impossível continuar
com este tipo de perspectiva, começando minha formação em estudos
feministas em 1981 nos Estados Unidos, tendo como orientadora Donna
Haraway, uma das primeiras feministas brancas a prestar atenção à complexidade da categoria gênero vis-à-vis outras relações de dominação.
1981 foi um ano marcante para a produção teórica nos Estados
Unidos e no Brasil, Neste ano foram publicados nos Estados Unidos o livro de bell
hooks, Ain'tia Woman: black women and feminism (Boston: South End Press),
o livro de Angela Davis, Women, Roce and Class (New York: Rondam House),
e o livro editado por Cherrie Moraga e Gloria Anzaldúa, This Bridge Called My
Back: Writings by Radical Women of Color. Além destas publicações, em 1981,
o tema da Terceira Conferência Anual da National Women's Studies Association
(Associação Nacional de Estudos sobre Mulheres)/N.W.S,A, foi Mulheres Respondem ao Racismo. Cheia Sandoval, participante da conferência da
N.W.S.A. como secretária da National Third World Women's Alliance (Aliança
ESTUDOS FEMINISTAS 205 N. E./94
Nacional de Mulheres do Terceiro Mundo), escreveu o relatório, que foi
publicado em 1982 pelo Center for Third World Organizing, Oakland, California,.
Estas publicações, feitas por mulheres pretas e "mulheres de cor", representam
uma severa crítica ao etnocentrismo das feministas brancas, que, ao se
concentrar no estudo das relações entre mulheres e homens, perderam de
vista as especificidades de classe e raça e as multideterminações da categoria gênero. A critica das "mulheres de cor" denunciava as tendências individualistas e liberais das produções feministas e propunham novas alternativas
de se fazer teoria feminista.
Por outro lado, aqui no Brasil, em 1981 foram publicados o primeiro
volume da Coleção Perspectivas Antropológicas da Mulher (Rio: Zahar) - com
o artigo de Bruna Franchetto, Maria Laura Cavalcanti e Maria Luiza Heilborn,
"Antropologia e Feminismo" e o artigo de Tania Salem, "Mulheres Faveladas:
Com a Venda nos Olhos" - e o livro do Grupo Ceres (Branca Moreira Alves,
Jacqueline Pitanguy, Leila Barsted, Mariska Ribeiro e Sandra Boschi 7), Espelho
de Vênus: identidade sexual e social da mulher (São Paulo: Brasiliense, 1981).
A novidade desta produção no Brasil, como assinala a Apresentação de
Perspectivas Antropológicas é a "reflexão a um só tempo política e
epistemológica" que caracteriza a atividade científica nesta área. Essas
publicações também se preocupavam em ver a influência da variável classe
na determinação das relações de gênero no Brasil. O trabalho de Salem busca
precisamente estudar "a dupla determinação" - de classe e de gênero - em
mulheres faveladas. O Espelho de Vênus consiste no estudo da identidade
feminina, com base no registro de "vivências de mulheres de diferentes origens
e gerações" (p. 16). Por outro lado, o trabalho de Franchetto et al, examina as
condições de aparecimento de uma produção feminista nos Estados Unidos
e na Europa e sua "reprodução" no Brasil a partir da década de 70, e termina
por concluir que há "um certo recorte de classe do feminismo em decorrência
de seu cunho individualista" (p. 43). Raça não aparece em momento algum
nessas publicações como uma categoria importante na determinação das
relações de género, mesmo quando se considera as relações entre empregadas e patroas, como Salem o faz em seu trabalho e como fazemos no Espelho
de Vênus. Quando, após uma análise critica de nosso trabalho 8 , voltei a
estudar essas relações em 1987, atenta às formas como se davam as relações
raciais, estas se mostraram como um elemento importante para a compreensão das relações de gênero.
Aqui analiso o trabalho de uma das autoras do artigo de Franchetto
et al., Maria Luiza Heilborn, que continuou a desenvolver idéias sobre o "cunho
6 Em 1990, este relatório figura como um dos muitos artigos da coletânea editada por Gloria Anzalclúa,
Making Face, Making Soul/Haciendo Caras. Creative and Criticai Perspectives by Feminists of Color
(San Francisco: Aunt Lute Books).
7 Sandra Maria Azerêdo Boschi era meu nome de casada, que usei entre 1970 e 1985.
8 Ver minha tese de doutoramento, Representations of Sexual Identity and Domestic Labor: Women's
Writings from the United States, Morocco and Brazil, Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, 1986,
ANO 2 206 2, SEMESTRE 94
Individualista" do feminismo, agora estabelecendo uma relação necessária
entre gênero e hierarquia. Comparo e contrasto seu trabalho com os trabalhos
publicados nos Estados Unidos na mesma época, situando-os no processo de
estabelecimento dos estudos sobre mulher/women's studies nos dois países.
Acredito que isto pode nos dar pistas para compreender nossa dificuldade no
Brasil em analisar género considerando simultaneamente outras categorias de
subordinação.
Meu interesse pelo trabalho de Heilborn está diretamente ligado ao
fato de ele representar uma perspectiva que focaliza relações de gênero per
se, nõo abrindo espaço para uma visão de como gênero está interligado de
forma complexa com relações raciais e de classe. Pretendo mostrar que é este
foco exclusivo na categoria gênero que vai possibilitar que Heilborn desenvolva
a tese do individualismo necessário das teorias e práticas feministas e a tese
da relação necessária entre gênero e hierarquia. Finalmente, analiso as
estratégias usadas por Heilborn para estabelecer a autoridade de sua
perspectiva - que se apóia no conhecimento de figuras (masculinas)
reconhecidas na Antropologia (Lévi-Strauss, Louis Dumont, Eduardo Viveiros
de Castro, Luiz Fernando Duarte) - comparando-as com as de Haraway, para
quem as Imagens da ciência no feminismo dizem respeito à conjunção de
visões parciais e vozes indecisas numa posição de sujeito coletivo que
promete uma visão de vida dentro de limites e contradições. Minha intenção ao tentar estabelecer uma conversa entre essas diferentes formas de fazer
teoria é explicitar minha aposta na idéia de que complexificar a categoria
gênero - historicizá-la e politizá-la -, prestando atenção em nossa análise a
outras relações de opressão, pode nos abrir caminhos sequer imaginados
ainda de uma sociedade mais igualitária. Para tanto, é preciso considerar
gênero tanto como uma categoria de análise quanto como uma das formas
que relações de opressão assumem numa sociedade capitalista, racista e
colonialista.
- II Longe de pretender serem estas considerações de natureza
acusatória ao feminismo, com um intuito escamoteado de
roubar-lhe legitimidade politica e eficácia simbólica, ou de vaticinar
sua derrota futura em razão de seus limites, procede-se a
uma discussõo que se quer no seu interior. Pensá-lo como uma utopia
não lhe rouba os méritos de tronsformaçõo social.
Bruna Franchetto, Maria L. Cavalcante, M. Luiza Hei/bomn (p. 34).
O artigo de Franchetto et al. começa se perguntando por que "o
tema Mulher está na ordem do dia" (p. 13) e coloca como objetivo do trabalho
refletir sobre a produção teórica do feminismo. As autoras identificam uma
tendência do feminismo a buscar a origem da subordinação universal das
mulheres para a qual apontam os dados da Antropologia. Porém, este fato
universal não se baseia na biologia, mas trata-se de uma construção social,
ESTUDOS FEMINISTAS 207 N. E./94
como mostrou Simone de Beauvoir, ao afirmar que "não se nasce mulher" e
a preocupação com origens acaba por implicar "paradoxalmente a nãoradicalização da percepção sobre a qual repousa, em última análise, toda a
força política transformadora d(o) discurso - a de ser a mulher uma categoria
socialmente construída" (p. 32). As autoras vêem esta tradição analítica como
estando diretamente vinculada ao individualismo e argumentam que a
ideologia individualista é parte necessária da produção feminista.
Franchetto et al. identificam a demanda por igualdade no movimento feminista como um valor relacionado à ideologia do individualismo
liberal moderno. Para elas, o feminismo é mais uma expressão desta ideologia.
Elas o vêem "como uma das formas tomadas pelo individualismo moderno"
(p. 32), ou "como um desdobramento do individualismo" (p. 35), ou ainda
como "um dos nomes que o individualismo toma no processo de
autonomização da sexualidade com relação à família" (p. 37-38). Na verdade, elas consideram que uma das características que distinguem o feminismo
é ser um movimento social com valores individualistas. Segundo Franchetto et
al., estes valores aparecem não só na demanda feminista de igualdade, mas
também no "slogan livre apropriação do corpo e suas variantes" (p. 41), e em
seu foco nas relações sociais que são consideradas pessoais. Como as autoras
mostram, o privilegiamento da experiência individual se expressa na estrutura
celular dos grupos de reflexão, que desempenharam um papel central na
prática feminista. Esta experiência individual pessoal se traduz como uma
construção social no processo de forjar uma consciência feminista. A realidade pessoal é lida como uma produto social: "o pessoal é político".
Segundo Franchetto et al., "O feminismo, exemplo de prática e
Ideologia de um universo individualista, ao pôr em foco, valorizara experiência
individual, relativiza-a, descobrindo-a no interior do social. Produzindo essa
visão totalizadora está dada a sua condição e a sua força de fazer política"
(p. 42).
O individualismo é considerado como um componente necessário
do feminismo porque as autoras assumem, primeiro, que o feminismo parte da
proposição de que a identidade feminina é socialmente construída, e, em
segundo lugar, que esta proposição estrutura a prática política feminista que
visa mudar as formas - "percebidas como opressivas" - de construção da
identidade feminina. Neste movimento, segundo Franchetto et al., há o
"requisito indispensável" que o discurso feminista produza a categoria Mulher,
de modo a ser capaz de identificar formas presentes e passadas de ser mulher,
bem como de propor novas formas de existir. Para as autoras, "(é) a categoria
de indivíduo que, embutida na de mulher, habilita esta dupla operação" (p.
42). Estas operações, de acordo com as autoras, produzem "uma humanidade feminina indiferenciada" e levantam o problema de "um certo comprometimento etnocêntrico do discurso, apanágio que não é exclusivo do feminismo". É fundamental então que o feminismo reconheça e reflita sobre "a
diversidade/singularidade das produções culturais da identidade feminina" e
preste atenção ao fato de que "a mulher, como sujeito social que se afirma,
ANO 2 208 22 SEMESTRE 94
não é uma realidade homogênea e monolítica, mas vive, existe na concretude
das diferenças sociais e culturais que a constituem" (p. 43). Apesar de
fecharem seu trabalho advertindo sobre esta necessidade de se levar em
conta a complexidade das relações de gênero, Franchetto e al. sugerem que,
mesmo que o feminismo considere a diversidade e diferenças concretas entre
as mulheres, as produções feministas permanecem limitadas a mulheres de
classe média, que são as que se identificam com suas características individualistas. Para as autoras, no entanto, isto não diminui a "eficácia política" do
feminismo, já que sua intervenção "opera no sentido de garantir espaços
sociais para a atuação das mulheres, sejam elas feministas ou não" (p. 43).
O artigo de Franchetto et ai. pode ser lido como uma tentativa de
desconstrução do feminismo, especialmente se usamos a definição de
Gayatry Spivak, para quem "desconstrução não é uma exposição de erros,
especialmente dos erros de outras pessoas. A crítica na desconstrução, a mais
séria crítica na desconstrução, é a crítica a alguma coisa que é extremamente
útil, alguma coisa sem a qual não podemos passar" 9 . Como enfatizam
Franchetto et al., suas considerações sobre o feminismo se fazem do seu
interior. Como "antropólogas, mulheres, feministas", neste trabalho procedem
"a uma objetivação de (si) mesmas" (p. 30), mencionando sua identificação
com a epígrafe de Lévi-Strauss, que indica "a possibilidade ilimitada de
fracionamento do sujeito do discurso" (p. 13). Para as autoras, mesmo quando
o feminismo "se arroga o status de revolucionário, e portanto reclama para si
uma ruptura com o pensamento da época" é preciso situá-lo "num campo de
produção ideológica historicamente demarcada", não se tratando apenas
de "questões intelectuais afins, mas de um contingente de valores com o qual
ele dialoga, mais do que isso, que o estrutura" (p. 34).
Hellborn continua a desenvolver o argumento de que a ideologia
individualista necessariamente fundamenta as produções feministas e, em
1993, em um artigo baseado em sua tese de doutoramento, intitulado Gênero
e Hierarquia, publicado em Estudos Feministasm, seu argumento se amplia e
passa a abranger também o pressuposto de que a hierarquia seria o motor da
assimetria nas relações de gênero. Apoiando-se nos trabalhos de Dumont, que
vê a hierarquia como "princípio universal de ordenação social", na tese de
Lévi-Strauss de que a assimetria de gênero seria "pertinente a uma ordem
lógica de passagem natureza/cultura", e nas revisões destes autores feitas por
Viveiros de Castro e Duarte, Heilborn vai demonstrar seu argumento através do
estudo de trabalhos de três antropólogas - Gayle Rubin, dos Estados Unidos, e
Nicole-Claude Mathieu e Françoise Héritier, da França, e de sua própria
etnografia realizada com "nativos modernos" na cidade do Rio de Janeiro".
9 i
em BUTLER, Judith. Bodies That Matter. Nova lorque/Londres: Routledge, 1993.
10 HEILBORN, Maria Lulza. Gênero e Hierarquia . A costela de Adão revlsitada. Estudos Feministas, vol.
1, n°. 1, p. 50-82.
"A população estudada por Hellborn se compõe de 32 homens e mulheres entre 35 e 45 anos
'pertencentes aos estratos médios e superiores das camadas médias", compondo três possibilidades
de par - mulher e homem, mulher e mulher e homem e homem.
ESTUDOS FEMINISTAS 209 N. E./94
Segundo Heilborn, seu estudo pode ser visto como uma demonstração da
permanência da atuação da assimetria de gênero mesmo em um contexto
que renega a hierarquia e toma a ideologia igualitária como esteio da
organização social.
Segundo Heilborn, os pressupostos individualistas que fundamentam
a análise sociológica sobre a mulher mais dificultam que esclarecem a
questão de gênero. Como ela escreve, "A ótica de nossos valores permanece
incólume, não relativizada. E como a discussão se preocupa em vislumbrar as
possibilidades de transformação da situação feminina, isso em parte tem
contribuído para alijar certas possibilidades analíticas importantes, uma vez
que se supõe que estas encaminhariam para o imobilismo político. A interseção do campo político-militante com o teórico, característica de tais estudos,
funciona negativamente no aspecto ora mencionado.
Entre as alternativas interpretativas encontra-se a da universalidade
da hierarquia e, por extensão, a da hierarquia que a classificação do gênero
necessariamente comporta. A teoria da hierarquia e seus corolários, tal como
pode ser depreendida da obra de Louis Dumont, é um modelo de grande
alcance heurístico e que pode sistematizar as razões pelas quais há uma
constante estrutural de assimetria na montagem das relações entre os gêneros.
Por outro lado, é também essa obra que traz subsídios, mediante a análise da
categoria de indivíduo ao porquê da assimetria poder se apresentar como
ilegítima e, ós vezes, impronuncióvel" (p. 53).
A obra de Dumont é, assim, tomada não apenas como modelo
heurístico para compreender relações de gênero, como também possibilitando o entendimento da ótica que orienta nossa visão dessas relações, visão
esta que insiste - segundo Heilborn, ingenuamente - em considerar a assimetria
de gênero como ilegítima e, portanto, como requerendo uma ação política
para mudá-la. Quanto ao recurso à obra de Lêvi-Strauss, Heilborn o justifica da
seguinte forma: "Entendo que a questão da assimetria de gênero e de sua
possível universalidade deve ser equacionada nos termos determinados por
Lévi-Strauss para a problemática do incesto. Ela está conectada em um plano
lógico com este momento inaugural da cultura. Dessa maneira, não é fortuito
que a discussão da antropologia da mulher tenha sempre que retornar às
formulações contidas nas Estruturas Elementares do Parentesco" (p. 65).
Heilborn vai então analisar as diferentes formas de retorno às Estruturas
Elementares, tomando o trabalho de Rubin como uma volta rebelde, na
medida em que esta articula ingenuamente a proposta de uma "sociedade
sem gênero". Segundo Heilborn, Traffic in Women 12 apresenta uma peroração
12 The Traffic in Women: notes on the 'political economy' of sex é o titulo do artigo de Rubln, publicado
na coletânea de artigos antropológicos editada por Rayna Rapp Reiter, Toward an Anthropology of
Women (Nova Iorque: Monthly Review, 1975). Este artigo, escrito por Rubin quando era uma aluna do
doutorado em Antropologia da University of Michigan, é considerado um marco na produção teórica
feminista por ter usado pela primeira vez o termo sex/gender system (sistema de sexo/gênero). Talvez
seja o artigo mais citado em toda produção feminista (como Heilborn e eu estamos fazendo).
ANO 2
210
29 SEMESTRE 94
contra a ação repressora da sociedade e, sobretudo, em favor de uma
sociedade genderless.
Como se tal fosse possível! O gênero é um elemento constitutivo da
razão simbólica, determinando assim a impossibilidade de superação desse
constrangimento. A sagacidade de Rubin fica comprometida por uma visão
de sociedade em que a troca como pressuposto da organização social é •
tomada como opressora de parcelas da humanidade (as mulheres) ou da
sexualidade (a homossexualidade)" (p. 61).
Por outro lado, os trabalhos de Mathieu e Héritier, que apontam para
a inevitabilidade do "constrangimento" colocado pela realidade do sexo
sobre a realidade de "construção", contida na noção de gênero, são
exemplos de um retorno mais bem comportado. Sobretudo o trabalho de
Héritier, aglutinado ao da psicanalista francesa Marika Moisseeff, vai permitir
que Heilborn reafirme "o fato de que a assimetria de gênero é constitutiva do
social" (p. 69).
- III As dificuldades só parecem, talvez, menos Insuperáveis quando Eu/eu
consigo fazer uma distinção entre diferença reduzida à Identidadeautenticidade e diferença entendida também como diferença crítica de
mim mesma... A diferença num contexto tão insituável é aquela que
solapa a verdadeira Idéia de Identidade, adiando ao infinito as camadas
cuja totalidade forma 'Eu'... Se o feminismo é apresentado como uma
força desmistificadora, terá de questionar Inteiramente a crença em sua
própria Identidade.
TrInh MInh-ha'3
Sem dúvida, é fundamental para a teoria e a prática feministas que
deixemos bem claro de que ótica estamos construindo nossas visões. Este é,
aliás, o argumento básico do artigo de Haraway, Situated Knowledges: The
Science Question in Feminism and the Privilege of Partia! Perspective 14 , em que
ela critica a noção de objetividade em ciência baseada numa visão
descorporificada (disembodied) que vê tudo de todos os lugares sem jamais
se fazer vista ou marcada. Segundo Haraway, os conhecimentos produzidos
por este tipo de visão e pelo "falogocentrismo (nostalgia pela presença de
uma única Palavra verdadeira)" não interessam às feministas, mas sim os
conhecimentos "guiados por visões parciais e uma voz limitada" (p. 196). Em
outras palavras, para Haraway, "a objetividade feminista significa bem simplesmente conhecimentos situados" (p. 188).
É também fundamental que situemos o feminismo no contexto
Individualista em que se construiu. Porém, situar o feminismo dentro de uma
ideologia liberal, individualista, não é suficiente. Uma série de autoras nos
Citado em HARAWAY, O Humano numa Paisagem Pós-humanista Estudos Femlnistas, vol. 1, nc,. 2,
1993, p. 286.
14 Este é o capítulo 9 do livro de HARAWAY, Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature.
Londres: Free Association Books, 1991.
ESTUDOS FEMINISTAS 21 1
N.
E./94
Estados Unidos têm apontado para as características individualistas do feminismo. Já em 1980, Michelle Rosaldo, antropóloga feminista, havia publicado
na revista Signs: Jouma/of Women in Cu/ture andSocietyseu artigo The Use and
Abuse of Anthropology, onde, assim como Franchetto et al., identifica a
tradição analítica de buscar uma origem para a subordinação universal das
mulheres como estando diretamente relacionada a uma idelogia individualista. Porém, diferentemente daquelas autoras, Rosaldo não vê esta ideologia
como necessariamente fazendo parte das produções feministas, mas sim
como parte de "uma sociologia tradicionalmente orientada pelo masculino
(male-orientecf)" (p. 415), a qual tem constituído um empecilho para a
pesquisa feminista e a qual pode ser mudada.
Rosaldo procura mostrar como esta ideologia dificultou seu próprio
trabalho sobre mundos público e privado, publicado em 1974 16 . Assim como
Rosado, hooks também tem se preocupado em analisar as raízes individualistas do feminismo. Em Feminist Theory: from margin to center, hooks vê a
ideologia do individualismo que tem permeado o pensamento feminista
ocidental como minando "o radicalismo potencial da luta feminista". Para ela,
"(q)ualquer movimento para resistir à co-optação da luta feminista deve
começar por introduzir uma diferente perspectiva feminista - uma nova teoria
- que não seja informada pela ideologia do individualismo liberal" (p. 8).
Haraway, em seu trabalho 'Gender' for a Marxist Dictionary: The Sexual Politics
of a Word' 6 afirma que "a utilidade tática corrente da distinção sexo/gênero
nas ciências da vida e sociais tem tido conseqüências calamitosas para
grande parte da teoria feminista, ligando-a a um paradigma liberal e
funcionalista, apesar dos repetidos esforços de transcend )r estes limites em
um conceito de gênero inteiramente politizado e historicizado" (p. 130.
Recentemente, numa coletânea publicada por Judith Butler e Joan
Scott, Feminists Theorize the Political (Nova Iorque, Londres: Routledge, 1992),
várias feministas fazem uma severa crítica aos fundamentos do fazer político,
mostrando que as noções de "universalidade", "igualdade" e "sujeito de
direitos" foram construídas, tomando o Homem Branco como modelo, sendo
este considerado como uma categoria não mareada por gênero e raça,
e apontando para formas alternativas de teorizar o político a partir de
perspectivas feministasu.
15 Rosaldo está se referindo aqui a seu artigo Woman, Culture and Society : A Theoretical Overview,
publicado na coletânea que ela editou com Louise Lamphere, Woman, Culture and Soclety(Stanford:
Stanford University Press, 1974) O artigo de Rubln faz parte de uma outra coletânea de artigos
antropológicos editada na mesma época, porém do outro lado dos Estados Unidos, na costa leste,
16 Este trabalho é o capítulo 7 do livro de Haraway, Simians, Cyborgs, and Women (op. cit.).
17 Ver, especialmente, os artigos de Judith Butler, Contingent Foundations, Donna Haraway, Ecce
Hort:1o, Ain't (Ar'n't) I a Woman, and Inappropriate/d Others: The Human In a Post-Humanist Landscape,
e Chantal Mouffe, Feminism, Citizenship, and Radical Democratic Politics O artigo de Haraway foi
traduzido por Marcos Santarrita com o título O Humano numa Paisagem Pós-humanista e publicado
em Estudos Feministas (vol. 1, na. 2/93, p. 277-292). É preciso que se diga que se trata de uma excelente
tradução de um artigo difícil por tratar Justamente da questão da tradução de textos através da
história e a utilização de transcrições da Bíblia e do que Haraway chama de "idioleto do Escravo
Imaginado pelo abolicionista branco, o supostamente arquetípico escravo negro de fazenda do Sul"
(p. 290) Santarrita faz um bom trabalho de tradução para o português da transcrição deste "dialeto",
porém é preciso ler esta tradução dentro do contexto da linguagem das pessoas escravas e seus
descendentes no Brasil, contexto este que é multo diferente do contexto dos Estados Unidos.
ANO 2 212
2 SEMESTRE 94
Acredito que este tipo de crítica à ideologia individualista do
feminismo representa uma alternativa ao retorno puro e simples a teorias que
propõem a hierarquia como fundamento inevitável do social ou "a assimetria
de gênero como pertinente a uma ordem lógica de passagem natureza/
cultura", na medida em que essas críticas vão além da mera indicação dos
pressupostos individualistas do desenvolvimento do conceito de gênero e do
contexto liberal em que ele se desenvolveu, apontando para barreiras que tais
pressupostos criam não apenas para a teoria feminista, mas para a prática
política. Como diz Haraway, a questão talvez tenha mais a ver com a ética e
a política que propriamente com a epistemologia (p. 187). Ela argumenta que
o recurso às noções de apropriação, troca e objetificação - próprio de um
pensamento individualista - para se compreender relações de gênero tem
constituído uma barreira importante para se compreender sistemas de raça/
gênero ou raça/sexo e para se estabelecer alianças interraciais (p. 138). Ao
buscar mostrar como as relações opressivas de gênero não podem ser
analisadas sem se levar em conta o "racismo enquanto uma instituição
fundadora do Novo Mundo" (p. 145), as novas teorias críticas que estão sendo
construídas questionam a própria noção de uma identidade fixa do feminismo, ao mesmo tempo que possibilitam desafiar a hegemonia de posições
analíticas e políticas específicas, evitando o que Biddy Martin e Chandra
Mohanty chamam de "efeito indesejado (de) solidificar a identificação do
feminismo com o Ocidente" (p. 195)18,
O questionamento da noção de identidade abre possibilidades
novas para criarmos uma verdadeira aliança entre mulheres diferentes. Em
outras palavras, o que essas novas teorias vêm mostrar é que a questão da
Identidade não pode ser tratada sem se levar em conta a questão da
diferença, como afirma Trinh. Por sua vez, esta nova visão de Identidade se liga
a uma visão de humanidade articulada em novas formas. Em seu artigo O
Humano numa Paisagem Pós-humanista, Haraway lida diretamente com
essas questões através da leitura de Jesus e Sojourner Truth, escrava americana, propondo-as como possíveis formas de uma "humanidade feminista" (p.
277). Segundo Haraway, "Filho de mãe, sem pai, mas filho do Homem
reivindicando o Pai, Jesus é um verme potencial na psicanálise de representação edipiana; ele ameaça estragar a história, apesar de, ou por causa de,
sua estranha filiação e ainda mais estranho parentesco, por causa de seus
disfarces e seus hábitos de mudança de forma. Jesus faz do homem uma
promissoríssima zombaria, mas uma zombaria que não pode fugir da terrível
história do corpo partido" (p. 282).
Por sua vez, SojournerTruth (cujo nome significa literalmente Verdade
Itinerante) "era fêmea e negra; não, está errado - era uma fêmea negra, uma
mulher negra, não uma substância coerente com dois ou mais atributos, mas
I, Ver MARTIN, B. e MOHANTY, C.. Feminist Politics . What's Home Got do Do with It?. DE LAURETIS, Teresa,
FerninIst Studies, Criticai Studies. Bloomington: Indiana University Press, 1986, p. 195.
ESTUDOS FEMINISTAS 213 N E./94
uma singularidade oximórica, que representava toda uma humanidade
excluída e perigosamente promissora. A linguagem do corpo de Sojourner
Truth era tão eletrizante quanto a de seu discurso. E ambas se entrelaçavam
em cascatas de questões de origens, autenticidade e generalidade ou
universalidade" (p. 284).
O corpo conta nas novas formas de forjar nossa humanidade. Isto
fica claro na crítica que Haraway faz ao enfoque de Rubin, que toma como
base a instituição do parentesco. Haraway pergunta o que acontece com
este enfoque quando as mulheres não ocupam a mesma posição naquela
instituição, "(e)m particular, o que acontece com a idéia de gênero se grupos
inteiros de mulheres e homens são colocados totalmente fora da instituição de
parentesco, mas em relação aos sitemas de parentesco de um outro dominante - grupo?" (1991, p. 144-5).
Baseando-se no trabalho produzido por mulheres pretas e mulheres
de cor nos Estados Unidos, Haraway mostra porque a diferença entre o que
significava ter filhos para as mulheres pretas escravas e as mulheres brancas
livres nos Estados Unidos é parte importante da razão porque a questão dos
direitos reprodutivos "para as mulheres de cor nos Estados Unidos gira
destacadarnente em torno do abrangente controle dos filhos - por exemplo,
a liberdade de não serem destruídos por linchamento, prisão, mortalidade
infantil, gravidez forçada, esterilização obrigatória, moradia inadequada,
educação racista, vício de drogas, guerras de narcotráfico e guerras militares.
Para as brancas americanas, o conceito de propriedade em si, a posse do
próprio corpo, em relação à liberdade reprodutora, concentrou-se mais
prontamente no campo dos acontecimentos em torno da concepção,
gravidez, aborto e nascimento, porque o sistema do patriarcado branco
girava em torno do controle de filhos legítimos e da conseqüente classificação
de fêmeas brancas como mulheres. Ter ou não ter filhos torna-se assim uma
opção definidora de indivíduos para essas mulheres. As negras especificamente - e as mulheres sujeitas à conquista do Novo Mundo em geral - viamse diante de um campo social mais amplo de falta de liberdade reprodutiva,
em que seus filhos não herdavam a condição de ser humano nos discursos
hegemônicos de fundação da sociedade americana" (1993, p. 287-288).
A situação do Brasil é muito semelhante à dos Estados Unidos e
aponta para diferenças importantes aqui entre nós em relação ã questão dos
direitos reprodutivos. Edna Roland chama atenção para tais diferenças,
denunciando a tendência a impor modelos de famílias, que não são os de
todo mundo, no Brasil. Segundo ela, "quem já viveu historicamente a experiência de ser mercadoria sabe que o controle sobre o corpo é parte essencial de
nossa liberdade e auto-determinação... Entretanto, não somos apenas nosso
corpo, mas também nossas relações com uma comunidade do passado e
uma comunidade do futuro"19.
ROLAND, Edna, Fórum Global/ECO 92. Citado em CORRÊA, Sonia PAISM: Uma História sem Fim. Texto
apresentado no VII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Brasília, outubro 1992. Recife: SOS
Corpo, 1993, p. 6.
ANO 2 214 22 SEMESTRE 94
-IV Gostaria finalmente de situar essas meditações sobre produção
feminista e relações raciais, tentando relacionar a Terceira Conferência Anual
da N.W.S,A., que se realizou em 1981 nos Estados Unidos, com dois encontros
de mulheres feministas promovidos no Brasil para avaliar os estudos sobre
mulher - o Seminário Estudos sobre Mulher no Brasil: Avaliações e Perspectivas,
organizado pela Fundação Carlos Chagas com apoio da Fundação Ford, e
realizado em São Roque, São Paulo, em novembro de 1990, e o I Encontro
Nacional de Núcleos Universitários de Estudos sobre Relações Sociais de
Gênero, organizado pelo Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de
Gênero/NEMGE - USP, com apoio da Fundação Ford, e realizado em março
de 1991, em São Paulo.
Destes encontros resultaram publicações - em 1982, o relatório de
Sandoval, mencionado acima, e em 1992 o livro Uma Questão de Género (Rio
de Janeiro, São Paulo: Rosa dos Tempos, Fundação Carlos Chagas), editado
por Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini20, e Gênero e Universidade
(São Paulo: NEMGE/USP), editado por Albertina de Oliveira Costa e Eva Blay.
Em seu trabalho, Sandoval discute as tensões que ocorreram entre
as mulheres brancas e as mulheres de corno Conferência da N.W.S.A. e faz um
relatório da "Conferência dentro da Conferência" que aquelas últimas
realizaram para que discutissem a questão da representação dentro do
movimento feminista. Em suas discussões elas se lembraram como suas vidas
tinham sido silenciadas diante da alegada prioridade de uma "unidade" do
movimento. Elas se lembraram que tinham sido excluídas e se preocuparam
em criar um movimento flexível, capaz de ouvir as diferenças e mudar (p. 18).
Sandoval mostra como as mulheres de cor estão apresentando novos modelos
para se pensar e agir e estes modelos devem ser levados em conta para que
women's studies possam propor bases para uma ação política. Por outro lado,
Gênero e Universidade caracteriza os núcleos de estudos sobre mulher como
tendo surgido no Brasil na década de 80, resultando "do impacto do movimento
feminista sobre a produção acadêmica", sendo "os primeiros núcleos inspirados no modelo (dos programas de Women's Studies) de universidades estrangeiras, notadamente norte-americanas" (p. 124).
O que quero chamar atenção aqui é que essa inspiração para os
núcleos no Brasil é extremamente parcial: em nenhum momento as críticas ao
20 Heilborn apresenta nesta coleção o trabalho Fazendo Género? A Antropologia da Mulher no Brasil,
onde continua a desenvolver seu argumento sobre a necessidade da hierarquia. Das 14 autoras que
apresentaram trabalhos no Seminário e tiveram estes trabalhos publicados, seis tinham vindo de São
Paulo, quatro do Rio de Janeiro, duas do Rio Grande do Sul, uma de Brasília e uma da Bahia. Há uma
evidente concentração no eixo Rio-São Paulo tanto neste como em outros encontros feministas no
Brasil. O relatório narrativo da revista Estudos Feministas para a Fundação Ford também aponta para
esta concentração em suas edições (p. 4) Feministas de outras regiões fomos convidadas apenas
para os debates. Sueli Carneiro (de São Paulo) estava também presente nos debates. Certamente,
esta concentração na região mais desenvolvida do país tem reflexos em nossa teoria e prática no
Brasil
ESTUDOS FEMINISTAS 215 N. E /94
racismo que estavam sendo feitas nos Estados Unidos ao feminismo ocidental
desde pelo menos 1981 nos serviram de inspiração. Isto fica claro no
desconhecimento entre nós das produções de mulheres de cor nos Estados
Unidos - não existem traduções entre nós destas produções, Mas a parcialidade da inspiração aparece, sobretudo, na ausência desta discussão entre nós
mesmas. Certamente, a parcialidade não é um problema em si mesma; o
problema é tomá-la como representando uma totalidade que supostamente
conduziria à maior objetividade. Como afirma Haraway, "não buscamos a
parcialidade em si mesma, mas pelas conexões e aberturas inesperadas que
os conhecimentos situados tornam possível" (p. 196). Neste sentido, será
preciso que comecemos por reconhecer como nossa visão da questão de
gênero tem sido parcial aqui no Brasil, de modo a estabelecer um diálogo mais
produtivo com outras visões parciais da questão.
Gostaria de terminar este trabalho com uma outra citação do
depoimento de Carneiro, que leio como possibilitando uma abertura para
novas conexões nos estudos de gênero entre nós: "Ã medida em que brancas
e negras admitirem que vivemos num país racista e somos todas racistas e que
há Interesse em superar essa doença coletiva, então vamos sentar e negociar.
O pior do racismo nessa sociedade é que as pessoas atuam de uma forma
racista de modo inconsciente e escamoteador, sem se dar conta disso".
ANO 2 216 22 SEMESTRE 94
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