DAS CAMBALHOTAS AO TRABALHO:
A CRIANÇA ESCRAVA EM SALVADOR, 1850-1888
Maria Cristina Luz Pinheiro
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Faculdades Integradas Olga Mettig
No Brasil , o trabalho escravo, inicialmente utilizado nas propriedades rurais, expandiu-se
para os centros urbanos e predominou nas relações de produção, tornando-se não somente fonte
de riqueza e capital para os senhores, mas também esteio da sociedade. Essa mão-de-obra era
utilizada em todos os setores do trabalho urbano, propiciando, inclusive, certas especializações a
alguns escravos, contrariando a idéia de que os cativos eram incapazes para a realização de
atividades mais complexas.
A presença do trabalho na vida da criança escrava foi observada por muitos viajantes
estrangeiros, que estiveram no Brasil no decorrer do século XIX. Os olhos atentos de Jean
Baptiste Debret registraram várias cenas, que confirmam as muitas atividades exercidas por esses
cativos. Na visão desse viajante francês, por volta de cinco ou seis anos, os meninos passavam a
compartilhar com os escravos adultos as “[…] fadigas e dissabores do trabalho.” ( apud MOTT,
1972, p.6). Porém, na observação de Rugendas (1989, v.8) o início para o trabalho dar-se-ia
muito mais tarde :
Até a idade de doze anos as crianças não são obrigadas trabalhar; apenas limpam os
feijões e outros cereais destinados à alimentação dos escravos ou cuidam dos animais, e
executam pequeninos trabalhos domésticos. Mais tarde, as moças e os rapazes são
encaminhados para os campos.Quando um menino mostra disposições especiais para
determinado ofício, é-lhe este ensinado, a fim de que o pratique na própria fazenda.
Alguns anos antes da abolição da escravidão, a preceptora alemã, Binzer (1994, p.19)
relatava sua experiência em uma fazenda no Rio de Janeiro, onde havia:
[...] um mulatinho de doze anos, com cara de malandro e uma invencível predileção
pelas roupas sujas e pelas cambalhotas que se tornaram sua maneira habitual de andar; sua
obrigação é a de espantar moscas durante o almoço, junto à mesa, com uma bandeirola
(que é agora marrom cinza, seja lá o que tenha sido antes). E me parece mais intolerável
que as próprias moscas. Além disso, o menino deve servir o café ... bebida que se toma
quatro vezes ao dia [...]
A definição da idade em que a criança escrava tornava-se força produtiva, ou mesmo
quando ela começava a desempenhar algumas tarefas, se aos quatro, cinco anos, ao sete, ou aos
doze anos, tinha pouca importância diante das exigências da ordem econômica e social
escravista. Importa-nos verificar que a criança escrava não era uma carga inútil para os senhores
e que começava a trabalhar muito cedo. A permanência dessas crianças em poder dos senhores
prova, entre outras razões, que eles estavam interessados em aproveitá-las, em algum momento
de suas vidas, como força de trabalho. Essa era a lógica do sistema escravista. A partir dessas
características, com base nos inventários e escrituras de compra e venda de escravos relativos a
Salvador entre 1850 –1888, discutimos, neste artigo, o trabalho da criança escrava.
Os dados coletados nas escrituras de compra e venda relativos às atividades produtivas
exercidas pelas crianças escravas estão distribuídos pelas variáveis: sexo, idade e ocupação.
Fizemos uma análise qualitativa única para a mesma ocupação computada nas duas fontes
(inventários e escrituras). Os resultados obtidos com essa distinta documentação apresentam um
conjunto de dados numéricos satisfatórios, porém poucas informações qualitativas, dificultam a
reconstituição do cotidiano das crianças escravas nas suas atividades laborais.
A verificação de que o trabalho doméstico se constituía a ocupação principal de meninas e
meninos cativos é corroborada por ambas as fontes pesquisadas. As escrituras de compra e venda
apresentam 648 cativos menores exercendo as múltiplas atividades do serviço doméstico, o que
significa 81,3 % do total (797) de crianças escravas trabalhando. Dos 177 inventários
pesquisados, 47 apresentam a indicação dos ofícios das crianças escravas. A superioridade
numérica também recaiu para a atividade doméstica totalizando 20 casos, tendo a seguinte
distribuição: para o sexo masculino, 7 (35,0%) e para o sexo feminino, 13 (65,0%), o que
significa quase o dobro de meninas trabalhando nesse serviço.
Esses dados colocam em relevo o aproveitamento dos meninos e meninas nessas
atividades, de modo a não lhes permitir a ociosidade. Os meninos de faixa etária mais reduzida,
quatro e cinco anos, apresentam-se em número maior que as meninas da mesma idade. Porém,
com o avanço da idade, decresce o quantitativo de meninos nesse tipo de serviço. Por exemplo,
na faixa etária de 10 aos 12 anos de idade, eram 189 (57,7%) meninas e 156 (48,5%) meninos.
Possivelmente, esses meninos seriam aproveitados pelos senhores em atividades mais pesadas.
A partir de 7 anos de idade, há uma presença mais acentuada de meninas. Algumas hipóteses
podem ser aventadas nesse particular: o preço da mulher escrava era mais reduzido que o do
homem. Isso se refletia também para as crianças. Tanto os meninos quanto as meninas eram
levadas muito cedo ao trabalho, mas as meninas escravas provavelmente permaneciam mais
tempo no interior das residências, na realização de atividades que exigiam mais tempo em casa e,
portanto, sujeitas a maior controle. Um outro aspecto a ser considerado, em relação ao número
elevado de empregados domésticos, é que, além do costume de se ter um séqüito deles, o lar,
para funcionar, necessitava de serviços, principalmente de infra-estrutura urbana, de que a cidade
de Salvador somente passou a dispor mais para o final do século XIX.
O trabalho doméstico deveria ter para a criança escrava o significado de um adestramento,
a internalização do lugar que ela ocupava naquela família. Significava, também, vivenciar uma
teia de relações, na medida em que estava próxima à família do seu senhor, que tinha a
responsabilidade de prover às necessidades básicas desses escravos e estes lhes deviam
obediência e trabalho. Os meninos e meninas desempenhavam múltiplas tarefas em casa como:
servir à mesa, abanar moscas, carregar água, lavar pratos, servir café, auxiliar na cozinha, na
limpeza da casa, esvaziar e limpar os urinóis, preparar o banho dos senhores. Também lavavam
os pés dos membros da família e de visitantes, engraxavam os sapatos, escovavam as roupas,
carregavam pacotes, balançavam a rede, faziam pequenas compras, levavam recados, cuidavam
das crianças, eram pajens e mucamas. (MOTT,1972), (FREYRE, 1952), (MOTT, NEVES,
VENÂNCIO, 1988). Enfim, uma variedade de serviços que facilitavam o conforto dos senhores
e senhoras. As atividades desenvolvidas no âmbito doméstico não obedeciam a um padrão
rígido. Eram constituídas de uma ampla variedade, ou seja, a divisão social do trabalho não se
operava de forma rígida. O mesmo crioulinho que abanava as moscas, podia servir à mesa,
buscar água, engraxar os sapatos. A crioulinha que descascava e ralava a mandioca, ajudava na
cozinha, cuidava das crianças, também balançava a rede para o senhor dormir mais depressa.
Muitos dos escravos domésticos recebiam tratamento diferenciado dos demais. Para estes,
dispensava-se proteção, confiança e afeto. As mucamas e amas-de-leite constituíam as
representantes desse grupo que mantinham relações mais próximas e diárias com seus senhores.
Mas, essa relação afetuosa não deve ser generalizada, nem nos permite pensar que os trabalhos
domésticos fossem melhores que os do campo. As experiências para muitos desses escravos
poderiam ter sido muito dolorosas. O fim do dia não significava o final de uma jornada de
trabalho, na medida em que esses escravos estavam permanentemente à disposição dos
proprietários. Ser um escravo doméstico não significava necessariamente um abrandamento das
relações de poder, conforme sugeria Gilberto Freyre. Como afirmou King (1995, p.31) em seu
trabalho Stolen Childhood, o tratamento dispensado aos escravos domésticos apresenta-se sem a
certeza de ser bom ou justo. A localização geográfica, as dimensões da propriedade, o status
econômico dos senhores de escravos constituíam-se em fatores determinantes na variação desse
aspecto.
Depois do serviço doméstico, o trabalho na lavoura se apresentou como a ocupação com
maior quantitativo de menores cativos. Nas escrituras, essa categoria alcançou o total de 146
escravos menores, sendo que 77 (52,7%) eram do sexo masculino e 69 (47,2%) do sexo
feminino. Observamos que dos 77 meninos, a maioria estava concentrada nas faixas etárias de 9
a 12 anos, perfazendo 58 (75,3%) do total, enquanto que as meninas que trabalhavam nesse
serviço eram mais numerosas entre os 11 e 12 anos, correspondendo a 26 ou 37,7% do total. As
crianças escravas trabalhadoras no serviço da lavoura, assim como os adultos, labutavam nas
chácaras, roças, currais e até em alguns engenhos ao redor da cidade de Salvador.Trabalhar na
agricultura não era, portanto, uma atividade restrita às propriedades rurais localizadas em regiões
distantes do centro urbano. Dentre as muitas tarefas exercidas por essas crianças, encontrava-se
também a de cuidar da alimentação e criação dos animais de pequeno porte, como galinhas,
cabras, carneiros, porcos. A tarefa de plantar era atribuída ao negro.
Muitas dessas crianças pertenciam a proprietários rurais, moradores de vilas e comarcas da
província e, por conseguinte, já trabalhavam nessa ocupação quando foram vendidas e
registradas nos cartórios das freguesias de Salvador. Nesse sentido, vamos encontrar o crioulo
Felipe, de 12 anos, vendido, juntamente com seu irmão Jacinto, de 13 anos, do mesmo serviço,
ambos moradores da Vila de Lençóis. (AMS, ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DE
ESCRAVOS, livro: 66.10, 1861, fl. 13). Nazário e Marcelino, de 12 anos e Frutuoso, de 8 anos,
nascidos em Cachoeira, foram vendidos por Dona Thomazia Maria de Jesus Oliveira em 1862.
(AMS, ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DE ESCRAVOS, livro: 82.13, 1862, fl. 5.)
Os inventários nos apontam 11 meninas como aprendizes de cozer. Os serviços de costura
representavam uma forte ocupação para o grupo de trabalhadoras do sexo feminino. As
costureiras tinham a incumbência de fazer as roupas dos escravos, de cama e mesa das
residências e ainda as roupas da família. As meninas deveriam fazer as costuras mais simples sob
a orientação de alguma escrava, ou então, da dona da casa, pois geralmente as mulheres tinham o
hábito de costurar, mesmo as mais ricas.
Antes de analisarmos a categoria dos ofícios mecânicos, salientamos que os inventários e
as escrituras de compra e venda de escravos compulsados não registram a presença de crianças
como escravos de ganho. Ao considerarmos as características das atividades executadas por
esses negros escravos ou libertos, que, em geral, exigiam força física, esperteza, habilidade e o
saber negociar com o mundo da rua, é possível justificar a ausência de menores executando essas
atividades, tal como os adultos. Além disso, os escravos de ganho eram matriculados nos cantos,
o que implicava pagamento de taxas. O escravo de ganho, muitas vezes assumia a
responsabilidade de sua própria manutenção, tornando essa situação no mínimo difícil para a
criança escrava.
Em que pese esses argumentos, acreditamos que as meninas e meninos mais crescidos
trabalhavam na rua como vendedores de doces e frutas, como se observa hoje em dia nas ruas de
Salvador. Deviam, mesmo, ajudar suas próprias mães e até mesmo as escravas ganhadeiras na
comercialização de pequenos produtos, como registraram os viajantes estrangeiros e cronistas da
época. Esse comércio mais corriqueiro tinha o pleno domínio das mulheres, que monopolizavam
a venda de produtos, como verduras, peixes, mingaus, doces, enfim de comidas prontas.
A continuidade da análise dos dados nos permite inferir que os escravos pertencentes à
categoria dos oficiais mecânicos não eram muitos. Assim, crianças cativas tornaram-se
aprendizes de vários ofícios, como demonstram os dados coletados nos inventários e escrituras
de compra e venda de escravos. Eram aprendizes de marceneiro, carapina, tanoeiro, carreiro,
pedreiro, ferreiro, charuteiro, sapateiro, alfaiate, barbeiro, tecelão. Embora seja um número
reduzido no exercício desses misteres, esses meninos tiveram a chance de obter uma qualificação
profissional. Em consonância com os inventários, a maioria deles já apresentava idade acima dos
10 anos, com exceção de Luiz, crioulinho de 8 anos, aprendiz de marceneiro, que vivia em um
plantel pequeno, composto de apenas quatro escravos, na Estrada de Brotas. ( APEB, SÉRIE
JUDICIÁRIA, 4/1770/2240/2, 1861). Benedito, por exemplo, era, aos 12 anos de idade, aprendiz
de sapateiro e também tinha um irmão tão jovem quanto ele, de 13 anos, que trabalhava em uma
fábrica de algodão. (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 5/1628/2097/10, 1850). Já Graciliano, de 11
anos, era, em 1865, aprendiz de ferreiro. (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 5/1628/2097/10, 1850).
Os escravos mais jovens eram, de modo geral, aqueles colocados como aprendizes.
Alguns desses meninos tinham a mesma ocupação que o senhor, ou, então, de um outro escravo
adulto da mesma propriedade. A aprendizagem desses meninos certamente foi propiciada pelos
senhores no exercício diário de suas atividades. Quando a formação dos meninos escravos não se
dava com os senhores ou escravos mais velhos de uma mesma propriedade, eram encaminhados
para as oficinas dos mestres onde aprendiam sob sua orientação e submetidos a uma rigorosa
disciplina. As meninas, por sua vez, também recebiam ensinamentos ou de sua senhora, ou de
alguma escrava mais velha.
Na propriedade de D. Henriqueta Maria Manoela de Souza Guimarães (1852), localizada
no Jogo do Lourenço, as três cativas menores, Florência, Altides e Francisca, de 12, 10 e 8 anos,
respectivamente, aprendiam a cozer com Cândida, irmã de Altides, uma crioula moça, com
princípio de costura. (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 04/1616//2085/02, 1852.) Os quatro
escravos de Gustavo Xavier de Sá (1853), eram todos do serviço doméstico, embora
Hermenegildo, de treze anos de idade, além do serviço doméstico, tinha a responsabilidade
de“[...] acompanhar os órfãos para a eschola.” (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 04/1693/2163/05 ,
1853). O pardo João recebia do escravo Eliseu, oficial de pedreiro, os ensinamentos práticos que
o transformariam em um aprendiz. (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 4/1672/2142/08, 1856). Do
mesmo modo, Mathias, oficial de carapina, influenciava o aprendizado de Zacharias, de doze
anos de idade, no mesmo ofício. (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 4/1658/2127/03, 1856.) O
senhor Manoel Francisco Duarte (1862), proprietário de uma tanoaria, terminou repassando os
conhecimentos que tinha de seu ofício aos seus três escravos: Jorge, ussá, José, nagô, e Luís,
crioulo de doze anos de idade. (APEB, SÉRIE JUDICIÁRIA, 5/1987/2458/3, 1862).
Essas crianças escravas estavam sendo preparadas para um mercado em crescimento. A
província da Bahia não possuía um setor industrial forte, como de resto todo o Império, mas
havia uma demanda por parte do comércio, dos artesãos e do setor de serviços. Mesmo
reconhecendo que a participação das crianças escravas no processo produtivo era pouco
relevante, identificamos, para o sexo masculino, 17 ofícios e 3 para o sexo feminino: o de
aprendiz de cozer, do serviço doméstico e da lavoura, sendo os dois últimos também comum a
ambos os sexos. Não encontramos duplo registro de ocupações para esses cativos menores, como
acontecia com os adultos, que, não raro, a depender das necessidades do senhor ou do mercado,
exerciam mais de uma atividade. Não podemos afirmar que o trabalho dessas crianças escravas
vinculava-se às necessidades do mercado, porquanto o número encontrado exercendo atividades
mais qualificadas era muito pequeno.
Cabe-nos salientar que as fontes consultadas (escrituras) nos apontam 797 crianças cativas
exercendo diversas atividades, o que significa, em números relativos, 36% de um universo de
2216 crianças. Se somarmos as três últimas faixas etárias, (10, 11, 12 anos) vamos encontrar 423
menores ocupados em alguma atividade, o que corresponde a 53,1% do total daquelas crianças
escravas. Ao se proceder à análise da outra fonte (inventários), vamos encontrar, nos 47
inventários contendo o registro de ofícios para as crianças escravas, um total de 140 crianças.
Desse contingente, 54 (38,6%) menores tinham uma ocupação e a concentração estava voltada
para as faixas etárias acima de 10 anos, perfazendo um total de 45 (83,3%) de crianças. Esses
dados vão de encontro à idéia da criança escrava como improdutiva ou como um fardo pesado
para os senhores, que não lhe dispensavam proteção e cuidado.
O período em tela, os últimos 38 anos da escravidão, foi caracterizado por intenso debate
sobre a escassez de mão-de-obra no país. Essa condição trazia como conseqüência, a necessidade
de treinar não somente a população livre, mas também a escrava e, depois da Lei do Ventre Livre
(1871), os ingênuos. Os proprietários de escravos perceberam que qualificar essas crianças
escravas, em um momento de transição do trabalho escravo para o livre poderia lhes render mais
lucros que deixá-los no exercício de atividades sem qualificação. Os aprendizes dos diversos
ofícios treinados e posteriormente exercendo suas funções constituíam uma categoria de
trabalhadores especializados à medida que o capital se modernizava e o trabalho se adequava a
essa condição.
A concentração das crianças cativas trabalhando se deu, sobretudo no serviço doméstico e
no serviço da lavoura. Portanto, foi sob a denominação de serviço doméstico, com toda a sua
abrangência, que encontramos a maioria das crianças escravas trabalhando. Os aprendizes de
algum ofício necessitavam de um tempo maior para a aprendizagem e também de certa
habilidade. No nosso estudo, o quantitativo de crianças exercendo atividades mais qualificadas
foi pouco representativo. Apesar disso, essa mão-de-obra estava sendo preparada para um
mercado em expansão. E a qualificação nesses ofícios poderia trazer aos senhores lucros
imediatos.
As várias instituições dedicadas ao ensino de ofícios mecânicos em Salvador e as
autoridades já tinham propalado e firmado na sociedade a necessidade de se investir na “criança
pobre desvalida”, na medida em que, entre outras razões, não se dispunha de numerosa mão-deobra qualificada. Os aprendizes dos diversos ofícios treinados e posteriormente exercendo suas
funções constituíam uma categoria de trabalhadores especializados à medida que o capital se
modernizava e o trabalho se adequava a essa condição. Era preciso implementar o
desenvolvimento e a modernização da nação. Para se alcançar tal objetivo, fazia-se necessária
uma classe trabalhadora e disciplinada.
Nesse sentido, a educação escolar e profissional era pensada como um dos caminhos
possíveis. As crianças escravas aprendiam ofícios considerados tradicionais, como de sapateiro,
alfaiate, carpinteiro, pedreiro, tecelão, barbeiro. Entretanto, essa qualificação não era
acompanhada de instrução escolar, diferentemente dos meninos pobres que a recebia nas
instituições específicas, além do ensino desses ofícios. A educação pública foi garantida a todos
os cidadãos pela Constituição de 1824. Contudo, esse direito não foi outorgado aos escravos.
Essa condição demonstrava e demarcava claramente a hierarquia da sociedade escravista.
A legislação sobre a instrução primária no governo imperial expressava claramente a
1
proibição de os escravos freqüentarem as escolas públicas. Além da exclusão dos escravos, só
poderiam freqüentá-las as crianças de boa saúde e com idade entre 5 e 14 anos. Esses limites
revelam o entendimento dos legisladores em relação à instrução primária e pública. A
preocupação com os filhos dos escravos surge com o advento da Lei do Ventre Livre, quando o
governo teria a responsabilidade de assumir os meninos que fossem entregues pelos senhores ao
Estado. Tornava-se necessário, portanto, criar instituições que atendessem não apenas as crianças
pobres, os moleques de rua, mas também os filhos da escravidão. O destino desses meninos,
filhos de mães escravas, não estava longe das colônias agrícolas. O trabalho na lavoura era o
destino que lhes reservavam as autoridades. Assim sendo, podemos inferir que as crianças
escravas foram submetidas à intensa exploração de sua capacidade de trabalho. Os filhos e filhas
de mães escravas, quando deixavam o cativeiro, tornavam-se libertos pobres tais quais os livres
pobres, sujeitos às mesmas condições de exploração da mão-de-obra e à mesma exclusão social.
Para dar mais força e substância a essa idéia, vamos evocar o abolicionista e poeta Luís
Gama e sintetizar, através de seus versos irônicos, toda a intolerância da sociedade escravista em
1
As autoridades provinciais da Bahia estabeleceram em 22 de abril de 1862, um regulamento proibindo em seu art.
46, & 3º, o acesso de escravos às escolas primárias. Outros regulamentos com esse mesmo teor foram expedidos em
1873 e 1881. FUNDAÇÃO CULTURAL DO ESTADO DA BAHIA. Diretoria de Bibliotecas Públicas. Legislação
da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: A Fundação, 1996. p. 220-231.
relação aos negros e ao lugar que eles ocupavam no mundo dos brancos:
Não borres um livro,
Tão belo e tão fino
Não sejas pateta,
Sandeu e mofino.
Ciências e letras
Não são para ti
Pretinho da Costa
Não é gente aqui. (AZEVEDO, 1999, p.54)
REFERENCIAS
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São
Paulo. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1999.
BINZER, Ina Von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil.
Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1994.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sobre o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952. p. 617;
KING, Wilma. Stolen childhood: slave youth in nineteenth century América. Indiana University
Press, 1995 .
MOTT, Maria Lúcia de Barros. A criança escrava na literatura. Cadernos de Pesquisa.
Fundação Carlos Chagas. no 31, dez. 1972.
MOTT, Maria Lúcia de Barros, NEVES, Maria de Fátima, VENÂNCIO, Renato Pinto. A
escravidão e a criança negra. Suplemento, vol. 8 no 48 Ciência Hoje, nov/1988, p.21.
RUGENDAS, Joahan Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução Sergio Milliet. Belo
Horizonte: Itatiaia São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 3 série, v. 8, 1989.
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Maria Cristina Luz Pinheiro