PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
BACHARELADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
Anuê do Canto Palma
O DIREITO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS PELOS
ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: PRIVILÉGIO OU JUSTIÇA
Porto Alegre, 2007
ANUÊ DO CANTO PALMA
O DIREITO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS PELOS
ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: PRIVILÉGIO OU JUSTIÇA
Trabalho de conclusão apresentado como requisito
parcial para a obtenção de grau de Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Elton Somensi de Oliveira
Porto Alegre, 2007
Anuê do Canto Palma
O DIREITO DE ACESSO E EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS PELOS
ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA: PRIVILÉGIO OU JUSTIÇA
Trabalho de conclusão apresentado como requisito
parcial para a obtenção de grau de Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul.
Aprovada pela Banca Examinadora em _____ de _____________ de 2007.
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof. Elton Somensi de Oliveira - PUCRS
________________________________________
________________________________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço à
Deus pela força interior e a luz que sempre me deu,
à minha mãe, Neli, o exemplo de vida, amor, abnegação e dedicação,
ao meu pai, André, meu grande incentivador,
ao meu irmão mais novo, Kauê, por ter me suportado até hoje e pelo seu bom
exemplo,
à minha família, por ser o alicerce de tudo o que sou e serei,
aos meus amigos por estarem sempre por perto,
ao professor Jarbas de Mello Lima, a excelente administração desta Faculdade,
aos professores, o seu inestimável conhecimento,
e aos meus colegas de faculdade, a compreensão nos momentos difíceis.
Agradeço, em especial, ao Professor Elton Somensi de Oliveira, e a Professora Lívia
Haygert Pithan, pelo carinho, dedicação, disposição e competência com que me
orientaram neste trabalho.
“Alguns homens não têm firmeza de
caráter. Assemelham-se a uma bola de
cera e podem ser moldados em qualquer
aspecto concebível. Não possuem forma e
consistência definitivas e são inúteis no
mundo. Essa fraqueza, indecisão e
ineficiência precisam ser vencidas. Existe
no verdadeiro caráter cristão alguma coisa
de indomável, que não pode ser moldada
nem subjugada pelas circunstâncias
adversas. Os homens precisam ter,
moralmente falando, espinha dorsal, uma
integridade que não é vencida pela lisonja,
pelo suborno ou o terror”
Ellen G. White
"A busca constante por uma autenticidade
possível confere dignidade e sentido à
nossa vida”.
Ernest Sarlet
RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão do Curso de Direito na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tem por escopo abordar o problema da
crescente dificuldade encontrada por pessoas membros da Igreja Adventista do
Sétimo Dia, que possuem por preceito de fé a guarda do sábado bíblico, em
participar de certames públicos que são realizados neste dia (pôr-do-sol de sextafeira até o pôr-do-sol de sábado). Busca-se nesse trabalho evidenciar que a
igualdade no acesso a cargos públicos, enquanto direito que decorre de uma relação
de justiça social, reside na busca do que é justo, no sentido daquilo que é devido a
cada pessoa-cidadão membro de um Estado Democrático de Direito e que tem
como fim último a busca da dignidade da pessoa humana. São analisadas, ainda,
jurisprudências de tribunais pátrios aplicáveis ao objeto deste trabalho, visando
demonstrar o tratamento e as soluções aplicadas pelos tribunais.
Palavras-chave: liberdade religiosa, liberdade de crença, liberdade de culto,
justiça social, igualdade, dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT
The present Law School final research paper of the Catholic University of
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, has as a main objective address the problem of the
increasing difficulty found among people who are members of the Seventh-day
Adventist Church, who observe the Sabbath, regarding their attendance of public
functions, held on this day (from Friday’s sunset until Saturday’s sunrise). We sought
through this paper to highlight the equality in the access to public offices, while a right
of social justice, lies on the search of what is fair, while the right each person-citizen
has as a member of a Democratic Law State, which has as a final goal the search for
human being’s dignity. As for this matter, jurisprudences were analyzed with the
intention to show the treatment and the solutions applied by the courts.
Key Words: observance, social justice, social right, human being’s dignity.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil
IADS – Igreja Adventista do Sétimo Dia
STF – Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
1 JUSTIÇA SOCIAL .................................................................................................12
1.1 CONCEITUAÇÃO ...........................................................................................12
1.2 ESTRUTURA DO CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIAL ....................................13
1.2.1 Alteridade .............................................................................................15
1.2.2 Dever.....................................................................................................15
1.2.3 Adequação ...........................................................................................16
1.3 FORMULAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DA JUSTIÇA SOCIAL ..........17
2 LIBERADE RELIGIOSA ........................................................................................18
2.1 LIBERDADE DE CRENÇA..............................................................................21
2.2 LIBERDADE DE CULTO.................................................................................27
2.3 LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA ..............................................30
3 ACESSIBILIDADE A CARGOS PÚBLICOS – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO
SÉTIMO DIA .............................................................................................................33
3.1 ACESSO À CARGO PÚBLICO .......................................................................33
3.2 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO
CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA ...............................................37
3.2.1 Fundamentos jurisprudenciais desfavoráveis aos membros da
IASD..........................................................................................................................37
3.2.2 Fundamentos jurisprudenciais favoráveis aos membros da IASD .39
3.3 EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO
CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA ...............................................42
CONCLUSÃO ...........................................................................................................45
REFERÊNCIAS.........................................................................................................53
INTRODUÇÃO
A escolha de trabalhar sobre o tema da liberdade religiosa, máxime a
liberdade de culto religioso dos Adventistas do 7° Dia, justifica-se por não se
vislumbrar uma tutela efetiva no ordenamento jurídico atual, que assegure os direitos
dos adeptos dessa denominação religiosa de poderem manter os seus princípios de
natureza religiosa, que inclui o culto sagrado do Sábado (guarda do sétimo dia
bíblico) sem terem que, muitas vezes, sacrificarem os seus direitos constitucionais
(acesso a cargos públicos, participação em concursos públicos de vestibulares, etc.).
A delimitação do tema do trabalho reside no âmbito do direito da liberdade
religiosa, máxime do direito de liberdade de crença e de culto religioso que envolve o
respeito ao dia de descanso do sábado bíblico - guarda do sábado pelos Adventistas
do Sétimo Dia e religiões afins, bem como na plena garantia constitucional de todos
os cidadãos de poderem participar em certames públicos – direito de acesso e
exercício de cargos públicos.
O desenvolvimento dessa problemática se faz essencial para a busca efetiva
das garantias dos cidadãos diante do poder de limitação e ingerência do Estado na
esfera privada dos indivíduos, bem como a consolidação do Estado Democrático de
Direito, que visa respeitar, considerar e respaldar o indivíduo na sua integralidade
(inteireza) em harmonia com a pluralidade de pessoas e idéias. Assim, busca-se
identificar se existe uma preponderância de direitos e princípios aplicáveis ao caso
concreto analisado e avaliar as normas e princípios que os Adventistas do Sétimo
Dia se utilizam para buscar guarida dos seus direitos.
1
11
A pesquisa tem um enfoque de natureza teórica, partindo de uma revisão
bibliográfica do tema, bem como de uma análise da jurisprudência pátria, artigos
especializados e revistas diversas, para que se possa trazer maior luz e
compreensão ao objeto do trabalho.
O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro capítulo, tematiza
igualdade como um direito social, mediante a análise e explicação da teoria da
justiça, que trará luzes e subsídios para um melhor entendimento do problema
proposto. Tal problema reside na busca do que é justo, entendido como o que é
devido a cada pessoa-cidadão membro de um Estado Democrático de Direito, que
tem como fim último a busca da dignidade da pessoa humana. Usou-se como
estribo na pesquisa do primeiro capítulo a melhor doutrina do Prof. Luis Fernando
Barzotto, tendo como diretriz o seu artigo, Justiça social: gênese, estrutura e
aplicação de um conceito.
O segundo capítulo procura perscrutar o direito fundamental de liberdade
religiosa, assim como os seus principais desdobramentos em liberdade de crença,
culto e organização religiosa. Já no terceiro capítulo demonstra-se que o direito de
acesso à ocupação de um cargo público é um direito de todos os cidadãos,
independente da sua crença religiosa. Outrossim, analisa-se as correntes
jurisprudências pátrias aplicáveis ao objeto do trabalho, bem como casos concretos
de pessoas Adventistas do Sétimo Dia que são ocupantes de cargos públicos.
1 JUSTIÇA SOCIAL
1.1 CONCEITUAÇÃO
Luis Fernando Barzotto no seu artigo, Justiça social: gênese, estrutura e
aplicação de um conceito, discorre sobre à dignidade da pessoa humana e a justiça
social no sentido de que numa sociedade democrática moderna a concepção de
dignidade terá sentido universal e igualitário, permitindo-se falar em dignidade
imanente (inata) aos seres humanos, constituindo-se, então, premissa essencial que
todos indivíduos são possuidores de dignidade, portanto, se todos possuem a
mesma dignidade, possuíram também, fundamentalmente, a mesma igualdade,
igualdade esta que será absoluta, enquanto membros de uma mesma comunidade.
Numa sociedade democrática, cujo escopo é a justiça social, enfatiza-se o sujeito do
bem comum, como fim último da lei, porquanto, “todo ato em conformidade com a lei
beneficia igualmente a todos”. Com efeito, numa sociedade de iguais a justiça social
“tem por objeto aquilo que é devido ao ser humano simplesmente pela sua condição
humana”, resultando, portanto, em uma colaboração na obtenção do bem comum
(sujeito da justiça social), bem como numa devida participação de todos os membros
do bem comum (termo da justiça social)1
No mesmo artigo Barzotto expressa que “a justiça social exige de cada um
aquilo que é necessário para a efetivação da dignidade da pessoa humana dos
outros membros da comunidade, ao mesmo tempo em que atribui a cada um os
direitos correspondentes a esta dignidade.”2
Podemos inferir do texto em análise que todos os seres humanos, enquanto
pessoas, são iguais, dotadas dos mesmos direitos e deveres, e, portanto, toda
1
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito &
Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 114-116.
2
Idem, p. 118.
1
13
desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, quer seja de natureza física
(racial – raça dominante ou em maior número), mental (privilégio a uma ideologia
pessoal ou política dominante) ou espiritual (desrespeito e/ou desconsideração à
crença e à manifestação de culto de outrem), deve ser afastada, sob pena de ser
descaracterizada a justiça social.3
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), no seu
capítulo da ordem social, objetiva a justiça social, visto que, “devem ser atribuídos a
todos os bens (que formam o conteúdo do bem-estar) necessários ao pleno
desenvolvimento de sua personalidade”. Tal desiderato constitucional poderá ser
atingido “por mecanismos típicos da justiça social, atribuindo a todos o mesmo
direito, independente de características particulares, ou por meio de mecanismos de
justiça distributiva”.4
1.2 ESTRUTURA DO CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIAL
Para Barzotto o “conceito de justiça diz respeito a realização de um
determinado bem, e, portanto, deve-se determinar qual é o bem buscado pela justiça
social” 5
Para se fazer uma estruturação do conceito de justiça social deve-se levar
em conta: 1) Tipo de relação social; 2) Especificação de qual tipo de atividade em
que a justiça social é aplicada; 3) Exploração da manifestação na espécie justiça
social dos elementos do gênero justiça – alteridade, dever e adequação.6
A alteridade consiste em considerar uma relação de justiça entre sujeitos
diferentes. Ela (alteridade) “aponta para o fato de a justiça só ter lugar entre sujeitos
distintos”7. O dever significa que por alguma razão necessária será atribuído algo
devido a alguém, sem que isso implique num favorecimento de ordem (natureza)
3
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito &
Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 118.
4
Idem, p. 119-120.
5
Ibidem.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
1
14
subjetiva. A adequação será a determinação do critério – razão de proporcionalidade
- do que é devido a alguém.
A relação regulada pela justiça social é a do indivíduo para com a
comunidade, tratando propriamente daquilo que é devido à comunidade,
determinando quais são os deveres em relação a todos os membros da
comunidade. Assim, a justiça social regulando “as relações do indivíduo com a
comunidade, não faz mais do que regular as relações do indivíduo com outros
indivíduos, considerados apenas na sua condição de membros da comunidade”8
O bem comum é o objeto da justiça social pretendido diretamente, sendo
que o bem dos indivíduos (partícipes) da comunidade serão considerados
indiretamente. Com efeito, todo ato que busca diretamente o bem comum, alcança
indiretamente o bem de cada membro da comunidade.9
O tipo de atividade em que a justiça social tem aplicação é aquela na qual se
regula “uma prática social mais complexa, a prática do reconhecimento”10. A justiça
incidente sobre um determinado tipo de atividade social manifesta-se na exata
medida em que uma pessoa respeita e reconhece os outros como pessoas,
caracterizando, assim, uma prática de mútuo reconhecimento no seio de uma
comunidade.
O Prof. Barzotto assevera que:
A justiça social, pois, suprime toda sorte de privilégios, no sentido de uma
desigualdade de direitos. Cada um só possui os direitos que aceita para os
outros, ou seja, cada um é sujeito de direito na mesma medida em que
reconhece o outro como sujeito de direito. A recusa no reconhecimento
destrói a comunidade dos sujeitos de direito. Aquele que não é reconhecido
como sujeito de direitos no interior da comunidade, também não é sujeito de
deveres. Na medida em que os demais membros não reconhecem os
direitos de alguém, este fica desobrigado de reconhecer os direitos dos
11
demais.
8
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito &
Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 121-122.
9
Idem, p. 122.
10
Idem, p. 123.
11
Ibidem.
1
15
1.2.1 Alteridade
O ser humano em quanto considerado como pessoa humana é membro de
uma comunidade específica. Ele é o outro (alter) numa relação de justiça social,
sendo assim, o sujeito beneficiado na relação de justiça. A pessoa humana é
visualizada como sendo partícipe do todo e não na sua singularidadeindividualidade, portanto é em virtude da sua qualidade de pessoa humana que o ser
humano é considerado como titular de direitos e deveres na ótica da justiça social.12
A pessoa humana deve ser considerada como um ser concreto, visto que
existe de fato. Ela é, igualmente, um ser individual, porque é um todo em si mesmo,
não podendo ser considerada como mero fragmento de um todo maior. Não se pode
olvidar que a pessoa humana tem raciocínio próprio, peculiar, estando apta para
autodeterminar-se nos atos da vida pessoal, capacitada a viver como bem entender
e habilitada a conhecer a verdade por si mesma, por intermédio da livre razão. Por
derradeiro, deve-se considerar a pessoa humana como um ser social, que só
consegue desenvolver-se na sua plenitude, vivendo em comunidade com seus pares
(outras pessoas).13
1.2.2 Dever
O dever está vinculado à relação social de justiça, que é de dar à alguém
aquilo que lhe é devido. O dever exsurge da relação de reconhecimento mútuo das
pessoas membros de uma comunidade. Com efeito, numa comunidade, uma pessoa
humana só será considerada como membro, isto é, como parte integrante da
mesma, tão-somente, se ela for reconhecida pelas outras pessoas humanas
membros da mesma comunidade, adquirindo então o status ou à condição de
membro. Essa relação de reconhecimento, acarreta à reciprocidade entre os
membros, que dá fundamento ao dever de justiça do indivíduo para com a
12
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito
& Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 123-124.
13
Idem, p. 125.
1
16
comunidade e vice-versa. Logo, na justiça social, será a reciprocidade que definirá o
que é devido entre os membros.14
1.2.3 Adequação
Na justiça há um modo de identificar aquilo que é devido a cada um. No que
tange a justiça social este modo está associado à igualdade na dignidade da pessoa
humana, que é uma igualdade básica, por conseguinte, absoluta. O termo
“dignidade da pessoa humana” consubstancia-se no princípio subjacente à justiça
social de que toda “pessoa humana é digna, merecedora de todos os bens
necessários para realizar-se como ser concreto, individual, racional e social”. Em
qualquer comunidade estabelecida sobre o princípio da dignidade da pessoa
humana deve ocorrer um consenso, entre seus membros, do que seja uma
determinada concepção de vida boa, em que “todos consideram a todos como
sujeitos merecedores dos bens que integram a vida boa, apenas em virtude da sua
condição de pessoas humanas”.15
Num caso concreto, de justiça social, para se saber o que é devido à
alguém, deve-se:
[...] atentar para os bens de que o ser humano é merecedor em virtude da
sua condição humana. Um desses bens é a capacidade de
autodeterminação. A ausência desse bem nega uma das exigências
16
derivadas da dignidade da pessoa humana. [...]
Assim, se a igualdade absoluta (igualdade na dignidade) não for preservada,
tornará qualquer ato injusto do ponto de vista da justiça social. Isso posto, a
dignidade será o padrão de adequação da determinação daquilo que é devido na
justiça social.17
14
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito
& Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 126.
15
Idem, p. 128.
16
Idem, p. 129.
17
Ibidem.
1
17
1.3 FORMULAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DA JUSTIÇA SOCIAL
Na justiça social a fórmula de dever está em dar “a todos a mesma coisa”,
porquanto “todos” indica a totalidade-universalidade das pessoas humanas que
compõem a comunidade. A configuração de uma sociedade em uma comunidade se
processa no exato momento em que os indivíduos de uma sociedade passam a
reconhecerem-se como partícipes de um projeto comum universal de realização de
uma determinada concepção de vida boa para os seus membros. Esse projeto
comum universal adquiri um caráter normativo essencial, visto que os bens que o
compõe são reconhecidos como concepção de vida boa – liberdade, igualdade, etc.estando assegurados como direitos. O status ou condição de pessoa participante da
comunidade se caracteriza na medida em que, a mesma passa a engajar-se e
pugnar pela garantia dos mesmos (iguais) direitos para todos. Por conseqüência,
pode-se inferir como imperativo categórico, as regras de que “cada um deve
respeitar nos outros os mesmos direitos que exige para si”, bem como a de que
“todos têm os mesmos direitos que exige para si”.18
O fundamento ético da justiça social consiste em exigir de cada um o que
está disposto a atribuir aos outros como membros da comunidade. O caráter social
do ser humano fundamenta a justiça social, sobretudo porque este (ser humano)
possui uma necessidade intrínseca e extrínseca de conviver e realizar-se em
sociedade (comunidade), ou seja, em comum, com o outro (semelhante ou próximo),
o que acaba por envolvê-lo numa rede de relações e deveres, implicando, assim,
numa conscientização, aceitação e reconhecimento mútuo do status de pessoa
humana membro de uma comunidade dotada dos mesmos direitos e deveres dos
demais.
18
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça social: gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Direito
& Justiça, v.25, n. 28, 2003. Porto Alegre. p. 130.
2 LIBERADE RELIGIOSA
O autor Rafael Llano Cifuentes faz uma indagação em seu livro sobre a
liberdade de religião, e após isso, lança as seguintes respostas.
[...] em que medida tem o homem direito de pensar livremente em matéria
de religião? [...] na medida em que a liberdade religiosa desenvolve-se no
terreno da verdade religiosa de acordo com os retos ditames da própria
consciência. [...] tem direito a pensar de tal maneira sempre e quando
fundamente o seu juízo na boa fé, isto é, na sinceridade interior conseguida
19
depois duma procura honesta da verdade.
O mesmo autor aduz, ainda, que “o direito à liberdade religiosa desenvolvese em diferentes planos, que vão do pensamento íntimo e da vivência particular
(plano pessoal) até a sua expressão social e comunitária (plano social)” e que esse
mesmo direito “será mais pleno e efetivo, se o Estado não se limita exclusivamente a
proclamá-lo mas se dedica vigorosamente a promover medidas que favoreçam o
seu exercício de fato”20
A liberdade religiosa, na perspectiva de Fernando Retamal, é vista como “un
concepto dinámico, que se va perfeccionando a la par del avance de la doctrina
sobre los derechos humanos.” Tece considerações no sentido de que, o tratamento
da liberdade religiosa deixou de centralizar-se na verdade para centrar-se
prioritariamente na pessoa humana, que ostenta uma dignidade natural, proveniente
de um Direito do Homem, prévio ao Estado, hodiernamente revestido de um caráter
constitucional. Ressalta, ainda, que a liberdade religiosa é um bem em si mesma,
para o indivíduo e para a sociedade, possuindo uma dimensão política, visto ser
parte integrante do bem comum da sociedade. Em decorrência disso, surge o dever
ou mister do Estado de promover e tutelar a liberdade religiosa com a máxima
amplitude possível, respeitando os princípios básicos da ordem social. Todavia, isso
19
CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do
Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2ed.
atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 94.
20
Idem, p. 186 e 190.
1
19
reclama uma nova forma de relação Estado-Igreja, que relegue qualquer resquício
de confessionalidade estatal, bem assim, qualquer laicismo estatal que em nome do
respeito à liberdade de consciência, termine por asfixiar e impedir, de fato, as
expressões públicas de fé dos crentes. Aliás, Fernando Retamal, compreende a
liberdade religiosa como uma imunidade de coação, garantida pelo reconhecimento
civil de uma esfera de autonomia inerente a cada pessoa, grupo social e
comunidade.21
Pontes de Miranda, em seus Comentários à Constituição de 1967, explica
que “a liberdade de religião especializa a liberdade de pensamento, pois que a vê
somente no que concerne à religião”. Também explica que a liberdade de
pensamento nem sempre é tangencial com a de consciência. Ademais, assevera
que “a liberdade de consciência e a de crença são inconfundíveis”, pois “o descrente
também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal
direito”.22
A liberdade religiosa é um gênero do qual afloram 3 espécies (modalidades)
de liberdades, a saber: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de
organização religiosa. Todavia, nos deteremos mais profundamente nas liberdades
de crença e de culto, porquanto guardam maior liame com o objeto deste trabalho.
A liberdade religiosa está incluída entre as liberdades espirituais, sendo que
“a liberdade religiosa configura, em um sentido amplo, a liberdade do espírito em
matéria religiosa ou de opção do indivíduo em matéria de religião”23
No entendimento de Milton Ribeiro a liberdade religiosa, quando vista numa
acepção ampla, não é um direito, mas um complexo de direitos relacionados à
questão da liberdade em razão da religião. Com efeito, essa perspectiva acaba
possibilitando maior compreensão da abrangência do conceito em determinadas
21
RETAMAL, Fernando. Precht Pizarro, Jorge, 15 Estudios sobre Libertad Religiosa en Chile
Universidad Católica de Chile. Rev. chil. derecho. [online]. ago. 2006, vol.33, no.2 [citado 11 Abril 2007],
p.401-407. Disponible en la World Wide Web: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S071834372006000200011&lng=es&nrm=iso>. ISSN 0718-3437.
22
PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969.
2ed. rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1971. Tomo V. p. 118-119.
23
COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação
(Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 76.
2
20
situações fáticas e momentos históricos. Nesse feixe de direitos, cuja denominação
recebe de liberdade religiosa, estão abarcadas dois direitos essenciais e
fundamentais para uma garantia mínima à liberdade de religião, a liberdade de
crença e de culto.24
Alexandre de Moraes escreve que a liberdade religiosa constitucionalizada é
“verdadeira consagração de maturidade de um povo”, abrangendo o preceito
constitucional de maneira ampla, “pois sendo a religião o complexo de princípios que
dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por
compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto”, portanto, qualquer
“constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o
desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e a própria diversidade
espiritual”.25
Na lição de José Afonso da Silva, a liberdade religiosa é um pouco complexa
pelas implicações que ela suscita, sobremaneira no que tange a sua exteriorização,
sendo compreendida por “três formas de expressão (três liberdades): (a) a liberdade
de crença; (b) a liberdade de culto; (c) a liberdade de organização religiosa.”26
No que concerne ao direito da liberdade religiosa Maria Luiza Whately
Barretto compreende que, em face da sua natureza, a liberdade religiosa pode
apresentar-se em modalidades diferentes. Intimamente qualquer pessoa pode ter o
culto ou fé que desejar, sem ter o seu sentimento religioso perturbado ou violentado
pelo Estado. Entrementes o mesmo não acontece quanto às manifestações dos
sentimentos religiosos que se acham subordinadas a interesses de ordem pública,
dos bons costumes e dos interesses da coletividade.27
24
RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Univ. Mackenzie,
[2002]. p. 33-34
25
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 75.
26
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 251.
27
BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p.
250.
2
21
2.1 LIBERDADE DE CRENÇA
A liberdade de crença diz respeito às opções de fé do indivíduo, a sua
capacidade e faculdade de adotar uma crença religiosa ou não, bem como o direito
de atuar conforme os ditames de sua crença própria, sem ser molestado ou sofrer
pressão de qualquer natureza para que estabeleça, mude ou abandone suas
crenças ou convicções religiosas.
O Prof. José Afonso da Silva aduz que a liberdade de crença religiosa
abarca a liberdade de escolha de uma determinada religião, a liberdade de aderir a
qualquer religião, denominação ou seita religiosa, a liberdade - ou o direito - de
mudar de religião já estabelecida, a liberdade de não aderir a religião alguma, assim
como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu ou agnóstico. Entretanto,
“não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de
qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não
prejudique a liberdade dos outros”. Em suma, todas as pessoas têm a garantia
(direito) de poder aderir ou recusar a qualquer crença religiosa, adotar o ateísmo ou
exprimir agnosticismo, inclusive, podendo criar sua própria religião, bem assim
seguir qualquer corrente filosófica, científica ou política.28
Os direitos dos cidadãos estão garantidos na Constituição da República
Federativa do Brasil (CRFB/1988), independentemente da existência ou não de
crença religiosa, conforme se pode verificar da redação do art. 5° inciso VIII, verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei;
(...)
28
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 93 e 252.
2
22
O notável jurista, Pontes de Miranda, diz que “a liberdade de crença
compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença” e que “liberdade
de religião é liberdade de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em
quantidade, inclusive não se ter”.29
Referido jurista, ao fazer considerações sobre o princípio da liberdade de
religião, acaba por trazer maior luz e entendimento sobre o conteúdo do art. 153, §§
5º e 6º da CRFB/1967, que podem ser engendrados (aplicados) perfeitamente ao
art. 5, inc VIII, da CRFB/1988, supracitado:
No estado atual do princípio, a liberdade de religião está esvaziada de
qualquer elemento de desigualdade, ou de despotismo (preponderância): é
direito individual fundamental, que independe de qualquer escalonamento,
em virtude de maior ou menor número de adeptos, ou de outro fator
diferente. O qualificador universal “todos” não se refere à religião, mas ao
indivíduo. O princípio não diz “Todas as religiões são livres”, porém “Todos
os indivíduos têm liberdade de religião”. A fórmula “Todas as religiões são
livres” apenas junta o grupo dos indivíduos que têm a mesma religião. Por
isso mesmo, no enunciado mais exato e básico está implícito o princípio de
igualdade: “Todos os indivíduos têm liberdade de religião” significa “Todos
30
os indivíduos têm igual direito à liberdade religiosa”.
O Prof. José Afonso da Silva, ainda, faz um comentário contextual do art. 5°,
inciso VIII da Constituição da República Federativa do Brasil, dissecando-o em
partes, o que acaba por trazer maior clareza sobre o conteúdo do artigo, ora
examinado. Assevera que essa regra é válida para que todos gozem de integral
liberdade de convicção filosófica, política e de crença religiosa, portanto, garantindose o exercício dessa liberdade para que ninguém perca qualquer direito. No seu
entendimento, “ninguém significa pessoa alguma, sujeito algum ou nenhum sujeito”,
exprimindo “uma universalidade em benefício de todas as pessoas” independente da
cor, raça, sexo, origem, nacionalidade, credo religioso etc. O art. 5°, inc. VIII, contém
“uma garantia individual, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que sendo
violada, gera direito subjetivo à correção do abuso por via administrativa e judicial”,
29
PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969.
2ed.rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1971. Tomo V. p. 119 e 123.
30
Idem, p. 123.
2
23
estando protegido pela regra constitucional, qualquer direito, não apenas os direitos
fundamentais. 31
A expressão “motivo de crença religiosa” designa algo que move, que gera
uma ação, tendo um sentido de causa, isto é, aquilo que seria a causa de privação
de direito. A regra do art. 5°, inc VIII é proibitiva e a negativa do sujeito da
proposição (“ninguém” será = “sujeito algum” será) significa que nenhuma crença
religiosa pode motivar ou causar a privação de qualquer direito. A regra aludida está
expressa na voz passiva com um agente indeterminado, portanto, se fosse expressa
na voz ativa, a proibição poderia ser dirigida a um sujeito universal (“ninguém poderá
privar alguém de direitos por motivo de crença religiosa”). Considerando-se que o
sujeito mais desrespeitador das liberdades, seja o Poder Público, então, a norma
com esse sujeito expresso ficaria assim “O Poder Público não privará ninguém de
qualquer de seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica
ou política”.32
Já quanto à expressão “salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal
a todos imposta” é dito que essa ressalva institui um direito individual, o de escusa
de consciência ou imperativo de consciência, ou seja, o direito de recusar prestar
determinadas imposições que contrariem as convicções religiosas ou filosóficas do
interessado. A escusa de consciência (ou imperativo de consciência) deriva da
própria liberdade de crença ou de convicção filosófica ou política, entretanto, esse
direito individual – escusa de consciência ou imperativo de consciência – pode sofrer
restrição objetiva com o escopo de ser mantido o equilíbrio do princípio da isonomia,
visto que, o escusante fica, em virtude da sua escusa, liberado de cumprir obrigação
a todos imposta, o que lhe é causa de um benefício individual decorrente de um
tratamento diferenciado, o qual é resultado da quebra do princípio do tratamento
igual para situações iguais.33
31
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 95.
32
Idem, p. 96.
33
Idem, p. 97.
2
24
Da expressão “e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”,
verifica-se que pode ocorrer privação de direitos do escusante, se este recusar-se a
cumprir prestação alternativa, que, evidentemente, deverá ser compatível com suas
convicções. Note-se que a prestação alternativa é que constitui a sanção para a
escusa de consciência considerada nesse dispositivo constitucional. O dever de
prestação alternativa depende de fixação em lei, caso esta não se verifique, isto é,
inexista determinação legal de cumprimento de prestação alternativa, a mesma não
poderá ser imposta, mesmo diante de uma eventual escusa. Por conseguinte, se o
titular do direito de escusa também descumprir à prestação alternativa prevista em
lei, é que, então, estará sujeito a qualquer penalidade estatuída na lei referida (art.
5°, VIII, in fine). Esta penalidade, que é uma norma de decisão – norma de conduta
fixada em lei –, consiste na regra de privação do direito prevista no art. 15, IV, da
CRFB, a saber, suspensão dos direitos políticos.34
A liberdade de crença é timbrada essencialmente pelo seu caráter interno,
possibilitando a pessoa humana desenvolver sua própria orientação de fé, formar
sua perspectiva de mundo e de vida, bem como eleger os valores que considerar
essenciais, sendo, portanto, inalienável por natureza. Mesmo que a liberdade de
crença seja cerceada ou proibida legalmente, a norma jurídica não poderá imiscuirse na crença (fé) de alguém, em virtude da crença existir somente no interior do
indivíduo, isto é, no seu foro íntimo.35
Comunga dessa mesma opinião Maria Luiza Whately Barretto ao dizer que
tanto a consciência como a crença são sempre livres, indevassáveis pelo Estado,
não necessitando de proteção constitucional ou legal, pois o objeto de cogitação do
direito é a religião, o culto religioso, o cerimonial, a prática (exteriorização) da
consciência e da crença. Outrossim considera à crença como sendo um “estado
especial da alma humana, interior, inviolável, pessoal”, “problema interno do
homem”, “problema de fé”, uma “cogitação que não precisa ser, necessariamente
exteriorizada, mediante o culto, a religião, o rito”. Ademais, aduz que “alguém pode
34
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 97.
35
RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Univ. Mackenzie,
[2002]. p. 34-35.
2
25
participar de culto ou religião sem ter crença ou fé”, como pode “haver culto sem fé
ou crença, bem como “pode haver crença ou fé sem culto”.36
Uma implicação positiva da liberdade de crença é a de ter e manifestar
livremente as crenças adotadas, decorrendo daí, o direito ao proselitismo ou a
explanação e a difusão da fé. Nessa linha escreveu Maria Emília Corrêa da Costa a
respeito das dimensões internas e externas da crença religiosa. Asseverou que a
garantia à crença ou às convicções religiosas possuem uma “dimensão interna do
indivíduo – um espaço de autodeterminação no que tange ao fenômeno religioso -,
que não pode ser violado”, não podendo o indivíduo “ser prejudicado por professar
ou deixar de professar certas crenças, ainda que estas não estejam revestidas de
manifestações externas”. Já quanto à dimensão externa, disse ela, nada mais é do
que um agir lícito, que “faculta ao indivíduo atuar segundo as suas convicções
religiosas e mantê-las frente a terceiros, livre de quaisquer embaraços, pressões ou
coações”, visto que a exteriorização do fenômeno religioso “implica uma diversidade
de condutas e uma multiplicidade de comportamentos”.37
A implicação negativa da liberdade de crença reside no direito de resguardo
do indivíduo sobre a existência e o conteúdo da sua crença, bem como o direito ao
silêncio sobre suas convicções religiosas, cabendo a si a decisão voluntária de
manifestar ou não a própria crença, livre de pressões ou coações por parte de
poderes públicos ou terceiros, para que, assim, seja evitado qualquer forma de
discriminação em razão da religião.38
Corrobora essa corrente de pensamento Rafael Llano Cifuentes ao dizer que
no plano pessoal o direito à livre decisão em matéria religiosa exige naturalmente a
ausência de todo o constrangimento externo no desenvolvimento das convicções
religiosas, constituindo-se como único meio lícito de se provocar uma confissão de
fé numa pessoa os meios externos de exposição doutrinária e a eventual persuasão
decorrente desta. Aduz, aliás, que a ausência de coação direta não é o suficiente,
36
BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p.
249-250.
37
COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação
(Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 84-85.
38
Idem, fl. 86.
2
26
sendo “necessário que não exista qualquer tipo de discriminação jurídica baseada
em razões religiosas”, importando, por conseguinte, que ninguém seja perseguido,
sancionado, impedido ou obstado de ocupar determinados cargos, ou restringido
nos seus direitos, por professar determinada crença. Deveras, nunca permitir-se-á
discriminações quando estas atinjam direitos ligados à dignidade humana, pois,
tanto a igualdade jurídica, como, o direito à liberdade religiosa, são postulados
essenciais do Direito natural. Assim, por exemplo, o credo religioso não pode supor
um elemento positivo ou negativo, na admissão de funcionários públicos,
professores de cargos estatais, alunos em universidades públicas ou privadas etc.39
No plano social, a liberdade religiosa, para Rafael Llano Cifuentes, é a
garantia do direito ao exercício público e comunitário da religião, que tem
repercussões externas, posto que, a natureza social do homem exige uma
comunicação extra-subjetiva dos sentimentos internos e, frequentemente, uma
expressão comunitária das vivências particulares. Demais disso, as diferentes
religiões comumente preceituam determinados atos culturais [e religiosos] que
devem ser feitos coletivamente, por isso, o direito à liberdade religiosa deve ser
defendido também, para ser pleno, na sua dimensão externa, social e comunitária,
pois, é a natureza social, tanto do homem quanto da religião, que reclama
comunidades religiosas. Menciona, ainda, que o direito ao exercício religioso no
plano social é condição sine qua non para o exercício de outros direitos decorrentes
deste como, por exemplo: a) Direito das comunidades para se regerem segundo
normas próprias; b) Direito a ensinar em público e a testemunhar a fé pela pregação
e imprensa; c) Direito a expor livremente o valor peculiar de sua doutrina para a
organização da sociedade e para a vitalização de toda a atividade humana.40
39
CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do
Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2ed.
atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 187-188.
40
CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do
Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2ed.
atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 189-190.
2
27
2.2 LIBERDADE DE CULTO
O direito à liberdade de culto está garantido na Constituição da República
Federativa do Brasil nos seguintes art. 5° inciso VI e art. 19 inciso I, verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(...)
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma
da lei, a colaboração de interesse público;
(...)
José Afonso da Silva faz a seguinte explanação sobre a liberdade de culto:
A religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples
contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao
contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se
exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias,
manifestações, reuniões, fidelidade aos hábitos, às tradições, na forma da
41
religião escolhida.
Liberdade de culto é a “extensão exteriorizada, vivida, da liberdade de
crença religiosa ou, simplesmente, liberdade de religião”, é “direito fundamental,
assegurado em si e não só institucionalmente”. Na liberdade de culto, di-lo Pontes
de Miranda, há elemento novo, onde as doses de liberdade de pensamento e de
liberdade física caracterizam graus de combinação entre as duas liberdades.
Portanto “compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos
próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de
recebimento de contribuições para isso”. A liberdade de culto supõe contato com
outros homens ou com objetos que interessam a outros homens, em vez de ser
41
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 252.
2
28
liberdade do indivíduo sozinho, máxime, porque “toda religião se prende ao que se
pensa e ao que se pratica com intuito de culto. Mas o que é culto? Pontes de
Miranda o define como sendo “a forma exterior da religião: religião + relação com os
outros homens + ação”.42
Na opinião de Maria Luiza Whately Barretto, no campo jurídico, o culto é
entendido como “a manifestação das próprias crenças religiosas do mundo externo,
o conjunto de todos os atos externos (práticas e omissões), com os quais se
patenteia a fé religiosa”. Entende também que “a liberdade de culto diz respeito às
manifestações ligadas à religião que se tem”, sendo portanto passível de restrição
imposta por lei e regulamentos de polícia. Conclui o seu pensamento aduzindo que,
em verdade, “não há religião sem culto, porque as crenças não constituem, por si
mesmo, uma religião”, portanto se “não existir culto ou ritual correspondente à
crença, pode haver posição contemplativa, filosófica, jamais religião”.43
A liberdade de culto para Milton Ribeiro ”difere da liberdade de crença na
medida em que é a exteriorização e a demonstração plena da liberdade de religião
que reside interiormente”.44
No entender de Maria Luiza Whately Barretto o dispositivo constitucional em
análise busca o escopo de “proteger a liberdade de culto, de manifestação da fé, do
pensamento, da atividade do homem”, bem assim “a projeção externa, a
exteriorização, a demonstração, da consciência religiosa, da crença, da fé”. Faz
referência, também, que o dispositivo no inc. VI, art. 5° da Constituição Federal de
1988, visa resguardar o Princípio da Isonomia, tendo em vista que o mesmo prevê
“igualdade para os iguais e desigualdade para os desiguais”.45
42
PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969.
2ed. rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1971. Tomo V. p. 124, 129, 136 e 155.
43
BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p.
250.
44
RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Univ. Mackenzie,
[2002]. p. 38.
45
BARRETTO, Maria Luiza Whately. Exercício da liberdade religiosa. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 14, Jan./mar., 1996. p.
249-250.
2
29
José Afonso da Silva faz considerações sobre a liberdade de culto plasmada
no art. 5°, inciso VI, da Constituição da República Federativa do Brasil explicitando
que, a constituição ampliou essa liberdade, prevendo-lhe uma garantia específica,
isto é, assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei,
proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Menciona que diferentemente das
constituições anteriores não condiciona o exercício dos cultos à observância da
ordem pública e dos bons costumes, aludindo que, tanto o conceito de ordem
pública como o de bons costumes são vagos e indefinidos, servindo mais para
intervenções arbitrárias do que de tutela dos interesses gerais. Salienta que,
consoante dispositivo constitucional, a liberdade de exercício dos cultos está
assegurada sem condicionamentos, estando, outrossim, protegido os locais de culto
e suas liturgias, só que essas, na forma da lei. Evidentemente faz parte da liberdade
de exercício dos cultos, que não está sujeita a condicionamento, definir os locais do
culto e suas liturgias. Os cultos poderão ocorrer em locais típicos, como templos,
edificações com características peculiares de cada religião, bem como em locais não
típicos, nada obstante, necessários ao pleno - ou à perfectibilização do - exercício da
liberdade religiosa. Ademais, “a liberdade de culto se estende à sua prática nos
lugares e logradouros públicos”, merecendo proteção da lei, enfim, “cumpre aos
poderes públicos não embaraçar o exercício dos cultos religiosos (art. 19, I) e
protegê-los, impedindo que outros o façam”.46
Para o conspícuo Pontes de Miranda, o Estado (ou qualquer poder público)
“não pode estabelecer culto religioso, nem dar subvenção a culto ou cultos, direta ou
indiretamente; nem lhes embaraçar o exercício, material ou moralmente”. Mas o que
significa estabelecer, subvencionar ou embaraçar cultos religiosos? O próprio
Pontes de Miranda responde a essa indagação, explicitando que:
“Estabelecer” cultos religiosos está em sentido amplo: criar religiões ou
seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou de
propaganda. “Subvencionar cultos religiosos” está no sentido de concorrer,
com dinheiro, ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a
atividade religiosa. “Embaraçar o exercício” dos cultos religiosos significa
vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de
47
atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso.
46
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 252-253.
47
PONTES DE MIRANDA. Comentários à constituição de 1967: com a Emenda nº 1, de 1969.
2ed. rev. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1970. Tomo II. p. 185.
3
30
O exercício da liberdade de culto, na ótica de Maria Emília Corrêa da Costa,
tem que ver com a “exteriorização, através de rituais, cerimônias, símbolos ou
aparatos, da religião professada”, quer seja em locais próprios destinados a tais fins,
quer seja em locais públicos. Entende como vertente negativa da liberdade de culto
o “direito de não ser obrigado a participar de quaisquer atos religiosos”, ressaltando
que é no campo da liberdade de culto onde reside grande parte das questões
controvertidas ou de relevo jurídico em matéria de liberdade religiosa, que acabam
por suscitar “problemas de colisão com outros valores também protegidos pelo
Direito”. Em face da possibilidade de conflito de valores, é que a liberdade de culto,
em determinadas situações, poderá ser limitada pelo Estado, entrementes, “há que
se atentar para as motivações de eventuais limitações, que não podem implicar,
ainda que indiretamente, uma restrição indevida à liberdade de culto”, máxime
porque “a atual previsão constitucional pátria assegura a liberdade de exercício dos
cultos religiosos sem imposição de condições”. Ressalta que, como meio de solução
para casos concretos concernentes a questão da liberdade de culto, dever-se-á
lançar-se mão do princípio da proporcionalidade quando a liberdade de culto
“defrontar-se com outros direitos, liberdades ou garantias”, posto que, a liberdade de
culto “deverá submeter-se à ponderação com outros bem constitucionalmente
protegidos, sofrendo restrições em função de tal ponderação, na medida exata da
proteção de todos os direitos envolvidos”.48
2.3 LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA
No prisma de José Afonso da Silva a liberdade de organização religiosa tem
que ver com à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas
relações com o Estado. No que tange à relação Estado-Igreja, três são os sistemas
observados, cada qual com suas gradações: confusão, união e a separação. Na
confusão, o Estado se confunde com determinada religião, sendo um Estado
teocrático, como, por exemplo, o Vaticano e os Estados islâmicos. Já na união,
verificam-se relações jurídicas entre o Estado e determinada Igreja no que concerne
48
COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação
(Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 88-89 e 92.
3
31
à sua organização e funcionamento, ocorrendo, comumente, a participação ou
ingerência do Estado na designação dos ministros religiosos, nos cargos ocupados
por estes e nas suas remunerações. Na separação pode existir tanto o
indiferentismo, a neutralidade ou imparcialidade, como a colaboração nas relações
Estado-Igreja, podendo ocorrer, até mesmo, uma separação mais rígida para um
sistema que admite certos contados entre o Estado e as igrejas.49
Leciona, ainda, José Afonso da Silva, que “a República principiou
estabelecendo a liberdade religiosa com a separação da Igreja do Estado”, antes
mesmo da constitucionalização do novo regime, com o Decreto 119-A, de 7.1.1890,
da lavra de Ruy Barbosa, expedido pelo Governo Provisório. Nessa esteira, explica
que:
A Constituição de 1891 consolidou essa separação e os princípios básicos
da liberdade religiosa (arts. 11, §2°; 72, §§ 3° a 7°; 28 e 29). Assim, o
Estado brasileiro se tornou laico, admitindo e respeitando todas as
vocações religiosas. O Decreto 119-A/1890 reconheceu personalidade
jurídica a todas as igrejas e confissões religiosas. O art. 113, item 5°, da
Constituição de 1934 estatuiu que as associações religiosas adquiriram
personalidade jurídica nos termos da lei civil. Os princípios básicos
50
continuaram nas constituições posteriores até a vigente [CRFB/1988] [...]
A garantia da liberdade religiosa das confissões e comunidades religiosas
deriva da liberdade religiosa individual. Nesse passo, a liberdade de organização
religiosa “apresenta uma dimensão coletiva, tendo em vista a formação de grupos na
sociedade civil com identidade religiosa, os quais também são objeto de tutela”. A
neutralidade do Estado em matéria religiosa tem como corolário o princípio da
separação das confissões religiosas do Estado, que contribui, em grande medida,
para proteção das coletividades religiosas. O Brasil apresenta um modelo de Estado
laico, adotando claramente o princípio da separação entre Estado e organizações
religiosas. Em virtude disso, a neutralidade do Estado brasileiro mostra abertura à
multiplicidade de crenças e organizações religiosas, não interferindo diretamente nas
questões religiosas e nas próprias organizações religiosas. Essa mesma
neutralidade impõe ao poder público – na figura de seus representantes - que se
abstenha de tomar quaisquer medidas ou fundamentar quaisquer decisões, quer
49
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 253-254.
50
Idem, p. 254.
3
32
sejam administrativas ou judiciais, com base em entendimentos religiosos, pois “os
valores ou interesses religiosos não podem ser usados como parâmetros ou como
elementos norteadores dos atos estatais”. No entanto, são percebidos no Brasil,
alguns resquícios de um passado, não muito distante, de um Estado, outrora,
confessional, posto que, “por quase quatrocentos anos, a sociedade brasileira viveu
em meio à vinculação oficial entre o Estado e uma religião [católica]”. Com efeito, a
relevância da neutralidade do Estado em matéria religiosa se evidencia na exata
medida em que “promove a convivência pacífica entre as diferentes confissões
religiosas, garantindo a liberdade religiosa de forma ampla em uma sociedade
caracterizada pelo pluralismo religioso”. Ademais, estende-se às confissões
religiosas “os mesmos direitos garantidos aos indivíduos em matéria religiosa”,
assegurando-se, portanto, o direito “a formação de associações ou grupos com fins
religiosos, a realização de reuniões para aquela finalidade, o estabelecimento de
locais apropriados para culto, a divulgação e pregação de sua doutrinas, etc.”51
51
COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação
(Mestrado em Direito) - PUCRS, Faculdade de Direito 2005. Porto Alegre, 2005. fl. 94, 97-98 e 106.
3 ACESSIBILIDADE A CARGOS PÚBLICOS – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO
SÉTIMO DIA
Neste capítulo será abordado o caso concreto do acesso a cargos públicos
por membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), que possuem por dogma
de fé a guarda do sábado bíblico como forma de expressão de seu culto religioso.
Será analisado a possibilidade de conciliação (harmonização) entre o
exercício do direito de liberdade de religião ou liberdade religiosa, pelos membros da
IASD, máxime o exercício de direito de crença e de culto, com o direito de acesso à
cargo público constitucionalmente assegurado na CRFB/1988.
Outrossim, será feito uma breve análise e cotejo entre as correntes
jurisprudências aplicáveis ao caso concreto para que se possa fazer uma síntese
conclusiva.
3.1 ACESSO À CARGO PÚBLICO
O acesso à cargo público está assegurado, constitucionalmente, a todo os
brasileiros, que preencham os requisitos estabelecidos em lei, verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,
atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
(...)
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
3
34
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos
brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como
aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 19, de 1998)
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma
prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão
declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Na lição de José Afonso da Silva a acessibilidade à função pública é uma
manifestação especial da liberdade de ação profissional, que está inserida no art. 5º,
inciso XIII, da CRFB/1988. Entende que o art. 37, inciso I, na sua primeira norma,
que é de eficácia contida e aplicabilidade imediata, reconhece acessibilidade a todos
os brasileiros à função administrativa, de sorte que a lei a ela referida não cria o
direito previsto, antes o restringe ao prever requisitos para seu exercício. Essa lei
está limitada pela própria regra constitucional, de tal forma que os requisitos nela
fixados não poderão importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a
correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função
administrativa. Aduz, ainda, que o princípio da acessibilidade aos cargos e
empregos públicos visa essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura
mediante investidura por concurso público de provas ou de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista
em lei.52
Leciona Hely Lopes Meirelles que as normas do art. 37, inc. I e II da
CRFB/1988 dispõem sobre a acessibilidade aos cargos públicos, funções e
empregos públicos, bem assim, a obrigatoriedade de concurso público. Expõe que a
Constituição Federal ao estabelecer a acessibilidade aos cargos, empregos e
funções públicas a todos os brasileiros, quer sejam natos ou naturalizados,
assegurou-lhes, conseqüentemente, o direito de acesso aos cargos, empregos e
funções públicas, excepcionando-se as ressalvas constitucionais (art. 12, § 3°).
Note-se que a acessibilidade aos cargos públicos, funções e empregos públicos está
52
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ed. Rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 260 e 663.
3
35
condicionada ao preenchimento dos requisitos estabelecidos em lei. No entanto,
apesar da autorização legal da Administração de prescrever certas exigências que
entenda conveniente para a admissão de servidores, cujo fito deverá ser de atingir
eficiência,
moralidade
e
aperfeiçoamento
da
Administração,
é-lhe
vedado
estabelecer condições que afrontem as garantias asseguradas no art. 5° da
Constituição Federal, proibindo-se, assim, qualquer distinção baseada em sexo,
idade, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Em face do princípio da
isonomia os requisitos estabelecidos em lei “hão de ser apenas os que,
objetivamente considerados, se mostrem necessários e razoáveis ao cabal
desempenho da função pública”. Em suma, se determinado cargo ou emprego
público pode ser exercido indiferentemente por pessoas de qualquer credo religioso,
a discriminação fundada nesse atributo (qualidade, peculiaridade) pessoal do
candidato será indevida.53
O concurso público é obrigatório, excetuando-se os cargos em comissão e
empregos com essa natureza, para a “investidura em cargo ou emprego público, isto
é, ao ingresso em cargo ou emprego isolado ou em cargo ou emprego público inicial
da carreira na Administração direta e indireta”. O concurso é “meio técnico posto à
disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e
aperfeiçoamento do serviço público”, mas também serve para “propiciar igual
oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante
determina o art. 37, II, da CRFB/1988”. Como os concursos não têm forma ou
procedimento estabelecido na Constituição, é de suma importância que sejam
precedidos de uma regulamentação legal ou administrativa para que os candidatos
estejam inteirados de suas bases e matérias exigidas. Com efeito, ministra Hely
Lopes Meirelles, a finalidade precípua do concurso público é selecionar os
candidatos mais aptos e capazes, para que tal fim aconteça, a Administração tem
liberdade para “estabelecer as bases do concurso e os critérios de julgamento,
desde que o faça com igualdade para todos os candidatos, tendo, ainda, o poder de
53
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25ed. Atual. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 393-395.
3
36
alterar as condições e requisitos de admissão dos concorrentes”, para melhor
atender o interesse público.54
Alexandre de Moraes afirma que existe um verdadeiro direito do cidadão de
acesso aos cargos, empregos e funções públicas, pois este é o verdadeiro agente
do poder, no sentido de ampla possibilidade de participação da administração
pública. Além disso, explica que a ”investidura em cargo ou emprego público
depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista
na lei”. Faz menção de que o Supremo Tribunal Federal – STF é intransigente em
relação à imposição à efetividade do princípio constitucional do concurso público,
como regra a todas as admissões da administração pública, ressalvando-se as
exceções legais. Por isso, as autarquias, empresas públicas ou sociedades de
economia mista estão sujeitas à mesma regra de aplicação do princípio
constitucional do concurso público, que envolve a administração direta, indireta ou
fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios.55
54
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25ed. Atual. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 396-398.
55
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 332-333.
3
37
3.2 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO
CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA
3.2.1 Fundamentos jurisprudenciais desfavoráveis aos membros da IASD
Em seu voto, denegatório da segurança pleiteada, no Mandado de
Segurança nº 70002025906 do 2º Grupo de Câmaras Cíveis em Porto Alegre, o
Des. Nélson Antônio Monteiro Pacheco explicita que existe um choque entre o
princípio constitucional de crença individual com o princípio impositivo do concurso
público à Administração no caso concreto do acesso a cargos públicos por membros
da IASD. Em síntese, o Des. Nélson Antônio Monteiro Pacheco opta por sobrepor a
aplicação do princípio do concurso público sobre o princípio de crença religiosa,
visto que, sustenta que o objeto do mandado de segurança não diz com a privação
de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII, da CF), mas com a de
convicção de natureza estritamente pessoal que se não dobra às exigências
ordinárias comumente postas aos demais cidadãos em dada sociedade. Aduz que
conceder a segurança pleiteada pelo candidato ao Cargo de Juiz de Direito
Substituto implicaria em fazer discriminação favorecedora daqueles que professem
determinada fé, o que é proibido pela Constituição. Além disso, tece considerações
concernentes a possíveis dificuldades as quais poderia enfrentar o candidato, caso
passasse no certame para exercer o cargo público que escolheu. Ademais, indaga
que sendo o candidato tão radical praticante de sua religião, como poderia julgar
questões envolvendo divórcio, aborto e assemelhadas?56
O Des. Wellington Pacheco Barros negou provimento ao agravo de
instrumento, Nº 70011459534, interposto por candidatas adventistas do sétimo dia
que tiveram indeferido o pedido de antecipação de tutela em decisão interlocutória,
nos autos da ação ordinária, que objetivava a adequação do princípio religioso
professado pelas agravantes com o horário da realização das provas para o
56
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança Nº 70002025906, 2º Grupo
de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 11/05/2001.
3
38
concurso do Magistério estadual. Em seu voto, o Des. Wellington Pacheco Barros,
asseverou que o Brasil é um país laico, significando que, em face disso, não pode
existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar proteção e
garantia ao livre exercício de todas as religiões, bem como proteger à liberdade dos
descrentes, velando, portanto, pela pureza do princípio de igualdade religiosa, mas
mantendo-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo à sua ideologia. Além
disso, aduziu que se faz necessário preponderar sobre a individualidade o interesse
público de que os candidatos aprovados em concurso público desempenhem a
carreira sob as mesmas regras, disciplinas, horários, etc., dos demais, a começar
pela submissão às provas do concurso público de ingresso nos mesmos moldes dos
outros candidatos e nas mesmas condições de local, ou seja, de uma sala de aula
cheia, com vários fiscais, candidatos levantando, sentando, deslocando-se ao
banheiro, interpelando fiscais acerca de alguma intercorrência, etc. Concluiu seu
voto aludindo que os professores podem ter carga horária que contemple a noite de
sexta-feira, os dias de sábado, para o exercício da profissão, bem como consabido
ser o dia de sábado usualmente destinado a reuniões, conselhos de classe, etc.,
atividades todas das quais as agravantes estariam ausentes.57
Nessa linha é o entendimento da Desembargadora Federal Silvia Goraieb,
na apelação em mandado de segurança n° 2004.72.00.017119-0/SC, em que a
União Federal apelou requerendo a reforma da sentença que deferiu o pedido de
concessão de segurança para que o candidato membro da Igreja Adventista do
Sétimo Dia pudesse realizar as provas do Concurso Público para Juiz Substituto do
Trabalho de Santa Cantarina em horário diverso do marcado no Edital, pois este
conflitava com a sua crença de que o sábado é um dia sagrado. A referida
desembargadora deu voto favorável pelo provimento da apelação, pois vislumbrou
existir uma série de violação de princípios constitucionais na pretensão do
impetrante. Entendeu que do confronto entre o direito constitucional da liberdade
religiosa em face de princípios como, legalidade, igualdade e isonomia, estes últimos
devem prevalecer. Asseverou que com o indeferimento do pedido do impetrante não
se estará intervindo em suas manifestações e convicções religiosas, apenas, estar57
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70011459534, Quarta
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Wellington Pacheco Barros, Julgado em
27/07/2005.
3
39
se-á garantindo a igualdade de condições de todos os candidatos. Explica que não
cabe à administração responsável pelo concurso público adaptar seus atos
consoante os preceitos da religião de cada candidato, e que, a realização das
provas em horário diverso do estabelecido afronta o princípio da legalidade, bem
assim o princípio da igualdade, haja vista que se estaria privilegiando um candidato
em decorrência de sua crença religiosa, pois ele não se sujeitaria às mesmas regras
previstas no edital, que são atribuídas a todos os candidatos inscritos no concurso.
Conclui seu voto sustentando que o princípio constitucional da igualdade deve
sobrepor-se ao direito constitucional da liberdade de crenças, porquanto não pode o
impetrante ser tratado com distinção, pois a finalidade do concurso público é
exatamente a igualdade entre os concorrentes.58
3.2.2 Fundamentos jurisprudenciais favoráveis aos membros da IASD
No Mandado de Segurança nº 70002025906 do 2º Grupo de Câmaras
Cíveis em Porto Alegre, o Desembargador Araken de Assis relata sucintamente que
o impetrante membro da IASD, deve observar o sábado como dia de guarda, até o
pôr-do-sol, abstendo-se de atividades seculares. Refere que o impetrante pugna o
direito de realizar a prova em outro horário, respaldado no art. 5º, VI e VIII, da CF/88.
Deferiu a liminar justificando a relevância dos fundamentos e o risco de a medida se
tornar ineficaz, se concedida ulteriormente, autorizando o candidato a realizar a
prova no dia 16-02-00, das 20h17min até as 24h, isto é, em horário diverso dos
demais candidatos, haja vista que o concurso se realizaria sem a participação do
impetrante. Em seu voto Araken de Assis explanou que a Administração há de se
guiar, em primeiro lugar, pelos princípios e valores constitucionais, por conseguinte,
a realização do concurso no sábado privaria o cidadão de concorrer por motivo
religioso, infringindo dois direitos fundamentais: o da liberdade de crença (art. 5º,
VIII, da CF/88) e o do acesso a cargos públicos (art. 37, I). Assevera que incumbe a
Administração o dever de harmonizar o princípio da igualdade, que governa o
concurso público, com o da liberdade de crença, que inclui a obrigatória observância
58
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AMS – Apelação em Mandado de Segurança
Nº 200472000171190/SC, 3ª Turma, Relator: Silvia Maria Gonçalves Goraieb, julgado em
22/08/2005.
4
40
pelo praticante de certos princípios. Ressalta que a escolha de dias consagrados
(sábado e domingo), para realizar tais provas, impede, na prática, a participação dos
integrantes de minorias confessionais, cujos princípios são rígidos, no certame
público, e os desfavorece. Além disso, aponta que a maioria religiosa católica no
Brasil, em tese, não poderia participar de provas e atividades profanas no domingo,
dia de guarda católico, todavia em virtude de adesão meramente formal de muitas
pessoas à Igreja Católica Apostólica Romana o veto fica relativizado. Em face disso,
as autoridades administrativas, baseadas nesta e em outras conveniências, sentemse à vontade para realizar provas nos dias consagrados e surpreendem-se com
impugnações análogas às do impetrante, restringido por força do cumprimento do
seu dogma confessional. Por fim, aduz o desembargador Araken de Assis que,
mesmo sendo o caso de difícil resolução, a proporcionalidade entre o princípio da
igualdade, sob cuja égide todos concorrem a cargos públicos, e o da liberdade de
crença, insculpido no art. 5º, VIII, o conduz, a reconhecer o direito do impetrante a
realizar a prova em horário distinto e especial.59
O Desembargador Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, em voto vencido, no
agravo de instrumento n° 70016550485, explica que a controvérsia estabelecida no
recurso situa-se em torno do direito do agravante de realizar a prova do concurso
público para o cargo de Monitor Interno do Município de Entre-Ijuís, marcada para
um sábado pela manhã, em horário especial, a partir das 18 horas (após o pôr-dosol), pois o recorrente é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que tem o
sábado como dia sagrado, destinando-se ao descanso e às práticas religiosas, no
período sagrado que vai do pôr-do-sol de sexta-feira até o pôr-do-sol de sábado.
Ressaltou que o candidato teve o seu requerimento administrativo, de permanecer
incomunicável entre a hora de início da prova até o entardecer, quando poderia
começar a realizar as provas do concurso, indeferido pela autoridade administrativa.
Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, afirmou que a atual Constituição Federal, no
dispositivo do artigo 5º, inciso VIII, estabeleceu apenas duas restrições a liberdade
de crença religiosa: a) obrigação legal a todos imposta; b) e recusa em cumprir
prestação alternativa fixada em lei. Deveras, no caso concreto, não se trata,
evidentemente, de recusa no cumprimento de prestação alternativa, restando,
59
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança Nº 70002025906, 2º Grupo
de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 11/05/2001.
4
41
portanto, o reconhecimento de que a determinação do horário das provas constante
do edital seria obrigação legal a todos os candidatos imposta. Entretanto, na
realidade, não se trata de obrigação legal, mas de determinação da comissão de
concurso, que pode ser perfeitamente modificada para atender à situação concreta
do recorrente sem quebra do princípio da isonomia, que é a pedra de toque dos
certames públicos. No caso em tela, embora se deva admitir os transtornos
causados à administração, não é possível deixar de se reconhecer a perfeita
viabilidade da compatibilização dos interesses da administração em fazer cumprir o
edital de concurso (legalidade) com a flexibilização do horário de início da prova no
caso do recorrente, respeitando-se o seu direito fundamental de liberdade de crença
religiosa. Em suma, concluiu o desembargador que, no caso concreto, existe uma
colisão entre os princípios constitucionais da legalidade (art. 37, “caput”), da
isonomia (art. 5º, “caput”) e da liberdade de crença religiosa (art. 5º, VI), importando,
necessariamente, numa ponderação dos princípios constitucionais envolvidos, o que
resulta na prevalência ao direito fundamental da liberdade de crença religiosa,
alterando-se o horário da prova para o atendimento da convicção religiosa do
impetrante sem grave afronta aos princípios da legalidade e da isonomia.60
Na esteira desse pensamento o Desembargador Federal Luiz Carlos de
Castro Lugon, relator da remessa ex officio em Mandado de Segurança n°
2002.70.00.068143-9/PR, com pedido de liminar, impetrado por candidatos a
concurso público, contra ato da Diretora-Geral da Escola de Administração
Fazendária do Paraná – ESAF, objetivando fosse determinada a realização da prova
em horário diverso do marcado, pelo fato de pertencerem à Igreja Adventista do
Sétimo Dia, que tem o sábado como dia sagrado. Firmou posicionamento, Luiz
Carlos de Castro Lugon, de que a liberdade de culto, assegurada pela Constituição
federal, deve, sempre que possível, ser respeitada pelo Poder Público na prática de
seus atos, pois a liberdade de culto compreende, além da garantia de exteriorização
da crença, a garantia de fidelidade aos hábitos e cultos, como ocorrido no caso
60
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70016550485, Terceira
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nélson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em
19/10/2006.
4
42
concreto, em que o sábado é considerado dia de guarda para a religião dos
impetrantes.61
3.3 EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO CASO
CONCRETO DOS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA
Considerando-se os casos concretos supra-referidos, e após isso, feito uma
rápida análise e cotejo entre as duas correntes jurisprudenciais estudadas, verificase existir total e plena possibilidade de efetivar-se a participação em certames
públicos de pessoas que possuem por preceito de fé a guarda do sábado bíblico,
sem ocorrer discriminação, aviltamento ou desrespeito a liberdade religiosa de
qualquer pessoa.
Neste tópico, são mencionados alguns casos de pessoas que são
adventistas do sétimo dia e ocupantes de algum cargo público, cujo fito será de
corroborar a corrente que defende a possibilidade do acesso e exercício de cargos
públicos por estas pessoas.
O desembargador Nélson Antônio Monteiro Pacheco, argumenta que um
candidato adventista do sétimo dia que professe a guarda do sábado bíblico, ainda
que consiga passar em um concurso, dificilmente poderia exercer o cargo público
que escolheu, em virtude da sua crença religiosa. Tal argumento, no entanto, pode
ser refutado com o exemplo fático do Dr. John Silas da Silva, Juiz de Direito da 8ª
Vara da Comarca de Arapiraca em Alagoas, que comprova faticamente, pela sua
história de vida, a possibilidade do exercício da função pública sem que haja
comprometimento da fé religiosa. O aludido Juiz de Direito, que é adventista do
sétimo dia, também é Professor de Universidade Federal, portanto, infere-se que
cumule dois cargos públicos. O Dr. John Silas da Silva, em entrevista concedida à
Revista Adventista, mencionou o fato de ter pedido ao Reitor da Universidade
Federal na qual leciona, juntamente com outros membros da igreja adventista, para
61
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Remessa “Ex Offício” em Mandado de
Segurança Nº 2002.70.00.068143-9/PR, 3ª Turma, Relator: Luiz Carlos de Castro Lugon, Julgado em
22/06/2004.
4
43
que fosse alterada a data do vestibular que havia sido marcado para um dia de
sábado, mostrando-lhe que os adventistas do sétimo dia não fazem prova nesse dia.
Explica que o Reitor aceitou o pedido de alteração do horário, pois compreendeu a
dificuldade dos adventistas, não marcando mais vestibulares no sábado desde
aquela ocasião62
Além disso, bem se pode referir o caso de outra pessoa adventista do sétimo
dia ocupante de cargo público, a saber, a Dra. Dulce Maria Sant’ Eufemia Cecconi,
que ocupa o cargo de Desembargadora no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
sendo integrante da Primeira Câmara Cível, especializada em matéria tributária e
fiscal. Note-se que a Dra. Dulce já ocupa um cargo público a bastante tempo, pois
graduou-se em Direito em março de 1969 e, em maio de 1970, ingressou na
Magistratura Estadual do Paraná, ocupando, primeiramente, o cargo de Juiz
Substituto. Em 1973, foi aprovada em concurso para o cargo de Juiz de Direito.
Durante vinte e cinco anos atuou em diversas Comarcas do Estado e sempre teve,
como mesma referiu, em entrevista concedida a Rubens Lessa, “o privilégio” de
participar nas atividades da sua igreja, demonstrando, claramente, que é possível
existir conciliação entre a vida religiosa privada e a vida profissional pública. No
mais, ao ser questionada se por ser adventista encontrou alguma dificuldade no
exercício da sua função, afirmou que “o fato de ser adventista nunca dificultou o
exercício, em si, da função judicante”, exceto as participações em extensões,
congressos, seminários, etc., por causa da guarda do sábado.63
Em entrevista, concedida a Michelson Borges, Cristiane Marques de Souza
que tem 27 anos, casada, adventista de nascimento, bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Goiás, ex-delegada da Polícia Civil e atualmente exercendo
a função de promotora de Justiça do Estado de Goiás, relata que durante o
concurso, para o cargo de promotora de Justiça do Estado, uma das provas foi
marcada para o sábado, o que inviabilizaria a sua participação no certame, estando
disposta até mesmo a abrir mão do concurso, para não ter que transigir quanto aos
princípios em que acreditava – santificação do sábado bíblico, como dia de
62
SILVA, John Silas da. Julgamento sereno [entrevista]. Revista Adventista, Tatuí, SP, Ano 100, n.
1, p. 5-6, jan. 2005.
63
CECCONI, Dulce Maria Sant’ Eufemia. Exemplo: a melhor forma de testemunhar [entrevista].
Revista Adventista, Tatuí, SP, Ano 100, n. 11, p.5-6, nov. 2005.
4
44
descanso
designado
por
Deus.
Felizmente,
conta
que
conseguiu,
administrativamente, autorização para ficar confinada no dia da prova de sábado,
permanecendo sozinha das 13h às 18h30 (término do pôr-do-sol), tendo começado
a fazer as provas às 19h e terminando às 23h15.64
Por derradeiro, concluímos a exposição desse tópico, com o caso concreto
do adventista do sétimo dia Vanderley de Oliveira Silva que vem consolidar a
efetivação da possibilidade de acesso a cargos públicos por membros dessa
denominação religiosa ou de qualquer outra, que possuem por dogma de fé o
imperativo de consciência da guarda do sábado natural.
O Dr. Vanderley ocupa, atualmente, o cargo público de juiz de terceira
entrância, cargo final na magistratura, na capital do Pará. Este juiz destacou-se na
sua região pela sua grande contribuição na motivação e recuperação de detentos,
sendo que, imbuído de seu espírito de cristão comprometido com sua fé, levou
muitos presos a converterem-se da vida do crime que levavam para uma
reintegração social. Essa história de vida mostra que os valores cristãos de uma
pessoa, ao revés de obstaculizar o acesso de um indivíduo ao exercício de um cargo
público, pode até mesmo servir de auxílio para um melhor desenvolvimento da
função pública.65
64
SOUZA, Cristiane Marques de. Vivendo o que é Direito [entrevista]. Conexão JÁ, Tatuí, SP, Ano 1,
n. Especial, p. 6-7, 2006.
65
SILVA, Vanderley de Oliveira. Comprometido com Cristo. Revista Adventista, Tatuí, SP, Ano 102,
n. 1188, p.6-7, Maio. 2007.
CONCLUSÃO
1. Nas sociedades democráticas modernas a concepção de dignidade
possui um caráter universal e igualitário, sendo reconhecido a dignidade imanente
(inata) a todos os seres humanos. Por conseguinte, constituiu-se premissa essencial
que todos possuem a mesma dignidade, consequentemente, possuindo a mesma
igualdade, igualdade esta que é absoluta, enquanto membros de uma mesma
comunidade.
2. Todos os seres humanos, enquanto pessoas, são iguais, dotadas dos
mesmos direitos e deveres, e, portanto, toda desigualdade fundada em aspectos
constitutivos da pessoa, quer seja de natureza física (racial – raça dominante ou em
maior número), mental (privilégio a uma ideologia pessoal ou política dominante) ou
espiritual (desrespeito e/ou desconsideração à crença e à manifestação de culto de
outrem) são inadmissíveis em qualquer sociedade/comunidade que possua por fim
último a busca da dignidade da pessoa humana.
3. A pessoa humana é um ser concreto, visto que existe de fato. É,
igualmente, um ser individual, porque é um todo em si mesmo, não podendo ser
considerada como mero fragmento de um todo maior. É dotada de raciocínio próprio,
peculiar, ou seja, apta para autodeterminar-se nos atos da vida pessoal, capacitada
a viver como bem entender e habilitada a conhecer a verdade por si mesma, por
intermédio da livre razão. Além disso, a pessoa humana é um ser social que só
consegue desenvolver-se na sua plenitude, vivendo em comunidade com seus pares
(outras pessoas).
4
46
4. Em que pese, uma comunidade ser pautada pela aplicação da justiça
social, em que a dignidade da pessoa humana é a sua pedra de toque, deve-se
preservar a mesma igualdade na dignidade de seus membros, sob pena de,
desintegração da comunidade em decorrência da existência de atos injustos do
ponto de vista da justiça social.
5. O status ou condição de pessoa participante da comunidade - que tem a
dignidade como padrão de adequação de determinação do que é devido a cada um se caracteriza na medida em que, a mesma passa a engajar-se e pugnar pela
garantia dos mesmos (iguais) direitos para todos membros da comunidade.
6. O caráter social do ser humano implica numa convivência em
comunidade, ou seja, envolve-o numa rede de relações e deveres com o outro
(semelhante ou próximo), implicando, necessariamente, numa conscientização,
aceitação e reconhecimento mútuo do status de pessoa humana para todos os
membros da comunidade a qual está inserido, portanto, tendo os mesmos direitos e
deveres dos demais.
7. A liberdade religiosa está incluída entre as liberdades espirituais, visto
que, configura a liberdade do espírito em matéria religiosa ou de opção do indivíduo
em matéria de religião, sendo, portanto, uma especialização da liberdade de
pensamento atrelada à religião.
8. O direito à liberdade religiosa desenvolve-se em diferentes esferas, quer
seja na do pensamento ou na da vivência particular (plano pessoal), quer seja na da
expressão social e comunitária (plano social). Compreende uma imunidade de
coação, garantida pelo reconhecimento civil de uma esfera de autonomia inerente a
cada pessoa, grupo social e comunidade, assegurando o respeito à diversidade
democrática de idéias, filosofias e a diversidade espiritual.
9. A liberdade religiosa é um bem em si mesma, tanto para o indivíduo como
para a sociedade, pois possui uma dimensão política, visto ser parte integrante do
bem comum da sociedade. Por isso, o Estado tem o dever ou encargo de promover
4
47
e tutelar a liberdade religiosa com a máxima amplitude possível, respeitando os
princípios básicos da ordem social.
10. Com efeito, a liberdade religiosa é um complexo de direitos relacionados
à questão da liberdade em razão da religião. Nesse feixe de direitos estão
abarcadas dois direitos essenciais e fundamentais para uma garantia mínima à
liberdade de religião, a saber, a liberdade de crença e de culto.
11. Da liberdade de religião afloram 3 espécies (modalidades) de liberdades,
a saber: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa.
12. A liberdade de crença diz respeito às opções de fé do indivíduo, a sua
capacidade e faculdade de adotar uma crença religiosa ou não, bem como o direito
de atuar conforme os ditames de sua crença própria, sem ser molestado ou sofrer
pressão de qualquer natureza para que estabeleça, mude ou abandone suas
crenças ou convicções filosóficas, políticas ou religiosas.
13. A liberdade de crença é timbrada essencialmente pelo seu caráter
interno, possibilitando a pessoa humana desenvolver sua própria orientação de fé,
formar sua perspectiva de mundo e de vida, bem como eleger os valores que
considerar essenciais, sendo, portanto, inalienável por natureza.
14. Uma implicação positiva da liberdade de crença é a de ter e manifestar
livremente as crenças adotadas, decorrendo daí, o direito ao proselitismo ou a
explanação e a difusão da fé. A implicação negativa da liberdade de crença reside
no direito de resguardo do indivíduo sobre a existência e o conteúdo da sua crença,
bem como o direito ao silêncio sobre suas convicções religiosas, cabendo a si a
decisão voluntária de manifestar ou não a própria crença, livre de pressões ou
coações por parte de poderes públicos ou terceiros, para que, assim, seja evitado
qualquer forma de discriminação em razão da religião.
15. Liberdade de culto é um direito fundamental de exteriorização e de
demonstração plena da liberdade de religião internalizada na pessoa humana,
decorrente da liberdade de crença religiosa, que está caracterizada, em certo grau,
4
48
na combinação das liberdades de pensamento e física. Compreende-se na liberdade
de culto, o direito de oração e práticas de atos próprios de manifestações de cada
religião, quer seja em espaços privados (em casa, igrejas) ou públicos (logradouros,
espaços públicos ou comuns).
16. O culto é a forma exterior da religião: religião + relação com os outros
homens + ação. É a manifestação das crenças religiosas em atos externos nos
quais se patenteia a fé religiosa de uma pessoa, cujo fim é a satisfação e revelação
dos anseios da alma do seu manifestante. Em face disso, inexiste religião sem culto
ou ritual, porque as crenças não constituem, por si mesmo, uma religião. Portanto se
não existir culto ou ritual correspondente à crença, no máximo poderá ocorrer uma
posição contemplativa, filosófica, por parte de um indivíduo, jamais o exercício da
religião.
17. Os cultos poderão ocorrer em locais típicos, como templos, edificações
com características peculiares de cada religião, bem como em locais não típicos,
nada obstante, necessários ao pleno - ou à perfectibilização do - exercício da
liberdade religiosa. O exercício da liberdade de culto, na sua vertente positiva ocorre
na exteriorização, através de rituais, cerimônias, símbolos ou aparatos, da religião
professada em locais próprios destinados a tais fins ou em locais públicos. A
vertente negativa da liberdade de culto consiste no direito da pessoa humana não
ser obrigada a participar de quaisquer atos religiosos, manifestações ou cultos.
18. Liberdade de organização religiosa tem que ver com à possibilidade de
estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado. Na
relação Estado-Igreja são observados três sistemas: confusão, união e separação.
Na confusão, o Estado se confunde com determinada religião, sendo um Estado
teocrático. Já na união, verificam-se relações jurídicas entre o Estado e determinada
Igreja no que concerne à sua organização e funcionamento. Na separação pode
existir tanto o indiferentismo, a neutralidade ou imparcialidade, como a colaboração
nas relações Estado-Igreja, podendo ocorrer, até mesmo, uma separação mais
rígida para um sistema que admite certos contados entre o Estado e as diversas
igrejas.
4
49
19. A neutralidade do Estado em matéria religiosa tem como corolário o
princípio da separação das confissões religiosas do Estado, que contribui, em
grande medida, para proteção das coletividades religiosas. O Brasil apresenta um
modelo de Estado laico, adotando claramente o princípio da separação entre Estado
e organizações religiosas. Em virtude disso, a neutralidade do Estado brasileiro
mostra abertura à multiplicidade de crenças e organizações religiosas, não
interferindo diretamente nas questões religiosas e nas próprias organizações
religiosas. Com efeito, a relevância da neutralidade do Estado em matéria religiosa
se evidencia na exata medida em que fomenta a convivência pacífica entre as
diferentes confissões religiosas, garantindo a liberdade religiosa de forma expansível
numa sociedade caracterizada pelo pluralismo religioso.
20. Ademais, em face da dimensão coletiva da liberdade religiosa estendese às confissões religiosas os mesmos objetos de tutela garantidos aos indivíduos
em matéria religiosa, assegurando-se, portanto, o direito a formação de associações
ou grupos na sociedade civil com identidade religiosa, a realização de reuniões de
cunho religioso, o estabelecimento de locais apropriados para culto, a divulgação e
pregação de sua doutrinas etc.
21. A acessibilidade à função pública é uma manifestação especial da
liberdade de ação profissional. No art. 37, inciso I, reconhece-se a acessibilidade a
todos os brasileiros à função administrativa, na forma da lei. Esta lei, no entanto, não
pode importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta
observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função
administrativa. Logo, é vedado a Administração estabelecer condições que afrontem
as garantias asseguradas no art. 5° da Constituição Federal, proibindo-se, assim,
qualquer distinção baseada em sexo, idade, raça, trabalho, credo religioso e
convicções filosóficas ou políticas.
22. Em face do princípio da isonomia os requisitos estabelecidos em lei
devem ser apenas os que, objetivamente considerados, se mostrem necessários e
razoáveis ao cabal desempenho da função pública. Em suma, se determinado cargo
ou emprego público pode ser exercido indiferentemente por pessoas de qualquer
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credo religioso, a discriminação fundada nesse atributo (qualidade, peculiaridade)
pessoal do candidato será indevida.
23. O princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos visa
essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura mediante investidura por
concurso público de provas ou de provas e títulos. A Constituição Federal ao
estabelecer a acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas a todos os
brasileiros, consequentemente, assegura-lhes o direito de acesso (exercício efetivo)
aos cargos, empregos e funções públicas.
24. Todo cidadão tem o direito de acesso aos cargos, empregos e funções
públicas, pois é o verdadeiro agente do poder, no sentido de ampla possibilidade de
participação da administração pública. Todavia, tal acesso só ocorrerá por
intermédio de concurso público que é obrigatório, em regra, para a investidura em
cargo ou emprego público na Administração direta e indireta. Isso posto, a plena
garantia de participação ao concurso público obrigatório por lei, torna-se uma
condição sine qua non para o acesso (investidura) ao cargo público almejado.
25. Um dos argumentos sustentados pela não participação dos adventistas
do sétimo, dia em horário especial (diferenciado), nos certames para acesso a
cargos públicos, é de que a Administração não pode se dobrar a convicção de
natureza estritamente pessoal (religiosa) de cada candidato, devendo estes
cumprirem (ou adequarem-se) às exigências ordinárias comumente postas aos
demais cidadãos numa sociedade, pois qualquer concessão dessa ordem implicaria
em discriminação favorecedora daqueles que professem uma determinada fé, o que
é proibido pela Constituição. Todavia, tal entendimento resulta na inviabilização da
participação dos adventistas do sétimo dia nos certames e, consequentemente, no
exercício constitucional de acesso a cargos públicos.
26. Outro argumento contrário ao direito de acesso a cargos públicos pelos
adventistas é que, no caso concreto, deve preponderar sobre a individualidade o
interesse público de que os candidatos aprovados em concurso público
desempenhem a carreira sob as mesmas regras, disciplinas, horários, sustentandose até mesmo que, essas regras devem começar desde a submissão às provas do
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concurso público de ingresso nos mesmos moldes dos outros candidatos e nas
mesmas condições de local, ou seja, de uma sala de aula cheia, com vários fiscais,
candidatos levantando, sentando, deslocando-se ao banheiro, interpelando fiscais
acerca de alguma intercorrência.
27. Entrementes, a Administração há de se guiar, em primeiro lugar, pelos
princípios e valores constitucionais, por conseguinte, a realização do concurso no
sábado privaria o cidadão, que tem o Sábado como dia consagrado, de concorrer
por motivo religioso, pois impediria na prática a participação de minorias religiosas,
infringindo dois direitos fundamentais: o da liberdade de crença (art. 5º, VIII, da
CF/88) e o do acesso a cargos públicos (art. 37, I). Por isso, nestes casos
peculiares, incumbe a Administração o dever de harmonizar o princípio da
igualdade, que governa o concurso público, com o da liberdade de crença, que inclui
a obrigatória observância pelo praticante de certos princípios. A proporcionalidade
entre o princípio da igualdade e o da liberdade de crença conduz ao reconhecimento
do direito de uma pessoa, que alega imperativo de consciência, a poder realizar a
prova em horário distinto e especial.
28. A Constituição Federal, no dispositivo do artigo 5º, inciso VIII, estabeleceu
apenas duas restrições à liberdade de crença religiosa: a) obrigação legal a todos
imposta; b) e recusa em cumprir prestação alternativa fixada em lei. Entretanto, no
que tange a acessibilidade a cargos públicos, forçoso é o reconhecimento de que a
determinação do horário das provas constante do edital não é uma obrigação legal a
todos os candidatos imposta. Ao revés, se trata de determinação da própria
comissão de concurso, que pode ser perfeitamente modificada para atender à
situação concreta dos adventistas do sétimo dia sem a quebra do princípio da
isonomia, que é a pedra de toque dos certames públicos.
29. Entende-se que a liberdade de culto, assegurada pela Constituição
federal, deve, sempre que possível, ser respeitada pelo Poder Público na prática de
seus atos, pois a liberdade de culto compreende, além da garantia de exteriorização
da crença, a garantia de fidelidade aos hábitos e cultos, como ocorrido no caso
concreto, em que o sábado é considerado dia de guarda para a religião dos
adventistas do sétimo dia.
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30. Considerando os casos concretos de pessoas que são adventistas do
sétimo dia e que conseguiram passar em certames públicos para poderem ocupar
cargos na esfera pública (Desembargadores, juízes, Delegados), apresentados
neste trabalho, bem como a análise e cotejo entre as duas correntes jurisprudenciais
estudadas, verifica-se existir total e plena possibilidade de efetivar-se a participação
em certames públicos de pessoas que possuem por preceito de fé a guarda do
sábado bíblico, sem ocorrer discriminação, aviltamento ou desrespeito a liberdade
religiosa de qualquer pessoa, desde que seja mantida a garantia de resguardo do
candidato até o momento da realização das provas aplicadas no concurso.
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