CULTURA DA INFÂNCIA
Por que podemos
falar sobre a morte
REGINA SCARPA
R
ecentemente, li Íris - Uma Despedida (Gudrun Mebs, 80 págs., Ed. Pulo do Gato, tel.
11/3214-0228,27,80 reais), uma obra infantojuvenil, com belas ilustrações de Beatriz Martín Vidal.
A sensível história mostra uma criança falando
sobre a doença e o falecimento da irmã. O texto,
em primeira pessoa, descreve os sentimentos da
menina e sua relação com os pais em um momento tão difícil. Essa leitura me fez pensar sobre como a literatura e a arte têm se constituído nos
únicos meios dos pequenos pensarem sobre a
morte, assunto tão importante e tão humano.
Lembrei da minha infância e das vivências que
eu tive em uma cidade pequena, no sul de Minas
Gerais. Todos os dias, às 8 horas da manhã, o alto-falante da igreja anunciava os falecimentos. Automaticamente, a residência da família que tinha
perdido um ente querido se enchia de amigos.
Nós, crianças, ficávamos na sala onde o velório
ocorria e brincávamos embaixo do caixão, ao lado
da mesa farta montada para o café, com doces,
biscoitos de polvilho e compotas. Essa experiência
sempre me fez valorizar a vida e o fato de eu e
todas as pessoas queridas estarmos bem.
Cada cultura lida com a morte de uma maneira diferente. No México, o dia dos mortos é uma
grande festa nacional. O historiador francês Philippe Aries (1914-1984) escreveu sobre essa diversidade em História da Morte no Ocidente - Da Idade Média aos Nossos Dias (edição esgotada). Ele
descreve como esse acontecimento deixou de ser
algo considerado familiar e natural para passar a
ser um tema praticamente proibido.
Em alguns locais do Brasil, especialmente nas
grandes cidades, os óbitos têm sido escondidos das
crianças. É comum que alguém que nasce em São
Paulo, por exemplo, só veja um caixão depois da
adolescência ou até na fase adulta. Apesar disso,
esse assunto é recorrente nas turmas de 4 e 5 anos.
Nessa faixa etãria, as meninas e os meninos passam por uma espécie de adolescência infantil e
ficam um pouco existencialistas.
No faz de conta, elas brincam, fingindo que
estão "morridas", deitam no chão e depois levantam, como se o falecimento fosse um estágio passageiro. Na vida real, encaram a morte e o consequente desaparecimento não apenas de familiares
mas também de animais de estimação queridos.
Tentando entender o que se passa, enfrentam dilemas e fazem perguntas como "Quando a gente
morre, não leva nada, nem a fraldinha?" ou choram se o pai vai viajar de avião porque alguém
disse que "quem morre vai para o céu". Nos desenhos animados, veem falecimentos trágicos como
os da mãe de Bambi ou do pai do Rei Leão e assistem a personagens como Tom e Ierry que a
cada episódio são esmagados e revivem, voltando
a correr logo depois.
Portanto, definitivamente, essa não é uma preocupação exclusiva dos adultos. Quem atua na
Educação Infantil precisa manter uma escuta
atenta também para esse tema e colaborar para
que todos pensem sobre isso como algo natural,
parte da vida. A melhor abordagem vai depender
muito do contexto. Se alguém querido faleceu e
o pequeno está triste, provavelmente será melhor
realizar uma conversa mais individual e acolher
os sentimentos dessa criança. Caso a turma toda
esteja curiosa e cheia de perguntas, a leitura de
um livro como Íris - Uma Despedida pode ajudar
a trazer as percepções à tona e conversar.
Ao se tornar mais conhecida e visível, a morte
pode ser elaborada pelos pequenos que estão apenas iniciando sua trajetória. Você só consegue
compreender algo que conhece e com que se relaciona. Então, não adianta tratar um aspecto
inerente a todo humano como assunto proibido.
O melhor é se fortalecer para enfrentar a vida.
Doutora em Educação
pela Universidade
de São Paulo (USP)
e diretora pedagógica
da Escola Vera Cruz,
em São Paulo
novaesc:ola.org.br NOVEMBRO 2015
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