O COZINHEIRO
DO
REI D. JOÃO VI
Hélio Loureiro
O COZINHEIRO
DO
REI D. JOÃO VI
Romance
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Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
© Hélio Loureiro, 2008
© A Esfera dos Livros, 2008
1.ª edição: Abril de 2008
Capa: Compañia
Imagem da capa: © akg/Album; © Corbis
Fotografia do autor: João Ribeiro
Retrato de D. João VI: D.D.F. – Instituto dos Museus e da Conservação,
Museu Nacional dos Coches, fotografia de José Pessoa
Revisão: Eda Lyra
Paginação: Júlio de Carvalho
Impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos
Depósito legal n.º 274 258/08
ISBN 978-989-626-098-9
Agradecimentos
Agradeço aos meus queridos amigos Raquel Coelho,
pelo incentivo que me foi dando durante a construção
deste pequeno romance, Francisco Morais da Fonte,
pela companhia nos caminhos percorridos no Rio de
Janeiro à procura de D. João e dos seus lugares. Ao meu
querido amigo João Mendes Pereira que, estando em Portugal ao serviço do Brasil na embaixada em Lisboa, me foi
dando motivos para que desse a conhecer a figura do Rei
que fez o Brasil.
À minha mulher, com as minhas desculpas pelo tempo
que lhe roubei nos carinhos e afectos que ficaram por dar
durante o tempo de investigação e de escrita.
À Sofia Santos Monteiro, única razão de eu ter chegado
ao fim desta história, pois sempre me foi apoiando e instigando a fazê-lo; sem ela nunca a teria concluído!
À D. Hermínia Pais do Palácio da Brejoeira, Quinta do
Vale das Rosas, onde um dia nasceu uma paixão intensa
que nunca esquecerei.
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STEFAN ZWEIG
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CARTA DE UMA DESCONHECIDA
À Memória de D. João VI
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STEFAN ZWEIG
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CARTA DE UMA DESCONHECIDA
Introdução
Não quis neste livro julgar a História nem rescrevê-la,
apenas romancear com algum rigor a vida de um cozinheiro
que não existindo podia ter vivido e que saindo da sua casa
do Minho encontra um mundo novo, numa corte dividida,
e um príncipe solitário no meio de uma multidão de gente
que o pressionava num mundo em completa mudança.
Mostrar que por detrás de uma pessoa pública existe um
ser humano por vezes frágil, com medos, angústias e frustrações, mostrar que D. João foi de facto um grande rei que
sonhou o Brasil e que amou Portugal como poucos.
Demonstrar que ontem como hoje a mesa é palco
de convívio, de alegria, mas que pode também ser local
de conspirações. Que ontem como hoje se morre pela
ingestão de alimentos.
Por fim, demonstrar a fragilidade humana que com
muita facilidade se vende e se corrompe, ontem como
hoje, desviando-se dos princípios que por vezes são valores
inabaláveis.
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HÉLIO LOUREIRO
Esta obra é, pois, de ficção com algumas personagens e
alguns factos verídicos. Quem matou D. João, até hoje
não se sabe, mas sabe-se com toda a certeza que a causa
da morte foi arsénico.
A quem servia a morte do rei? Não sei, ninguém sabe…
pode ser que um dia se descubra mas não terá mais importância. A única coisa importante mesmo foi a vida deste
homem que nasceu para ser príncipe e chegou a imperador, que enganou e venceu Napoleão como ninguém o
tinha feito em toda a Europa até ao tempo da partida para
o Brasil, que sonhou e uniu o Brasil da forma como permanece até hoje, que viu nascer um novo regime assente
no liberalismo o qual aceitou, que viu a destruição de muitas
casas reais pela Europa, que teve de lutar com a própria
família em querelas que o desgastaram.
Quem o matou ou mandou matar por certo queria também o melhor para Portugal, mas será que a vida humana
está acima de uma Nação?
A História mostra-nos que sim, que a vida, mesmo a de
um rei, vale pouco quando se fala da Pátria e dos interesses políticos do momento.
Morrer pela Pátria é glorioso, ser morto pelos seus
interesses torna-nos mártires!
Hélio Loureiro
12 de Fevereiro de 2008, Porto
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Quatro de Março de 1826. Eram quatro da manhã,
quando me fui despedir daquele a quem aprendera a amar e
a servir. Meu pobre e amado senhor D. João VI, imperador,
rei querido pelo povo, pela sua clemência e bondade,
temente a Deus, sempre ao serviço do reino e do seu povo
que amou até ao fim, a quem tudo perdoou, as infâmias, as
mentiras, a crueldade. Abandonado pelos filhos a quem
sempre inocentou, carregava a cruz de uma mulher com
quem não se entendia e de quem tanta maledicência escreviam e contavam. Um rei que a todos soube, com o seu olhar
meigo, absolver. Como foram capazes de tal vil façanha?
Ali estava ele, coberto com um simples lençol de linho.
Iam começar os trabalhos de embalsamamento, iriam
abri-lo, despojá-lo das suas entranhas que tantas vezes eu
alimentara e de que tanto padecera nos últimos dias da
sua vida de sofrimento.
Naquela sala onde apenas uma lamparina de azeite
luzia, um velho Cristo crucificado na parede, de olhos
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HÉLIO LOUREIRO
cerrados como se não quisesse assistir àquele horror. Não
me via, prostrado de joelhos no chão frio de pedra, mas
certamente ouviu o meu desespero em gritos esganados
de dor que suplicavam perdão.
Roguei aos céus que morresse, ali. Queria morrer, queria ter morrido naquele instante com o meu amado rei,
que o chão me sugasse e engolisse, e as lamas mais escaldantes da terra derretessem o meu corpo.
A porta abriu-se, entraram os médicos do rei, com os
seus instrumentos de ciência, seguidos dos cangalheiros.
Levantei-me rapidamente, tapei o rosto coberto de lágrimas com o gabão negro e saí pela porta das traseiras do
quarto, por onde fogem os que não querem ser vistos,
nem reconhecidos.
Sem dizer palavra, sem me despedir nem deixar recado
ou mensagem, corri pelo corredor de serviço daquele labiríntico Palácio da Bemposta. Sempre odiara aquele palácio.
Eram raros os dias em que não sentia ao meu lado o vulto
de D. Catarina que ali morrera vinda de Inglaterra, de uma
vida de tormento e sofrimento. Estava amaldiçoado aquele
local. Agora estava duplamente amaldiçoado.
Precisava de fugir daquele lugar, de voltar a casa, à
minha terra natal, ao meu Minho, onde já não ia desde
1805. Tinha chegado a Lisboa nesse ano, para o serviço
da corte, como cozinheiro, confeiteiro e organizador de
serviços, recomendado por meu amo, D. António de
Sampaio Menezes e Sousa, meu padrinho de baptismo.
Deixara os meus pais, irmãos e irmãs que serviam naquela
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casa desde os tempos dos meus avós, que tinham vindo
fugidos de Trás-os-Montes e ali nas belas terras do Minho
encontraram a paz e o sossego merecidos.
Montei a mula e com a noite como única companheira
de viagem rumei pela estrada a trote rumo ao Porto. Deixava a corte para trás, a minha cozinha, a minha amiga
Clotilde, os meus parcos haveres, mas carregava o peso da
culpa, de uma bolsa recheada e uma carta no bolso do
meu casaco que deveria entregar sem mais demora.
Depois de seis dias de viagem solitária finalmente avistei
o Porto, onde me alojei numa casa cedida pela família de
José Maria Lopes e Carneiro, na rua das Taipas. Mas antes
desfiz-me da carta selada que transportava a mando de
Domingos Bem Saúde. Muitas vezes pelo caminho pensei
em abri-la. Rasgar o selo lacrado e ler o que continha tão
importante missiva, mas no fundo eu sabia exactamente o
seu contéudo e tinha vergonha de cada palavra ali gravada.
Quando finalmente a entreguei, a cara do destinatário
empalideceu. Era um nobre de bom ar, certamente um
liberal que queria mal a el-rei. A pouco e pouco a cor voltou à sua face. Um sorriso ocupou os seus lábios e
olhando-me de cima a baixo, disse, deixando escapar um
sotaque inglês:
– Apenas fizeste o que deveria ser feito, agora vai para
a rua das Taipas e fica o tempo que achares necessário.
Nada te faltará.
O seu ar de felicidade após a leitura da carta deu-me
vómitos, canalha! Foi quando tentava descansar a alma no
travesseiro que escutei da janela do meu quarto, o arauto
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que transmitia a triste nova da morte do imperador D. João
VI. Estávamos a onze de Março, tinham passado sete dias
desde que fugi do Palácio da Bemposta… Até no dia da
morte mentiram. Porque precisaram de tanto tempo?
Porque foi preciso tanto engano?
Pernoitei apenas uma noite no Porto. Fiz-me à estrada já
tocava o sino da Igreja de São Bento da Vitória para a primeira missa da manhã. Muita gente já para lá acorria, vestida de luto e de rostos pesados, pela triste notícia da morte
do nosso soberano. Com o meu coração despedaçado
ainda hesitei em entrar para uma breve oração mas detive-me. Não podia, não devia, não merecia entrar naquele
templo sagrado.
Com a alma suja de pecado segui caminho para a
minha terra natal tentando alegrar-me com as recordações
da Casa Grande, junto ao rio. Sentia já o aroma das maçãs
do jardim, que se misturavam com o dos morangos selvagens… agora sabia que podia acrescentar natas batidas
com açúcar, um requinte que aprendi na corte que abandonara. Nos meus tempos de juventude comia-os colhidos
no meio das silvas ou em casa com mel. Sim, era para aqui
que queria voltar, mesmo sabendo que já não encontraria
os meus pais, as minhas doces irmãs nem os meus irmãos,
mortos pelas mãos dos soldados franceses.
Meus queridos irmãos, que por valentia se tinham juntado às tropas inglesas, e como bravos que eram, morreram com nobreza no campo de batalha na defesa da
ponte de Amarante. Pois não transportavam eles sangue
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de antepassados que tinham estado nas lutas da Restauração? Não tinham aqueles meus ilustres familiares sido
nobilitados por D. João IV por tais factos? Era de dever
que o fizessem, não como tantos outros que por cá ainda
encontrei, que usando os seus títulos se entregaram ao
serviço desses miseráveis franceses e agora se exibem com
os seus ditos títulos de nobreza.
Meu padrinho deixara um testamento lavrado poucos
dias antes de morrer. Sem saber do paradeiro de um dos
seus filhos mais novos, escreveu que os terrenos à volta da
casa onde moravam os meus pais, bem como um pequeno
palacete que tinha mandado erguer para uma das suas tias
que tinha ficado por casar à morte de seu pai, ficariam
para mim. «Pela dedicação que sempre teve para com a
minha família e devoção com Sua Majestade D. João VI»,
foram as palavras deixadas no testamento. Mas as verdadeiras razões de tamanha bondade não ficaram escritas e
lavradas naquele pergaminho. Nem precisavam…
De nada me servia a bolsa de moedas de ouro que carregava nas calças. Porque fiz aquilo se o dinheiro do meu
padrinho me assegurava os meus últimos dias na terra?
Até a memória de meu padrinho eu traíra. Ficaria com
parte do Vale das Rosas, por herança, compraria o restante com o que juntara no trabalho honrado. Para que
precisava eu do outro vil dinheiro ganho da pior maneira?
Esta seria a morada e o meu sepulcro sobre a Terra. Sem
merecimento herdei o que não devia.
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