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LOPES, Célia Regina dos Santos, MARCOTULIO, Leonardo Lennertz. “O tratamento a Rui Barbosa”. In:
Dinah Callou; Afranio Barbosa. (Org.). A norma brasileira em construção: cartas a Rui Barbosa (1866 a 1899).
1 ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011, v.2, p. 265-292.
O tratamento a Rui Barbosa
Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ/CNPq/FAPERJ
Leonardo Lennertz Marcotulio – UFRJ/Doutorando
Apresentação
O objetivo do trabalho é apresentar, em primeiro lugar, um panorama geral das formas de
tratamento utilizadas na amostra de cartas escritas a Rui Barbosa no período de 1866 a 1899. A
partir dessa descrição inicial, busca-se, em um segundo momento do trabalho, identificar as
motivações linguísticas e sócio-pragmáticas que poderiam explicar a mescla de tratamento
presentes em um conjunto de cartas produzidas pelo amigo Carlos Aguiar. O principal intuito é
analisar a variação entre você e tu, discutindo as possíveis causas da reestruturação do sistema de
tratamento do português brasileiro. Defende-se, com base em Fontanella de Weinberg (1977) e em
outros estudos específicos sobre o português do Brasil1, que a coexistência dos subsistemas de tu e
você pode ter levado à fusão de ambos, resultando na formação de um novo paradigma pronominal
supletivo com formas relacionadas a você convivendo com resquícios do antigo pronome tu.
Para a análise da variação você e tu numa mesma carta, parte-se da hipótese de que você,
no seu processo de mudança de expressão nominal de tratamento para pronome pessoal, não perdeu
completa e imediatamente os seus traços nominais originais e muito menos adotou de maneira
definitiva as propriedades pronominais (LOPES e MACHADO, 2005; LOPES et al, 2009). Com
isso, criaram-se algumas aparentes incompatibilidades entre propriedades formais e semânticodiscursivas. Persistiu a especificação original de 3a pessoa e a concordância verbal continuou sendo
a mesma (você faz), no entanto, a interpretação semântico-discursiva passou a ser de 2a pessoa [EU] (cf. LOPES, 2003). Tal especificação apresenta ainda hoje indícios formais que se configuram
na possibilidade de você se correlacionar a formas de 2a pessoa (te/teu e imperativo formado a partir
do presente do indicativo). As análises que vêm sendo feitas com base em diferentes corpora
tentam demarcar esse percurso e verificar em que momento isso começa a se instaurar no português
do Brasil. Se houve a criação de um paradigma supletivo, como e quando ele começa a se
configurar? Em que contextos morfossintáticos as marcas originais de segunda pessoa do singular
(relacionadas a tu, como é o caso de teu/te/contigo) ainda resistem ou vão se manter?
Os resultados são analisados a partir dos princípios da sociolinguística laboviana, da Teoria
da Polidez e dos pressupostos da pragmática sócio-cultural e histórica associada ao conceito de
1
Ver LOPES e MACHADO, 2005; MACHADO, 2006; LOPES, 2008; RUMEU, 2008, entre outros.
2
Tradições Discursivas (cf. LABOV, 1994, BROWN E LEVINSON, 1987; KABATEK, 2006;
KOCH, 2008).
O trabalho está dividido em três seções. Na seção 2, faz-se uma breve revisão de estudos
específicos feitos com dados do século XIX, com o intuito de apresentar resultados sobre o emprego
das formas de tratamento de base nominal e pronominal no período analisado. Com base nessas
observações, discutem-se os fatores sócio-pragmáticos que poderiam explicar os valores assumidos
pelo híbrido você (oriundo do tratamento Vossa Mercê) no processo de mudança de tratamento
nominal a pronominal. Na seção 3, são descritos qualitativamente os resultados relativos à amostra
como um todo com ênfase nas formas de tratamento de base nominal mais frequentes nas cartas
produzidas por diversos remetentes. Na seção 4, envereda-se pela análise específica das cartas
produzidas por Carlos Aguiar, pois foi nesse material que se evidenciou a mescla de tratamento
entre formas relacionadas a tu e você. Nesse item, propõe-se uma análise em dois níveis.
Primeiramente, faz-se um estudo de regras variáveis na linha quantitativa laboviana. Apresentam-se
e discutem-se os fatores selecionados e, em seguida, propõe-se uma análise qualitativa dos poucos
dados de você que aparecem nas cartas repletas pelo tu-íntimo. Por serem esporádicos, procurou-se
identificar as possíveis motivações pragmáticas que podem influenciar na mudança do eixo de
tratamento de tu a você numa mesma carta. A adoção dessa perspectiva de análise busca trazer
evidências para explicar os possíveis agentes da mudança e as motivações sócio-pragmáticas que
determinavam o emprego dessas formas variantes em fins do século XIX.
2. O tratamento no século XIX: alguns resultados, postulados teóricos e hipóteses
2.1 – As formas nominais
No tocante às formas nominais de tratamento, Lopes e Duarte (2003) observam, com base
em peças teatrais brasileiras e portuguesas setecentistas e oitocentistas, que nas relações de inferior
para superior, as formas nominais de tratamento eram mais produtivas do que as formas
pronominais: Vossa Mercê era majoritária no português do Brasil, ao passo que Senhor, Sua
Senhoria, Vossa Excelência e Vossa Senhoria apareciam mais frequentemente nas peças
portuguesas.
No trabalho de Rumeu (2004) feito a partir de cartas oficiais e não-oficiais escritas no Brasil
nos séculos XVIII e XIX, a forma Vossa Excelência predominava nas relações de inferior para
superior. No eixo simétrico, ou seja, entre iguais, as formas Vossa Excelência e Vossa Mercê eram
utilizadas nas classes altas, enquanto Vossa Senhoria e Senhor ocorriam mais frequentemente nas
classes mais baixas. A autora também afirma que as formas Vossa Mercê e Vossa Senhoria já
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estavam esvaziadas do conteúdo cerimonioso, visto que se restringem às relações mediadas pelas
cartas não-oficiais setecentistas e oitocentistas.
Barcia (2006) analisou cartas de leitores em jornais do século XIX da região sudeste do
Brasil. Nas relações menos solidárias, as formas Vossa Excelência e Vossa Senhoria apresentaramse como mais formais. Nessas mesmas relações, a forma Vossa Mercê também ocorria como uma
forma cerimoniosa, não tanto quanto as anteriores, o que evidencia a manutenção de traços de
cortesia e respeito.
Em síntese, esses estudos feitos com base em corpora diversificados apresentam resultados
relativamente similares quanto às formas nominais de tratamento empregadas. De inferior para
superior, prevalecem Vossa Mercê, Vossa Senhoria e Vossa Excelência. Entre as três há certa
distinção quanto ao grau de formalidade e deferência. As duas primeiras eram mais esvaziadas
semanticamente quanto ao conteúdo cerimonioso se comparado ao emprego mais reverencial da
última, também usual nas relações simétricas entre grupos socialmente favorecidos.
2.2 – As formas pronominais tu e você e as hipóteses explicativas
No tocante às formas pronominais tu e você, os diversos estudos feitos, a partir de diferentes
amostras do século XIX (LOPES E DUARTE, 2003; RUMEU, 2004; LOPES, 2006 E BARCIA,
2006), têm observado o maior predomínio de tu quando há mais confiança e intimidade,
principalmente nas relações simétricas nas classes populares e nas relações assimétricas de superior
a inferior. O tratamento Você era menos frequente que tu, entre iguais populares, e mais produtivo
que o antigo pronome de segunda pessoa nas relações assimétricas descendentes.
Os trabalhos realizados com base em diferentes conjuntos de cartas (Soto, 2001, 2007 e
Lopes & Machado, 2005) mostraram que o tratamento você no século XIX apresentava um
comportamento híbrido e instável, pois aparecia tanto como uma estratégia de prestígio usada pela
elite brasileira da época, quanto como um tratamento generalizado na fala doméstica ao lado de tu.
Nas missivas de fins do XIX, o inovador você transitava por espaços discursivo-pragmáticos
distintos e típicos de formas híbridas em processo de mudança. Era um tratamento veiculado pela
elite brasileira com algum traço de cerimônia que também circulava como variante pronominal de
tu íntimo. Essa aparente contradição poderia advir da própria origem e do processo de mudança de
“Vossa Mercê > você”. Na medida em que se tornou gradativamente divergente do tratamentofonte (Vossa Mercê), você passou a concorrer com o solidário tu nos mesmos contextos funcionais.
Do “tratamento nominal abstrato” (Vossa Mercê), segundo Koch (2008, p. 59), teria herdado o
caráter indireto e atenuante da estratégia nominal de tratamento, por isso seria menos invasivo,
menos “ameaçante ao interlocutor”.
4
Koch (2008) defende que certos atos linguísticos diretivos, como um pedido, ordem,
recomendação, requerimento, seriam atitudes ameaçantes, já que pressupõem uma ação futura do
ouvinte/destinatário, logo constituem uma intromissão no “território” do outro (GOFFMAN, 1967,
apud KOCH, 2008). O autor afirma que tratar o interlocutor mais diretamente possível com um
pronome de segunda do singular (tu) pode ser um ato de ameaça à face2 negativa do interlocutor
(BROWN E LEVINSON, 1987) quando a forma pronominal não funciona como uma estratégia
mitigadora à imposição do ato. As línguas, no geral, apresentam procedimentos distintos de cortesia
para evitar ou atenuar estas ameaças pragmáticas, como é o caso dos tratamentos abstratos de base
nominal (Vossa Mercê, Vossa Majestade, O Senhor, etc) ou mesmo a pluralização do pronome (o
emprego de vós no lugar de tu). Nos dois casos a referência se dá a um grupo mais amplo, a uma
entidade abstrata ou a uma qualidade do interlocutor. A forma pronominal você pode ter mantido
algum valor de cortesia, formalidade, distanciamento ou indiretividade própria da expressão
primitiva Vossa Mercê. Nesse sentido, o seu emprego no lugar do tratamento direto tu poderia ser
uma estratégia de polidez/cortesia que funciona pragmaticamente como um recurso mitigador que
minimizaria um determinado ato, preservando as faces dos participantes da interação.
Emerge dessas considerações a associação entre o conceito de tradições discursivas3 e de
gramaticalização. Por um lado, no viés da gramaticalização, formas nominais de tratamento, como
Vossa Mercê, se gramaticalizaram com o tempo sofrendo erosão fonética (você), “desbotamento”
semântico e se generalizaram como formas pronominais recorrentes. A frequência de uso desgastou
obviamente o propósito comunicativo inicial de cortesia, de tratamento ao rei, de deferência. Nesse
processo de mudança, os itens ou construções lexicais (possessivo + nome abstrato) perderam
algumas propriedades originais e assumiram outras, ou seja, se decategorizaram nos termos de
Hopper (1991). Como é um processo gradual e contínuo, sempre há persistências semânticas e até
formais (manutenção do caráter indireto, concordância verbal na terceira pessoa típica dos nomes,
etc). À luz das tradições discursivas, parece evidente que as escolhas tratamentais em cartas podem
estar motivadas pela pragmática e natureza do próprio texto, ou seja, “as regras discursivas da
tradição epistolar” (KOCH, 2008, p. 69).
A nossa hipótese, como os estudos têm demonstrado (SOTO, 2001, MARCOTULIO, 2008;
RUMEU, 2008), é a de que a forma você empregada no Brasil do século XIX, ao passar pelo
processo de gramaticalização Vossa mercê > você, não perdera completamente seus traços nominais
2
Para o conceito de faces, ver Goffman (1980) e Brown & Levinson (1987).
“Entendemos por tradição discursiva a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de
escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer
finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre
atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos da tradição (atos
de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos
linguísticos empregados.” (KABATEK, 2006)
3
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originais. Aparentemente, o emprego de você ainda mantinha a indiretividade do tratamento original
Vossa Mercê ou conservava algum resquício de distanciamento. Em outras palavras, a nova forma
pronominal apresentava resquícios de maior distanciamento, se comparada à forma tu, e uma carga
semântica, ainda que desgastada, de cortesia. Nesse sentido, diante de um repertório de duas formas
consideradas [+ íntimas] – tu e você – em oposição às formas nominais vigentes no período (Vossa
Mercê, Vossa Senhoria, Vossa Excelência), pode-se pensar que a utilização de uma ou outra forma
pode estar regida por motivações de cunho sócio-pragmático. A adoção de você revelaria em cartas
íntimas com o tu solidário uma mensagem subjacente à referenciação de segunda pessoa do
discurso de modo a garantir a intencionalidade e propósito comunicativo-pragmático do emissor.
Na seção seguinte, apresenta-se um panorama geral das formas empregadas pelos diversos
remetentes das cartas escritas a Rui Barbosa e, na seção 4, são discutidas as possíveis motivações
para o emprego de você ao lado de tu nas cartas de Carlos Aguiar.
3. Quadro geral do tratamento na totalidade das cartas a Rui Barbosa
O conjunto de cartas que compõe a amostra é constituído por uma documentação de
natureza diversa no que se refere à sua distribuição tipológica, função comunicativa e graus de
formalidade. Ao lado de pareceres sobre incêndio e a situação da água, há cartas de pêsames,
agradecimentos, cumprimentos e congratulações em que prevalece uma composição estrutural
formulaica. Têm-se ainda cartas de caráter pessoal trocadas entre amigos em que o remetente pede
notícias, conta as novidades e tece comentários avaliativos sobre a situação política do país.
Obviamente que a heterogeneidade da amostra estará refletida nas opções tratamentais empregadas.
Como se verifica no quadro a seguir, predomina no conjunto de cartas a forma nominal de
tratamento Vossa Excelência e as formas verbo-pronominais de segunda pessoa (tu) e de terceira
pessoa (você), ambas no singular:
Remetente
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Antonio Abreu (RJ)
Tipo de
documento/Teor/Funções
comunicativas
Parecer sobre um incêndio
Pedro Abreu (BA)
Congratulações
Loureiro Bezerra
Luis Andrade
Salvador A. Moniz
Aragão (RJ)
Joaquim Nabuco
Parecer sobre água
Notícias/Carta de amizade
Solicitação de notícias/Carta de
amizade
Agradecimento sobre artigo
Tratamentos empregados
de Vossa Excelência, imp. P34
seu/sua, (com) Vossa Excelência, imp.
P3, -∅ (P3)
(de) Vossa Excelência
se, lhe, imp. P3
teu, te, imp. P3, -s (P2), -∅ (P3)
seu, lhe, imp. P3
O imperativo de terceira pessoa (presente do subjuntivo) fica indicado como imp. P3, do mesmo modo que o
imperativo de tu aparece como imp. P2. O símbolo -∅ (P3) indica que se trata de uma forma verbal sem o sujeito
preenchido e –s refere-se à desinência verbal de segunda pessoa do singular (sujeito nulo).
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Pres. Prudente de
Moraes
Barão de Macaúba
(Abílio B.)
Carta resposta de agradecimento
seu, o, (de) Vossa Excelência
Cumprimentos e pêsames
teu, te, imp. P2, -s (P2)
teu/seu, te/ lhe/o, imp. P2/imp. P3, -s/∅, contigo, (por/a/de/para) ti/você,
tu/você
Quadro 1: Descrição geral das formas de tratamento nas cartas a Rui Barbosa
Carlos Aguiar
Notícias pessoais/cartas de
amizade
Além do teor e do caráter tipológico do documento, o nível das interações estabelecidas [±
solidária, ± íntima, ± formal, ± distante, ± simétrica] entre o remetente e o destinatário
determinaram as escolhas linguísticas tratamentais (BRAVO E BRIZ, 2004, p. 80). Houve na
amostra uniformidade no tratamento com o emprego da forma nominal Vossa Excelência na
documentação [- solidária, - íntima, + formal] em que predominavam relações de natureza
transacional5 e não-interpessoal entre remetente-destinatário.
Pelo menos dois fatores podem ter determinado tal uso: o modelo de carta e o papel social do
remetente. No primeiro caso, têm-se as missivas que seguem um formato ou modelo específico
como, por exemplo, os dois pareceres sobre um incêndio escritos por Antonio Abreu ou as
congratulações de Pedro Abreu. No segundo caso, tem-se a resposta enviada pelo então Presidente
da República Prudente de Moraes confirmando o agradecimento formal feito por Rui Barbosa.
Embora uma carta de agradecimento possa ser considerada um tipo de interação [- distante] e, por
consequência, de maior contato e maior grau de compromisso afetivo, a importância social do
remetente e o teor do documento determinam a escolha por um tratamento [+ distante]. O
fragmento é ilustrativo:
(1)
5
“Recebi hontem as cartas de 15 do corrente em que Vossa Excelência com a sua habitual
gentilesa, agradece-me o decreto de 14 -que revogou o de de 24 de novembro de 1893 que o
fiseram das honras militares conferidas á 25 de maio de 1890. Reparando por essa forma a
grave injustiça de que Vossa Excelência foi victima, obedeci a suggestão da propria
consciencia e apenas cumpri o meu dever, sem julgar-me por isso credor da gratidaõ de
Vossa Excelência. O agradecimento de Vossa Excelência é pois mais uma manifestação
das nobres qualidades e elevados sentimentos que tanto o distinguem e o recommen- dam ao
respeito e á admiração de seus concidadãos. Estou de pleno accordo com Vossa Excelência
em que a Constituição da Republica , abolindo todas as distincções honoríficas, não [inint.] a
A solidariedade se negocia e se constrói na interação, independentemente dos papéis sociais e funcionais.
As relações simétricas são aquelas em que existe, ou se percebe, igualdade funcional e de papéis sociais entre
os participantes da interação (idade, gênero ou profissão). As interações de maior proximidade ocorrem
quando os interlocutores têm mais experiências ou saber compartilhado, maior grau de contato (físico ou
ocular) e de compromisso afetivo. Esses fatores sócio-pragmáticos se encontram preferencialmente reunidos
no caso das relações interpessoais. As relações transacionais, por sua vez, são assimétricas por definição,
pois o papel funcional, os direitos e as obrigações se apresentam de algum modo determinados e mais
estritamente submetidos a convenções sociais (cf. BRAVO E BRIZ, 2004, p. 80).
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honras militares, e por assim pensar não fiz uma só concessão de tais honras... Subscrevome com elevada consideração e estima” (Prudente Moraes)
Como era de se esperar, a expressão nominal Vossa Excelência ocorre nos modelos de carta
submetidos a certas convenções sociais que perduram até hoje nas mesmas circunstâncias de uso. É
um emprego determinado por certa tradição discursiva.
Além de Vossa Excelência, há as cartas de Joaquim Nabuco e de Luis Andrade em que
prevalecem formas verbais de 3ª pessoa sem sujeito explícito em contextos de menor deferência e
mais neutralidade. Em (2), o remetente agradece a publicação de um artigo no jornal e, em (3), pede
notícias.
(2)
“Meu caro Ruy . E no grato depois de tanto tempo de separação ter que lhe agradecer o seu
artigo de hontem, repassado da velha camaradagem que nos ligou desde a adolescencia,
quando faziamos parte do mesmo bando liberal da Academia.” (Joaquim Nabuco)
(3)
“Meu caro amigo, Rio, 12 março 92 Como já consta que os seus ultimos discursos e manifesto vão sahir em volume, noto que o livro é esperado com anciedade e bastantes
pessôas me perguntam quando sae. ... Rogando-lhe me recomenda/e6 merecidamente a
Dona Maria Augusta, aqui fica ao seu dis- por o amigo e admirador Luis de Andrade”
(Luis Andrade)
Na documentação de caráter pessoal, principalmente naquela enviada pelo Barão de Macaúba,
ex-professor e amigo de Rui Barbosa, o tu íntimo reina absoluto. Aqui comungam dois fatores: a
relação de proximidade/compromisso afetivo entre remetente-destinatário e o próprio teor da carta.
Em (4), o Barão cumprimenta o amigo e em (5) presta seus sinceros pêsames pela morte da mãe do
amigo Rui:
(4)
“Causou-me entranhavel satisfação tua presada carta de 21 do passado, cujas amigas e
amorosas expressões me vieram mais confirmar no juiso que sempre fis da eti dão do teu
caráter e da bondade do teu coração. Cartas como essa tua, meu Ruy, são para mim de
grande. preço:- confortam-me na dificil vida que levo, convencendo-me de que não são
desaproveitados os meus sacrifícios em prol da educação da mocidade. Olha:- eu te
considero como um dos mais distintos alumnos que tenho tido; amo-te como um filho, e
tenho fé de que has de ser uma das glorias do Gymnasio Bahiano” (Abílio C. Borges).
(5)
“Bahia, 12 de Julho de 1867 Ruy. Dizer que te acompanho na tua dor profunda pela
immensa perda que acabas de sofrer, é repetir aquilo de que não poder duvidar... . Nas
dores extremas é que o homem necessita do socorro da philosophia, e principalme. da fé! ...
Perdeste um thesouro! Golpe tremendo lacerrou-te o coração! Coragem! ... Resigna-te:
consola-te...” (Abílio C. Borges)
Os usos descritos nessas cartas não constituem novidade para a questão das formas de tratar
no período analisado. Mais do que um comportamento esperado para o século XIX, a identificação
6
Dúvida na transcrição.
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dessas formas de tratamento segue o formato do modelo-carta dirigido a pessoas ilustres como era o
caso de Rui Barbosa. A adoção de Vossa Excelência na documentação segue uma determinada
tradição discursiva (KABATEK, 2006) que orienta as pessoas que adotam essa ou aquela tipologia
em função das suas necessidades comunicativas específicas. Como se viu, Vossa Excelência se fez
presente nos pareceres, nas cartas de congratulações e na carta de agradecimento escrita pelo então
Presidente da República Prudente de Moraes. Nas cartas íntimas trocadas entre amigos o tratamento
é outro. Prevalece de maneira uniforme ou o tu-íntimo e solidário ou formas verbo-pronominais de
terceira pessoa com a presença explícita ou não de você.
Ressalte-se, entretanto, um conjunto de seis documentos que destoam do restante do material
analisado: as cartas de amizade do amigo Carlos Aguiar. Nelas, como pode ser observado no quadro
geral, o autor apresenta a mescla do tratamento tu e você. Tal documentação, ao contrário das
demais, pode evidenciar o caráter mais pronominal assumido pela forma gramaticalizada você em
fins do século XIX, além de dar indícios da reestruturação do quadro de pronomes causada pela
inserção de você, como vem sendo discutido em vários trabalhos sobre o tema (cf. RUMEU, 2004;
BARCIA, 2006; LOPES E MACHADO, 2005, etc). Na seção seguinte, serão apresentados os
resultados específicos da variação entre você e tu nessas cartas produzidas por Carlos Aguiar. O que
determinaria a mescla de tratamento nessas cartas do amigo Carlos? Que motivações estruturais e
sócio-pragmáticas poderiam estar condicionando o emprego ora de tu ora de você nessas cartas
trocadas entre amigos?
4. A variação você e tu nas cartas de amizade e a formação do paradigma supletivo
4.1 – Análise de regras variáveis: os fatores linguísticos
A análise de regra variável restringiu-se a seis cartas enviadas por Carlos Nunes de Aguiar,
uma vez que nelas identificou-se mais produtivamente a variação entre você e tu. As cartas
informais do amigo Carlos foram escritas entre 1893 e 1895 e versam sobre assuntos diversos.
Embora a ênfase esteja nas notícias íntimas familiares, inclusive notícias sobre os seus negócios
pessoais e os de Rui Barbosa, a temática política nacional se faz presente nos relatos de
acontecimentos do tempo de Floriano Peixoto, dos falsos amigos de Rui Barbosa e do período do
exílio. O teor das cartas do compadre, que foi major, coronel e presidente de “A Imprensa”, é
íntimo, solidário e pessoal, seja no “disse-me-disse” seja nos desejos de melhora na saúde.
Foram identificados 322 dados nas cartas produzidas por Carlos Aguiar, com predomínio
de tu e variantes (79% - 253 dados) sobre você e variantes (21% - 69 dados). As denominadas
variantes de você e tu correspondem às diversas formas que os pronomes podem ocorrer. Para tentar
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compreender o que motiva o remetente a utilizar uma forma ou outra de tratamento numa mesma
carta, analisou-se o emprego de você e tu em diferentes contextos morfossintáticos. Desse modo,
considerou-se como “2a pessoa do singular gramatical ou formal” ou P2, os pronomes pessoais na
função de sujeito (tu), de complemento não preposicionado (te), de complemento preposicionado
(contigo), além dos pronomes possessivos (teu/tua) e das desinências verbais correspondentes à
segunda pessoa do singular no imperativo ou não (sujeito nulo ou não-preenchido). A fim de
facilitar a comparação e análise dos dados, rotulou-se a forma você e variantes como “3a pessoa do
singular gramatical ou formal” ou P3, mesmo reconhecendo que você se refere à segunda pessoa ou,
dito de outra maneira, ao não-eu (interlocutor, ouvinte, receptor real). Entraram no paradigma de
você: pronome pessoal sujeito (você), objeto/complemento não-preposicionado (você, lhe, o),
complemento preposicionado (com você), pronome possessivo (seu/sua) e as desinências verbais
correspondentes à terceira pessoa do singular no imperativo ou não (sujeito nulo ou nãopreenchido).
Na análise de regra variável com os dados de você e tu levantados em todos os contextos
mencionados, foram selecionados dois grupos de fatores: o que controlava as formas precedentes na
carta (sequência discursiva) e o grupo contexto morfossintático de ocorrência. As tabelas a seguir
apresentam esses resultados. O valor de aplicação é você:
Paralelismo de formas
1ª ocorrência
Precedido de formas relacionadas à
2ª pessoa formal (tu)
Precedido de formas relacionadas à
3ª pessoa formal (você)
Tu
Você
P.R.
10/11
91%
214/251
85%
29/64
45%
01/11
09%
37/251
15%
35/64
55%
.24
.39
.87
Tabela 1: Sequência discursiva de formas variantes de tu e você em cartas de amizade de Carlos a Rui Barbosa
Na análise da uma sequência discursiva, nos moldes descritos por Lucca (2005), observouse se o item analisado era o primeiro numa série, se estava precedido de uma forma na 2ª pessoa
gramatical (tu legítimo) ou se estava precedido de uma forma relacionada ao pronome você.
Os resultados evidenciam que a mescla de tratamento ainda hoje condenada pelo ensino
tradicional já aparecia timidamente nessas cartas do século XIX. Nos estudos de Lopes e Machado
(2005), Barcia (2006), Machado (2006), Rumeu (2008) com base, respectivamente, em cartas da
família Ottoni de fins do XIX, cartas de leitores do século XIX, peças teatrais cariocas do século
XX e cartas cariocas dos séculos XIX e XX, indícios dessa correlação também se fazem presentes.
No que se refere ao paralelismo das formas, nota-se que, embora seja mais produtivo o
emprego de você (3a pessoa formal) precedido por formas 3a pessoa em 55% dos casos (.87) e de tu
precedido por formas de tu (85%), começa a ocorrer timidamente a presença, numa série discursiva,
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da mescla de tratamento em uma mesma carta. O exemplo (6) mostra esse paralelismo estrutural:
formas de tu (P2) precedidas por outras formas de P2. De (7) a (9) verifica-se a mescla de formas
relacionadas a tu e você:
(6)
“Não tens intenções de te (P2) demorar, porque en- tão não te (P2) resolves a vir, não
vejo perigo n'isso, nada há contra ti (P2) hoje está no dominio publi- co que tu nada
tinhas (P2) com a revolta, que φ eras (P2) inteiramente indiferen- te” (Carlos Aguiar)
(7)
“não tenhas (P2) receio, tudo farei com calma e reflexão, creio que obterei resultado, confie (P3) em mim, espere, bre- vemente lhe (P3) comunicarei o resultado”. (Carlos Aguiar)
(8)
“não creio e não vejo dificuldade em voltares (P2) ’aqui já, ao contrario, parece-me tenho
mesmo certeza que muita gente deseja vel-o (P3) aqui, porque motivo, qual a rasão para te
(P2) conserva- res (P2) muído no Senado” (Carlos Aguiar)
(9)
“muita gente lamenta a tua (P2) ausencia, sou constante- mente interrogado, pergun- tãome com enteresse, *quando vem o Ruy, não há mais motivo nem rasão de não vir , a dias
corre com certa insistência que Você (P3) está para chegar , que foi chamado (init) não sei
a que atribuem semelhante noticia” (Carlos Aguiar)
A tabela 2 mostra o segundo grupo de fatores selecionado: os contextos morfossintáticos em
que prevalecem as formas relacionadas a tu (P2) e a você (P3):
Contexto morfossintático
Pronome reto
(sujeito pleno)
Formas verbais imperativas
Pronome complemento (com preposição)
Pronome complemento (sem preposição)
Formas verbais não-imperativas
(sujeito nulo)
Pronome possessivo
Tu
04/25
16%
11/35
31%
21/25
84%
57/64
89%
74/83
89%
Você
21/25
84%
24/35
69%
04/25
16%
07/64
11%
09/83
11%
P.R.
.97
86/89
97%
03/89
3%
.35
.92
.60
.29
.31
Tabela 2: Categorias gramaticais variantes de tu e você em cartas de amizade de Carlos a Rui Barbosa
Embora tu seja mais frequente nas cartas do amigo Carlos, como mencionado anteriormente,
verificou-se o favorecimento de você como pronome-sujeito (.97), imperativo (.92) e pronome
complemento preposicionado (.60). Os contextos que favorecem as formas relacionadas à 2ª pessoa
formal (tu) seriam: pronomes possessivos, verbos não-imperativos e pronome complemento não
preposicionado (te). Os resultados confirmam a hipótese de que a inserção de você no sistema
pronominal não se implementou da mesma maneira em todos os contextos ou subtipos pronominais.
Como acusativo, o te sempre foi produtivo, seja ao lado do você ou do tu-sujeito. Para o imperativo
11
ainda predominavam, principalmente em cartas do XIX, as formas do subjuntivo (relacionadas a
você) mesmo nessas cartas em que tu é forma mais recorrente.
A variação entre tu e você numa mesma carta também ratifica o princípio da estratificação
proposto por Hopper (1991) que estipula a coexistência entre o novo e o velho em um domínio
funcional amplo. As camadas mais antigas não são necessariamente descartadas, mas coexistem e
interagem com as recentes, pois não há descarte imediato da forma mais antiga, no caso tu, em
detrimento da forma emergente você, mas um período de transição, de convivência entre as
estratégias de referência ao interlocutor. As correlações entre você e formas de P2 (te/teu)
constituem um prenúncio da inserção de você no sistema pronominal, uma vez que a forma
inovadora não se implantou em todos os subtipos de pronomes com as mesmas taxas de frequência.
Aparentemente formou-se um paradigma supletivo com formas de você e de tu. Os exemplos
abaixo ilustram algumas ocorrências identificadas:
(10)
“a opinião publica tem mudado inteiramente, muita gente lamenta a tua ausencia, sou
constante- mente interrogado” (Carlos Aguiar)
(11)
“Não tens intenções de te demorar, porque en- tão não te resolves a vir, não vejo perigo
n'isso, nada há contra ti, hoje está no dominio publi- co que tu nada tinhas com a revolta,
que φ eras inteiramente indiferen- te , que não te φ envolvestes, que tua sahida foi apenas motivada pelo recei- o de φ seres perseguido avis- ta da tua opposição no Jo do Brasil,
o que φ fisestes muito bem o que φ pois receio de φ voltares?” (Carlos Aguiar)
(12)
“φ dises em tua carta de 9 do cre, em relação a minha amisade para contigo e os teos”
(Carlos Aguiar)
Como os elementos inovadores, nessas cartas, são as formas relacionadas a você, os
exemplos a seguir ilustram esses raros dados nas cartas de Aguiar. Em (13), tem-se um dos quatro
casos em que você aparece como complemento preposicionado. De (14) a (15), há os únicos três
dados do possessivo seu encontrados na amostra. Com relação aos pronomes–complemento não
preposicionados, identificaram-se apenas 3 casos do oblíquo o, indicados de (16) a (18). Todos os
outros dados são de lhe:
(13)
“dis - se-me que Você aceitou que o Uranga iria te procurar por aquelles dias, e do que se
passasse me es - creveria, ate hoje não recebi nem carta, nem nada, tem - do partido para lá
em Fevereiro o Bernardino pedi que indagasse de Você e do Uranga, ate esta data nada,
sei que o Bernardino pas - sou por aqui a bordo do Portugal para a Europa, sem baixar a
terra, sem me escrever, sem me dar noticias, sem nada” (Carlos Aguiar)
(14)
“Tenho ido a sua casa agora muitas veses, isto é, a casa nova, esta a ter - minar-se, esta
magnificamente bem pitada, com muita arte e gosto fallta terminar a cocheira, e bem
possivel que tudo fique prompto ate o fim deste mes, tenho estado com o empreteiro, não
12
ha du - vida espera a sua volta, e elle dis e crê ser muito breve, Deus queira. (Carlos
Aguiar)
(15)
“Tambem um dos motivos que me prende aqui hé seu negocio com o Juca(?), que se não
fosse o dever que sof- freu no mez de outubro, parte já estaria resolvido” (Carlos Aguiar)
(16)
“partindo daqui o Ber - nardinho lhe pedi que o procurasse que fesesse isto e que fallasse
com o Uranga etc.” (Carlos Aguiar)
(17)
“Não posso sahir daqui minha vida tornou-se impo- ssivel tudo me ten sahido as avessas,
estou cada vez mais atrapalhado, mesmo não tenho vontade mais de viajar, a sahir(?) seria
com o fim de visital-o e o fa- milia porém como afian- ção(?) e até ha quem diga que
recebeo carta tua em que Você declarava que ate fins de Janeiro aqui estaria, o que vou
portanto faser ; lá? espero mande-me dizer se esto hé verdade se realmente vem e em que
mez(?)”(Carlos Aguiar)
(18)
“tenho mesmo certeza que muita gente deseja vel-o” (Carlos Aguiar)
(19)
“tudo farei com calma e reflexão, creio que obterei resultado, con- fie em mim, espere,
bre- vemente lhe comunicarei o resultado” (Carlos Aguiar)
4.2 – Motivações pragmáticas para o emprego de você na posição de sujeito
Um aspecto interessante a comentar é o contexto em que o remetente empregará a forma
você como sujeito nas cartas com predomínio do tu íntimo. Como pôde ser observado na tabela 2, o
comportamento de você e tu na posição de sujeito configura certa distribuição complementar.
Enquanto tu ocorre preferencialmente nulo, você prevalece como sujeito preenchido. Foram
localizados 78 dados de tu na posição de sujeito, 04 deles preenchidos (5%) e 74 nulos (95%). Para
você a correlação praticamente se inverte. Têm-se 30 dados de você como sujeito, 21 plenos (70%)
e 09 nulos (30%). Tais resultados elucidam alguns aspectos importantes. Em primeiro lugar, o
emprego de tu majoritariamente não preenchido é de certa forma um comportamento esperado
numa língua ainda movida pelo parâmetro de sujeito nulo, conforme Duarte (1995). Em segundo
lugar, têm-se algumas hipóteses explicativas a serem confirmadas. Por um lado, o uso majoritário
de você como sujeito pleno, ao lado de tu-nulo, pode evidenciar que a posição de sujeito foi o
contexto favorecedor da entrada do novo pronome no quadro pronominal do português brasileiro.
Por outro lado, o tratamento você no período em questão poderia ainda apresentar algum resquício
de distanciamento e cortesia herdados da forma original Vossa Mercê. Nesse sentido, diante de duas
estratégias alternantes (tu e você) numa carta de caráter íntimo e solidário, defende-se que o
emprego de uma ou outra forma pode ainda estar regida por motivações de cunho sócio-pragmático.
Por sua baixa frequência de uso, a forma você poderia revelar alguma intenção comunicativa na
13
referência à segunda pessoa do discurso. Que propósito comunicativo-pragmático seria? Quais
seriam as motivações para a utilização da forma inovadora você derivada do antigo tratamento
nominal Vossa Mercê?
Seguem os exemplos de você na posição de sujeito. Como um intruso nas cartas de Aguiar,
os raros dados de sujeito nulo (09 casos) ocorrem nas enumerações/orações coordenadas e
completivas:
(20)
“Como vão com o inverno, aqui tem se publicado te- legrammas, dizendo que tem sido
rigoroso, como tem se se dado os teus filhos e a senhora, e Você como passa, que resultado
φ tem obtido” (Carlos Aguiar)
(21)
“não me escreva a ninguem que φ está doente, eu digo a todos que...” (Carlos Aguiar)
(22)
“Você mande diser onde φ fixa a residencia, desejo ir vel-os, com quanto esteja com os
meos negocios muito baralhado” (Carlos Aguiar)
Numa análise mais apurada dos 21 dados de você como sujeito preenchido (como v.),
eventualmente presentes nas cartas de Aguiar, nota-se uma regularidade de emprego. Em 11
ocorrências, o uso de você aparece em trechos de discurso indireto reportando-se, na maior parte
dos casos, à fala de outra pessoa específica, como se vê de (23) a (27), e/ou a um grupo ou
referência indeterminada, em 28-30. Faz-se necessário destacar que a utilização do tratamento você,
dentro de uma estrutura de discurso indireto, atua como uma estratégia de polidez com o intuito de
“isentar” o remetente da carta da veracidade da informação declarada:
(23)
“muita gente lamenta a tua ausencia, sou constante- mente interrogado, pergun- tão-me
com enteresse, *quando vem o Ruy, não há mais motivo nem rasão de não vir , a dias
corre com certa insistência que Você está para chegar , que foi chamado (init) não sei a
que atribuem semelhente noticia” (Carlos Aguiar)
(24)
“resolvi escrever ao Uranga disen – do-lhe que lhe procurasse, que posse se a sua
disposição a quantia que Você pedisse e que sacasse sobre mim, indepen - dente disto,
partindo daqui o Ber - nardinho lhe pedi que o procurasse” (Carlos Aguiar)
(25)
“fostes tratar de reconhe - cel-os belligerantes, si me, dis-se que Você é quem influe para
que a revolução continue, enfim altri buem a ti tudo, nunca vi maior injustiça, espero que
tudo isto desapareça e que venha a ver - dade”. (Carlos Aguiar)
(26)
“que isto não seja verdade que elle me diga isto para que eu te escreva nesse sentido o
Mané(?)Você não ignora, não conheço ca- nalha maior, tudo fará para que Você não
sobresahia, em todo caso veremos” (Carlos Aguiar)
14
(27)
“não sei donde vem este receio, não desejarem que eu saiba o teu paradeiro e dos teos é
demais, até que um telegrama de B Ayres publicado no jornal, dando a notícia da tua
viagem para a Europa no dia 21 Março, que me despertou o maior enteresse em sa- ber o
que havia de verdade nesta no- ticia, procurei todos os meios ao meu alcance ate que,
encontrando-me com o Doutor Lbe a quem não via a mais de seis meses, elle me contou
en- tão tudo e me confirmou a tua partida para a Europa, dissendo me que ias para Lisboa,
que deixando ahi tua familia e que irrás só ver Ruysinho na Suissa, nessa mesma occasião
offereço-me ser portador de cartas para ti, disendo-me ter meio seguro, muito lhe agradeci,
por isso te escrevo agora nessa mesma occasião elle me disse que sabia que Você escrevia
a mais alguem aqui, muito me estranhou isto, não quis acreditar, em Todo caso acreditei
que Você não me escrevia com re - ceio de não me compromeeter, em relação a vigilancia
e a violação das cartas, que havia aqui, muitas veses perguntei ao Bijuca se Você não fallara em mim” (Carlos Aguiar)
(28)
“aqui se dis que Você foi em missão dos revoltosos não acreditei” (Carlos Aguiar)
(29)
“e até ha quem diga que recebeo carta tua em que Você declarava que ate fins de Janeiro”
(Carlos Aguiar)
(30)
“Teo compadre Jose Gonsalves foi elevado a general(?) e bem assim o Ramos, o Figueiras
a [inint.], enfim temos mais generais(?) e Coroneis que lama nas ruas. Conta-me que
Carlito a Senhora vem para o Rio em principios de Dezembro. É bem provavel que as tuas
meninas tenhão se adian- tado muito e bem assim Ruy- sinho, deste tenho lido algumas
cartas, os segredo(?) bem enteressantes, promette, ao menos com a viagem lucrar-te na
educação dos filhos e bem provavel na saude da nossa presadissima, refiro-me a
Excelentíssima Senhora. [inint.] aqui se falla muito que Você está ganhando dinheiro como
advogado, que hé muito procurado, que tens con- ferencias com os homens mais notaveis,
qe hé(?) muito consultado sobre negocios do Brasil enfim que tens brilhante posição, nada
disto me admira, pois hés o * em minha casa na Tijuca nesse mesmo dia falesceu(?), foi
me propôr uma cousa que mais tarde te direi, e foi logo preso até hoje nunca conseguimos
obter noticias so agora soube mos seu paradeiro, vai bem, sempre valente e desalmado.
(Carlos Aguiar)
O exemplo (27) talvez possa nos ajudar a elucidar as motivações pragmáticas para o
emprego de você ao lado de tu. Em grande parte da missiva, o tratamento utilizado é o pronome tu,
em um tom que poderia ser qualificado como informal e fraternal. Entretanto, no trecho em
destaque, através do discurso reportado, o remetente dá voz a uma terceira pessoa e o que é dito
pode ser lido como o pronunciamento dessa terceira voz. A mudança no tratamento se enquadraria
numa mensagem como “o que tenho a dizer agora não saiu da minha boca e, por isso, não quero me
comprometer”. Nota-se que o remetente, Carlos, usa um tom como se estivesse “cobrando
satisfação por não saber das coisas”. Nesse contexto, mais marcado, o destinatário passa a ser
tratado, assim, pela forma você.
Interessante observar ainda que esse uso de você em trechos de discurso indireto também
aparecerem nas cartas do avô Ottoni analisadas por Lopes e Machado (2005). Naquela amostra,
identificou-se apenas 4% de você nas cartas do avô Ottoni (04 dados de 94). Nas cartas da sua
esposa, Bárbara Ottoni, os dados de você, na posição de sujeito, suplantavam os de tu: 57% para
15
você (08 dados de 14) e 43% para tu. A mescla entre você e tu na posição de sujeito na amostra
Ottoni também se fazia presente, principalmente, nas cartas da avó. Os raros dados de você nas
cartas do avô (apenas 4) foram analisados como discursivamente motivados. Em dois deles, você só
ocorreu em contextos de discurso indireto: “Bebê me diz que você come bem e φ esta engordando
muito” (carta 2 de Cristiano Ottoni ao neto)
À luz da Teoria da Polidez, idealizada por Brown e Levinson (1987), defende-se que a
interação social é sempre vista como um lugar de risco para os participantes. Como consequência,
qualquer ato de linguagem é considerado um ato de ameaça à face de um ou dos dois interactantes.
Como viabilizar a comunicação se existe a necessidade de usar tais atos mesmo sabendo que
ameaçam a face do outro? É nesse sentido que entram em jogo as estratégias de polidez, como
formas mitigadoras que garantem a harmonia do processo interativo.
É de se esperar que dois amigos que já se conhecem há algum tempo, e que tratem de
assuntos em comum, utilizem a informalidade na relação. Atendendo o desejo de mostrar ao outro o
pertencimento ao mesmo grupo social, a forma tu, que reflete aproximação e reflexividade no
tratamento, pode ser justificada. Como essa é a estratégia predominante para dirigir-se ao
interlocutor em grande parte da carta, é necessário detectar a motivação para os casos em que a
forma você alternante foi utilizada. Em (27) Carlos cobra satisfações em função de não estar a par
dos acontecimentos. Como se trata de informação não compartilhada, é preciso que se entre no
espaço do outro para que a mesma venha à tona. Haveria, assim, uma invasão ao território do
interlocutor. Se o ato a ser proferido ameaça a uma das faces do destinatário, leva-se em conta que,
nesse momento, é necessário recorrer a uma estratégia que possa atenuar a imposição do ato de
cobrança e consequentemente a invasão do território alheio. Assim, a utilização da forma você
como tratamento a Rui Barbosa pode ser vista como uma estratégia de polidez. Logo após esse
momento, mais marcado, o tom volta a ser afetuoso e fraternal, como no início da carta.
Uso semelhante pode ser visto em (31), em que predominam formas relacionadas a tu
(teu/te/-s), que se alternam com a forma você em uma situação específica. Nesse trecho, o emprego
da forma você também pode ser vista como pragmaticamente motivada:
(31)
“Não estou em condições de te dar conselhos, mais como amigo tenho o direito de te
dezer alguma cousa, não convem por enquanto escre- veres nada sobre assumptos
politicos, espere os aconteci- mentos, pode muito bem tudo isto mudar e Você ser obrigado a estar aqui para fazer par- te ou tomar parte”. (Carlos Aguiar)
A função comunicativa predominante no fragmento selecionado é de um conselho para o
amigo e as possíveis consequências caso esse mesmo conselho não seja seguido. A utilização desse
ato de linguagem ameaça, do ponto de vista pragmático, à face do destinatário exatamente por não
16
saber se este deseja para si qualquer tipo de aconselhamento. Pode-se visualizar que, mesmo
havendo um tom característico de uma carta de amizade, a utilização da forma pronominal tu se
ancora em outros elementos linguísticos como “não estou em condições de”, “como amigo, tenho o
direito de” e “convém que”. Tais elementos funcionam como estratégias de polidez que permitem a
utilização do tratamento mais íntimo e atenuam a imposição oferecida pelo ato do conselho, o que
evidencia que o remetente deseja mostrar a inclusão do destinatário ao seu grupo social, situação
esperada de uma interação de menor distanciamento.
Entretanto, quando tais elementos não estão presentes, a mudança do tratamento para a
forma de terceira pessoa gramatical (você) se justifica, deixando entremostrar uma cortesia herdada
da forma de tratamento nominal que a originou. O ato de ordem, revestido de valor ilocucional de
conselho – “espere os acontecimentos” – recruta um uso em que se verifica uma motivação
pragmática para sua realização.
Se também forem observados os dados das formas verbais imperativas utilizadas por Carlos
a Rui Barbosa, como mostra a tabela 2, verifica-se um número maior de ocorrências (24 dados) para
as formas de subjuntivo (P3). Talvez, por se encerrar, nessas formas linguísticas, a força ilocucional
de ordem/pedido/conselho, o subjuntivo se mostre mais produtivo:
(32)
“Recebi tua carta de 26 de ja- neiro; não posso compre- hender-te, que necessidade tens de
viver tao(?) triste e pre- ocupado com os negocios desta terra, causa-me a [inint.]
impressão, dizes-me que estaes doente e muito anemico, procure curar- se empregue
meios para destrahir-se” (Carlos Aguiar)
A coexistência de formas imperativas de subjuntivo com formas do paradigma verbal e
pronominal de segunda pessoa parece ser a combinação mais produtiva nesse tipo de interação. No
exemplo (32), à utilização das formas “procure” e “empregue” subjaz uma mensagem de conselho,
o que justifica o uso de estratégias referentes à forma você de modo a garantir a harmonia da
interação em virtude da salvação das faces presentes.
5. Considerações finais
Em síntese, esses resultados parecem indicar o início da formação de um paradigma
pronominal que reflete um sincretismo entre a segunda e a terceira pessoa do singular.
Aparentemente, um paradigma misto está se constituindo e pode se cristalizar. Como já foi
observado em outras amostras do século XIX, é nítido que reflexos da variação entre tu e você são
identificados, mesmo que timidamente, nas amostras de escrita do período estudado. Entretanto, a
forma você ainda mantém algumas marcas formais e discursivo-pragmáticas que remetem a uma
maior formalidade e distanciamento em relação ao tu íntimo, que não se perderá completamente no
17
século XX. Ainda que a forma você possa já ser vista como uma forma pronominal variante de tu,
em alguns casos específicos mantém resquícios de formalidade da forma Vossa Mercê. Nesse
sentido, o seu emprego serve como estratégia de atenuação a favor da polidez lingüística, marcando
um maior distanciamento, o que garante um tom menos invasivo à interação.
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