Firebelly
Uma viagem ao coração
do pensamento
J.C. Michaels
Essa obra não é de domínio público
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A vida tem muitas arestas ásperas. Algumas nos atraem, como o precipício acima
de um cânion que parece nos chamar. Outras nos repelem, como a tampa serrilhada de
uma lata de conservas aberta. E há uma tensão entre querer ver essa aresta, senti-la, passar
a mão ao longo dela e o desejo de recuar para nossa segurança e conforto. Podemos ser
indecisos e hesitantes. Podemos nos sentar e refletir sobre nossa próxima ação. Podemos
desviar o olhar dessa beirada e agir como se ela não existisse. Mas só podemos ficar assim
por um breve tempo; por fim será preciso tomar uma decisão, fazer uma escolha.
Certa vez conheci uma menina que descobriu um gambá morto, com as entranhas
para fora, perto do lago. Ao vê-lo, ela fugiu com nojo e medo.
Mas depois de correr uma pequena distância, diminuiu o passo, parou e virou-se.
Olhou para trás, apanhou uma vareta no chão, chegou perto daquele corpo sem vida e
cutucou um pouco. Notou a textura dos intestinos, o roxo-escuro da barriga inchada, a
fronteira entre estar vivo e estar morto. Fez uma careta, largou a vareta no chão e fugiu.
Nós sempre olhamos para trás, não é mesmo? Essa aresta nunca é monótona ou desinteressante. Pode nos deixar excitados, agitados, ansiosos, com certo mal-estar ou talvez
tristes e horrorizados. Mas seja lá qual for o nosso sentimento e por mais que afirmemos
nosso desinteresse, temos que dar uma rápida olhada. Sentimos curiosidade por coisas
desse tipo.
Eu estava mais do que curioso. Tentei compreender aquela aresta com diagramas,
medidas e observações cuidadosas, mas fiquei frustrado e impaciente. Joguei fora meus
instrumentos.
Sucumbi ao tédio da precisão e assim me tornei desonesto, sem autenticidade. Em
vez de tentar compreender, comecei a observar para ver se a aresta iria se desgastar com
o tempo.
Esperava que ela simplesmente desaparecesse sem nunca mais me confrontar. Por
vezes eu tentava abrandar essa aresta batendo-a contra uma árvore, uma raiz endurecida
ou um pedaço de granito.
Fracassei, é claro. Sou muito pequeno e o mundo é muito grande. Mas meus esforços
não foram completamente vãos.
Com o tempo e com um pouquinho de sabedoria, posso agora olhar para trás, para
as arestas do meu mundo e ver como as linhas e os limites de outras pessoas e outras coisas me dão a forma que tenho. Não são as bordas do meu próprio corpo que determinam
quem eu sou, o que posso fazer e aonde posso ir. As arestas de tudo e de todos moldam as
minhas possibilidades.
Estou falando como um poeta porque... bem... porque estou tentando não lhe contar
sobre as arestas ásperas da minha vida –, mas quero lhe contar. Não vou insistir muito no
que vou dizer. Não vou me deter longamente em detalhes periféricos. Não vou continuar
falando e divagando sem fim como fazem os poetas. Vou apenas contar algo a você de
forma direta.
Não vou fazer você deduzir. Não vou apelar para algum truque. Nada de retardar,
demorar, deixar para depois. Não vou fingir que é tão difícil de explicar que preciso me
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reparar com pesquisas e notas prévias. Vou dizer diretamente, sem hesitação.
Nada de longas introduções, nada de lágrimas, nada de se despedir e depois voltar
atrás. Mas devo avisar você que isso talvez não seja nada agradável. O que vou dizer pode
ser difícil de ouvir; você pode achar horrível e grotesco. Se isso acontecer, pode desviar
o olhar ou talvez fugir correndo – eu compreenderei. Às vezes não estamos prontos para
enfrentar esse tipo de coisa. Sendo assim, estou pronto.
...Espere um pouco. Parece que você está a ponto de ir embora. Por favor, não corra
tão rápido. A coisa não é tão feia como você pode pensar.
Já lhe dei avisos demais. Não tema que a sua vida vá mudar para sempre, pois não
vai – ou, pelo menos, creio que não.
Talvez eu nem precise lhe contar – posso esconder esse problema muito bem. Vou
encobrir as arestas. Já fiz isso antes.
Podemos agir como se nada tivesse mudado. O que você acha? Continua querendo
que eu lhe conte?
Sim? É claro que sim. Sempre queremos escarafunchar até a borda, não é mesmo?
Certo, então vou falar; vou colocar tudo para fora de uma vez. Você está pronto?
São apenas cinco palavras que eu tenho a dizer... só cinco palavrinhas. São palavras curtas, fáceis de compreender, nada que exija uma reflexão cuidadosa. Você vai compreender exatamente o que elas querem dizer.
Pronto. Vou dizer, então, e depois desviar o olhar... pois não quero ver você sair correndo. Não quero ver você fugindo de mim, sem nem olhar para trás. Espero que, quando
eu parar de esconder meus olhos e minha vergonha, você continue aí.
Então, agora vou dizer:
Eu só tenho dois pés.
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