A ESCOLA CONTRA A FILOSOFIA
A Filosofia ocupa, no sistema do ensino secundário, um
lugar cada vez mais precário e sofreu rudes golpes, em
termos institucionais, que a põem em causa.
Texto de António Guerreiro
A condição institucional da Filosofia como disciplina e o seu lugar no sistema de
ensino é uma velhíssima questão que se alimenta de paradoxos, como aqueles que
Derrida formulou, num momento em que se empenhou numa intervenção pública pelo
«direito à filosofia»: essa disciplina «impossível e necessária, inútil e indispensável»,
esse «ensino do não ensinável», não se reduz a uma identidade e a um corpo de saber e
«excede as suas instituições» (para reduzir uma ambiguidade que, de resto, tem um
valor fundamental escreverei «Filosofia», com maiúscula, sempre que, de maneira
evidente, designar a disciplina). O título de um apelo da comunidade filosófica francesa,
«Não há universidade sem filosofia» (de 1983), chegou depois a ser declinado como
«Não há escola sem filosofia».
As ameaças que desde sempre pesam sobre a Filosofia acabam de ser reactualizadas na
escola portuguesa (mais propriamente, no ensino secundário) sob a forma da extinção
dos exames no 11. ° ano e a passagem a disciplina opcional no 12.°.
Foi sob a forma de um lapso que o Ministério da Educação mostrou, em 2002, que a
Filosofia estava excluída dos seus cálculos. Era ministro David ]ustino, e no plano para
um «novo ensino secundário» desapareceu a Filosofia para o 12.° ano. Foi um engano,
garantiu o ministro, que tratou de repará-lo recolocando a grande ausente entre um leque
de disciplinas opcionais, tais como Psicologia e Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC). As nefastas consequências começam agora a verificar-se: as turmas
de Filosofia no 12.° ano reduziram-se ao número mínimo de alunos, já que tanto as TIC,
que ganharam reputação de ser uma disciplina que serve para ensinar aos alunos aquilo
que eles já sabem, como a Psicologia são reconhecidas como mais fáceis. Além disso,
muitas escolas nem sequer oferecem a Filosofia como opção porque não têm número
suficiente de alunos para constituir uma turma. Os que estão verdadeiramente
interessados têm de procurar outra escola na área, quando ela existe, que preserve esta
pequena reserva disciplinar. Um problema, aliás, que não é só da Filosofia: entre o
número de opções consagradas na legislação e aquelas que existem de facto há uma
diferença abissal. Tanto quanto a Filosofia, as línguas são vítimas deste «realismo»
implacável e, na prática, o Inglês é quase a única língua estrangeira disponível neste
mercado das opções.
O segundo momento da liquidação chegou em Dezembro de 2005, quando o secretário
de Estado da Educação anunciou que neste ano lectivo de 2006/2007 chegariam ao fim
os exames nacionais de Filosofia no 11.º ano (muito embora se mantenha como
obrigatória a disciplina no 10.º e no 11.º). A condição que a Filosofia adquiriu no ensino
secundário faz com que as universidades (que, ameaçadas pela falta de alunos em
muitos cursos, não se podem dar ao luxo de grandes exigências) prescindam dela como
disciplina específica. Para perceber o que isto significa na desqualificação institucional
da Filosofia, temos de saber que ela era requerida por mais de trezentos cursos
(contando obviamente todos aqueles que, tendo muito embora o mesmo nome — como,
por exemplo, Direito —, se multiplicam por diferentes universidades) e que agora já
nem sequer é exigida a quem entra no curso de Filosofia.
Todas estas circunstâncias tornaram necessária a defesa do ensino da filosofia e das
condições, em termos efectivos e simbólicos, que garantem a manutenção do seu
prestígio. Não se trata de reivindicar pergaminhos e antigos títulos de nobreza: entre a
filosofia e a escola há um antigo diferendo, mas há também — e regressamos aqui aos
paradoxos formulados por Derrida — uma relação consubstancial que Kant estabeleceu
no seu texto sobre O Conflito das Faculdades: a ideia da filosofia como disciplina da
razão, como modelo de racionalidade, aquilo que ensina a pensar e, em última instância,
transforma o ensino em educação. É neste sentido que Kant definiu a figura do filósofo
como «mestre da razão pura».
A mobilização em defesa da Filosofia já começou. Para além de vários artigos em
jornais vindos da comunidade filosófica, realizou-se um debate no dia 15 de Dezembro,
na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. E outro está
previsto para Março, em data a anunciar, na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. «A relevância da Filosofia na sociedade de hoje» foi o tema do encontro/debate
na Universidade Nova. A sessão teve a participação de dois filósofos da casa, Maria
Filomena Molder e José Gil (o qual, de resto, já tinha publicado uma crónica na revista
«Visão» de 12/10/06 com o título «O Apagamento da Filosofia?»), de João Lobo
Antunes (neurocirurgião), de Cados Fiolhais (físico), de Nuno Crato (matemático), de
Rosa Maria Perez (antropóloga) e de Fernanda Palma (professora de Filosofia do Direito
e juíza do Tribunal Constitucional). Tratava-se, portanto, de um leque de participantes
vindos de várias áreas, o que deu ao debate uma dimensão que nada tinha de corporativo
nem de institucionalmente académico. Os testemunhos ali apresentados em defesa da
disciplina (e do seu lugar legítimo no sistema de ensino) não falavam certamente a
mesma linguagem. Mas tiveram em comum a reivindicação da importância da filosofia
como modo de pensar, de argumentar, de fornecer instrumentos de crítica e de
inteligibilidade do mundo. Em suma: um saber fundamental, no sentido literal, que não
pode, em termos institucionais, ser relegado para a condição de ornamento cultural, que
é aquilo a que a disciplina de Filosofia no ensino secundário acaba por ser.
Fernanda Palma falou da filosofia como um «direito» de cidadania. Fazendo referência a
Derrida, percebeu-se bem que este «direito à filosofia» não se pode confundir com os
ideais da filosofia como instrução cívica ou como fornecedor de um mínimo de matéria
espiritual de que o cidadão necessita. Esses ideais são caducos e só servem para tornar a
filosofia substituível por doutrinações de vária ordem e proveniência ou por um
culturalismo inerte e muito bem comportado.
Outro tópico importante que foi abordado, de diversos ângulos, para percebermos a
irredutibilidade da filosofia, tem a ver com a sua capacidade de resistência: resistência
ao pedagogismo (Nuno Crato); resistência à homogeneização do quotidiano e aos seus
efeitos anestésicos e de anulação da capacidade de espanto (Lobo Antunes); resistência
ao pragmatismo tecnicista, ao utilitarismo e ao mundo da opinião e da doxa - o senso
comum - em que estamos mergulhados (José Gil).
As resistências da filosofia e o seu estatuto disciplinar muito pouco conforme a uma
poderosa efusão pedagógica que se tornou, nas palavras do filósofo francês Jacques
Rancière, «um ersatz da graça divina» têm feito emergir um conflito, senão mesmo um
diferendo, entre a escola e a filosofia. A França fornece um bom exemplo desta relação
difícil porque conheceu, desde os anos 70 do século passado, manifestações públicas
aguerridas, com uma intensa mobilização da comunidade filosófica, e uma resposta que
fortaleceu o campo da filosofia, não tanto por conquistas políticas e institucionais, mas
mais por ter promovido um debate interior à disciplina (de acordo com a sua vocação de
se interrogar a si mesma) e de se mostrar como a única que está à altura — e não as
chamadas ciências da educação — de uma filosofia crítica do ensino.
Façamos então um breve percurso diacrónico pela história desses conflitos. Em 1975 foi
constituído o Groupe de Recherches sur l'Enseignement Philosophique (GREPH), que
organizou um conjunto de estudos sobre as relações entre a filosofia e o seu ensino e
entre a filosofia e o ensino em geral. Estávamos numa altura em que a filosofia e as
ciências humanas gozavam de um enorme prestígio e tinham uma forte irradiação em
todos os campos onde se produzia «teoria». Um livro colectivo, Qui a peur de la
phiIosophie? (Flammarion, 1977), que recolheu importantes e variadas contribuições
cuja actualidade não se extinguiu com a passagem do tempo, permanece como uma
prova de toda essa produtiva actividade intelectual.
Foi o GREPH que mobilizou os professores, em 1979, para a defesa da Filosofia quando
esta sofreu a ameaça que se verifica agora em Portugal: a de adquirir um carácter
opcional. Um acontecimento marcou essa contestação: Os «États Généraux de la
Philosophie», convocados em 1979. Esta mobilização geral da comunidade filosófica
fez com que a ameaça fosse anulada e permitiu consolidar o papel institucional da
Filosofia no sistema de ensino e discutir os programas.
Poucos anos depois, o apelo «lI n'y a pas d'université sans phi!osophie" (1983) e os
«Encontros Escola e Filosofia», que tiveram lugar na Universidade de Nanterre (1984),
prolongaram este imperativo de defesa da Filosofia. Não se pense que tudo isto foi
acção de um grupo corporativo de professores: Derrida, Lyotard, Châtelet e Rancière,
entre muitas outras figuras importantes, empenharam-se fortemente nestas acções.
Em Portugal, a história da mobilização em torno do ensino da filosofia está longe de ser
grandiosa ou de se ter mostrado à altura do que era necessário. E, no entanto, não se
pode dizer que, nesta matéria, tudo correu da melhor maneira: para além das questões
institucionais da disciplina, que chegaram agora a um estado de gravidade que fez
despertar muita gente, veja-se a miserável qualidade dos manuais, reflexo, aliás, da
indefinição e do carácter mole e vago dos programas, que parecem temer que os alunos
leiam os textos filosóficos e pensem com conceitos.
A condição «anómala» da filosofia, as suas resistências a uma ideologia da finalidade (e
da «empregabilidade», como hoje se diz) e da limitação do saber às competências
tecnocientíficas e tecnoeconómicas, o facto de ela falar um «idioma» que não é o que
triunfou em todo o lado tornaram-se um tópico obrigatório sempre que se fala das
ameaças a que a filosofia está sujeita. Lyotard formulou uma vez a questão desta
maneira: «Os alunos falam o idioma que lhes ensinou e lhes ensina ‘o mundo’, e o
mundo fala a linguagem da velocidade, do prazer, do narcisismo, da competitividade, do
sucesso. O mundo fala segundo a regra da troca económica, generalizada a todos os
aspectos da vida, incluindo as afecções e os prazeres. Esse idioma é completamente
diferente do idioma do discurso filosófico, é incomensurável em relação a ele.»
Por outro lado, sem se deixar reduzir à noção e ao uso ecléctico das ciências humanas, a
filosofia acompanhou o destino destas e foi afectada pelo mesmo processo de
deslegitimação. Assim, depois de momentos grandiosos, as ciências humanas, no final
dos anos 70, entraram numa fase de desencantamento, tendo-se começado mesmo a
colocar questões sobre o seu futuro quando as universidades se renderam a uma lógica
de sujeição ao cálculo económico: haverá lugar para o estudo da filosofia quando se
chegou ao completo domínio das determinações económicas e da tecnociência?
Um outro factor veio aqui acrescentar-se: as disciplinas de carácter mais teórico foram
submersas por aquilo a que um académico americano, Wlad Godzich, chamou «novo
vocacionalisno» e «literacia vocacionalista". Trata-se de uma concepção utilitária da
escola e da universidade em que estas não passam de um local de produção da força
essencial da sociedade pós-industrial: os conhecimentos e aptidões devem responder
imediatamente a critérios pragmáticos. A noção de literacia que Godzich desenvolve e
que se tornou, entre nós, a grande obsessão ministerial, transmitida às escolas por todos
os meios, tem a ver com a competência para desempenhar funções específicas, num
determinado campo de actividade. Trata-se de uma literacia restrita, na medida em que
fornece competência num código específico, com muito pouca, senão mesmo
rudimentar, consciência da problemática geral dos códigos e das linguagens.
A filosofia situa-se no lado oposto: não fornece formação específica, não é susceptível
de se adaptar aos fins da tecnologia, não forma o aluno para nada. Em suma: é um luxo
no sistema de ensino. Logo, a suprimir.
in Expresso ACTUAL, n.º1785, 13 de Janeiro de 2002 / NORTE, pp. 4-7
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