No final de 1961, a Companhia 322, de que era médico,
foi enviada por via aérea para São Salvador do Congo, a capital
da província do Congo, antes chamada Banza e depois da independência M’banza Congo. A missão do médico era prestar assistência aos vários pelotões estacionados no mato em pontos
considerados estratégicos e também às crianças da sanzala de
São Salvador.
Em São Salvador vivia a rainha do Congo, importante figura
tribal e a última de uma longa linhagem real cujo contacto com
os navegadores portugueses começara em 1493, entre Nzinga
Nitos, rei do Congo, e Diogo Cão.
Diogo Cão regressou a Portugal acompanhado por uma
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embaixada do rei do Congo com o fim de, segundo a crónica de
Garcia de Resende, pedir a D. João II que fossem enviados «frades e clérigos e todas as cousas necessárias para elle e os seus
Reynos receberem as águas do baptismo».
Numa segunda expedição, comandada por Rui de Sousa,
Nzinga Nitos converteu-se e tomou, em homenagem aos reis de
Portugal, o nome de João, e sua mulher o de Leonor, e o filho,
que lhe sucedeu, o de Afonso.
Pelo papa Clemente VIII, São Salvador foi elevada a diocese
e para o reino do Congo foram enviados jesuítas, carmelitas descalços, capuchinhos e dominicanos, alastrando a evangelização
dos povos Bantos.
Como seria de esperar, o reino transformou-se rapidamente
num importante entreposto de escravos e de marfim, o que despertou a cobiça de holandeses, franceses e ingleses, que iniciaram acções bélicas no território e acções diplomáticas junto dos
reis do Congo, tendo as relações entre a coroa de Portugal e a
coroa do Congo atravessado momentos difíceis, que só terminaram no reinado de Garcia II do Congo.
A partir daí, tudo aparentemente correu melhor que nas
outras regiões de Angola, talvez porque os Bantos eram mais
pacíficos que os outros povos circundantes, como os Jagas, os
Zimbas e os Jingas, guerreiros nómadas, agressivos e antropófagos. Destes últimos, uma figura emblemática foi uma rainha
dos Jingas, de Pungo Andongo, que se revoltou contra o Governo
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de Luanda, onde duas irmãs suas foram presas num convento.
Reza a lenda que teve inúmeros namorados, dos quais pelo menos
um seria certo fidalgo português, e que, après avoir couché avec,
reincidia, comendo-os ao pequeno-almoço.
Convivi bastante com os povos Bantos. Alguns usavam tatuagens, ornatos nos lábios e limavam os dentes. Praticavam a circuncisão, a exogamia e viviam em cubatas em forma de colmeia,
cobertas de capim, confortáveis e frescas.
Este romanesco passado despertou em mim o desejo de
conhecer a rainha. Para o efeito, mandei o meu sargento-enfermeiro pedir-lhe audiência. Voltou com a notícia de que me receberia às cinco da tarde.
Apresentei-me com pontualidade, acompanhado pelo tenente
Mensurado (irmão do jornalista José Mensurado), que comandava um pelotão de pára-quedistas. O palácio era um bungalow
simples, mas de traça harmoniosa. Tinha um só piso e na frontaria havia um terraço coberto.
A rainha aparentava cinquenta anos, era corpulenta, de estatura média, vestia como as mulheres da classe mais alta de São
Salvador e falava e movia-se com lentidão e imponência reais.
Acompanhavam-na dois anciãos de ralas barbas brancas, vestidos com velhíssimas fardas coloniais, azuis, com alamares e
botões dourados, e também duas jovens, suas sobrinhas.
Curvei-me e tratei-a por Vossa Majestade. Respondeu-me no
mesmo tom, tratando-me majestaticamente por tu. Falava bem
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português, mas com os tiques de sintaxe habituais nos angolanos.
– Vou-te apresentar os meus conselheiros – disse com solenidade. Equivocado, entendi ‘cozinheiros’ e para aligeirar um pouco
o cerimonial perguntei aos velhos quais os petiscos favoritos de
Sua Majestade. Uma cotovelada e um bichanar do Mensurado
puseram-me no caminho correcto e a conversa continuou fácil.
Seguidos a uma distância respeitosa pelos conselheiros e
sobrinhas, levou-nos para uma ampla sala, mobilada com simplicidade – móveis de verga e bambu, que contrastavam com
pratas, bonitas loiças da Companhia das Índias, boas armas e
alguns retratos dedicados. Mandou servir refrescos e contou que
as pratas, as loiças, armas e retratos eram ofertas a seus avós
dos reis de Portugal, nomeadamente de D. Luís e de D. Carlos.
À despedida, disse-me num tom que mais parecia uma ordem,
que gostaria que voltasse a visitá-la.
Assim fiz com regularidade. Presenteava-me sempre ou com
algum mimo da sua horta ou do seu galinheiro – em geral dois
ovos, produto difícil de encontrar em São Salvador e que eram
bem-vindos como variante à dieta castrense, cujo prato forte era
massa com dobradinha seca. Mas esqueceu o exemplo dos seus
antepassados e as nobres tradições tribais e nunca me ofereceu
três raparigas virgens.
Uma vez que fui a Luanda acompanhar feridos graves e me
demorei, admoestou-me no meu regresso:
– Então foste no Luanda e não me disseste nada!
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A sua conversa favorita era a secular aliança entre as coroas
de Portugal e do Congo. Mostrava ou afectava mostrar total aprovação para com a política de Salazar e uma atitude perante a
guerra que encontrei em muitos outros africanos de todos os
níveis: a guerra colonial não passava de um epifenómeno com
um peso social muito inferior ao peso das ancestrais relações
tribais. O que aconteceu em Angola depois do regresso das tropas portuguesas, e também em outras das ex-colónias, é disso
prova.
Parti de São Salvador sem me poder despedir da rainha.
Anos depois, soube que estava em Lisboa e que fora recebida pelo presidente da República, almirante Américo Tomás.
Não tive então vontade de a rever.
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