A revista Veja e o governo Itamar Franco
Carla Luciana Silva *
Resumo: Esse artigo propõe uma análise sobre a relação entre a revista Veja e o governo de
Itamar Franco. A revista agiu como aparelho privado de hegemonia conectada com o Fórum
Nacional.
Palavras-chave: Revista Veja; imprensa e hegemonia; imprensa e poder.
The Veja magazine and the government Itamar Franco
Abstract: This article offers an analysis of the relation between the magazine Veja and Itamar
Franco government. The magazine the magazine acted as a private apparatus of hegemony
connected with the Fórum Nacional.
Key words: Veja Magazine; press and hegemony; press and power.
O objetivo deste texto é discutir a relação da revista Veja com o governo
brasileiro de uma forma ampla.1 O estudo centra-se no governo de Itamar Franco, em
função das peculiaridades que vamos apresentar. A revista teve um papel muito
importante na construção da hegemonia neoliberal ao longo dos anos 1990, ação
conjunta com outros meios de comunicação como a Rede Globo ou o Grupo Folha. Um
breve histórico do que foi a relação da revista com o governo Collor ajudará a
problematizar a relação com o governo Franco. Em termos teóricos, abordamos a noção
de quarto poder e a instrumentalidade que a relação com o poder é assumida pela
revista. Além disso, trazemos a noção de Estado ampliado para compreender como a
revista, enquanto sociedade civil participa ativamente na criação de consenso social.
A hipótese é que a noção de quarto poder permite à revista dizer que vigia o
“poder”, dando a entender que se trata da sociedade política. O que percebemos é que
esse ato de vigiar está restrito aos interesses diretos da revista. Além disso, é exercido
de forma seletiva. Casos de corrupção, por exemplo, que ocorrem sistematicamente na
política brasileira, apenas são alvos do interesse jornalístico de acordo com a correlação
de forças do momento, dos interesses da revista. Quando o governo de alguma maneira
se desvia daquilo que a própria revista defende como “o caminho” correto, receberá a
crítica ferrenha e certeira de Veja, mesmo que seja um governo parcialmente apoiado
pela revista. Não são admitidos desvios nem concessões dentro do programa
estabelecido.
*
Professora do Deptº. de História da Unioeste/Mal. C. Rondon. End. eletrônico: [email protected]
Esse texto é uma versão modificada de um capítulo de minha tese de Doutorado e também de material
publicado no evento Hacer la historia, La Pampa, 2006.
1
Veja, em conjunto com os governos e com inúmeros outros aparelhos privados
de hegemonia, teve um papel importante na construção da concepção neoliberal, o que
consiste em sua atuação como partido político, nos termos de Gramsci. Ela tentou
organizar a atuação de seus leitores acerca deste mundo que desejava construir. Para
isso buscou a elite do capital brasileiro. Mas também chegou aos leitores medianos,
onde se produz o senso comum, criando consenso acerca destas idéias e práticas
políticas.
Veja e o governo de Itamar Franco
Após o impeachment de Collor, a postura da grande imprensa brasileira foi a de
manutenção da ordem, levando Franco ao poder, mesmo sem ter clareza de sua linha
programática. Veja teve um papel curioso no impeachment: ao mesmo tempo em que
dava cobertura “jornalística” sobre os escândalos envolvendo o presidente, mantinha-se
firme em seus editoriais exigindo a permanência do presidente no cargo. Nesse sentido,
apoiou inclusive a formação de um ministério “peefelista”, elogiando na ocasião a
disposição de ter algum rumo a seguir pelo presidente, segundo a revista. Mas no
momento em que o impeachment era inevitável, a revista passou a usar seu
“jornalismo” para dizer que sempre quis a queda do Collor. E partir daí buscou construir
uma memória de que ela ajudou a “limpar o país”, e se colocou no papel de seguir
apontando caminhos.
A relação com Franco foi bastante tumultuada. Tratava-se de um presidente que
não tinha laços claramente estabelecidos com a grande imprensa, seus compromissos
não estavam explícitos. A posição de Veja foi mostrá-lo como um dinossáurico
“nacionalista”, vinculado à Fiesp, que seria símbolo do atraso por privilegiar o capital
industrial. Claro que nesses momentos a revista homogeneíza também a posição da
Federação das Indústrias, ao mesmo tempo em que ignora os debates internos e as
mudanças de posição dos grandes capitalistas brasileiros. Ao longo dos anos 1990 as
grandes empresas foram sistematicamente abrindo seu capital, inclusive ao capital
externo. E essas mudanças foram acompanhadas e aplaudidas por Veja. No entanto, na
revista essas questões aparecem sempre de uma forma taxativa, de crítica ao que
considerava atraso dos empresários brasileiros. O caso mais ilustrativo foi a relação com
Antonio Erminio de Moraes, que foi muito elogiado pela revista quando o grupo
Votorantin se “modernizou”. Mas o simples contato dele com o presidente Franco era
considerado em Veja como um risco de retrocesso no processo de “modernização”.
Importante esclarecer que “modernização” foi a expressão utilizada para expressar as
mudanças da organização do capitalismo ao longo dos anos 1990. Foi assumida tanto
pelos seus gestores, como Bresser Pereira, como pelo Fórum Nacional, que parece ser
um dos grandes “estados maiores” ao qual Veja recorreu ao longo desse período. Assim,
globalização e modernização são expressões ideológicas usadas pela revista, com a
intenção de tornar neutras ou positivas a reestruturação capitalista em prol da
financeirização da economia ao longo dos anos 1990.
Por isso a revista Veja temia que o governo de Itamar Franco fosse um governo
de “retrocesso”, pois teria vínculos com a Fiesp, o que o faria privilegiar o capital
industrial ao invés do capital financeiro, entre muitas outras medidas incertas e não
“acordadas” previamente. Franco não havia, assim como Collor, se comprometido com
a plataforma neoliberal. Diante disso a relação foi dúbia: de apoio necessário para a
manutenção da ordem, somado à cobrança programática sistemática. Além disso, a
revista buscou buscar uma saída dentro do próprio governo, que foi a escolha de
Fernando Henrique Cardoso para levar adiante o plano neoliberal, ou seja, o Plano Real.
A análise parte da hipótese da tentativa de aplicação do programa político
neoliberal nos anos 1990. Veja faz parte desse processo, em conjunto com outros
aparelhos privados de hegemonia, seguindo ao que parece a orientação do Fórum
Nacional. Portanto, não é ela que cria esse programa. Ela segue uma linha, a mesma da
editora Abril e dos grandes produtores de hegemonia dos anos 1990. Procuramos
perceber: o que a revista fez para que fosse colocado em prática? Como se configurou
em um programa de ação? Qual foi o eixo da ação, se o Congresso Nacional ou o
Executivo? Com isso buscamos perceber a quais interesses de classe defendeu e a quais
atacou, sabendo desde já de sua vinculação programática com a financeirização da
economia, com a reestruturação produtiva, com a reforma do Estado, a
desregulamentação da economia.
Estava em questão consolidar um projeto em nível de governo, o que seria
alcançado com o Plano Real, a face brasileira da liberalização da economia e criação de
condições para a livre circulação de capital externo no país. Durante o governo de
Itamar Franco, Veja levou a diante o embasamento ideológico da construção de um
“projeto nacional”, exercendo as funções de cobrar, denunciar, exigir atitudes políticas.
O programa de ação teve o eixo no modelo neoliberal, das privatizações, da abertura ao
capital externo, mas também das mudanças dos hábitos de consumo e comportamento.
Itamar Franco assumiu a Presidência da República em 2/10/1992. A atuação da revista
desde o início não foi de “espectadora” e “transmissora”: auto proclamando-se neutra e
vigilante, ela agiu de forma organizativa. A cobrança mirava o Executivo, cobrando
dele definição de posições. Já na edição especial sobre o impeachment Veja cobrava de
Franco:
Cabe a Itamar Franco cumprir o programa com base no qual foi eleito. Um
programa que visa pôr fim aos cartórios e ao protecionismo. Que prega o
desmonte do corporativismo e a privatização de empresas estatais que a
iniciativa [privada?] pode gerir de forma a aumentar a produtividade da
economia brasileira. Sem a modernização do Brasil não haverá como
sairmos da miséria (Lição de democracia. Carta ao leitor. Veja. 30/09/1992, p.
5. Grifei).
Durante a crise que gerou o impeachment, Veja desvinculou Itamar Franco do
governo para dar tom de naturalidade à sua posse, agora buscava atrelá-lo ao projeto
desse mesmo governo. Mas está chamando o presidente justamente para apoiar o
programa que a fez apoiar Collor durante o início de seu governo. A revista também
passou todo o governo “lembrando” a Collor para que foi eleito: o programa a ser
aplicado. Agora era a vez de Franco assumir o mesmo compromisso. Utiliza para isso
os mesmos recursos discursivos, apontando o seu programa como símbolo de
modernidade, como se ele pudesse ser praticado em nome “de todos”.
O apoio oferecido é claramente delimitado desde o início pela cobrança,
antevisando a marcação cerrada que o presidente teria de uma imprensa umbilicalmente
comprometida com um projeto político. Como prova de sua “vigilância” e de que
deveria ser levada em conta pelo novo governante, a própria editora Abril “comemorou”
o impeachment, colorindo seu prédio de verde e amarelo e explicitava: “a Abril
comemora: o país quer mudanças”. (É preciso ao menos um programa. Carta ao leitor.
Veja. 07/10/1992.) Portanto, a Abril se colocava como portadora de “todo o país”,
ocultando os conflitos existentes no próprio impeachment. E no próprio título do
editorial reiterava: é preciso retomar o programa liberal.
A capa da primeira edição sob o governo é taxativa: “INÍCIO PÍFIO: Itamar
monta um ministério de compadres”, (Veja. 07/10/1992). A apreensão na foto de capa
de Itamar é corroborada no editorial: “o presidente deve apontar caminhos”, sendo essa
a “principal missão do presidente. Ele deve afirmar o que pretende fazer, argumentar
em favor de suas idéias, convencer a nação”. (Veja. 25/11/1992, p. 17. Grifei). Aqui, a
revista reivindica um sujeito mais amplo, a “nação”, que seria um todo homogêneo e
portador de uma só vontade. Para a revista, Franco “monta um governo que decepciona
a todos” (O Brasil cai na real. Veja, 07/10/1992, p. 34.), portanto, ligando com a fala
anterior, “ao país”, e à Abril. Na seqüência, a revista cobra que ele “não preparou um
programa, não definiu prioridades”.
Após a preparação prévia do terreno, apresentando a imagem de um presidente
“caipira”, Veja produziu uma matéria especial para definir “o que o governo deve fazer”
com relação aos “ajustes que faltam”, que seriam ajustes fiscais e reformas
administrativas. Percebe-se a tensão com a Fiesp e, em função do clima de redefinições,
Os mauricinhos da Federação das Indústrias de São Paulo (...) foram até
Brasília conversar com o chefe deles, Itamar Franco. Falaram do bem do Brasil, em geral, e
do aperto dos impostos em particular, sem perder a oportunidade de pedir a compreensão do
presidente para os sonegadores da Fiesp, que querem uma moratória de dois anos (Os ajustes
que faltam. Veja. 2/12/1992, p. 74. Grifei)
Quanto a esses “ajustes”, Veja define de forma absoluta que “não há
virtualmente um único brasileiro de boa vontade que não o entenda como uma questão
de vida ou morte para a organização do Estado”. Ou seja, é de forma totalitária que
essa posição aparece, e ela se coloca então como portadora dos interesses da toda a
sociedade: reformar o Estado.
Fica registrada ainda a suposta aproximação do governo com a Fiesp, tida pela
revista como símbolo do atraso, que, portanto, deveria ser combatida, como se não
houvessem disputas de posições dentro da Fiesp. Segundo informa a revista, a Fiesp
entregou um documento ao presidente que é “um couro de tambor reberverando as
mesmas idéias que o presidente vinha defendendo” (Farol apagado. Veja. 06/01/1993, p.
69).
No início do ano de 1993, a revista anunciava no editorial: “agora é mesmo pra
valer”. Diz que vai considerar como um “ensaio” o período anterior, “um treino que
serviu para a prova da administração efetiva”. (Agora é mesmo para valer. Veja.
6/1/1993, p. 15.) Apresentava duas avaliações. Na primeira, desqualificava a Fiesp
como subserviente e, em seguida, indica suas próprias reivindicações:
O novo presidente conta com o apoio efetivo de um grupo de políticos, e os
empresários da Fiesp já sinalizaram a confiança em sua capacidade para dirigir
os rumos da economia, num gesto de óbvia bajulação que talvez indique mais
um estado de subserviência e oportunismo do que propriamente uma
concordância ideológica.
Abaixo, no mesmo editorial, apresenta sua própria posição e demandas:
Não se espera dele nenhum milagre. A expectativa é de que supere a hesitação
das primeiras semanas, quando se prendeu ao varejo e omitiu-se nas metas. (...)
Seria proveitoso para sua administração que ampliasse o círculo íntimo de
ministros e amigos de que tem lançado mão para suas decisões, abrindo as
portas desse clube fechado à influência de um número maior e mais
qualificado de consultores. Não se pode esquecer a necessidade de prosseguir
com a abertura da economia.
Sua posição se choca com a da Fiesp e com os encaminhamentos do presidente.
A revista quer um “projeto claro”, de “abertura da economia” e para isso, busca
credenciar seus pares, ou seja, “consultores qualificados”, aqueles que vinham sendo
preparados em torno do projeto compartilhado. Já na capa, a revista assumia o papel
dirigente, norteador: “O QUE É PRECISO PARA DAR CERTO”, (Veja. 6/1/1993)
corroborado pela manchete da matéria: “A HORA DA VERDADE: na semana em que
deixou a interinidade, Itamar Franco afastou o risco de choques econômicos e avisou
que vai prosseguir nas reformas modernizadoras. São boas novas para o início de sua
gestão, num momento em que o Brasil se livra do problema Collor de Mello e entra
num ano decisivo.” (Veja. 6/1/1993, p. 16). A matéria apresentou um quadro com
fotografias e frases de “pessoas públicas” que avaliavam a situação. Dentre elas,
artistas, políticos e intelectuais. Destacam-se algumas falas que apontavam para
caminhos em disputa. São eles, João Paulo dos Reis Velloso, coordenador do Fórum
Nacional, e José Serra, figura sempre presente na revista e na qual investiu muito para
torná-lo um político “popular”:
‘A modernização econômica e a modernização social podem vir juntas. É
importante definir uma estratégia de desenvolvimento que permita que as altas
tecnologias forneçam o investimento em capital humano’. João Paulo dos Reis
Velloso (Veja, 06/1/1993, p. 18)
‘É hora da revolução econômica e de enfrentar a inflaids, a inflação que não
tem cura. Controle de gastos de Estados e municípios já é um passo. Já há
projetos que limitam o pagamento de funcionários a 60% da receita.’ José Serra
(Veja, 06/1/1993, p. 18).
Demarcam-se os mesmos referentes: Serra e Fórum Nacional. Insistia na
definição de uma agenda, citando Simonsen e Delfim Netto (ex-ministros da economia
e planejamento da Ditadura), cujas posições aparecem como óbvias:
Na agenda imediata da reorganização do Estado brasileiro há medidas de
necessidade óbvia. Privatizar as empresas que transformaram o Estado em
produtor de mercadorias é uma delas. Outra é acabar com o sistema fascista de
organização dos portos nacionais, que dá prejuízo de 5 bilhões de dólares anuais
ao país. É preciso insistir no programa de abertura ao comércio
internacional. (...) diz o economista Mário Henrique Simonsen, ex-ministro da
Fazenda (Veja, 06/01/1993, p. 22).
É, portanto, enfática a defesa de posição, qualificando até de fascista aquela que
seria uma posição contrária. Em sintonia estavam as palavras do presidente do Grupo
Abril, Roberto Civita, que anunciava palavras de alento, reafirmando posição, também
mostrada como inexorável: “vamos continuar as mudanças”, assumindo-se como
agente desse processo:
Como praticamente o mundo inteiro já descobriu, as saídas são simples de
enunciar e difíceis de implantar: precisamos estimular a competição e a
eficiência, trocar o papel produtivo do Estado por um papel normativo e
incentivar os investimentos no lugar da especulação. Precisamos, também,
passar a sonegar menos e exigir que os governos roubem menos e desperdicem
menos ainda (Roberto Civita. Ponto de Vista. Veja, 06/01/1993, p. 78).
Por essa época ocorreu uma reunião do Fórum Nacional, elogiada em Veja:
“oficina de idéias: enquanto Itamar se preocupa com o ágio dos carros, fórum discute
saídas para a crise econômica”. A pauta que a revista ressalta é a inflação, apontando
um ponto de polêmica com o governo: “um grupo de pouco mais de 100 economistas,
sociólogos e políticos, todos com um currículo de peso não pensa bem assim. (...)
Anote-se a opinião comum desse clube: na altitude atual da inflação, guerrilhas setoriais
contra os preços não funcionam” (Veja, 12/05/1993, p. 74). A revista apresenta o Fórum
como a alternativa, cujo projeto deveria ser rapidamente aplicado. Está devidamente
contraposto ao governo e suas posições de proximidade com a Fiesp. Esses homens com
“currículo de peso” seriam certamente mais importantes que o governo de Franco, ou
pelo menos mais capazes, segundo infere-se da leitura.
Mais adiante a revista buscou causar impacto, insistentemente, publicando uma
capa sintomática: “A CRISE E O HOMEM: o papel do presidente num Brasil sem
rumo” (Veja, 19/5/1993). A conclusão da revista é de que “a crise é maior que o
presidente: a maioria acha que Itamar só faz piorar o panorama do país, mas a saída
cabe aos políticos” (Veja, 25/11/1993, p. 20). O governo era caracterizado pela revista
como sendo de “monotonia: hesitação, gosto em se apoiar nos amigos e não nos mais
capazes, insegurança, ineficiência, demagogia e, fundamentalmente, ausência de
prioridades” (p. 21). A revista busca afastar o presidente de uma suposta esquerda,
desmontando sua proposta, para em seguida apontar os rumos “necessários”:
A esquerda na América Latina sempre se caracterizou pela defesa das três teses
– a nacionalização das empresas estrangeiras, a estatização e a reforma agrária.
Esse discurso entrou em pane e a esquerda, sem poder repeti-lo, não oferece
uma alternativa consistente. A direita limita-se a repetir mecanicamente o credo
do liberalismo. Daí o ecletismo do governo Itamar, que ziguezagueia em todas
as direções. Não há uma maioria capaz de convencer que sua plataforma é
correta, e com força para impor uma plataforma coerente. O acordo parece
impossível. Mesmo assim, foi exatamente através do acordo político que a
maioria dos países da América Latina realizou os ajustes econômicos, venceu a
inflação e voltou a crescer (p. 22).
Repete então a argumentação de que “não há alternativas” (mesmo slogan de
Thatcher sobre o neoliberalismo), apresentando como irrefutáveis essas afirmações. À
guisa de comprovação, são explorados “exemplos” latino-americanos, especialmente o
caso chileno (que não vamos explorar aqui por falta de espaço). Veja não localiza, no
espectro político, a quem caberia liderar o processo na direção que sugeria. Percebe – e
insiste em responsabilizar seus adversários – um quadro de recomposição de forças
(disputa de hegemonia). Veja tomava para si a função de apontá-lo, em
complementação à ação dos partidos nacionais, colocando-se como dirigente. O grande
problema, considerado o primeiro de todos, cuja resolução levaria a solucionar todos os
demais, seria a inflação, mas “as lideranças políticas, e também as sindicais e
empresariais, não conseguem perceber isso” (p. 23). Construída “a realidade”, o
programa deveria, claro, remeter a ela. E para isso, nada melhor do que “auxiliares mais
capazes”, ou seja, aqueles afinados com essa “nova realidade”, que “a esquerda não
consegue ver”. A revisão constitucional não poderia ser esquecida: com ela se poderia
“reformar o Estado” e “a tudo que o emperrava”, como indicara Simonsen. Para dar
seqüência a esse programa, a revista se lança em uma ampla tarefa de mostrar o
“exemplo chileno”, fazendo matérias e entrevistas para explicar o que considerava ser
as maravilhas neoliberais. A seqüência seria construir um candidato que se identificasse
com essas propostas.
Em contraposição à capa que mostrava Itamar Franco esperando para ser
derrubado por uma onda, na edição seguinte há uma fotografia de Fernando Henrique
Cardoso sorridente, fazendo um sinal de positivo, com a legenda: “A GRANDE
TACADA: o maior desafio de Fernando Henrique é a última chance de Itamar Franco”
(Veja, Capa. 26/5/1993.) Cardoso é considerado “o anjo da guarda do Planalto”, e “a
melhor notícia que o país já recebeu desde o impeachment de Fernando Collor” (Veja,
26/05/1993, p. 20). São muitos os elogios ao “intelectual brilhante”, asseverando que “o
intelectual esquerdista ficou para trás” (p. 25). O clima de euforia procura avalizar FHC,
ligando-o a José Serra, que vinha sendo o principal porta-voz do projeto
“modernizador”: “os dois trocaram idéias sobre a formação da equipe da Fazenda” (p.
23). A revista esperava se aproximar do que almejava, ou seja, a indicação de
“consultores qualificados” e “auxiliares competentes” para o governo, o que seria o
pontapé inicial de seu projeto. Isso está expresso no editorial: “a nomeação de Fernando
Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda serviu para desanuviar o ambiente
político e infundir a esperança em dias melhores”, pois ele “é um intelectual de renome
e um político capaz. Tem credibilidade no Congresso, no empresariado e nos meios
sindicais” (Apoio e ajuda para melhorar o país. Carta ao leitor, Veja, 26/05/1993, p. 17).
Só ele seria capaz de fazer “as reformas estruturais de que o Brasil tanto precisa”.
Também esse sentido se expressa na realização do seminário organizado pela editora
Abril, enfatizado no mesmo editorial “Brasil em Exame: o que pode fazer o Brasil
funcionar”: reitera ser necessária a “colaboração do Congresso, das lideranças
partidárias, dos governadores, dos empresários, dos sindicatos”. Ou seja, a revista, e sua
editora, estão tomando para si o papel de apontar caminhos, de conseguir acertar o rumo
para o seu programa. E essa será a posição com relação a Cardoso, apontado como uma
tábua de salvação, alguém capaz de aceitar o programa que “todos querem”.
Veja empurra FHC a assumir o “projeto”. Para consolidar a posição da Abril, ela
ofereceu um prêmio de Exame (revista da mesma editora que tem como público alvo
administradores e economistas), aos Melhores e maiores de 1993. A premiação contou
com a presença do Ministro Cardoso que “fez uma análise confiante no Brasil e
reafirmou que não haverá choques na economia”. Roberto Civita sintetizou: “a elite
empresarial brasileira é corajosa, criativa e competente. Vinte anos de desmandos e
sobressaltos não conseguiram detê-la” (Veja, 01/09/1993, p. 87.). Os vínculos entre o
empresariado, setores políticos e a editora, se tornam mais evidentes, havendo um tácito
reconhecimento do peso que a editora tem em apontar os rumos da economia brasileira.
O objetivo maior era pressionar o governo no sentido de medidas drásticas no combate
à inflação, o que implica em deslocar dos problemas sociais e salariais para o controle
monetário, seguindo o receituário de Chicago, dos EUA e do FMI. É nestes parâmetros
que propõe a construção do programa de ação.
Em maio de 1994 ocorreu a VI reunião do Fórum Nacional, realizada na cidade
do Rio de Janeiro. O cenário político nacional, de conturbada reforma constitucional e
planejamento eleitoral, não foi o tema do encontro, mas sim a projeção de um “futuro
melhor”: “Modernidade e pobreza: a construção da modernidade econômico-social no
Brasil”. Assim Veja sintetizou: “Fora de Brasília: o governo está tonto, mas há gente
pensando a sério num projeto para o Brasil”. (Veja, 04/05/1994, p. 96) A tese era do
otimismo para com o futuro. Segundo a revista, foi como se “a capital tivesse voltado
provisoriamente para o Rio” (p. 97). Contra “o mofo de Brasília”, ressaltava aqueles
que, segundo ela, “olham para um Brasil melhor no horizonte”.
O programa que a revista encampou já estava claro sendo construído, debatido e
avaliado no âmbito do Fórum Nacional. Mas a sua aplicabilidade política era forjada
nos próprios embates, e nisso mais uma vez a revista aplica sua ação partidária. O
centro desta atuação esteve na tentativa de reforma constitucional, nas privatizações e
na consolidação da idéia de que tudo estaria sendo feito em nome do que seria
“moderno”. Em consonância com a defesa da aplicação de um projeto e sua
transformação em ação programática, Veja investiu na possibilidade de intervir na
Revisão Constitucional. Embora ela não tenha alcançado os objetivos esperados, a
reforma seria uma possibilidade concreta de alteração institucional que permitiria a
implementação da gestão neoliberal no Brasil. Essas mudanças acabariam sendo feitas
de outras formas, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, sem o caráter
formal de revisão. Mas Veja investiu nesta tentativa, promovendo uma série de matérias
e “explicando” os rumos que deveriam ser tomados.
Retoma a retórica da “falta de rumos”, mantendo seu papel de “indicar
caminhos”. Publica uma pesquisa “com 417 parlamentares”, a qual “indica que a
revisão constitucional deve liberar a economia e desafogar o Estado”. Tudo se daria em
nome de:
Facilitar a entrada de novos investimentos estrangeiros, restringir o monopólio
da União em setores considerados estratégicos, como o petróleo, e diminuir os
gastos do Estado onde a iniciativa privada pode mostrar-se mais ágil e
competente, além de menos perdulária (A cabeça é outra. Veja, 21/04/1993, p.
80).
Essa visão está plenamente em acordo com a posição do Fórum Nacional, que
combatia a Constituição desde sua promulgação, em 1988, dizendo que ela era
anacrônica. Para o Fórum ela não correspondia a um “projeto nacional”, não tinha uma
“visão futura que permitisse dispor de um senso de direção nacional”. Com as
mudanças nacionais e internacionais ocorridas, seria possível propor um programa
mínimo, ressaltando apenas alguns reparos para “a viabilização econômica nacional e a
governabilidade”. Eles deveriam ser abertos para “dar flexibilidade à negociação
política”, e eram:
1) viabilização financeira da União, e, em particular, viabilização do orçamento
da seguridade; 2) eliminação de discriminações contra a empresa estrangeira; 3)
revisão dos monopólios estatais; 4) eliminação de privilégios entre servidores
públicos e trabalhadores privados, e dentro do sistema da previdência
(VELLOSO, 1994, p. 112)..
Esses argumentos seriam repetidos insistentemente por Veja. A revisão passou a
ser discutida no Congresso em setembro de 1993, mas não sem contestação de parcelas
da sociedade que se colocavam contrárias a ela. A revista era favorável à sua realização,
e buscou convencer os deputados, enquanto isso foi possível. Para tentar coordenar a
atuação “partidária”, Veja preparou um guia onde buscou “alinhar os sete temas que
realmente contam”, através de “um guia de como acompanhar os trabalhos, em suas
linhas gerais. E também como não acompanhá-los”. Segundo a revista, a escolha dos
temas que deveriam ser pautados, “não se deve apenas ao arbítrio de Veja, embora o
arbítrio também tenha representado seu papel. Chegou-se a esse resultado depois de
ouvidos políticos e acadêmicos, e compulsados os principais estudos produzidos nos
últimos meses sobre a revisão” (Sete temas de peso. Veja, 06/10/1993, p. 22). Os temas
são praticamente os mesmos expressos pelo Fórum Nacional:
O pacto federativo. Ou seja, uma nova tentativa de distribuir com alguma
racionalidade os encargos e receitas entre a União, os Estados e municípios; a
reforma do sistema tributário; a reforma da previdência; a abertura para o
capital estrangeiro; os monopólios estatais; a reforma política, englobando voto
distrital, sistema partidário e que tais; a questão do funcionalismo, mormente no
que concerne à estabilidade (p. 22 e segs.).
Nas dez páginas seguintes a revista explica “como é hoje” e “como pode ficar”
vários temas que, segundo ela, deveriam ser alterados na Constituição. Sua posição é a
mesma que vinha apresentando ao longo dos anos, podendo aqui substanciar sua idéia
do que seria a “modernização”, ainda que sob limites que ela mesma já apontara, o
período pré-eleitoral, que levaria a posições “populistas” do Congresso.
Na mesma edição é publicada uma matéria de quatro páginas sobre a
possibilidade de “uma chuva de dinheiro: inversões internacionais se multiplicam e
começam a mudar o perfil do Terceiro Mundo” (06/10/1993, p. 80). Aqui se reitera sua
posição sobre um dos pontos centrais nas mudanças desejadas, ou “como pode ficar”,
embora isso apareça como matéria de “puro interesse jornalístico”:
Elimina-se o conceito de ‘empresa brasileira de capital nacional’; elimina-se
qualquer tratamento diferenciado entre empresas de origens diversas; para efeito
de atuação no Brasil, não importa a nacionalidade dos controladores ou dos
detentores da maioria do capital, bastando que a empresa tenha sede no país;
quebram-se as reservas de mercado das empresas brasileiras. Empresas de
origem estrangeira passam a poder atuar em setores como mineração e saúde
(Sete temas de peso, p. 28).
Ou seja, a questão essencial, de abertura ao capital externo estaria assim
resolvida. E a relação da revista com a sociedade política se explicita. Quando dizemos
que a ação de vigiar o poder está em relação estrita com os interesses da própria revista,
é a esse tipo de comportamento que estamos nos referindo. A revista articula uma ação
que busca convencer a sociedade civil e pressionar a sociedade política. Essa ação está
em sintonia com o que vem buscando Veja nos últimos 40 anos da história brasileira.
Referências:
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
SILVA, Carla. VEJA: o indispensável partido neoliberal. Tese (Doutorado) em
História. Niterói, UFF, 2005.
VELLOSO, João Paulo dos Reis. Inovação e sociedade: uma estratégia de
desenvolvimento com equidade para o Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
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