A CRIAÇÃO DO ASSENTAMENTO MUTUM - MS: UMA HISTÓRIA DE
LUTAS, PERCALÇOS E SUPERAÇÃO
Valdeir Roberto Pereira (Professor de Geografia da Rede Pública Estadual, Email [email protected])
Mara Lúcia Falconi da Hora Bernardelli (Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul – E-mail: [email protected])
Eixo Temático: 5. Dinâmicas, Rupturas e Movimentos Urbanos e Rurais
Resumo: Este trabalho teve como objetivo desenvolver um histórico do processo de
criação do Assentamento Mutum, desde as primeiras mobilizações dos
trabalhadores, passando pela ocupação até a sua efetiva implantação. O objetivo
maior do trabalho foi contextualizar a questão agrária no estado de Mato Grosso do
Sul no período em que foi criado este assentamento e desenvolver, através dos
dados levantados durante a pesquisa, uma análise sobre como o processo de
formação e criação do assentamento nos permitem compreender a sua realidade
atual. Dentre os inúmeros movimentos de sem-terra criados, o mais expressivo é o
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), graças ao eficiente trabalho
pela reforma agrária e ao seu modelo de educação próprio, desenvolvido nas
escolas em seus assentamentos e nas escolas de formação de suas lideranças
(FERNANDES, 2001). A maioria dos acampados à espera de terras é constituída
por pessoas desempregadas que saíram de suas cidades de origem em busca de
um pedaço de terra, sendo que grande parte não possui mão de obra qualificada
para o trabalho no campo. Estes fatos mostram que o problema da reforma agrária
no Brasil exige uma solução muito mais complexa do que simplesmente distribuir
terra, pois envolve questões como o avanço do capitalismo no campo, o processo de
urbanização de nossa sociedade, a modernização das tecnologias, a dependência
de nossa economia ao capital estrangeiro, a abertura do mercado e sua
subordinação a interesses externos, o combate à pobreza e até a proteção ao meio
ambiente. Entendemos, assim, que a conquista da terra, com a criação dos
assentamentos pelo Estado, conquistada pela pressão dos movimentos
socioterritoriais, marca apenas o início de uma árdua batalha que é travada todos os
dias na tentativa de permanecer no pedaço de terra conquistado. Tal processo
decorre da ineficiência das políticas públicas e da omissão do Estado, em suas
diversas escalas (do nível local ao federal) em relação a programas específicos para
os assentamentos, considerando a articulação das dimensões econômicas, sociais,
culturais, ambientais, enfim, socioespaciais. A metodologia adotada para atingir os
objetivos propostos foi a realização de pesquisa de campo para coleta de
informações e dados primários, incluindo a aplicação de entrevistas gravadas junto
aos assentados, pesquisa documental para o levantamento de dados secundários,
bem como a revisão bibliográfica que norteou a discussão teórico-metodológica.
Palavras-chave: Reforma Agrária, Movimentos Sociais, Assentamento Mutum, Mato
Grosso do Sul.
Abstract: this work has as objective develop a historical of the process Of The Mutum
Settlement creation, since the first mobilizations of workers, passing by the
occupation until its effective deployment. The main objective of this work was to
contextualize the agrarian question in the State of Mato Grosso do Sul in the period
in which this settlement was created and develop, through of the data gathered
during the research, an analysis about how the process of formation and creation of
the settlement allows us to understand its current reality. Among the countless
landless movements created, the most prominent is the LWM (landless rural workers
movement), thanks to the efficient work by the land reform and your own model of
education developed in the schools in their settlements and in the training schools of
their leadership (FERNANDES, 2001). The majority of the camped out awaiting lands
consists of unemployed persons who left their hometowns in search of a piece of
land, being that most do not have skilled labor to work in the field. These facts show
that the problem of land reform in Brazil requires a much more complex solution than
just the simply distribute land, because it involves issues such as the advance of
capitalism in the field, the urbanization process of our society, the modernization of
technologies, the dependency of our economy to foreign capital, the opening up of
the market and their subordination to outside interests he fight against poverty and to
the protection of the environment. We understand therefore that the conquest of
earth, with the creation of settlements by the state, conquered by the pressure of
socioterritorials movements, marks only the beginning of an arduous battle that is
fought every day in an attempt to remain on the piece of land conquered. Such
process stems from the inefficiency of public policys and the omission of the state, in
their various scales (from the local to the federal level) in relation to specific
programs for the settlements, considering the articulation of the economic
dimensions, social, cultural, environmental, anyway, sociospatial. The methodology
used to achieve the proposed objectives was the realization of field research to
collect primary data and information, including the application of taped interviews with
the settlers, documentary research for secondary data collection, as well as the
literature review that guided the methodological-theoretical discussion.
Keywords for this page: Agrarian Reform, social movements, Settlement Mutum,
Mato Grosso do Sul.
Resumen: este trabajo tuvo como objetivo desarrollar una historia del proceso de
creación del asentamiento Mutum, desde la primera movilización de los
trabajadores, pasando por la ocupación hasta su implementación efectiva. El
objetivo principal de este trabajo fue contextualizar la cuestión agraria en el estado
de Mato Grosso do Sul en el período que este asentamiento fue creado y
desarrollado, a través de los datos colectados durante el estudio, un análisis de
cómo el proceso de formación y creación del asentamientos nos permiten
comprender la realidad actual. Entre los innumerables movimientos sin tierra
creados, el más prominente es el MST (movimiento de trabajadores sin tierra-),
gracias al eficiente trabajo de reforma agraria y su propio modelo de educación,
desarrollado en las escuelas en sus asentamientos y escuelas de formación de sus
líderes (FERNANDES, 2001La mayoría de los acampados esperando a la tierra se
compone de personas desempleadas que abandonaron sus lugares de origen en
busca de un pedazo de tierra, siendo que la mayoría no tienen mano de obra
calificada para trabajar en el campo. Estos hechos demuestran que el problema de
la reforma agraria en Brasil requiere una solución mucho más compleja que
simplemente distribuir tierras, porque involucra questiones como el avance del
capitalismo en el campo, el proceso de urbanización de nuestra sociedad, la
modernización de las tecnologías, la dependencia de nuestra economía al capital
extranjero, la apertura del mercado y su subordinación a intereses externos lucha
contra la pobreza y a la protección del medio ambiente. Entendemos que la
conquista de la tierra, con la creación de asentamientos por parte del estado,
conquistada por la presión de los movimientos socio territoriales, marca sólo el
comienzo de una ardua batalla que se libra cada día en un intento por permanecer
en el terreno conquistado. Este proceso se deriva de la ineficacia de las políticas
públicas y la omisión del estado, en sus diversas escalas (de lo nivel local hasta el
nivel federal) con respecto a programas específicos de los establecimientos,
teniendo en cuenta la articulación de lo económico dimensiones, sociales, culturales,
ambientales, de todos modos, socio espaciales. La metodología adoptada para
lograr los objetivos propuestos estaba realizando una investigación de campo para
recoger datos primarios e información, incluyendo la aplicación de entrevistas
grabadas con los colonos, la investigación documental para la recolección de datos
secundarios, así como la revisión de la literatura que ha guiado la discusión teóricametodológica.
Palabras claves: Reforma agraria, los movimientos sociales, asentamiento Mutum,
Mato Grosso do Sul.
INTRODUÇÃO
A questão agrária no Brasil é, em sua essência, uma questão política. Inicia-se
com o regime sesmarial adotado por Portugal na colonização, redefine-se com o fim
do tráfico de escravos e o incentivo a migração de europeus, com objetivo de prover
braços para a lavoura cafeeira. Neste contexto histórico foi aprovada a Lei nº 601, de
1850, conhecida como a Lei de Terras. Segundo Martins (1997), a Lei de Terras
criou legalmente e confirmou social e politicamente, um monopólio de classe sobre
as terras do país (p.11-12).
A partir de meados do século XX, iniciou-se a introdução de inovações
tecnológicas no campo, colocando fim ao regime de colonato. Com a aprovação do
Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, os vínculos de trabalho passam a ser
contratuais e não mais vínculos de dependência pessoal e de favor. Neste período,
especialmente sob o comando do Regime Militar (1964-1985) ocorreu a
modernização da agricultura no país, contraditoriamente, tais políticas promoveram
uma expulsão em massa de trabalhadores do campo:
A consolidação de um conjunto de técnicas modernas para a prática da
agricultura só vai ocorrer com a chamada Revolução Verde, na década de
1960, impulsionando a incorporação crescente de máquinas, tratores,
equipamentos, fertilizantes, agrotóxicos ao processo produtivo, buscando
maximizar a produtividade. O elemento central da Revolução Verde foi a
introdução de variedades de cereais híbridos de alta produtividade e
resistência. (AZEVEDO; LOCATEL, 2009, p.8).
Tal política foi agravada pela violenta repressão política do período, com
perseguições e mortes de lideranças sociais, políticas e sindicais, constituindo forte
repressão aos movimentos sociais e à luta pela terra (STEDILE, 2012).
Com o fim da ditadura, o novo regime civil, denominado “Nova República”, se
defronta com uma elite fundiária revitalizada, modernizada em suas orientações
econômicas. Neste quadro também se verificou maior concentração da terra no país
(FERNANDES, 2001).
Contraditoriamente, no final dos anos 1970, assiste-se ao resurgimento de
movimentos organizados de luta pela terra:
Nos últimos 20 anos, os conflitos de terra passam a assumir outra natureza,
em razão do fortalecimento das organizações de trabalhadores sem terra,
produtores sem terra, pequenos produtores rurais, organizações não
governamentais vinculadas à defesa dos direitos humanos e à causa da
reforma agrária. Trata-se, em especial, de um conflito que se manifesta no
plano político como estratégia de resistência e luta pela reforma agrária,
pelo acesso à terra e, mais recentemente, por políticas públicas de
desenvolvimento rural e redução da pobreza. (BUAINAIN, 2008, p.17).
Foi nesse cenário político e econômico, impulsionados pela onda de ocupações
que ocorriam no Brasil, que a fazenda Mutum no município de Ribas do Rio Pardo
foi ocupada em 1993, dando origem ao Assentamento Mutum.
Origem e contexto histórico do Assentamento Mutum: a luta pela terra
Torna-se importante destacar que o estado de Mato Grosso do Sul apresenta
uma expressiva concentração fundiária, sendo necessário compreender que:
A concentração de terras no Mato Grosso do Sul, não é necessariamente
resultado da expropriação e aglutinação de pequenas propriedades no
processo de expansão das relações capitalistas de produção. A estrutura
fundiária altamente concentrada deve-se ao processo de ocupação das
terras, ou seja, quando o Estado promoveu a transferência/venda de
grandes áreas de terras públicas para proprietários fundiários (FABRINI,
2008, p.54).
Deste modo, o movimento que originou o assentamento enfocado na pesquisa
deve ser entendido como uma resistência dos trabalhadores sem terra à
expropriação.
A área que foi destinada para o Projeto de Assentamento Mutum, objeto de
nossa pesquisa, pertencia a Itapeva Florestal Ltda., empresa proprietária de um
imóvel rural denominado Fazenda Mutum, situada no município de Ribas do Rio
Pardo, com área superior a 100.575 hectares. A princípio, a referida área pertencia à
empresa The Lancashire General Investiment Company Limited, proprietária do
Frigorífico Anglo e de inúmeras outras áreas rurais. Ao analisar a cadeia dominial da
propriedade é constatado que a área em questão fora adquirida do Estado na
década de 40. No ano de 1972, a Itapeva formalizou junto ao Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal (IBDF), atual IBAMA, a apresentação de projetos de
reflorestamentos, denominado “Projeto Série Rio Pardo I”, implantando em 1972/73,
apresentando ainda, a partir do ano seguinte até 1980, projetos da Série Rio Pardo
até o nº 168, abrangendo uma área de 82.818 hectares, tendo dado início ao abate
das florestas de eucalipto em 1987. Cabe ressaltar que estes projetos de
reflorestamento tinham como principal financiador o próprio Estado, através de
linhas de créditos e incentivos fiscais. Destinou-se para fins florestais em Mato
Grosso do Sul US$ 500 milhões usados para aquisição de terras e formação de
florestas de eucalipto e pinus (MERCANTE, 1994, apud AVELINO JÚNIOR, 2008, p.
141). O projeto tinha a Itapeva Florestal Ltda. como empreiteira gestora que, através
de parcerias com empresas menores, cedia áreas em regime de comodato
contratados em 25 anos, para que essas empresas executassem a manutenção dos
projetos de reflorestamento.
Durante a fase de implantação dos projetos houve intensa atividade
operacional, uma vez que toda a área destinada aos projetos era composta por uma
densa vegetação de cerrado, que foi derrubada para dar espaço aos plantios de
eucalipto. No final dos anos de 1970, cerca de vinte grandes propriedades estavam
formadas com eucalipto, com cerca de mil trabalhadores cada uma (MERCANTE,
1994, apud AVELINO JÚNIOR, 2008, p.141).
Após a euforia dos plantios, começaram a surgir problemas com a manutenção
das florestas, pois se tratava de investimentos de longo prazo. Razão pela qual
muitas das empresas parceiras, sob o argumento de que a crise do petróleo e a
elevação dos custos de transporte inviabilizaram a comercialização, acabaram
abandonando os projetos, que por sua vez se mostraram inviáveis economicamente,
sendo utilizados apenas para obtenção de reservas e investimentos do Estado.
As empresas interromperam as atividades e abandonaram os projetos.
“Os hortos permaneceram intocáveis e paralisaram a manutenção dos plantios. Com
o abandono do projeto ocorreram incêndios de grandes proporções, ataques
sistemáticos de formigas e geadas”. (MERCANTE, 1994, apud AVELINO JÚNIOR,
2008, p.142).
Segundo relatos das principais lideranças dos trabalhadores sem terra, a
situação de total abandono em que se encontrava a fazenda foi um dos principais
motivos para a sua ocupação. O abandono era tamanho que em quase toda a
extensão das extremidades da fazenda havia uma intensa ação de grileiros e
posseiros, muitos dos quais estavam na terra desde 1975.
Em junho de 1993 houve a segunda e definitiva ocupação da Fazenda Mutum,
ação que foi organizada por sindicatos rurais de vários municípios, como Paranaíba,
Três Lagoas, Dourados, além da Federação da Agricultura do Estado de Mato
Grosso do Sul (FETAGRI) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ribas do Rio
Pardo, cujo presidente na época era Iracema do Vale, apontada como uma das
lideranças do movimento.
O Assentamento Mutum na atualidade: realidade e perspectivas camponesas
Em 1997 o Assentamento Mutum foi implantado pelo INCRA (Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária), possuindo 15.801 hectares, distribuídos em 340
lotes, com 45 hectares em média (informações obtidas junto a AGRAER – Agência
de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural). Foi criado numa área denominada
“Bico da Bota”, por estar na divisa entre três municípios: Brasilândia (172 lotes),
Santa Rita do Pardo (123 lotes) e Ribas do Rio Pardo (45 lotes).
Cerca de 90% das demandas dos assentados (como saúde, educação,
comércio e serviços, assistência técnica, entre outros) é canalizada para a cidade de
Ribas do Rio Pardo, apesar do município possuir a menor área do assentamento,
por ser a cidade mais próxima do assentamento, estando distante cerca de 80 km,
dos quais 43 quilômetros são asfaltados (BR 262) e 37 quilômetros são de estrada
de terra (MS 153 que liga Ribas do Rio Pardo à cidade de Santa Rita do Pardo).
O Assentamento Mutum localiza-se em uma área cujas condições do solo
dificultam o trabalho na terra pelo pequeno agricultor, pois o solo é arenoso (terra
muito ácida) e a disponibilidade hídrica é bem reduzida.
O assentamento possui duas Agrovilas, uma pertencente ao município de
Brasilândia que, conforme constatado em trabalho empírico, apresenta algumas
casas, além de escola, igreja, mercado, borracharia e um posto de combustível, que
segundo os assentados ainda não está em funcionamento. Isto por que a Agrovila
não está constituída juridicamente, em razão de pendências na documentação e,
sem isso, o assentado dono do posto não consegue expedir a licença ambiental
junto ao IMASUL. A segunda agrovila está localizada em área que pertence ao
município de Santa Rita do Pardo, já devidamente constituída através do termo de
doação, sendo que dois dos assentados doaram parte de seus lotes para que fosse
criado o núcleo que hoje é considerado pelos assentados o centro dinâmico do
assentamento. Nele se concentram várias casas, escola, posto de saúde, mercado,
bares, uma pequena loja de materiais de construção, havendo até uma pequena
fábrica processadora de ração.
Torna-se importante introduzir na análise uma avaliação de como se encontra
atualmente o Assentamento Mutum. A coleta de informações foi realizada através de
fontes secundárias, os gráficos e tabelas foram extraídos do questionário
socioeconômico aplicado no assentamento pelos técnicos da AGRAER em
novembro de 2012.
Segundo esta pesquisa socioeconômica, a população do assentamento é
composta por cerca de 520 habitantes. Os dados apresentam grande importância
para refletir sobre o futuro do assentamento. Verificou-se que o número de pessoas
com mais de sessenta anos é expressivo (16,15%), e durante a pesquisa de campo,
verificamos que está ocorrendo uma intensa saída de jovens para os centros
urbanos, dado o fato de que a renda gerada no lote ser insuficiente para atender as
necessidades e os anseios destes jovens, assim como na atualidade há maiores
exigências para ingressar no mercado de trabalho.
Na análise feita no Relatório Socioeconômico da AGRAER no PA Mutum,
constatou-se que, em relação à renda: “... 41,26% tem a renda oriunda do lote com a
comercialização de queijo salgado, bezerro de desmama, leite resfriado, carvão
vegetal, animais de descartes, ovos caipira, frango caipira, mandioca, melancia etc.”
(PESQUISA SOCIOECONÔMICA AGRAER, 2012).
Outra parte da renda existente decorre dos benefícios sociais recebidos por
alguns assentados, confirmado em entrevista concedida por um dos assentados:
Vai fazer vinte anos que estou aqui nesta labuta, vim pra cá no primeiro
grupo de sem terras através do sindicado de Dourados, participei da
primeira ocupação dessas terras. No começo foi muito sofrido, nós que
éramos acostumados tocar roça lá na região de Dourados. Para tocar
lavoura era preciso apenas um pedaço de terra boa, uma saca de semente
e punhado de ferramentas. Isso era suficiente para nós plantar a primeira
safra e começar gerar um dinheirinho pra manter a família. Daí, sem ter a
terra pra plantar, fui incentivado pelo sindicato pra vim pra cá. Diziam que a
terra não era boa como a de lá mais ainda dava para plantar e criar umas
vaquinhas. Foi muito difícil se adaptar nessa terra de onde com muito custo
consigo sobreviver. A nossa sorte é a aposentadoria minha e da minha
esposa (JOSÉ FERNANDES, ENTREVISTA, SET., 2013).
De acordo com o Gráfico 1 uma grande parcela de assentados são assistidos
por benefícios sociais.
Gráfico 1 – P. A. Mutum: Benefícios sociais.
Fonte: Questionário Socioeconômico AGRAER (2012).
Assim, muitos assentados conseguiram obter certa estabilidade econômica
com a aposentadoria, importante fonte de renda, dada a regularidade em seu
recebimento, enquanto que a renda obtida através das atividades desenvolvidas no
lote aparece como uma complementação. Também é possível verificar que o
Programa Bolsa Família, do Governo Federal, também apresenta importante papel
na composição da renda das famílias assentadas, mas também garantindo a
permanência de crianças na escola.
Atualmente há três associações de pequenos produtores rurais municipais
(APPRM) ativas no assentamento. O Gráfico 2 mostra como os assentados estão
organizados.
Gráfico 2 – P. A. Mutum: Organizações e associações atuantes
Fonte: Questionário socioeconômico AGRAER (2012).
O assentamento convive ainda com muitos problemas estruturais como a má
conservação das estradas, tanto a que dá acesso ao assentamento quanto as
internas. Ainda existe problema com o fornecimento de energia elétrica. A falta de
planejamento da rede elétrica no assentamento configura-se atualmente em um
grande obstáculo ao seu desenvolvimento, pois limita o acesso a novos
equipamentos necessários para dinamizar a produção, como, por exemplo, é o caso
dos resfriadores de leite e da mecanização da ordenha, que poderiam melhorar o
padrão higiênico e agregar valor a principal base econômica do assentamento, a
produção leiteira.
Segundo os assentados a inexistência de uma política articulada entre os
municípios gestores da área em que o assentamento está inserido é outro dos
graves problemas enfrentados. Essa falta de diálogo tem causado muitos problemas
no tocante à educação e ao acesso à saúde.
Se os municípios aplicassem uma gestão compartilhada seria
muito bom para nós assentados, hoje no assentamento tem
três escolas, cada uma administrada por um município. Apenas
a escola de Santa Rita do Pardo oferece Ensino Médio. As
escolas atendem qualquer aluno independente da localização
do lote, mas a prefeitura não disponibiliza o transporte, cada
município faz a sua linha. Na saúde é a mesma coisa, na
agrovila de Santa Rita tem um posto de saúde, onde ocorre o
atendimento médico e odontológico duas vezes por mês. E os
municípios fazem atendimento médico na escola uma vez no
mês. Se eles se entendessem o posto poderia funcionar pelo
menos uma vez por semana (ENTREVISTA COM O SENHOR
OSÓRIO MENDES, ASSENTADO, SET., 2013).
A base econômica do assentamento está centrada especialmente na pecuária
leiteira, tendo em vista o solo ser muito arenoso e requerer altos investimentos em
insumos como calcário e adubos, isso acaba inviabilizando o cultivo mais expressivo
de alimentos, dificultando a prática da agricultura.
Os sistemas produtivos agrícolas encontrados no assentamento são voltados
para a subsistência, sendo geralmente cuidados pelas mulheres. A maioria dos lotes
mantém apenas pequenas faixas destinadas ao plantio de espécies menos
exigentes em relação à qualidade do solo, como mandioca, cana e milho, que são
plantados em pequenas quantidades apenas para complementar a alimentação do
gado no período de seca.
Mesmo com quase vinte anos de criação o assentamento ainda não se
encontra consolidado, dada a falta de políticas locais específicas.
Com as linhas de créditos concedidas pelo PRONAF (Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar) disponibilizadas no início do assentamento,
muitos residentes investiram em vacas leiteiras. A posterior implantação de um
laticínio no local fez com que, em meados de 2005, o assentamento atingisse o seu
ápice em termos de produção leiteira.
Entretanto, em 2008, as atividades do laticínio foram embargadas por não se
adequar aos padrões higiênicos necessários para funcionar, o que representou uma
grande perda para os assentados.
Com a suspensão das atividades do laticínio e a produção de leite em alta, pois
conforme relatado, o assentamento estava produzindo na época em media cinco mil
litros de leite por dia, os assentados iniciaram a produção artesanal de queijos. Os
limites ao acesso direto ao mercado consumidor, com a submissão dos produtores à
ação dos atravessadores, que pagam um preço muito abaixo do valor de mercado,
impõem dificuldades aos assentados.
Tais fatos nos auxiliam na compreensão da atual situação em que o
assentamento se encontra, como podemos verificar no Gráfico 3.
Gráfico 3 – P. A. Mutum: Situação das parcelas durante as visitas
Fonte: Questionário socioeconômico AGRAER (2012).
Segundo os assentados, entretanto, tal situação vem mudando, pois o laticínio
passou por uma reforma e pelas adequações necessárias, retomando as atividades
em agosto de 2013.
Porém, a cada crise vivida no assentamento, ocorre diminuição no contingente
de assentados e, consequentemente, isto permite a entrada de novos atores sociais,
muitos sem vínculos com a terra.
Como se pode perceber no Gráfico 3, dos lotes visitados por ocasião do
levantamento feito pela AGRAER, cerca de 140 (41% do total de assentados)
encontra-se abandonada, não cumprindo o propósito que originou o Assentamento.
“Nas situações, em que efetivamente havia um morador no lote para responder ao
questionário,
percebemos
que
somente
23,52%
dos
assentados
originais
permaneceram nos lotes” (QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO AGRAER, 2012
p.09).
Vem sendo realizadas várias pesquisas para o entendimento da evasão dos
assentados originais dos projetos e, segundo Aleixo (2007):
... De um modo geral esses estudos discutem as mudanças (ou
saídas) de beneficiários de uma forma mais abrangente,
procurando, sobretudo, buscar razões que expliquem o processo
de evasão, quantificando o seu percentual. São estudos que
procuram, na sua maioria, refletir sobre a viabilidade dos
assentamentos e da política de reforma agrária implementada no
país. Essas mudanças, comumente chamadas de evasão, são
justificadas por um conjunto variado de razões... (p.1)
Assim, o Assentamento Mutum não foge a regra, mas é óbvio que no contexto
da pesquisa identificamos variadas razões para a saída, e consideramos que duas
delas se destacam entre aquelas que pudemos perceber. Em primeiro lugar as
condições físicas onde foi realizado o projeto são bastante difíceis, com baixa
ocorrência hídrica e solo arenoso, impróprio para o plantio, tornando a prática da
agricultura exigente de tecnologias (equipamentos, correção da acidez do solo, entre
outras) que não foram ofertadas pelo Estado.
Outro aspecto é o tempo que decorreu entre o acampamento e a entrada no
assentamento, o que além de dificuldades de diversas ordens (condições subhumanas no acampamento, carências de todas as ordens, dificuldades no convívio
familiar pelas condições enfrentadas), também corrói os parcos recursos que as
famílias trazem. Isto pressupõe que os assentados já entram no lote fragilizados, e a
demora/ausência no oferecimento de políticas públicas (água, energia, transporte,
educação, saúde, entre outros), torna ainda mais difícil sua permanência.
Assim, uma política pública de fato comprometida com a reforma agrária
deveria atentar para as especificidades de cada área onde são assentadas as
famílias, isto garantiria a permanência dos assentados e permitiria o sucesso mais
efetivo dos projetos.
Considerações finais
Segundo Fernandes (2000), os assentamentos rurais decorrem de intensas
lutas pela reforma agrária promovida pelos trabalhadores rurais sem terra. Dada a
grande contribuição (tanto econômica quanto social) que deflagram, deveriam ser
objetos de maior empenho do Estado, uma vez que geram empregos, aumento da
oferta de alimentos à população, gerando maior qualidade de vida e permitem uma
reprodução social mais digna às famílias assentadas.
No decorrer da pesquisa surgiram muitos elementos que podem nos ajudar a
entender melhor a situação atual do assentamento. Conforme mostrou a pesquisa, a
grande maioria dos assentados (os primeiros) é oriunda da porção sul do Estado de
Mato Grosso do Sul, que concentrava na época de criação do assentamento, fortes
conflitos sociais, devido à implantação da chamada “modernização conservadora”.
Diante dessa situação surgiram diversos movimentos sociais que se
fortaleceram na luta pela terra, gerando o que Fernandes denomina de “movimentos
socioterritoriais”. Devido às pressões, na década de 1980 houve a criação de vários
assentamentos no estado de Mato Grosso do Sul, entretanto isto inicialmente não foi
combinado a políticas públicas que garantissem condições adequadas aos
assentados, fornecendo subsídios efetivos (infraestrutura, insumos e equipamentos)
para o desenvolvimento da agricultura camponesa.
Conforme ressaltamos, outro aspecto importante verificado no Assentamento
Mutum foi a ausência de lideranças do MST no processo de luta pela terra, advindo
daí uma das grandes dificuldades de organização deste grupo, ainda que várias
pesquisas indiquem que mesmo em assentamentos em que houve esta atuação
outras dificuldades inviabilizaram a permanência de parte dos primeiros assentados.
A ausência do Estado, é outro elemento que merece ser destacado, visto que
inexistem políticas públicas que promovam um adequado desenvolvimento
econômico e social, o que vem dificultando a permanência dos jovens no
assentamento.
Percebemos que
se
não
houver uma
intervenção
neste sentido o
Assentamento Mutum terá diminutas possibilidades de se manter a partir daqueles
objetivos dos que lutaram por sua criação. Isto porque a atividade florestal, cujo
fracasso encontra-se na origem da criação do Assentamento Mutum, atualmente
está de volta, com a expansão do plantio de eucaliptos, visto a implantação de um
enorme complexo de produção de celulose no leste do estado de Mato Grosso do
Sul, mais precisamente no município de Três Lagoas. A produção de eucalipto vem
ganhando cada vez mais espaço dentro do assentamento e em ritmo bastante
acelerado, o que oferece grandes riscos ao solo, que pode vir a sofrer ainda mais
danos se novamente exposto a esse tipo de cultura.
O assentamento apresenta diversas histórias de superação por parte de alguns
assentados, mas conforme demonstrado parcela dos assentados tem abandonado
ou vendido as terras em razão das dificuldades enfrentadas, permitindo,
contraditoriamente a rearticulação do grande capital na área.
Para que a reforma agrária seja de fato um projeto vitorioso, não pode se
restringir apenas à redistribuição de terras, deve vir acompanhada de várias políticas
públicas, entre as quais o crédito rural (com juros e prazos compatíveis com a
atividade agrícola), de assistência técnica, de um sistema de pesquisas e técnicas
de comercialização da produção, além de infraestrutura e incentivo a permanência
dos jovens.
É necessária uma política pública que incentive a organização comunitária
fundamentada em elementos sociais, ecológicos, econômicos e políticos, além de
uma política de produção de alimentos para o consumo interno, garantindo a
soberania alimentar. Na falta dessas ações, situações como a vivenciada no
Assentamento Mutum continuarão se reproduzindo no meio rural brasileiro.
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A CRIAÇÃO DO ASSENTAMENTO MUTUM