Introdução
Redação jornalística: menos doutrina,
mais intuição
Há dúzias de publicações no mercado editorial brasileiro
sobre como devem ser o texto e o comportamento dos jornalistas.
São, todas, variações do mesmo tema, com alguma novidade
aqui e ali, boa parte montada para abocanhar as muitas fatias de
estudantes que vêem na redação jornalística um mistério
impossível de ser desvendado sem a ajuda de sábios da gramática,
gurus do léxico e manuais de redação voltados para uns poucos
escolhidos. No entanto, escrever bem, para o jornalista, não tem
o mesmo sentido geral daquele normalmente atribuído às
angústias das tribos de acadêmicos e focas (jornalistas novatos).
O texto jornalístico tem regras próprias e, não obstante
ser um servo incondicional do idioma, prescinde de muitos dos
elementos da língua em prol de sua orientação dogmática
primordial: a objetividade noticiosa. No texto jornalístico não
cabem adjetivos, circunlóquios, perífrases, metáforas, eufemismos
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Os segredos das redações
e outras figuras nobiliárquicas do idioma. É um texto simples,
claro, objetivo e, se possível, breve. Não significa, no entanto,
que o estilo e a beleza devam ser desprezados. Consiste aí,
inclusive, um dos grandes desafios do jornalista, o de mesclar a
dureza da notícia com a leveza das palavras. O bom jornalista é
capaz de construir frases imorredouras sem sacrificar, pelo excesso
ou pela omissão, o sentido noticioso.
Os tópicos que se seguem são o resultado de um exercício
de reflexão – aliás, muito caro à profissão – concretizado a
partir de conselhos práticos, fruto de minhas observações
pessoais ao longo de uma sempre conturbada, mas apaixonante,
carreira de repórter e professor de jornalismo. Moldado pelo
jornalismo regional baiano, no qual comecei, e curtido na selva
das redações de Brasília, sempre me impressionou o
distanciamento entre as coisas escritas nos manuais de redação,
citadas com entusiasmo para platéias selecionadas, e a realidade
da profissão.
Ao longo de mais de duas décadas de atividade, pude
perceber que as angústias dos jornalistas são universais, mas os
veículos de comunicação insistem em tratá-las com regras
herméticas que, longe de serem bússolas, são nada mais do que
compêndios de doutrina corporativa mal disfarçados de manuais
do escoteiro mirim. Dizê-los inúteis, porém, seria uma injustiça,
assim como negá-los como fonte de consulta seria instaurar
uma falsa polêmica. Não é esse o objetivo deste livro.
Os defeitos dos manuais de redação não estão nas dicas de
texto nem na pretensão de colocar cabrestos nos repórteres para,
assim, adaptá-los às características de cada meio. O pecado capital
de todo manual de redação é seu caráter doutrinário. Muitos
deles são partes de um sistema maior e mais complexo, montado
pelas grandes empresas de comunicação e voltado para a formação
de jornalistas recém-formados. São cursinhos intensivos, cheios
Introdução
de regrinhas e pantomimas de recursos humanos, em que alegres
gerações de repórteres são instadas a acreditar na inutilidade do
diploma a eles outorgado pelas faculdades de jornalismo.
Tratam de reproduzir, com base em preconceitos e
interesses nebulosos dos donos da mídia, a ladainha antidiploma, herança de velhos jornalistas, alguns geniais, saudosos
de suas formações empíricas e românticas, como se fosse possível
às redações do Brasil do século XXI relegar seus quadros de
formação a aventureiros de simpáticas construções literárias.
Por causa desse grupo de saudosistas, e de uns poucos e bem
pagos acólitos cooptados nas cúpulas das empresas, os jornalistas
brasileiros talvez formem a única categoria no mundo a ter
representantes contrários ao reconhecimento formal da própria
profissão. Aceitam, bovinamente, a depreciação moral do ofício
que lhes garante o pão de cada dia.
Colabora para esse quadro geral de desentendimento a
confusão instalada, também na área acadêmica, entre
jornalismo e assessoria de imprensa, duas atividades que se
tocam na funcionalidade, mas nada tem a ver uma com a
outra. O jornalismo é um bem comum à sociedade e tem na
sua abordagem científica signos e normas voltados à
disseminação da informação a partir de contrapontos críticos.
A assessoria de imprensa, ou de comunicação, como queiram,
apenas se utiliza da linguagem jornalística, mas trata,
basicamente, de propaganda. É a anti-reportagem.
Por causa do enxugamento geral das redações e, em
muitos casos, por conta da decepção generalizada com os rumos
do jornalismo no Brasil, a maioria dos jornalistas diplomados
não está em atividade na imprensa, mas em gabinetes de
políticos, empresários e instituições públicas e privadas. Por
serem em maior número, os assessores dominam, também, as
estruturas sindicais. Por isso, a luta pelo diploma de jornalista,
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Os segredos das redações
este aqui entendido como profissional da notícia, tornou-se
também a luta pela reserva de mercado nas assessorias de
imprensa. Deixou, portanto, de ser uma bandeira voltada para
o orgulho profissional para servir a interesses corporativos, em
tudo desligados da essência do ofício e da profissão de jornalista.
Em muitos sentidos, essa discussão se dá dentro de bases
burocráticas, quase sempre respaldadas pelas regrinhas dos
manuais de redação. É coisa com potencial para inibir as
iniciativas pessoais dos repórteres e transformá-los em
robozinhos eficientes, limpos e cheios de etiqueta social,
totalmente adaptados às demandas editoriais e estéticas do meio
que lhes paga o salário. Do ponto de vista funcional, certamente,
é difícil criticar esse modelo, eficiente como uma fábrica de
parafusos. Para os jornalistas, no entanto, é um fator a mais de
estresse. Além de se preocupar com a luta diária pela melhor
notícia, ainda têm que estar atentos a regras específicas de estilo
e comportamento, sob pena de serem identificados como
inadaptáveis, quando não rebeldes, pelos sábios de plantão nos
aquários das redações.
Encasteladas em suas próprias e inquebrantáveis doutrinas
editoriais, as redações dos grandes veículos brasileiros de
comunicação mantêm esses cursinhos, verdadeiras fábricas de
monstrinhos competitivos, em detrimento da universalidade
do conhecimento e da representação do jornalismo como bem
comum. Fixam-se na eterna lengalenga de “o repórter do jornal
X sempre lavas as mãos depois de fazer xixi” ou “o repórter do
jornal Y nunca fala de boca cheia”. Até que apareça na redação
um novo publisher – normalmente, uma figura misteriosa que
nada entende de jornalismo, mas adora programas de qualidade
total de recursos humanos – para mudar tudo: a linha editorial,
a estratégia de marketing, os brindes da edição de domingo e,
finalmente, a doutrina da moda.
Introdução
Não é, portanto, a intenção deste livro uniformizar o
texto de jornalistas e estudantes de jornalismo, mas, justamente,
expor conceitos holísticos para criar pontos de reflexão. São
tópicos que devem ser utilizados como referências importantes
para a construção do texto jornalístico – boas ferramentas para
quem ainda caminha, mas tem vontade de voar. O estilo, a
clareza e a beleza do que advirá daí passa a ser responsabilidade
intransferível de cada um. A obra trata, ainda, de conceitos
internos e externos do ofício, tanto no que diz respeito à rotina
das redações como à fauna que nelas habita.
Minha intenção é a de despertar a curiosidade dos estudantes
e dos jovens profissionais sem lhes negar a realidade, o fato de que
não é possível enfrentar o mercado de trabalho sem o conhecimento
necessário de suas idiossincrasias. É preciso que alguém lhes diga,
logo cedo, que há regras obscuras dentro das redações, muitas
delas ditadas por chefes sem escrúpulos, puxa-sacos
subservientes e sem caráter. E que, muitas vezes, eles são
escolhidos justamente por isso. Dizer-lhes que o jornalismo é
uma profissão apaixonante, viciante e corajosa, cheia de boas
conseqüências para a sociedade, mas repleta de alminhas
pequenas abertas ao suborno e ao achaque.
Contar-lhes da vantagem de ver o mundo com olhos de
repórter, mas fazê-los entender que nem todo repórter pensa
assim, pois há os que mentem, inventam e roubam matérias e
pautas de colegas para se afirmar na hierarquia das redações.
Fazê-los saber que, para atacar, difamar ou, simplesmente, fazer
valer a posição editorial das empresas de comunicação, muitos
jornalistas aceitam publicar pautas em vez de notícias, ainda
que cientes do caráter antiético e criminoso desse tipo de ação.
Ainda assim, é preciso reafirmar que, apesar de tudo, ser
repórter é um estado de espírito, é ter a disposição de decodificar
o mundo para o próximo e ter como recompensa uma nova
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Os segredos das redações
jornada para trabalhar com mais amor e dedicação ainda. É
matar um leão todo dia, toda semana, como se essa caçada atrás
da notícia fosse, no fim das contas, uma razão para viver – sem
que para isso seja necessário sacrificar a vida.
Este livro se pretende um guia, não uma bíblia. Nele,
ouso tomar partido do jornalismo, de seus defeitos, de seus
repórteres.
Divirtam-se.
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Introdução - Editora Contexto