TECENDO
A
HISTÓRIA
DAS
MULHERES
NO
SÉCULO
XVIII:
TERESA
MARGARIDA DA SILVA E ORTA
Maria Arisnete Câmara de Morais, orientadora / UFRN
Conceição Flores, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN
Introdução
Há 250 eram publicados em Lisboa dois livros escritos por dois irmãos nascidos
no Brasil. Refiro-me às Máximas de virtude e formosura de Teresa Margarida da Silva e Orta e às
Reflexões sobre a vaidade dos homens de Matias Aires. Enquanto Matias Aires é referenciado
pela crítica literária portuguesa e brasileira, a irmã, como aconteceu com a maioria das mulheres,
foi deixada na sombra da história (Duby e Perrot, 1994, p. 7). Contar a história de vida dessa
mulher e a história da publicação desse romance é o nosso móbil. Quanto aos silêncios que
acompanham este texto, esperamos dar-lhes voz noutras oportunidades, pois a pesquisa encontrase em andamento. Temos pesquisado documentos oficiais, existentes em arquivos públicos
portugueses (Biblioteca Nacional de Lisboa, Torre do Tombo, Arquivo Histórico Ultramarino) e
brasileiros. Usamos também outras fontes: o romance escrito pela autora, textos escritos por
outras mulheres, o romance A religiosa, de Diderot, o livro escrito por seu irmão, Matias Aires,
Reflexões sobre a vaidade dos homens, entre outros. Esta pesquisa está vinculada ao Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), fazendo
parte da Base de Pesquisa Gênero e práticas culturais e do projeto integrado História dos
impressos e a formação das leitoras, aprovado pelo CNPq sob a orientação da Professora Dra
Maria Arisnete Câmara de Morais.
Uma vida que se conta
Teresa Margarida da Silva e Orta nasceu em São Paulo, em 1711. O pai, José
Ramos da Silva, tinha chegado ao Brasil, em 1695, com pouco mais de 12 anos, como criado de
servir. Era filho natural de Valério Ramos e de Maria da Silva, lavradores, naturais e residentes
na freguesia de São Miguel de Beire, bispado do Porto. Após permanência na próspera Bahia,
capital da colônia, veio tentar a sorte em São Paulo, onde se casou, em 1704, com Dona Catarina
Dorta, brasileira, de sangue mestiço, segundo averiguaram os inquiridores para atribuição do
título de familiar do Santo Ofício a José Ramos da Silva, mas também descendente dos Orta,
família tradicional portuguesa. O pai notabilizou-se durante a invasão francesa ao Rio de Janeiro.
Já era, então, um próspero comerciante, mas sua fortuna aumentou substancialmente
comercializando gêneros alimentícios para as Minas Gerais.
Em 1716, regressou ao reino com a família, mantendo através de seus
procuradores importantes negócios no Brasil. Se a esta família faltava a nobreza de sangue,
sobejava a riqueza e a determinação do patriarca em obter as honrarias necessárias para ascender
socialmente. Nesse ano, foi feito Familiar do Santo Ofício. Em 1721, recebeu o título de
Cavaleiro da Ordem de Cristo e arrematou o contrato de dízima da Alfândega do Rio de Janeiro,
obtendo, em 1722, o cargo de Provedor da Casa da Moeda. Era, então, rei de Portugal D João V
cujo reinado se pode chamar o século de Ouro, se continuou a tirar das Minas abundante cópia
de ouro (Souza, 1953, vol. VIII, p. III).
A família tinha três filhos: Matias Aires, o mais velho, educado pelos jesuítas no
Colégio de Santo Antão; Teresa Margarida e Catarina, educadas no Convento das Trinas, e
destinadas à vida religiosa. Este convento, fundado em 1661, acolhia meninas entre os 7 e os 25
anos por educandas, a esperarem lugar para serem religiosas, e juntamente se criarem na
virtude, e nas cerimônias (S. José, 1794, p. 218). O destino das mulheres da classe mais abastada
se fazia consoante a vontade paterna: ou religiosa ou esposa, segundo os interesses financeiros
familiares. No primeiro caso, desde cedo eram educadas em conventos, se não permaneciam no
gineceu sob a vigilância da mãe (Garrett, 1829, p. XX).
José Ramos da Silva, conforme prática comum da época, parece ter planejado
concentrar toda a riqueza nas mãos do filho varão. A mais nova, Catarina, será freira, não se sabe
se por vocação ou adesão, e chegará a abadessa do Convento de Odivelas. O habitus não
pressupunha vocação religiosa, mas adesão ao poder simbólico exercido pela família e pela Igreja
(Bourdieu, 1999). Diderot, em A religiosa, narra as desventuras de uma jovem encerrada num
convento pelas conveniências familiares, apesar de ter declarado solenemente não desejar
professar e pretender ser tudo, menos religiosa. Suzanne conta o que aconteceu a partir daquele
momento. Diz ela: fui trancafiada na cela; impuseram-me o silêncio; fiquei isolada de todo
mundo, inteiramente abandonada; e vi, claramente, que se haviam resolvido a dispor de mim
sem mim (1986, p. 51). Quanto a Teresa Margarida, outro foi o seu destino. Conhecera,
provavelmente nos “dias de grade” daquele convento, Pedro Jansen Moller, 10 anos mais velho,
por quem se apaixonara. Contrariados os planos paternos, que visavam concentrar a riqueza nas
mãos do filho varão ou a realização de algum casamento vantajoso, a história de amor terá um
final feliz pela transgressão da menina ao poder paterno. A autora tinha apenas dezesseis anos e,
demonstrando querer ser dona do seu destino, fez uma petição ao Patriarca de Lisboa legitimando
o casamento à revelia da família.
José Ramos da Silva, inconformado com o alvará de licença eclesiástica obtido
pela filha que se casou a 20 de janeiro de 1728, não aceitou as diligências conciliatórias do jovem
casal. Para padrinho do primeiro dos doze filhos de Teresa Margarida, foi convidado o pai; para
madrinha do segundo, a mãe Dona Catarina. Nenhum compareceu aos batizados, mas o pai não
deixou de assistir ao casal com elevadas quantias de dinheiro, queixando-se, contudo, do genro
arrivista e das atitudes da filha (cf.Ennes, 1947, p. 38, 423-8).
Conforme notícia publicada no Folheto de Lisboa, de 16 de dezembro de 1743,
morreu o pai da autora. Diversas petições existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, referentes
ao Maranhão, feitas por Pedro Jansen Moller dão conta das dificuldades financeiras em que a
família se encontrava para saldar dívidas contraídas para estabelecer uma serração de madeiras
em Icatu, comprada em 1739. Algumas são pedidos de moratória e o argumento recorrente é o
recebimento, em breve, da herança do sogro.
A morte do marido, em 1753, deixou-a numa delicada situação financeira e com
doze filhos para educar. Os processos movidos por Teresa Margarida, deserdada pelo pai, para
reivindicar a fortuna paterna arrastaram-se pelos tribunais. Feriam os interesses do irmão,
herdeiro universal, que alegava ter esta recebido em vida do pai somas ultrapassando
significativamente o que lhe caberia pela legítima.
Em 1770, por acobertar os amores de seu filho Agostinho, o mais novo da
numerosa prole, com Teresa Mello, da importante Casa dos Melo, Teresa Margarida foi presa no
mosteiro de Ferreira de Aves, a mando do Marquês de Pombal. O filho foi degredado para
Angola, a futura nora presa num convento, privada dos bens de família e desnaturalizada, isto é,
impedida de usar o nome de família. Terão os três que esperar a morte de D. José para que as
arbitrariedades cometidas pelo Marquês, parente de Teresa Melo, fossem remidas por D. Maria I.
Posta em liberdade em 1777, Teresa Margarida irá viver, em Lisboa, na companhia de seu
cunhado, o monsenhor e inquisidor Joaquim Jansen Moller. Morreu a 20 de outubro de 1793, em
Belas, onde está sepultada.
Apresentando as Máximas de Virtude e Formosura
As Máximas de virtude e formosura com que Diófanes, Clymenea e Hemirena,
Príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça foram publicadas em 1752.
A página de rosto atestava a autoria como sendo de Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira,
anagrama perfeito de Teresa Margarida da Silva e Orta. Em 1759, quando Barbosa Machado
publicou a Biblioteca Lusitana desfizeram-se as dúvidas. Diz o bibliófilo, no verbete referente a
Teresa Margarida:
Ornada de sublime engenho, e agudo entendimento fez admiráveis
progressos assim na Poética, como na Oratória. A instrução das línguas
mais polidas da Europa lhe fez patentes os mais delicados conceitos, que
felizmente praticou na seguinte obra, em que compete a discrição com a
elegância:
Máximas de virtude e formosura com que Diófanes, Climenéia e
Hemirena, príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da
desgraça. Lisboa, por Miguel Manescal da Costa, 1752, 8º.
Saiu com o suposto nome de Dorotéia Engrássia Tavareda Dalmira
(1759, vol. IV, 271).
O romance dividido em cinco livros, na primeira edição, introduzidos por um
sumário que antecipa os fatos a ser narrados, conta as desventuras sucedidas a Diófanes e a
Climenéia, reis de Tebas, e a sua filha Hemirena, após uma tormenta que desbaratou a esquadra,
na qual seguiam para Delos, onde se realizaria o casamento de Hemirena com Arnesto, príncipe
daquela cidade. Atacados e feitos prisioneiros pelos seus inimigos de Argos, são levados para
terra, separados e vendidos como escravos. A partir desse momento, sucedem-se as desventuras
do pai, mãe e filha. Maltratados como escravos, sofrem humilhações e perseguições, padecem
enfermidades, suportando estoicamente as provas por que passam. Nessa trama, destaca-se
Hemirena, personagem principal. A virtude inquebrantável, o amor e dedicação filial, a fidelidade
ao noivo, a sabedoria e a modéstia, a bondade e a caridade, associados à coragem e determinação,
são algumas das qualidades de Hemirena. Esta heroína, assumindo uma identidade masculina,
foge dos perigos, com que o amor ameaça a formosura (Orta, 1945, p. 37) e empreende a busca
dos pais para que, juntos, possam retornar à pátria. É sob o nome de Belino e uma persona
masculina que Hemirena reencontra os pais e o noivo que, disfarçado, saíra de Delos a procurála. Toda a teia romanesca se desenvolve a partir da ação de Hemirena/Belino, finalizando a
história com a volta de Diófanes e Climenéia a Tebas e o casamento de Hemirena e Arnesto. A
trama é pretexto para a defesa de princípios iluministas, entre os quais se destaca como guia de
comportamento para a educação das mulheres, elogio à vida natural e simples do campo,
preconizando a construção de uma sociedade onde os mestres deveriam ter regalias, isenções e
boa renda e na qual não se consentiria que houvesse escravos (Orta, 1945, p. 124 e 247), projeto
utópico para o Portugal do século XVIII e dos séculos vindouros.
A história da publicação
O romance veio a lume no ano de 1752. Nesse mesmo ano, como já referi, é
publicado Reflexões sobre a vaidade dos homens, escrito por Matias Aires, irmão da autora.
Enquanto o livro de Matias Aires teve todas as licenças, isto é, a do Santo Ofício, a do Ordinário
e a do Paço, concedidas respectivamente a 4 de maio, 5 de junho e 17 de junho de 1752, tendo
sido impresso na Oficina de Francisco Luís Ameno, Impressor da Ver. Fábrica da S. Igreja de
Lisboa, no mesmo ano, o livro de sua irmã havia demorado cerca de dois anos para ser publicado.
Matias Aires dedica a obra ao rei D. José, e talvez seja esse um dos motivos para a rapidez da
liberação.
Teresa Margarida deposita o livro, provavelmente, em 1750, pois a primeira das
licenças concedidas, a do Santo Ofício, é datada de 17 de novembro de 1750 e ultrapassa, assim
como as que se seguem, o tradicional laconismo dessas autorizações. O censor, Rodrigo de Sá,
declara:
Falo com experiência própria, porque principiando a ler este livro
obrigado da obediência, brevemente senti trocada a força do preceito
em atractivos da vontade, estimulando-me a prosseguir a leitura, não
tanto a superioridade do império, quanto a recreação do ânimo. Bem
empregado tempo em que a autora gastou nesta composição, e estudos
a ela conducentes (1752).1
Considera o censor também que devem subir de ponto os elogios desta Escritora,
por isso mesmo que nesta sua obra chegou com felicidade a tocar aquele subido ponto de acerto.
Os enaltecidos comentários terminam com a fórmula habitual, nada contém este livro contra a
nossa Santa Fé, e bons costumes, pelo que julgo por muitos títulos digno de estampa. Concedida
esta autorização, vai o texto para as mãos de Frei José de São Gualter Lamatide, Leitor Jubilado,
1
As licenças concedidas para a publicação do romance apenas integram as duas edições de 1752 e figuram em
páginas não numeradas.
qualificador do Santo Ofício, Consultor da Bula, e Examinador das Três Ordens Militares. E,
novamente, a autorização excede as tradicionais fórmulas. Ouçamos as palavras deste censor:
Não faltaram maldizentes, que chegaram a proferir, e se atreveram a
escrever, que as mulheres eram uns erros da natureza, e uns
indivíduos infelizes do sexo frágil; mas o certo é, que nas letras, e
armas, que são os dois pólos de toda a glória varonil, podem as
mulheres competir com os maiores homens do mundo, porque com
prudentes conselhos de mulheres se têm remediado desordens, que os
homens mais sábios não descobriram remédio.
E o censor, na continuação, cita os exemplos bíblicos de Sara, Débora, Éster e
Judite, dizendo ter sido essas mulheres libertadoras e restauradoras de suas pátrias, sendo
sempre mais valente o entendimento, que a espada. Como se pode ver, parece estarmos perante
uma defesa das mulheres, uma justificativa para publicação desta obra, pois Frei José entende que
à discreta obra desta autora erudita fica devedora o mesmo Paço, por ter nela documentos de
como se devem reger os Reinos, conservar os Estados, e aumentar os comércios. Palavras
surpreendentes estas, por acreditar-se, então, que os romances depois de terem tornado muitas
delas [mulheres] ousadas, tornavam-nas sagazes, chegando a defender que uma mulher não pode
estudar nem ler sem se tornar viciosa (Bosc, 1662. Apud Desaive: 1991: 313-4). Termina o
censor, desejando que a obra conserve na posteridade a fama de sua Autora, fato que hoje eu e
outras pesquisadoras damos testemunho.
Esta autorização foi concedida em Lisboa, a 21 de dezembro de 1750 no Convento
de São Francisco. Alguns dias antes, a 19 de dezembro de 1750, havia sido concedida a
autorização do Ordinário por Manoel Monteiro, Acadêmico do Número da Academia Real,
Árcade de Roma e Examinador das Três Ordens Militares. Este censor, à semelhança dos
anteriores, comenta a obra de forma bastante elogiosa, mas outro parece ser o seu objetivo.
Vejamos algumas passagens desta autorização:
Fiquei certificado com a leitura, que é todo da sua Autora,
circunstância tão rara e decorosa (...) que bastaria para singularizá-la
entre os Autores mais célebres das Ciências, e das faculdade, pois
muitos deles repetiram, como eco, parte do que disseram outros, que
primeiramente escreveram. (...) Não repete, como eco, o que já se
disse, tudo é com novidade. Não traslada os discursos estranhos,
escreve os seus naturalíssimos discursos. Não usa de conceitos alheios,
todos os de que usa são próprios.
Parece estarmos presenciando uma defesa avant la lettre do conceito de
originalidade que será tão caro aos românticos, pois o que a autora apresenta tudo é com
novidade. Esta justificativa é dada por um homem de autoridade, membro da Academia Real,
Árcade de Roma que advoga a erudição copiosa, conhecimentos de Ética, Filosofia, História
Eclesiástica e Profana, e Mitologia. A 5 de dezembro do mesmo ano, no entanto, Frei R. de
Lancastre Trigoso já autorizara que o livro fosse impresso, devendo voltar, como de praxe, para
ser conferido para se dar licença que corra, sem o qual não correrá.
A 10 de janeiro de 1751, é expedida a licença do Paço por Ignácio de Carvalho,
Cavaleiro professo da Ordem de Cristo e Acadêmico da Academia Real. E, desta feita, a defesa
do livro é enfocada por um novo viés, continuação do já anunciado por Manoel Monteiro. Para
Ignácio de Carvalho:
É uma história ideada, e semelhantes histórias são uns poemas
incompletos da espécie épica, pela falta do metro. Esta forma de
compor é tão antiga, que nas nações da Ásia lhe assinam o seu
princípio, dela passou aos Árabes, deles aos Espanhóis, e destes aos
Franceses, e ultimamente todas as nações políticas, e polidas a
estimaram, praticando-a, e com freqüente uso, com tantos séculos de
duração e com múltiplas composições.
Fazendo a defesa do romance e historicizando de forma imprecisa o seu
surgimento, julga este censor ser em Portugal indesculpável descuido, e culpável nota (...) [não
haver] tradução alguma destas histórias, ou alguma história semelhantemente escrita. A lacuna
existente nas Letras portuguesas, segundo este censor, é preenchida e superada pela autora, pois,
como nos diz: Não tem comparação esta história, os efeitos participam a natureza de suas causa,
como havia de deixar de ser única esta história em tudo, sendo em tudo única a sua Autora?
Ignácio de Carvalho parece também conhecer a autora que se escondia sob o
pseudônimo, pois, recorrendo à mitologia, afirma:
e quando quisesse encobri-lo, como Têtis a seu filho Aquiles, entre as
filhas de El-Rei Licomedes, ele, como Aquiles, inflamado do espírito
egrégio, que influi o ilustre nascimento, havia de descobrir quem lhe
dera o ser.
Tendo o casal Teresa Margarida e Pedro Jansen amigos influentes, entre os quais
se destacavam Alexandre de Gusmão - secretário de D. João V; Frei Manuel do Cenáculo Presidente da Junta da Providência Literária; Francisco Mendes de Góis - agente diplomático de
D. João V que acolheu o filho mais velho da autora quando este foi estudar em França; o Infante
D. Manuel – irmão do rei; freqüentaria, provavelmente, o Paço. É plausível que o censor
soubesse quem era a autora que se encobria pelo anonimato.
Vale a pena destacar que o romance deve ter sido entregue no Paço ainda em vida
de D. João V, isto é, antes de julho de 1750, já que inicialmente era dedicado à rainha mãe Dona
Mariana de Áustria ,conforme se depreende pelo texto de Frei José de São Gualter Lamatide,
qualificador do Santo Ofício. Sugere o censor na autorização datada de 21 de dezembro de 1750
que a autora deveria oferecê-lo à Sereníssima Senhora Princesa do Brasil. A escritora acata a
decisão do censor e o livro é oferecido à Princesa Nossa Senhora A Senhora D. Maria Francisca
Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana, a futura D. Maria I, então com 19 anos.
Assim, nada obsta para a impressão do livro, e em 19 de janeiro de 1751, é dada
ordem para que o livro seja impresso. Teria que voltar para ser taxado e entrar em circulação, mas
só no ano seguinte, passado um ano sobre a última autorização, vem o livro a público.
Em notícia publicada na Gazeta de Lisboa, número 28, de 27 de agosto de 1752,
entre outras notícias como a da viagem de D. João à Inglaterra, lê-se:
Também saiu à luz o livro intitulado Máximas de virtude e formosura,
obra discreta, erudita, política, e moral, em que a sua autora, se não
estrangeira ao menos peregrina, no discurso, e na elegância, imita ou
excede ao Sapientíssimo Fénelon na sua viagem de Telêmaco fazendo-se
digna das mais atenciosas venerações. Vende-se na loja de Francisco da
Silva de fronte de S. António.
O redator da notícia já havido lido o livro e estabelecia a comparação com o
romance de formação As aventuras de Telêmaco, escrito por Fénelon (1651-1715) que, nomeado
por Luís XIV, preceptor do duque de Bourgogne, neto do rei, para este escrevera em 1689 o livro.
O objetivo da obra era o de transmitir ao discípulo princípios fundamentais para bem governar,
denunciando, alegoricamente, valores vãos como o luxo e a pompa da corte do Rei Sol. Teresa
Margarida, no prólogo, diz ser impelida por o amor da honra, o horror da culpa, a inclinação às
ciências, o perdoar a inimigos, a compaixão da pobreza, e a constância nos trabalhos e ter
desprezado o medo de sua própria incapacidade. Diz a autora que é estrangeira e já ter visto
bastante para poder contemplar soberanas propriedades, assentando em que não há vapores tão
elevados, que possam formar sombras no Olimpo (Orta, 1945, p. 1). Ou seja, a formação
intelectual da escritora vinculava-se ao grupo dos “estrangeirados”, aos intelectuais que,
formados no estrangeiro ou por leituras, partilhavam os ideais do Iluminismo, rompendo o
isolacionismo e obscurantismo vigente em Portugal. Mas o sentimento de exílio que acompanha
todos os personagens do romance, provavelmente seja partilhado pela autora. Muitos dos
“estrangeirados” eram brasileiros, entre os quais, certamente, muitos sentiam-se como os que
estudavam em Coimbra e haviam escolhido para sua padroeira Nossa Senhora do Desterro.
Concluindo
O romance teve, certamente, uma boa acolhida dos leitores, pois parece ter-se
esgotado a primeira impressão rapidamente, já que, ainda em 1752, é reimpresso com uma errata.
Em 1777, surgem outras duas edições: uma intitulada Aventuras de Diófanes, imitando o
sapientíssimo Fénelon na sua viagem de Telêmaco, acusando a recepção crítica da obra, como se
pode inferir pela notícia publicada na Gazeta de Lisboa; outra cujo título Aventuras de Diófanes,
ou Máximas de virtude e formosura com que Diófanes, Climenéia e Hemirena, príncipes de
Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça mantém ainda vinculação com o título
original. Teriam as edições de 1777 sido custeadas pelo Paço, já que reinava D. Maria I a quem
tinha sido dedicado o romance? Em 1790, uma nova edição cuja folha de rosto estampava
Aventuras de Diófanes, imitando o sapientíssimo Fénelon na sua viagem de Telêmaco – por
Dorotéia Engrássia Tavareda Dalmira – seu verdadeiro autor, Alexandre de Gusmão. As edições
de 1777 e 1790 foram impressas na Régia Oficina Tipográfica. Protegeria a rainha a autora? Qual
seria a intenção de atribuir o texto a Alexandre de Gusmão? Em 1818, o livro é reeditado, mas
com mutilações. Passado quase um século de limbo, o romance é editado em 1945, pela Imprensa
Nacional do Rio de Janeiro, devido aos estudos do pesquisador Ernesto Ennes, descendente da
autora. Em 1993, no segundo centenário da morte de Teresa Margarida, saiu uma nova edição
desta vez pelos esforços da pesquisadora Ceila Montez.
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TECENDO A HISTÓRIA DAS MULHERES NO SÉCULO XVIII