Nelson Rodrigues
Nunca houve tamanha solidão na terra
Nunca houve tamanha solidão na terra
Nelson Rodrigues
RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben Hur. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p.103 - 106:
Nunca houve tamanha solidão na terra.
Comentário: Luís Augusto Fischer (UFRGS)
NUNCA HOUVE TAMANHA SOLIDÃO NA TERRA
(Texto publicado em 19 de março de 1969. Republicado na coletânea O remador de Ben Hur,
organizado por Ruy Castro)
Outro dia, aqui mesmo, dizia eu que São Paulo ou, mais precisamente, sua capital - não
tem horizonte. É o óbvio que ninguém vê, porque somos cegos para o óbvio. Mas reparem: - em
São Paulo o horizonte é uma parede e, depois, outra, mais outra, outra mais, enfim, dezenas de
paredes, como no soneto de Raimundo Correia. Eu não tinha percebido isso. Um dia, o meu
amigo Luís Eduardo Borghert veio ao Rio.
Diga-se, entre parênteses, que o Borghert vive em São Paulo, trabalha em São Paulo,
fatura em São Paulo. E são tais suas responsabilidades que não pode afastar-se uma polegada
do seu emprego. Já adquiriu, inclusive, o sotaque paulista. Até que, um dia, vou passando pelo
Leblon quando o vejo. Mando o táxi voltar. Eis o que, no primeiro lance, imaginei: - "Se o Borghert
está aqui é porque o despediram". A tarde caía, invisível, sobre tudo, inclusive o Borghert.
Salto do táxi, berrando: - "Como é, Borghert?". Virou-se e nos abraçamos, patéticos e
ululantes, como dois italianos de anedota. E, então, perguntei-lhe: - "Está fazendo o quê?".
Olhando fundo da tarde, disse apenas: - "Estou olhando o horizonte". Saíra de São Paulo, largara
responsabilidades, horários, fregueses, e tudo para ver um horizonte. A princípio, não entendi,
como, decerto, o leitor também não está entendendo. Mas ele explicou tudo.
Depois que se transferiu para São Paulo, ele começou a sentir uma falta desesperadora. E
não sabia de quê ou de quem. Era falta de algo transcendente, vital, insubstituível. Até que
descobriu o seguinte: - na capital paulista, o sujeito está sempre a cinco metros do horizonte.
Exatamente, uma profundidade de cinco metros. Por outras palavras: - o horizonte é uma parede.
Para onde se vire, há sempre uma parede. O Borghert, dentro ou fora de casa, na rua, ou
qualquer lugar, está entre quatro paredes fatais.
Um dia, não agüentou mais. Estava com um cliente importantíssimo no seu escritório.
Disse: - "Dá licença um instantinho. Volto já". Desceu, apanhou o automóvel e arrancou para o
Rio. Veio numa velocidade fulminante. Dirão que há horizontes na estrada. Mas era pouco para
seu apetite visual. Ele sempre achou que o horizonte marinho tem outra profundidade, sim, uma
profundidade espantosa. Pode-se perguntar: - "E por que não foi a Santos?". Porque profundo é o
horizonte do Leblon.
Estava, ali, na calçada, havia duas horas, tremendo de beleza. Vira-se para mim iluminado:
- "Agora posso voltar para São Paulo". Bem. Contei o caso do meu amigo. O que eu queria dizer,
em seguida, é que o brasileiro, em geral, é um povo sem horizonte. Tenho que explicar melhor.
Não falo do horizonte físico, mas do interior. Sim, falta profundidade ao nosso horizonte interior.
Por exemplo: - o carioca. É o homem de sua rua, do seu bairro, de sua cidade. Se me
perguntassem até onde vai meu horizonte interior, eu diria: - até Bangu. Pensar que existe algo,
além de Bangu, já me dá vertigem. Isso, eu. Os outros vão mais longe, porém não muito mais
longe. O horizonte interior do brasileiro não chega ao Amazonas.
Em várias "confissões", escrevi que a solidão do Amazonas é um crime de todos nós. Outro
dia, o Paulo Bentes clamava, estrábico de horror: - "O Amazonas tem menos gente do que
Madureira". Não sei se foi o Paulo Bentes que disse isso ou o Miguel Lins. Não, não. Foi mesmo o
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Paulo Bentes. Imaginem: - o Amazonas é um continente e perde em população para Madureira. E,
no entanto, há pior e, repito, há pior.
Vamos aos fatos. Ontem, fui apresentado a um rapaz magro, tímido, o rosto cravejado de
espinhas. Que ele fosse magro, ou tímido, não teria importância. Mas pergunto: - "Por que as
espinhas?". Sou homem de gerações passadas. E posso afirmar que, antigamente, todo mundo
tinha espinhas. Hoje quem as tem? Só o Oduvaldo Viana Filho. A pele do brasileiro atual é
admirável. E eu me espantei das espinhas que floriam do rosto do tal rapaz. Súbito, alguém
sussurra: - "É do Piauí".
O fato de ser do Piauí soou como uma explicação geográfica da timidez, das espinhas e das
canelas (canelas de Olívia Palito). Olhei o apresentado com uma curiosidade nova e aguda.
Enfim, eu encontrava, na vida real, um piauiense. Por um momento, deu-me uma vontade pueril e
terrível de perguntar-lhe: - "Quer dizer que o Piauí existe mesmo?". Conversamos alguns minutos
(eu estava magnetizado pelas espinhas). Até o fim, o rapaz teve um olhar súplice, infeliz, de quem
pede desculpas de não sei que faltas imaginárias. Por fim, despediu-se. Sua humildade era
irrespirável.
Mal o piauiense virou as costas, imaginei: - se o Amazonas tem menos gente do que
Madureira, que dizer do Piauí? O Piauí deve ter menos habitantes do que a praça Saenz Peña.
Diz a minha vizinha, gorda e patusca:
- "A gente vive aprendendo". Aprendi, numa simples apresentação, que o Piauí é
infinitamente mais abandonado do que o Amazonas. Este, na pior das hipóteses, é para nós um
sentimento de culpa. Sei que o Amazonas continua, no seu lugar, como um monstruoso túmulo
florestal ou fluvial, sei lá. Mas temos vergonha, remorso, de tal abandono. O próprio estado ainda
esbraveja, ainda esperneia, ainda reivindica, ainda pede verbas. Também se fala do Ceará, do
Rio Grande do Norte, Sergipe, Maranhão e Pará. A minha terra, Pernambuco, está viva. Tem
Gilberto Freyre.
Mas, e o Piauí? Nem uma palavra sobre o Piauí. Silêncio ensurdecedor. Eu próprio passo
dez anos, quinze anos, sem pensar no Piauí, e sem ouvir-lhe o nome. Alguém poderia dizer como
se falasse da Lua: - "Piauí não tem vida". Graças às radiofotos fazemos uma idéia de paisagem
lunar. Parece que lá em cima não há uma única e escassa lagartixa. Mas que noção temos nós da
paisagem do Piauí? Quero crer que estejamos rigorosamente convencidos de sua inexistência. O
silêncio que se faz sobre o Piauí é inédito. A única referência que temos, do seu povo e de sua
terra, é o "meu boi morreu". E o próprio estado, com um fatalismo bovino, não pede verbas, não
pede nada, não exala um protesto.
E o que mata é, justamente, a humildade. Dirão vocês que o Piauí tem a modéstia do
pequeno, sim, a modéstia do pobre. Já contei, aqui, o que ocorreu no Vaticano. Uma senhora
brasileira foi recebida pelo papa. Poucas palavras. Ao se despedir, Sua Santidade pediu, num
sussurro: - "Reze por mim". Podia ter essa humildade porque era o papa.
Agora mesmo, há o caso patético do Cinema Novo. O Rio é, como se sabe, a sede do
Festival Internacional do Cinema. Concentram-se aqui diretores, autores, astros de toda parte.
Trata-se de uma festa mundial. Que faz o Cinema Novo? Resolveu tratar o festival "com o mais
ultrajante desprezo, o mais feroz sarcasmo". E, portanto, age e reage como se ele, Cinema Novo,
é que fosse a potência esmagadora, e seus artistas os gênios, as celebridades, a promoção
mundial. Os idiotas da objetividade, que sempre os há, e sarcásticos, poderão ver, em tal
arrogância, um sintoma de paranóia. Não sou psiquiatra. E acho que devemos deixar a modéstia,
a humildade, para os Estados Unidos, a França, Itália, Japão. Nós precisamos de mania de
grandeza, e repito: - a mania de grandeza é o nosso único luxo de subdesenvolvido. E, seguindo o
estilo do Cinema Novo, o Piauí deve fazer pose de potência mundial.
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