DESTAQUE
Vingança
A controversa execução de Saddam Hussein
ou justiça?
texto Carlos Camponez foto Lusa
Se daqui a algumas décadas alguém,
sem conhecimento histórico, visionar as imagens sobre a execução de
Saddam Hussein, captadas por uma
câmara clandestina de um telemóvel, corre o risco de ver apenas um
homem prestes a enfrentar a morte
perante os insultos dos seus algozes,
cujo papel se assemelha mais ao da
execução de uma vingança do que do
cumprimento da justiça.
Independentemente da opinião que
possamos ter sobre a pena de morte,
todo o contexto que rodeou a execução, por enforcamento, de Saddam
Hussein é lamentável, ou mais não
seja, por meras questões utilitárias
acerca da oportunidade da execução
da sentença. A condenação que ditou
a morte de Saddam Hussein diz respeito apenas ao massacre cometido
contra 148 xiitas, em 1982, deixando
muitos outros por julgar.
Crimes por condenar
Dias depois da sua execução, em
Bagdade, retomava-se o processo destinado a apurar as responsabilidades
da campanha contra o povo curdo,
entre 1987 e 1988, que vitimou cerca
de 180 mil pessoas. Saddam, um dos
principais réus neste processo, nunca
poderá ser julgado por estes crimes.
Tal como não o será sobre a utilização
de armas químicas contra a população
curda de Halajba, cujas imagens correram o mundo. Nem tão-pouco sobre
o esmagamento da revolta xiita no sul
do Iraque, em 1991, após a Guerra do
Golfo. Com a morte de Saddam, milhares de pessoas ficaram definitivamente
sem poder saber do paradeiro de familiares, desaparecidos após a sua detenção, do tratamento dado aos opositores
políticos, da localização de supostas
valas comuns escondidas em solo iraquiano ou ainda da razão por que elas
próprias foram detidas e torturadas.
A simples ideia de que Saddam terá
sido executado, de forma apressada,
às mãos de xiitas e por crimes contra xiitas, é já, por si, uma memória
honrosa para um ditador que já não
poderá ser pessoalmente confrontado
pelas vítimas e pelas testemunhas
que sobreviveram à natureza do seu
regime e dos seus actos. Mas, sobretudo, este cenário está longe de corresponder às necessidades de pacificação do país, no quadro da actual
guerra civil, onde as divisões entre
sunitas e xiitas aparecem como uma
forte componente do problema.
História por contar
Mas existem ainda outras questões
importantes que poderiam entrar
em linha de conta para evitar este
acto precipitado de levar Saddam
Husseim ao cadafalso. Com a sua
morte, são inúmeras as situações que
ficarão por esclarecer relativamente à história do Iraque e à história
mundial, desde a guerra irano-iraquiana, à invasão do Koweit, à Guer­
ra do Golfo ou aos acontecimentos
Com a sua morte, são inúmeras as situações que ficarão por esclarecer relativamente à história do Iraque
e à história mundial
FÁTIMA MISSIONÁRIA
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Edição LIII | Fevereiro de 2007
Saddam Hussein
que conduziram à intervenção britânica e norte-americana, em 2003.
Os acontecimentos pouco dignos
que rodearam a morte de Saddam
Hussein vêm provar que julgamentos com a importância daqueles que
estão ainda em curso no Iraque deveriam ser efectuados em condições de
serenidade e independência que o
Iraque muito dificilmente conseguirá garantir, dadas as circunstâncias
políticas em que se encontra. E este
é, sem dúvida, um dos argumentos a
favor da existência do Tribunal Penal
Internacional, organização criada em
1998, em Roma, e que os Estados
Unidos se recusam a reconhecer.
Na sessão do tribunal que o condenou
à pena capital, Saddam Hussein disse
que a sentença o transformaria num
mártir. Na altura, as suas palavras
pareciam um argumento desesperado
de quem não tinha mais nada para
dizer. Mas, lamentavelmente, há quem
se esforce para lhe dar razão. Perante
as condições em que o país caiu – a
guerra civil, o número de mortos, a
situação económica e social, a fuga da
população para o estrangeiro –, não
deixará de haver entre os iraquianos
quem procure pesar o que é hoje o
Iraque e o que ele foi com Saddam
Hussein. E esse é o pior dos balanços
que se poderá fazer dos últimos três
anos de guerra no Iraque e à memória
histórica de Saddam.
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Com a sua morte, são inúmeras as situações que fica