JOSÉ
DAMAS
CENO
CENO
DAMAS
JOSÉ
O presságio seguinte
(experiência sobre a visibilidade
de uma substância dinâmica),
1997 (detalhe)
A REALIDADE, OU O QUE SE
CONVENCIONOU CHAMAR DE
REAL, POSSUI UM SEM-NÚMERO DE
E S T R ATO S , C A M A D A S , D I M E N S Õ E S ,
D E N S I D A D E S , E S TA D O S ,
POROSIDADES E CANAIS.
UN ALTRO ATTIMO
Poderíamos imaginar o fluxo de seiva no interior
de todas as plantas, por toda parte ao mesmo tempo, neste momento… ou ainda a circulação sanguínea humana presente no mundo inteiro durante
um intervalo de apenas três horas. Acompanhar a
trajetória de alguma cédula, arbitrariamente escolhida, através das inúmeras negociações e, a partir deste rastreamento, possivelmente encontrar
um desenho incomum. Poderíamos relativizar o
funcionamento dos carros no mesmo instante em
que se acende a luz de casa, intuindo o caminho e
a presença da eletricidade necessária e do combustível deslocando-se entre os motores e suas engrenagens. Ou conceber todas as ligações telefônicas,
agora. Ou transações financeiras, computadores
conectados, pessoas trabalhando, conversando,
brigando, rindo, em diferentes línguas e códigos.
Ou ainda reconhecer analogamente o movimento
de todos os tipos de peixes e criaturas aquáticas diferentes pelos oceanos e profundezas. A realidade,
ou o que se convencionou chamar de real, possui
um sem-número de estratos, camadas, dimensões,
densidades, estados, porosidades, canais, com uma
brutal complexidade estrutural que se move, que
cresce e se modifica segundo outro imenso univer-
so de pontos de vista distintos. Por algum motivo,
penso na existência de uma população de imagens
que habitam e sobrevivem em todos nós. Desta
forma, a nossa própria imagem, por exemplo, habitaria, em “diversas” versões, a imaginação e a
memória daqueles que nos conhecem. Seria uma
estranha população de nós mesmos. Se multiplicarmos este fato por toda a gente à nossa volta,
levando em consideração não apenas as pessoas,
mas também os objetos, leis, procedimentos, lares,
cidades, ruas, estradas, caminhos e, por extensão,
lembranças, amores, relatos, comportamentos, talvez nos aproximássemos de uma espécie de realidade imaginária impressionante, o que nos levaria
a supor a possibilidade de podermos caminhar
entre esta zona sutil de aparência volátil, mas extremamente concreta em sua presença; densa em
sua viscosidade imagética. Um hábitat constituído
de infinitos mundos que se interpenetram num
curioso entrelaçamento, superfícies que se dobram, se tocam, em perpétuas torções consecutivas
que, na verdade, são rios, afluentes, fontes e cabeceiras psíquicas que fluem e deságuam incessantemente sobre oceanos espirituais, com suas correntezas, marés, calmarias, ondas e tempestades.
Esta paisagem pode ser vislumbrada subitamente
quando se anda em um bairro populoso de alguma
grande cidade... cada apartamento, edifício, quarteirão abriga milhares de vidas, estórias, paixões,
sonhos, ideias, misérias, tragédias, ódios, alegrias.
São pensamentos e ações que se organizam num
complexo caos vivo, repleto de desejos, sentimentos, de movimento, enfim. Creio ser absolutamente
fascinante viajar através destes lugares e descobrir
a associação de elementos disparatados que de
uma maneira estranha se aproximam. E perceber
uma chance de derramar nossa identidade, dissolvendo-a no cosmos, tentando afirmar e ver as
contradições, incongruências e conflitos que nos
configuram neste mundo, ou apenas gozar o simples fato de estarmos imersos numa circunstância
completamente alucinatória e maravilhosa, numa
tal substância a que chamam vida e que o contato
com ela alguns chamam arte.
José Damasceno
Publicado em El final del eclipse. El arte de América Latina en
la transición al siglo XXI. Fundación Telefónica, Madri, 2001.
Nasceu em 1968 no Rio de Janeiro, Brasil. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.
O presságio seguinte (experiência
sobre a visibilidade de uma
substância dinâmica), 1997
Manequim, tecido e corda
Aprox. 660 cm de comprimento e
170 cm de diâmetro
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José Damasceno