Temos que construir uma ciência tropicalj Almanaque Brasil
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(:alttas dos teitOl-rs
• Papo-Cabeca
MIGUEL NICOLELIS
Temos que construir uma ciência tropical
{março de 20IO}
Ele é um dos mais importantes cientistas do mundo. Mas, quando começou a despontar no
cenário internacional, as coisas não eram bem assim. Enquanto especialistas ganhavam prêmios
Nobel descrevendo características de neurônios isolados, Miguel Nicolelis batalhava para provar
que a ciência estava equivocada. De lá pra cá, estimulou bigodes de rato, ensinou macacos a
jogar videogame e revolucionou a neurociência, mostrando que os princípios funcionais das
populações neurais têm tudo a ver com futebol. Como resultado, seus estudos estão prestes a
possibilitar a cura do mal de Parkinson e que paralíticos voltem a andar. Mas ele não se
contenta. Arranjou tempo e disposição para instalar no Rio Grande do Norte um projeto que
pretende transformar a região numa espécie de Vale do Silício da neurociência, com centros de
excelência em atendimento, ensino, pesquisa e desenvolvimento industrial. E quer replicar o
modelo pelo País. "Não dá para desperdiçar o talento intelectual de 190 milhões de pessoas. "
ocê costuma usar imagens inusitadas, por vezes
líricas, para defender seus pontos de vista. Quanto há de poesia na ciência?
A ciência é muito poética. A maioria dos pesquisadores não se sente bem escrevendo de uma
maneira mais lírica o que eles fazem. Eu me sinto muito bem. A ciência é uma forma de ler a
natureza. Tem gente que lê a natureza com religião, com dinheiro, de várias maneiras. A ciência lê
a natureza de um jeito poético. Mas ela usa métodos quantitativos. Não tem muito lero-Iero no
método científico. O que é proposto tem de ser provado.
Alguém já havia escrito sobre jogadas de futebol na Nature?
Provavelmente não. Essa é uma das revistas em que qualquer cientista sonha publicar artigos. É
uma das mais antigas e de mais prestígio na área. Em 2000, me pediram um artigo sobre a
interação cérebro-máquina para um dos primeiros encartes da revista acerca do que o futuro da
ciência iria trazer. Para ilustrar sobre o que eu falaria, decidi descrever o contexto do estádio
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Azteca no primeiro gol da final da Copa de 1970. Quando o Rivellino levantou a bola para a área,
depois de uma cobrança de lateral de Tostão, a torcida já começou a se levantar. Afinal, na frente
de um coitado chamado Fachetti, o defensor italiano, subia um cara chamado Pelé. Do outro lado
do estádio a torcida deve ter visto a cara de desespero do ~oleiro Albertosi. Com a bola ainda
viajando para a cabeça de Pelé, a torcida já estava de pé. E isso também o que o cérebro faz:
planeja o movimento, a ação e também a expectativa do resultado futuro. Ele é o modelador do
futuro. Evidentemente, depois dessa introdução, o resto era estritamente científico. Mas fiz
questão de escrever para o editor: "Do terceiro parágrafo pra baixo você pode mudar o que quiser.
Os dois primeiros são inegociáveis". E ele publicou.
Você pretende usar imagens como esta nos próximos trabalhos?
Para um artigo que estou preparando agora, vou usar o último gol dessa mesma partida, do Carlos
Alberto. É o gol mais impressionante da história do futebol, principalmente por ter sido feito em
uma Copa do Mundo. Tostão rouba a bola na área brasileira, passa para o Piazza, que entrega para
o Clodoaldo. Clodoaldo dá para o Pelé, que olha para um lado e devolve para o Gérson. Gérson
rola para Clodoaldo, ele dribla quatro italianos e entrega para Rivellino que, já morto de cansaço,
passa para o Jairzinho. Jairzinho dribla um cara e, quando vai perder a bola, dá de bico de pé para
o Pelé, na porta da área. Um bilhão de pessoas assistindo ao jogo - inclusive eu, ainda molequeachava que o Pelé iria em direção ao gol. Mas ele para a bola num pé, deixa ela ir para o outro.
Olha pra frente. O Tostão aponta, desesperado, que o Carlos Alberto estava passando. Pelé não
olha. Há 10 anos ele jogava com o Carlos Alberto; não precisava vê-Io. O cérebro dele sabia que o
Carlos Alberto viria com tudo. E Pelé dá um tapa para a direita na bola, que, por um defeito do
gramado, dá uma levantadinhajusto no momento do chute. Carlos Alberto pega ela no ar, de
chapa. A bola vai feito um foguete para o gol. É um exemplo de como o cérebro funciona.
Ninguém explicaria esse gol falando de jogadores individualmente. A jogada é uma propriedade
que emergiu da colaboração dos jogadores. Um gol igual nunca vai sair de novo. No cérebro
acontece o mesmo. A combinação de como os neurônios participam para gerar um comportamento
ocorre muito provavelmente uma só vez na vida.
Os ratos foram importantes para suas pesquisas, não?
Hoje eu não sou mais, mas por 10 anos fui o maior especialista do mundo em estimular bigodes de
rato. Claro, tudo cientificamente. Eu era o único que conseguia fazer os ratos ficarem quietos,
olhando de frente para mim. Eles possuem 31 vibrissas de cada lado. A gente aparava os bigodes
em ângulo, para eu poder acertar cada um deles com a sonda que usávamos. Passei 10 anos da
minha vida fazendo isso ... Uma vez, na escola do meu filho, a professora perguntou a profissão
dos pais. Uma criança falava: "advogado". A outra: "geólogo". Quando chegou a vez de meu tilho
responder, ele não teve dúvida: "neurocirurgião de rato". Fiquei instantaneamente famoso na
escola. A molecada queria saber em que lugar eu tinha estudado para me tornar "neurocirurgião de
ratos" .
o que você
alcançou com essa especialidade?
.
O objetivo era aferir qual vibrissa tinha sido estimulada, por meio da atividade elétrica do cérebro
dos ratos. E conseguimos. Publiquei o trabalho na revista Science e foi um deus nos acuda. Numa
experiência posterior, em vez de por a língua pra pegar água, tinha um bracinho mecânico que
buscava água num bebedouro para o rato. No começo ele tinha que fazer isso apertando uma barra
com a pata. Depois, ligamos sua atividade cerebral com o braço mecânico e desligamos a barra.
Quando ele a apertava, não acontecia nada. Até que, de repente, o bicho chegou à conclusão de
que algo estava errado. Parou. Provavelmente pensou. Aí o robozinho foi lá e trouxe a água.
Estava realizado o sonho de todo s~r humano: ganhar uma recompensa sem esforço algum.
Qual foi a repercussão?
Foi um estardalhaço no mundo inteiro. Mas não paramos. Começamos a treinar a macaca Belle
para realizar uma série de movimentos. Num primeiro momento, com um joystick; depois sem.
Tudo em troca de um suco de laranja, que ela adorava. Um dia deu certo. Belle pensou, a atividade
elétrica do cérebro foi registrada, decodificada num algoritmo muito simples e transformada num
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código digital que disparou o movimento de um braço mecânico. Gosto de dizer que este foi o
primeiro momento em que um cérebro de primata se libertou de seu corpo.
A esperteza de uma macaca mudou o rumo da ciência contemporânea?
De certo modo, sim. Quem fechou o ciclo foi a Aurora, que ensinamos a jogar uma espécie de
videogame com um joystick. Toda vez que ela acertava um alvo, ganhava uma recompensa. Um
dia tiramos o joystick, ligamos a interface cérebro-máquina e ela passou a comandar uma mão
robótica que manipulava o joystick em uma outra sala, enquanto via o jogo diante dela, numa tela.
Agora ela comandava o jogo apenas com a mente. Ficou uma hora jogando sem se mexer. No
momento em que fez isso, Aurora mudou completamente.a neurociência.
Daqui a quanto tempo você acredita que essa tecnologia poderá ser utilizada por humanos?
Meses atrás, um robô lá no Japão andou, sem nada a segurá-lo, comandado pela Aurora. O mal de
Parkinson e os problemas de locomoção talvez sejam as coisas mais possíveis de serem
combatidas num futuro próximo. Trabalhamos num horizonte de 5 a 10 anos. Pode ser mais rápido
ainda, dependendo de outras tecnologias. Estamos construindo um consórcio mundial chamado
Walk Again (Andar de Novo, em português). A isso eu gostaria de me dedicar nos próximos anos,
com grupos na Europa, Estados Unidos e Brasil.
distância entre o universo científico e a sociedade
brasileira te incomoda?
As facuLdades por muito tempo mantiyerani a tradição de suas origens, nos mo~teiros da Idade
Média, dissociadas da realidade. Num país como o nosso, com um potencial humano e natural tão
grande, isso é inaceitável. Temos hoje a chance de liderar as indústrias que vão mudar o século 21.
Aqui há energia renovável, fitoterápicos, controle do clima, formas sustentáveis de
desenvolvimento, produção de alimentos. São as grandes áreas em que o mundo vai se concentrar
daqui pra frente. A ciência tem um papel vital nesse processo. As pessoas precisam dominar a
ciência a fim de enfrentar questões fundamentais para o futuro da democracia que estamos
construindo. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos. A política do futuro estará cada
vez mais imersa em questões científi~as.
Você acredita no potencial da ciência brasileira?
Temos um talento intelectual de 190 milhões de pessoas que não pode ser desperdiçado. Talvez
haja milhões de mentes brilhantes que se apaixonariam pela ciência e contribuiriam para a ciência
nacional. Se concentramos 70%, 80% da produção científica no estado de São Paulo, estamos
alijando dezenas de milhões de mentes que de alguma forma poderiam se transformar em
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geradores de conhecimento, e não de consumidores de algo pronto. A ciência tem que ser
desmistificada como algo que só os eleitos podem fazer. O Brasil está cheio de gente para
construir uma ciência tropical. Não seria um modelo norte-americano, um modelo europeu, mas
um modelo nosso.
Como está estruturado o Instituto Internacional de Neurociências de Natal, que você criou?
Atendemos mil crianças de 10 a 15 anos, paralelamente a suas atividades escolares regulares. É
um outro conceito de escola. Quando o presidente Lula esteve lá, perguntou a uma das meninas o
que ela achava da escola. "Que escola?", ela respondeu. Além disso, damos atendimento na área
médica e formamos um importante centro de pesquisa em neurociência. Isso tudo em Natal e em
Macaíba, uma pequena cidade do Rio Grande do Norte, estado que tem a pior rede de ensino
público do País. Pretendemos mostrar que a ciência pode ser um importante agente de
transformação social.
Como funcionará o chamado Campus do Cérebro?
Ele está sendo construído em Macaíba. Terá 25 laboratórios voltados aos estudos da neurociência
e uma escola de ensino regular onde serão atendidos mil estudantes, do berçário ao ensino médio,
em período integral e gratuitamente. No futuro, lá teremos graduação e pós-graduação.
Trabalhamos também para a criação de um distrito de pesquisa industrial como Paio Alto, na
Califórnia. A ideia é gerar o produto final, econômico, da ciência, de tal modo que possa
autossustentar e gerir toda essa atividade social e de pesquisa básica. Esse é um quarto nível que
ainda não começamos. Brinco que essa seria a demonstração de que o Nordeste pode ser a
Califórnia brasileira. Na verdade, acho que, diante das nossas oportunidades, podemos ser muito
melhores.
É possível conciliar em sua vida profissional o empreendedorismo social e a alta ciência?
Gosto muito de fazer ciência do jeito que faço. E descobri um outro nicho: mostrar como o
método científico e a prática da ciência podem escapar do laboratório e ser usados amplamente
pela sociedade. Acredito que as duas coisas podem perfeitamente ser conciliadas. É complicado,
dá trabalho, mas ambas vão fazer parte da minha vida até o fim.
Enfim, o que é ser cientista?
As pessoas não costumam compreender isso muito bem, mas ciência não é "Eureka!" todo dia,
não é gente andando de jaleco branco com fórmula matemática na cabeça. É uma rotina muito
dura, pesada. É uma vida dificil. Mas é algo que em um minuto pode mudar o mundo.
VOCÊ PODE AJUDAR
Para saber como contribuir financeiramente para os proietos do Instituto de Neurociências de
Natal. acesse o site: www.natalneuroscience.com
João Rocha Rodrigues
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Tags: ciência, Miguel Nicolelis, neurociência, Parkinson
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