FRAGMENTOS DE MEMÓRIA
O CARTÃO-POSTAL: A FEBRE E O FASCINIO NO INICIO DO
SÉCULO XX
Autor: SOTILO, Caroline Paschoal. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e doutoranda no Programa de Comunicação e
Semiótica da mesma instituição. E-mail: [email protected]. Trabalho apresentado para o
Grupo Temático História da Mídia Visual.
Resumo: Este artigo propõe refletir sobre um tipo de comunicação muito utilizado no
início do século XX: o cartão-postal. Um suporte no qual a imagem foi trabalhada nas suas
mais diversas formas, sendo uma delas, pouco conhecida nos dias de hoje, o
“fotojornalismo” e o cinema. Isto é, o cartão enquanto “divulgador de noticias”, com
imagens de guerras, postais, enchentes, reportagens e do outro, o cinema, nas
representações, sobretudo, amorosas, com encenações, movimento, captando a magia dos
primeiros anos do século XX. Tais representações vão para além do papel narcisistico do
postal, demonstrando a sua diversidade informacional, bem como a sua contribuição para o
imaginário da época, tornando-se assim uma rica fonte de pesquisa e de memória/cultura.
Palavras-chave: Mídia visual, Imagem-postal, Memória e Comunicação.
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... que enriqueça rapidamente o álbum do viajante e restitua a seus olhos
a precisão que faltaria a sua memória (...)(Baudelaire)
... E surgiram os cartões-postais de toda sorte, com os desenhos os mais
extravagantes e com os dizeres os mais esquisitos.(...) Como
complemento (...) vieram os álbuns para os colecionar e daí os
colecionadores, que nunca acham dificuldades para completar as suas
coleções, solicitarem de todo o mundo a honra de lhes mandar um
cartão-postal para enriquecer seus álbuns. (Hermeto Lima, Revista da
Semana, 15/02/1930)
Berlim 27. IV. 1931
Mário, você não pode imaginar o que acabamos de ouvir: ‘6.Sinfonie
Konzert’ de Paul Hindemith, für Klavier, Blechbläser und Harpen.
Fatura moderníssima. Kolossal, formidável. E a IX de Beethovem,
dirigida pelo mais querido regente de Berlim – Otto Klemperer.
Completa. Coro e orquestra da Filarmônica de Berlim. A toda hora
dizemos: Ah! O Mário aqui... Saudades.
Osório Saudades Tarsila. (Grifo nosso. MORAES, 1993, p. XVII)1
1
A saudade é um dos temas mais abordados nos cartões. Aqueles que o utilizam evocam esse sentimento a
todo o momento: “gostaria que estivesse aqui”, “saudades”, “lembrei-me de você”, “não poderia me
esquecer...”. Continuamos a perpetuar esses laços, seja pelos cartões, por e-mail, por mensagens enviados no
Sob o signo da modernidade, a fotografia tornou-se não somente uma febre, no que
diz respeito ao seu consumo, mas um agente dinâmico e transformador no modo de ver e
interagir com o mundo2. Imagens estas que fascinavam e se tornavam cada vez mais
presentes em nosso cotidiano, possibilitando o seu desdobramento tanto em álbuns de
família, como nos meios de comunicação, desde a propaganda até o cinema, promovendo
assim, segundo o pesquisador Rubens Fernandes, “o maior impacto na história das
iconografias do século XIX, e provocou uma verdadeira revolução na questão da
representação” (p. 17).
Representação esta que ganhou novos contornos com o advento do cartão-postal.
Uma forma de comunicação que surge no final do século XIX e início do XX,
possibilitando a mensagem rápida, a correspondência, o viajar por novos mundos, conhecer
terras distantes, aproximar corações apaixonados, a saudades, enfim a imagem reproduzida
em exaustão, uma febre em todo o mundo3.
celular, por telefone etc.
2
O que não significa pensar a importância da imagem somente a partir da fotografia, ao contrário, ela sempre
esteve presente, desde os registros nas cavernas, como na pintura, nos pergaminhos, na Idade Média ao ser
utilizada para narrar a história do cristianismo etc. No entanto, a fotografia incorpora um processo inovador
no que diz respeito à reprodução da imagem em série, tão bem analisada por Benjamim, tornando-se assim
ainda mais popular e presente em nossa vida.
3
Segundo o pesquisador Pedro Karp Vasquez, no livro Postaes do Brazil, o cartão-postal nasceu, na segunda
metade do século XIX, “graças” ao austríaco Emmanuel Hermann (1839-1920), que publicou, a 28 de janeiro
de 1869, o artigo “Acerca de um novo meio de correspondência”, “sugerindo às autoridades de seu país o uso
postal de cartões abertos. Sugestão acatada e posta em vigor a partir do dia 1º de outubro do mesmo ano, com
um sucesso que superou até mesmo as mais delirantes expectativas: somente nos três primeiros meses iniciais
foram vendidos 2.926.102 cartões-postais no império austro-húngaro, com esse número ultrapassando a casa
dos 10 milhões de unidades antes de findo o primeiro ano de existência da novidade”. (2002, p.25) Contribuiu
para tal sucesso as inúmeras guerras e conflitos da época, possibilitando aos censores o acesso à mensagem
veiculada. Outro nome que aparece na história dos postais é o de Heinrich Von Stephan (1831 – 1897),
funcionário do correio alemão, quando em 1865 propôs na Conferência Postal Germano-Austríaca, a
utilização de um cartão no formato aproximado dos envelopes então em uso, já com selo impresso, o anverso
reservado para o endereçamento e o verso destinado à correspondência. (p.28) Não podemos nos esquecer que
os postais ainda não possuíam qualquer gravura, exceto as armas imperiais, sendo que uma das faces
destinava-se à mensagem, reservando a outra exclusivamente para o endereço.
Além disso, a reforma do sistema postal, sua modernização e organização, são essenciais para o crescimento
dos postais, além das técnicas de impressão da imagem e das técnicas fotográficas. A mais importante
inovação, no que diz respeito ao correio, foi o peso como valor padrão de cálculo para o preço ao invés da
distância percorrida; propunha-se também que o valor fosse pago não mais pelo destinatário, e, sim, pelo
expedidor no ato da postagem (selo). Assim, “a postagem custava a metade do valor de envio de uma carta
simples e o postal vinha grátis, isto é, incluído no preço do selo nele estampado” (Antonio Miranda. O que é
Cartofilia, p.13)
Assim, ampliam-se os ateliês fotográficos4, bem como os fotógrafos itinerantes,
cada um tentando abarcar e agradar a esse novo público que vem se constituindo desde as
primeiras décadas do século XIX e que vem rumando ao século XX ávidos pela
multiplicidade de imagens, tornando-se segundo Vilém Flusser, “o primeiro objeto pósindustrial em que o valor se transferiu do objeto para a informação”.
Diante disso, o cartão tornou-se um poderoso aliado na difusão da imagem
fotográfica em seu momento de massificação, ou seja, “democratiza” 5 / populariza a
imagem (associada a uma mensagem verbal), pois possuía em sua época uma qualidade
gráfica superior a dos jornais, além de economicamente acessível, uma comunicação barata
e que se tornou uma mania até meados de 19306, em todo o mundo, em especial na Europa.
No sexênio 1907/1912, segundo as estatísticas oficiais, o correio coletou, em todo
o Brasil, 57.876.202 cartões-postais e distribuiu 81.963.858. Somente em 1909,
recolheu cerca de 15 milhões e entregou outros tantos, em um país de população
ao redor de 20 milhões de habitantes. Tais números refletem mais o apelo
intrínseco dos cartões, do que o cumprimento de suas funções de meio-prático de
correspondência (BELCHIOR, s/n in O rio de Ontem no Cartão-Postal 1900-1930)
Reflexo de um período em que “tudo” se convertia em imagem, no qual o cartãopostal foi um importante portador, sendo que no início de seu advento uma das partes era
reservada ao endereçamento e a outra à mensagem. Com a introdução dos primeiros cartões
ilustrados, a imagem dividia espaço com a mensagem, enquanto a outra face era destinada
ao endereço, no entanto, cada vez mais a imagem é incorporada no postal ocupando assim
uma das faces, em sua totalidade, firmando-se como frente, sendo o endereço e a
mensagem como verso. Com toda a euforia de um período, a imagem foi ganhando espaço
e importância7.
4
Agrega-se a esse cenário a introdução no mercado das maquinas Kodak em 1888, favorecendo a atividade
fotográfica amadorística, vindo a diversificar a atividade do fotógrafo que vem a expandir para além da
produção de retratos.
5
Termo muito evocado em artigos sobre o tema, elaborado e defendido por pesquisadores e colecionadores.
6
No Brasil a produção de cartão-postal ilustrado pode ser dividida em três fases: o primeiro período a “Idade
de Ouro”, época em que seu consumo era efervescente, durando até meados da década de 1930, e eram
produzidos em litografia e fototipia; o segundo período, de meados de 1930 até o fim da década de 1950, foi
demarcado por sua queda e empobrecimento da imagem, caracterizado pelos cartões fotográficos; e o terceiro
período, de 1960 até a atualidade com a produção de postais em off-set, sendo que a partir de 1980, o cartão
retoma o seu crescimento.
7
Segundo o cartofilista Elysio Belchior, “precisar qual o primeiro cartão ilustrado com gravura, em geral
litografada, ou procurar identificar aquele a quem se deve a sua introdução, é reavivar controvérsia até agora
não dirimida. E o será algum dia? (...) Apesar de algumas indicações sobre a existência de cartões-postais
À medida que foram surgindo os primeiros postais ilustrados do tipo ‘Gruss aus’
na Alemanha na década de 1890 – logo seguido por congêneres como os ‘Souvenir
de...’, franceses, ou os ‘Ricordi de’, italianos, e o ‘Greetings from...’, ingleses -, a
imagem foi ocupando área cada vez maior de uma das faces... (VASQUEZ, 2002,
p. 35)
A produção e o uso dos cartões vieram a intensificar com os novos processos
técnicos que permitiram a reprodução da fotografia, além da liberação do correio a
impressão destes postais por particulares, deixando de lado o monopólio de sua edição. O
governo brasileiro, em 14 de novembro de 1899, liberou a produção e a inclusão de
ilustrações nos postais pela industria privada.
Inicialmente eram confeccionados usando-se de técnicas artesanais de impressão
como estampas e gravuras (ponta-seca, buril), o que o tornava um artigo de consumo caro,
mas, com o desenvolvimento dos processos de reprodução de imagens derivados da
fotografia, houve um aumento das tiragens, possibilitando uma qualidade gráfica superior e
a diminuição dos custos, contribuindo assim para a sua popularização8.
Tal facilidade se dá, sobretudo com o surgimento, em meados da década de 1900,
do papel fotográfico industrializado no formato de cartão-postal, impresso no verso o local
para o endereçamento e colagem do selo. Com isso, não somente as casas litográficas como
também os fotógrafos das pequenas (e grandes) cidades, amadores, poderiam eternizar e
divulgar imagens diversas, no qual é possível encontrar imagens de todo canto do país,
eventos locais, ruas desconhecidas, enfim pequenos retalhos que constituem a memória
visual do país9.
impressos com gravuras anteriores a 1870, o mais plausível é que tenham surgido nesse ano, a partir dos
discutido cartões de Leon Besnardeau, editados durante a guerra franco-alemã e, do ‘Feldpost
Korrespondenzkarte’ germânico, também de 1870”. (BLECHIOR in O Rio de Ontem no cartão-postal 1900 –
1930, BERGER)
8
Não podemos nos esquecer que a evolução do cartão-postal é fruto da evolução do sistema de correio, além
das técnicas de impressão da imagem e das técnicas fotográficas. O sistema de correio permitiu a circulação
de uma correspondência aberta e com um preço inferior as cartas fechadas, estimulando ainda mais o seu
consumo. Além disso, o correio liberou a impressão dos postais por particulares, sendo as casas litográficas as
primeiras a se dedicarem a essa atividade.
Em relação ao desenvolvimento das técnicas de impressão, foram utilizadas na produção do cartão-postal,
num primeiro momento, a litografia para impressão monocromática, que poderia ser P&B, em cor verde ou
em tom de sépia, posteriormente a impressão evoluiu para a fototipia e num segundo momento para o cartão
fotográfico, chegando ao off-set.
9
No decorrer da pesquisa de campo muitos postais deste tipo, sem referência do fotógrafo e muito menos da
localização da imagem, foram encontrados.
Este aspecto é extremamente pertinente para refletirmos a popularização e a
facilitação que se dá com o advento de novos materiais e técnicas de impressão, tornandose acessível à reprodução de imagens. Além do registro encontrado de caráter factual,
como, por exemplo, enchentes registradas em alguns postais do Brasil, bem como as vistas
de cidades que saem do circuito das capitais. A necessidade de informação visual vai
corresponder a outros meios de comunicação que surgirão e se intensificarão mais adiante,
como: os jornais e sua variedade ilustrativa, revistas, cinema, a televisão, a Internet etc.
Tal fase eufórica dos postais foi descrito por Ado Kyron, que publicou em 1966 um
álbum intitulado “L`age d`or de la carte postale”, como a idade de ouro do cartão-postal
que começa, segundo ele, em 1895 e logo toma conta do mundo, sendo o seu “pleno
esplendor” de 1900 a 1925.
Do modesto veículo de correspondência que era o cartão-postal na sua introdução
no início da década de 1870, às sofisticadas edições do século XX, um salto maciço de
consumo em toda parte do mundo foi observado (KOSSOY, 2002), proliferando um meio
de expressão e correspondência, e também objeto de coleção de destaque nos álbuns da
família. Para se ter uma idéia em 1899, no início do consumo deste suporte, a Alemanha,
com 50 milhões de habitantes, produziu 88 milhões de cartões; a Inglaterra, com 38
milhões, produziu 14 milhões; a Bélgica, com 6 milhões de habitantes, produziu 12 milhões
e a França com 38 milhões de habitantes produziu 8 milhões, para em 1910 chegar a marca
de 123 milhões de postais (KYROU, 1996, p. 11).
Um tipo especial de memória e de comunicação, isto é móvel, ela viaja de mão em
mão, informa, dá e recebe notícias, cria expectativas, aproxima os corações distantes,
mostra o mundo que construímos em nosso imaginário, o exótico, o sedutor, o irônico, a
cidade em expansão, o artista de cinema, reprodução de obras de arte, a tristeza de uma
guerra, a imagem de um amador. Tece uma rede de imagens e informações que antes as
pessoas não dispunham com tanta facilidade como nos dias de hoje.
Neste sentido, o cartão-postal vai para além da utilização propagandista e se
desdobra, registrando não apenas cidades, monumentos, paisagens belas, mas, até mesmo,
fatos históricos da época, marcas de uma cultura, servindo de divulgador de notícias,
podemos assim dizer. “Num tempo em que a presença da imagem na imprensa era rara, os
cartões-postais serviram também de veículo para a difusão de assuntos de interesse geral,
Ilustração 3 – Coleção Elysio Belchior
registrando com uma visão que pode ser encarada como ‘jornalística’ eventos de caráter
efêmero”.(VASQUEZ, 2002, p. 37). Esse caráter jornalístico do cartão foi se perdendo, ou
melhor, se atualizando, quando novas formas de divulgação de notícias e imagens foram se
desenvolvendo, e acaba por ceder espaço para os novos veículos, como as revistas e os
jornais.
Col. Elysio Bechior
No Brasil encontraremos poucos postais de cunho jornalístico, sendo mais comum
os postais de cidade ou então, aqueles produzidos nos estúdios parisienses, com
representações, entre outros estilos. Mas mesmo assim, teremos, por exemplo, uma série de
postais sobre Santos Dumont, registrando “passo-a-passo” o seu invento, uma espécie de
cobertura jornalística. Bem como o registro das construções de prédios, pontes, praças entre
outros.
Col. Elysio Belcior
Tudo era motivo para registrar e divulgar para o mundo notícias, imagens de um
país, sempre idealizado, proferir o turismo, alimentar a imaginação em relação a outros
cantos do mundo e que depois o cinema expandirá de forma maciça. Este espírito de
modernidade, de cosmopolitismo, traziam consigo a necessidade de informação visual.
Por outro lado, na Europa os postais eram ainda mais diversificado, no qual
encontraremos um forte registro jornalístico nas imagens, são registros de guerras, enchente
em Paris, greves, comemorações entre tantos outros. Podemos identificar tal característica
por ser lá o berço dos postais, da fotografia, do cinema, num período em que a Europa era o
centro cultural e de influência no mundo, além disso, o público europeu, ansiava por
informação, por novidades e por entretenimento, seja na forma do cinema, no teatro, nos
jornais populares, bem como nos postais além dos jornalísticos, os chamados
“imaginários”, com imagens da mulher barbada, anões, gigantes, aberrações etc.
Segundo Vanessa R. Schwartz “Paris, no último terço do século XIX, havia se
transformado no centro europeu da florescente indústria do entretenimento” e complementa
“os espectadores de cinema levaram para a experiência cinematográfica modos de ver
cultivados em uma variedade de atividades e práticas culturais” (2001, p. 412)
Essa “variedade de atividades e práticas culturais” que marcam o público de uma
forma geral pode ser identificada pelas marcas deixadas (e cultivadas), dentre outras
formas, pelos postais que reproduzia a necessidade informacional da imagem, do
imaginário, do contato com outras partes do mundo, com o movimento do cinema, com a
apelo informativo nas imagens jornalísticas, nas reproduções teatrais etc.
Neste sentido, os primeiros cartões serviram a um público que nunca tinha ido ao
cinema, mesmo que o automóvel, o telefone e a kodak de bolso já existissem, não era todos
que tinham acesso a essas modernidades. Constituindo assim, para muitos estudiosos e
interessados neste suporte, “como o veículo de arte popular ao alcance de todas as classes
da sociedade”10. Tal citação complementa o que o autor Alfonso Pintó em seu livro “La
Tarjeta Postal”, diz que só o cinema mais tarde “seria capaz de criar em sua volta tal
atmosfera popular do encanto, entusiasmo e até demonstração”11.
Museu Histórico Nacional
10
Trecho extraído da matéria “Fotos e postais para preservar a memória”, Folha de S. Paulo, 1979, não consta
o nome do autor do texto.
11
Citação extraída da matéria “Viajemos em cartões postais”, Fairplay, nº 40, 1970.
Este encanto e entusiasmo são propiciados não apenas por uma época de euforia,
mas pelo universo mágico, simbólico, lúdico que o cartão-postal constituiu nos primeiros
anos de sua existência. Diante disso, encontraremos postais de cenas românticas sendo
representadas cena por cena, propondo certo movimento, a cegonha na expectativa da
chegada do filho, as cortesãs, postais bordados e com interferências do próprio consumidor
que podia criar suas colagens, entre tantos outros, indo além dos postais de paisagens e
cidades, constituindo assim, os traços iniciais da aclamada magia do cinema, já que os
postais, sobretudo os franceses, traziam representações produzidas em estúdio, sendo, tais
alegorias, pratica favorita dos fabricantes de postais, nos quais contavam toda uma história
ao longo de uma série, sendo alguns os encontros amorosos ou então a religiosa que ilustra
a sua devoção em poses piedosas e boas ações junto aos feridos de guerra, encenação
representadas por atores e atrizes profissionais12.
Por outro lado, também se verá na linha da reportagem os fotógrafos que realizavam
séries acompanhando o dia-a-dia dos bombeiros de Paris, ou ainda peças inteiras de teatro
sendo reproduzidas. Neste mesmo momento nascia o cinema.
... os cartões antigos representam o papel destinado, hoje, as mass média. Eles
prefiguravam as informações dos nossos jornais ou atualidades cinematográficas,
radiofônicas e de televisão. Graças a eles, os murmúrios de um mundo que se
agitava se propagam de país em país, de cidade em cidade, se infiltravam nas
aldeias para alcançar até habitações isoladas. (JAKOVSKY, 1980, p. 16)
Tais características tão pouco conhecidas do cartão-postal se dão justamente por sua
popularização, sobretudo pelo seu barateamento (economicamente acessível) bem como
pela apropriação da imagem no universo cotidiano, tornando-se cada vez maior a
necessidade de informação visual. Diante disso, o postal serviu por um tempo como um
meio de notícias e sonhos para muitos que não tinham acesso ao cinema, bem como num
período em que os jornais eram mais textos que imagens.
Em sua infinidade de temas e representações, os postais registram o poder da
imagem na construção de imaginários e o fascínio despertado por este novo meio que
depois migrará para outros suportes, como o cinema, a revista e mais adiante a televisão.
Assim o cartão-postal compõe este grande texto cultural, interligando-o a inúmeros
subtextos, proporcionando assim uma riqueza de dados informacionais reconstituída a
partir de fragmentos de memória. Tais fragmentos são os elos, a coesão necessária que
proporciona o dinamismo e a sua atualização na cultura.
Pensar o cartão-postal e a sua ressonância dentro dos liames da cultura nos leva a
vislumbrar sua contribuição para a comunicação de massa, a sua relação com a fotografia e
12
Este postal foi exposto no Museu de Artes e Tradições Populares de Paris no ano 1979. O título da matéria é
“Cartão-postal: enviada pelo correio a memória que não se perdeu”, repórter especial Heloisa Castello
Branco, Jornal do Brasil, fevereiro de 1979. A imagem descrita da encenação da religiosa junto aos feridos de
guerra foi extraída de tal matéria
as tecnologias de impressão, seu papel no mercado editorial e gráfico, contribuindo para um
novo conceito e olhar sobre a imagem e o espaço, bem como enquanto memória visual,
icônica e sua construção no imaginário coletivo e individual.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond. Brasil num retrato antigo In Jornal do Brasil, 1982.
FABRIS, Annateresa (org.) Fotografia – usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991
FERREIRA, Jerusa Pires. As armadilhas da memória. São Paulo: Ateliê, 2004.
___. Cultura é memória. São Paulo, Revista da USP, dezembro/fevereiro 1994/1995, p. 115 – 120.
FERNANDES JUNIOR, Rubens. A fotografia Expandida. São Paulo: Tese de Doutorado, 2002, PUC/SP.
___. Cartão-postal: o imaginário da cidade de São Paulo. Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São
Paulo, 1996, nº 54.
FREIRE, Gilberto. Informação, Comunicação e Cartão-postal. In: Alhos & Bugalhos. São Paulo; Editora
Nova Fronteira, 1978.
GERODETTI, João Emilio e CORNEJO, Carlos. Lembranças de São Paulo – O interior paulista nos
cartões-postais e álbuns de lembranças. São Paulo: Solares, 2003.
LIMA, Hermeto. O cartão-postal In Revista da Semana, ano XXXI, nº 9, 1930.
KYROU, Ado. L´age D´or de la carte postale. Paris: André Balland Ed., 1996
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3ª ed, São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
___. Fotografia e História. São Paulo: Editora Ática, 1989.
MORAES, Marcos A. de (org). “Tudo está tão bom, tão gostoso...” postais a Mário de Andrade. São
Paulo: Hucitec, Edusp, 1993.
SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões-Postais, Álbuns de família e Ícones da intimidade in História da vida
privada no Brasil, vol.3, (org.) NOVAES, Fernando A. São Paulo: Companhia Das Letras, 1999.
VASQUEZ, Pedro Karp. Postais do Brazil. São Paulo: Metalivros, 2002.
Imagens:
Cedidas gentilmente pelo Museu Histórico Nacional – RJ e pelo colecionador Elysio
Belchior.
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Fragmentos de memória. O cartão-postal