Lembranças nos trilhos
| January 03, 2014
Nelson de Paula Padilha, 58 anos, não sossega. Quase todos os dias ele visita o antigo local de
trabalho, a cerca de cem metros de casa. O ex-ferroviário não esconde a ansiedade por ouvir
novamente o som do trem nos trilhos que passam ao lado da casa.
Antes de qualquer coisa, Nelson pergunta o que sei sobre os projetos de reativação da ferrovia.
Ele sempre está atento às notícias que envolvem a linha férrea, na qual trabalhou por 20 anos.
A profissão parece ser tradição de família. O avô trabalhou na exploração da ferrovia. O pai,
na conservação. Nelson chegou a mestre de linha. O escritório ficava na Estação Marcílio Dias,
no vilarejo que leva esse nome, onde Nelson mora.
A vila ainda é referência em construções relacionadas à ferrovia em Canoinhas. O prédio da
estação continua conservado porque uma família se responsabilizou em morar nele e
preservar. Muitas das casas próximas à linha pertenciam a ferroviários. Nelson mora em uma
delas. Recebeu da Rede Ferroviária Federal S. A. (RFFSA).
O ex-ferroviário se considera apaixonado pela profissão, ainda que sem exercer. Quando viaja
para Mafra, uma das primeiras coisas que vê é a passagem do trem. Porém, o maior desejo é
andar no trem misto de Paranaguá, para ver a Serra do Mar a bordo da locomotiva.
Estações na região
A história da ferrovia em Canoinhas começou a decair por causa de uma circular da
Superintendência da Rede, distribuída em agosto de 1966, com mandado de suspensão das
atividades. A população se revoltou. Na época, a justificativa do Governo Federal para
desativar o trem de passageiros era a falta de captação de quantidade suficiente de carga e de
passageiros. No entanto, o trem era o único meio de condução, principalmente entre Marcílio
Dias e o centro de Canoinhas. Não existia ônibus ou qualquer veículo de transporte coletivo.
De acordo com a edição do jornal Correio do Norte de 13 de agosto de 1966, a arrecadação
mensal do trem chegava a Cr$ 45 milhões.
Por causa de solicitações encaminhadas por autoridades canoinhenses, o chefe do 3º Distrito
dos Transportes da Rede de Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC), Nestor Lubber, informou
que as cargas industriais poderiam continuar em tráfego. No entanto, o trem de passageiros
ficaria disponível apenas até o transporte entre Marcílio Dias e Canoinhas ser feito por ônibus.
A Estação Canoinhas, atual sede administrativa do município, foi fechada e alguns
funcionários foram remanejados para a Estação Marcílio Dias. A indústria madeireira local
continuou transportando pela linha.
Mesmo assim, o trem de passageiros funcionou anos depois. Luis Burzy começou a trabalhar
na linha entre Mafra e Porto União em 1976. De acordo com ele, o trem não era mais a vapor,
mas a diesel. Passava pela manhã e à tarde, todos os dias. Ele lembra que o trem andava uma
média de 45 quilômetros por hora. “Em Mafra, os trens cruzavam. Um chegava e o outro saía
em direção a Porto União”, comenta. No domingo, a Estação Marcílio Dias ficava lotada de
pessoas que queriam ver o trem passar, por volta das 17h.
As estações que funcionavam entre Canoinhas e Porto União, quando Luis começou trabalhar
na Rede, eram as de Marcílio Dias, Paula Pereira, Paciência Jararaca (hoje conhecida como
Estação Paciência), Felipe Schimidt, Valões (atual Irineópolis), Lança e Porto União.
Luis e a mulher, Rosemari Burzy, muitas vezes andavam de trem com os vales-transporte
fornecidos pela Rede. “Antes de pegar o passe, em Porto União, precisava pagar. De Santa
Leocádia a Porto União a passagem custava Cr$ 1,50”, conta. Certa vez, Luis iria da localidade
de Santa Leocádia a Porto União. No entanto, o cobrador do trem decidiu cobrar na próxima
estação — na localidade de Lança — o valor da viagem completa, desde Santa Leocádia. “Não
quis pagar. Só pagaria a partir de Lança, pois senão o cobrador ficaria com a diferença para
ele”, diz Luis. Em cada estação existia um controle de passagens para repassar o valor ao
Governo. A passagem deveria ser cobrada na estação de embarque ou, então, o valor
corresponderia ao local em que o trem estava no momento da cobrança.
Rosemari afirma que o trem era separado em duas classes. “Na primeira, as poltronas eram
estofadas. A segunda classe tinha os bancos de madeira.” Segundo ela, dentro do trem eram
vendidos pastéis, maçãs, balas, pipoca e cerveja. Claro, os vendedores dividiam espaço com os
passageiros que ficavam em pé. E não eram poucos, por muitas vezes.
Misto desigual
Em 1978, o trem exclusivo de passageiros foi extinto. Entrou o trem misto, máquina com mais
de 20 vagões de carga e apenas três vagões para passageiros. O transporte, que era diário,
passou a ser três vezes por semana.
A mudança de Rosemari e Luis, de Santa Leocádia para Porto União, foi em um trem. A casa
em que moravam era como um barracão. Pertencia à Rede e era dividida para quatro famílias.
Os Burzy ficaram com uma das partes centrais.
Quando decidiram morar em Marcílio Dias, há 25 anos, a mudança também foi carregada em
um trem. “Um vagão cargueiro. Toda a nossa mudança veio de trem”, recorda Rosemari.
Luis comenta que as estradas eram muito ruins e, por isso, a linha era muito utilizada. Para
andar pelos vilarejos, faisqueiros e velas eram utilizados para encontrar o carreiro.
Cada vagão cargueiro carregava cerca de 70 toneladas. Luis afirma que algumas vezes
passaram máquinas com cem vagões. Ele acredita que esse é o motivo das péssimas condições
das rodovias da região. “Agora, imagine toda essa carga nos asfaltos.”
Fracasso
Os ferroviários ganhavam bem. Rosemari concorda com Luis, que concorda com Nelson, que
concorda com a opinião pública. Meia hora extra de trabalho valia uma hora completa. Além
dos benefícios, como convênio médico, ticket alimentação, direito a empregada doméstica,
uma gratificação por número de filhos (proposto pela Rede) e o abono (estipulado em Lei).
Luis fica emocionado quando se lembra do dia em que não precisou mais trabalhar na ferrovia.
“Chegamos trabalhar e tinha apenas um bilhete dizendo que não precisavam mais de nós na
linha.”
O ex-ferroviário quase enlouqueceu. Não sabia trabalhar em outra coisa. Aposentou-se por
tempo de serviço e era motivo de maus comentários por isso. “Ele não queria sair de casa
porque achava que as pessoas o chamariam de vagabundo”, explica a mulher. “Mas ele tinha
que sair de cabeça erguida.”
Quando a linha privatizou, Nelson já recebia cinco salários trabalhando como mestre de linha.
Segundo ele, no dia 1º de março de 1997, os trabalhadores foram registrados pela empresa
Atlântico, que assumiu imediatamente a malha ferroviária. Dois dias depois, todos foram
demitidos. “A Rede não podia mandar ninguém embora porque tinha gente com 15 anos de
trabalho na companhia. Imaginamos que o salário cairia com a privatização, mas
continuaríamos na linha. Não ficou ninguém.”
Para Nelson, o fracasso da ferrovia é responsabilidade do ministro dos Transportes da época,
Alcides José Saldanha. “A Rede cobrava muito pela estadia do trem parado. O problema é que
uma composição de vagões vazios ficava afastada, parada em Mafra ou Porto União, para
ganhar a estadia”, afirma. Ele conta que as empresas cancelaram aos poucos o contrato com a
Rede. Segundo o mestre de linha aposentado, esse é o motivo da privatização. “Não devia ser
fechada a linha, pois teve muito investimento do Governo para construção dos trilhos. O traço
está feito. Só falta manutenção.”
As negociações para que o trecho seja privilegiado pela Ferrovia do Frango começaram em
2013. No entanto, a região disputa o traçado com os municípios do centro de Santa Catarina e,
segundo o presidente da Frente Parlamentar das Ferrovias no Estado, deputado Dirceu Dresch,
é preciso ter foco nas discussões a respeito da ferrovia. “Precisamos questionar para quê
queremos que a ferrovia passe por aqui, o quê queremos transportar e se os empresários vão
mesmo utilizar esse sistema.”
Mesmo assim, Nelson e o casal Burzy têm esperança que a linha férrea entre Mafra e Porto
União seja reativada. O sonho persiste.
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