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Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande
Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
ISSN: 2178-1486 • Volume 3 • Número 9 • março 2013
Edição Especial • Homenageada
PROFESSORA DOUTORA MARIA LUIZA BRAGA
GRAMATICALIZAÇÃO DO ITEM CERTO: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES1
Josenilce Rodrigues de Oliveira Barreto (UEFS/ CAPES) 2
[email protected]
Daianna Quelle da Silva Santos da Silva (UEFS/ FAPESB)3
[email protected]
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz (UEFS/ Orientadora)4
[email protected]
Josane Moreira de Oliveira (UEFS/ Orientadora)5
[email protected]
RESUMO: Propomos neste artigo um provável trajeto da gramaticalização do item certo, classificado
pelas gramáticas tradicionais como advérbio de afirmação. Sabemos que a língua é dinâmica e, portanto,
está em constante processo de variação e mudança, fato que nos leva a partilhar das ideias propostas pelo
paradigma funcionalista, o qual, grosso modo, observa a função da palavra dentro da oração, levando em
consideração os contextos de uso real da língua. Além disso, no funcionalismo um determinado fenômeno
linguístico pode ser visto a partir dos prismas sintático, semântico, pragmático e/ou discursivo. Sendo
assim, são nos processos de gramaticalização que verificamos os diversos sentidos que um mesmo
item/construção gramatical pode assumir em sentenças diferentes e, neste caso, observamos o item certo e
os seus variados sentidos em algumas sentenças. Assim, ao realizarmos uma incursão em sentenças
diversas, disponíveis na internet, percebemos que o item certo passa a assumir, atualmente, funções
gramaticais mais amplas. Dessa forma, ao notarmos esse deslizamento funcional observamos que a
gramaticalização é um processo segundo o qual um item lexical atinge um nível gramatical ou quando um
item passa de um nível gramatical para um mais gramatical ainda. Em suma, neste trabalho faremos um
“rastreamento” do item certo, a partir de sentenças disponíveis na internet.
PALAVRAS – CHAVE: Gramaticalização; Item certo; Frases da internet.
ABSTRACT: We propose in this article a likely grammaticalization track of the item certo, classified by
traditional grammars as adverb of affirmation. We know that the language is dynamic and, thus, is in a
constant change process, fact that leads us to share the ideas proposed by functionalist paradigm, which
roughly notes the function of the word within the sentence, taking into account the contexts of actual use
of the language. Besides, functionalism in a particular linguistic phenomenon can be seen from the prisms
1
Este artigo é resultado da disciplina “Sociolinguística e Processos de gramaticalização” do Mestrado em
Estudos Linguísticos na Universidade Estadual de Feira de Santana.
2
Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
3
Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
4
Professora Plena da Universidade Estadual de Feira de Santana. Orientadora.
5
Professora Adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana. Orientadora
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syntactic, semantic, pragmatic and / or discursive. Thus, are in the process of grammaticalization we
found that the various senses that the same item / grammatical construction can take on different
sentences and, in this case, we found the right item and its varied senses in a few sentences.Thereby, as
we do an incursion in several sentences, available on internet, we notice that the item certo passes to
assume, currently, broader grammatical functions. Thereby, as we notice this functional slip, we observe
that the grammaticalization is a process whereby one lexical item reaches a grammatical level or an item
passes a lower grammatical level for a higher grammatical level. Evetually, this work does a “tracking” of
the item certo, from sentences available on internet.
KEY-WORDS: Grammaticalization; Item certo; Phrases from the internet.
“[...] É vista a gramaticalização como um processo de criação da gramática
através da necessidade discursiva [...]”. (POGGIO, 2002, p.59)6
1. INTRODUÇÃO
É certo que as línguas naturais estão em constante mudança. Partindo-se desse
pressuposto, os estudos que observam a variação e a mudança linguística têm dado
bastante atenção ao processo denominado gramaticalização, segundo o qual um item
lexical passa para uma categoria gramatical ou quando um item/construção gramatical
atinge um nível mais gramatical ainda.
Corroborando essa afirmação, Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007, p.158,
grifo das autoras) assinalam que “[...] O termo gramaticalização por si só denuncia que
se trata de um processo dinâmico associado à gramática (na polissemia do termo:
gramática da comunidade lingüística, compêndio gramatical, gramática interna).
Comumente, ele é atrelado a rótulos como inovação, mudança, movimento, derivação,
direção e rotinização [...]”. Sendo assim, adentrar nos estudos sobre gramaticalização
nos permite perceber o cerne das mudanças linguísticas tanto em itens lexicais quanto
em construções gramaticais.
Sob tal acepção é que, acertadamente, a gramaticalização se insere na linha
teórica do funcionalismo, que observa a palavra/item gramatical em uma dada frase
6
POGGIO, Rosauta Maria Galvão Fagundes. Processos de gramaticalização de preposições do Latim
ao Português: uma abordagem funcionalista. Salvador: EDUFBA, 2002.
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tomando como ponto de partida a função daquela dentro da sentença, ou melhor, “[...]
toda abordagem funcionalista de uma língua natural tem como principal objetivo
verificar como se processa a comunicação entre os usuários dessa língua, examinando,
desse modo, a competência comunicativa. Isso leva à consideração de que as expressões
linguísticas são configurações de funções e cada função leva a um modo diferente de
significação na sentença [...]” (POGGIO, 2002, p.28).
Além disso, no funcionalismo um determinado fenômeno linguístico pode ser
visto a partir dos prismas sintático, semântico, pragmático e/ou discursivo. Sendo assim,
são nos processos de gramaticalização que verificamos os diversos sentidos que um
mesmo item/construção gramatical pode assumir em sentenças diferentes.
Portanto, neste trabalho apresentaremos três seções subsequentes que tratam do
processo de gramaticalização do item certo. A primeira seção mostra os pressupostos
teóricos de Hopper (apud HEINE; CLAUDI; HÜNNEMEYER, 1991) a respeito da
gramaticalização. A segunda traz à tona, tanto o percurso gramatical do item certo
quanto à sua análise a partir de algumas sentenças. E na terceira e última seção,
apresentamos as considerações finais, na qual apontamos as possíveis contribuições que
este trabalho implicará para os estudos sobre gramaticalização.
2. PASSEANDO PELA GRAMATICALIZAÇÃO: O QUE NOS DIZEM OS
TEÓRICOS?
Muito se têm dito, estudado ou proposto sobre os processos de gramaticalização
constantes na língua. Dentre os estudos realizados acerca da gramaticalização,
destacamos, neste trabalho, os principais especialistas da área tanto fora quanto dentro
do Brasil. No exterior, há Hopper, Heine, Claudi, Hünnemeyer, Traugott, Lehmann e
Sweetser citados anteriormente, e no Brasil há destaque para Braga, Castilho, Votre,
Lima-Hernandes e Casseb-Galvão e outros.
É importante frisar o fato de que há muitas controvérsias em relação à
gramaticalização. Controvérsias estas que não se restringem apenas a discussão de se a
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gramaticalização é ou não uma teoria linguística, mas também em relação ao próprio
termo dado ao processo, para o qual há denominações multifacetadas, como por
exemplo, gramaticização, gramaticalização, gramatização, apagamento semântico,
condensação, enfraquecimento semântico, esvaziamento semântico, morfologização,
reanálise, redução, sintaticização etc. (POGGIO, 2002). Portanto, podemos perceber que
não há um consenso em relação ao termo que se deve adotar para o processo de criação
da gramática.
Contudo, dentre tantas nomenclaturas discutíveis, o termo só se propagou,
realmente, como gramaticalização a partir de Antoine Meillet em 1912, quando ele
deixou claro que esse processo linguístico se trata da atribuição de um caráter
gramatical ou mais gramatical (quando a palavra já está inserida na gramática) a uma
palavra autônoma.
Após essa defesa empreendida por Meillet (1912) sobre a denominação desse
processo linguístico, as ideias a respeito da gramaticalização ganharam bastante
proporção ao ponto de serem divididas em três grupos distintos, os quais agrupam, cada
um ao seu modo, perspectivas e épocas distintas.
O primeiro grupo que lida com o léxico e a gramática (até a década de 1970)
defende que a “[...] gramaticalização é um processo através do qual uma unidade léxica
ou uma estrutura léxica assume uma função gramatical. O item lexical vai de uma classe
aberta para uma classe fechada [...]” (POGGIO, 2002, p.60, grifo da autora). Para
reforçar essa definição são trazidos à baila vários teóricos que “vestem” essa ideia, mas
que partem de concepções um pouco divergentes uns dos outros. Dentre os estudiosos
desses processos linguísticos, citamos Kurylowicz (1965) que define a gramaticalização
como a ampliação dos limites de um morfema, ou seja, ele defende que na
gramaticalização há um avanço do nível léxico para a gramática e que o item lexical
perde uma parte semântica e fonológica nesse processo.
O segundo grupo, por sua vez, que trata do discurso e a gramática (a partir de
meados da década de 1970) insere nos estudos sobre a gramaticalização as teorias do
discurso. Para esses teóricos a gramaticalização é vista não somente como um meio de
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reanálise do nível léxico para o gramatical, mas como reanálise do discurso para o nível
gramatical. Sob tal acepção, “[...] T. Givón, C. Li e S. Thompson assinalam que a
gramaticalização é motivada pelo discurso e a evolução de estruturas sintáticas e
morfológicas decorre de estratégias discursivas [...]” (POGGIO, 2002, p.61, grifo da
autora), ou seja, o discurso não só passa a ser visto como o motivador dos processos de
gramaticalização, como também se torna um suporte a mais para compreender esses
processos.
E o terceiro e último grupo composto pelos cognitivistas “[...] vê a
gramaticalização como um fenômeno externo à estrutura da língua e pertencente ao
domínio cognitivo. Esses linguistas enfatizam que a gramaticalização é proveniente de
alterações semânticas [...]” (POGGIO, 2002, p.61, grifo da autora), ou seja, para alguns
autores como E. Sweetser (apud Heine, Claudi, Hünnemeyer, 1991, p.21) no processo
de gramaticalização há perdas e ganhos do conteúdo semântico, sendo que para muitos
linguistas o ganho excede toda a perda proveniente dos processos de gramaticalização.
Contudo, neste trabalho especificamente, adotamos a concepção de que
gramaticalização é, como bem pontua Castilho (1997b, p.31), “[...] o trajeto
empreendido por um item lexical, ao longo do qual ele muda de categoria sintática (=
recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações
morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma livre, estágio em que
pode até mesmo desaparecer, como consequência de uma cristalização extrema [...]”.
Partindo-se dessa definição, arrolamos a seguir os cinco estágios de gramaticalização
propostos por Hopper7 (apud Heine, Claudi, Hünnemeyer, 1991, p.20):
a)7 Layering: When new layers emerge within a functional domain, older layers are not necessarily
discarded but may remain to coexist and interact with the new layers.
b)Divergence: This principle refers to the fact that, when some entity undergoes grammaticalization, the
result is that there are now “pairs or multiples of forms having a common etymology but diverging
functionally.”
c)Specialization: This refers to “the narrowing of choices that characterizes an emergent grammatical
construction.”
d)Persistence: When a grammaticalized meaning A is lost; rather, B is likely to reflect A – at least as long
as B has not yet undergone “morphologization”.
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a)Estratificação: quando novas camadas emergem em um domínio funcional;
camadas mais antigas não estão necessariamente descartadas, mas podem
permanecer coexistindo e interagir com as novas.
b)Divergência: Este princípio refere-se ao fato de que, quando alguma entidade
sofre gramaticalização, o resultado é que existem agora “pares ou múltiplas
formas tendo uma etimologia comum, mas divergentes funcionalmente”.
c)Especialização: Isso se refere ao “estreitamento de escolhas que caracterizam
uma construção gramatical emergente”.
d)Persistência: quando uma forma gramaticalizada A é perdida; ao contrário, B
é apropriada para refletir A – pelo menos tão extensa quanto B ainda não tem
sofrido “morfologização”.
e)Descategorização: A gramaticalização leva a uma diminuição principalmente
categorial de uma entidade interessada. Isto implica uma perda de
marcadores opcionais categorialmente como modificadores, por um lado, e
um discurso autônomo do outro.
Diante do exposto até aqui, percebemos que esses estágios propostos por Hopper
(apud Heine, Claudi, Hünnemeyer, 1991, p. 20) sobre a gramaticalização dão uma
explicação consistente para cada fase que um item lexical e/ou construção gramatical
sofre ou pode sofrer através dos usos linguísticos realizados pelos falantes de uma
determinada língua natural. Sendo assim, a seguir apresentamos um possível percurso
de gramaticalização do item certo, comumente classificado pelas gramáticas normativas
como um advérbio de afirmação. No entanto, veremos também que esse item tem sido
utilizado em contextos e usos diversificados pelos falantes da língua portuguesa, o que
tem contribuído para que esse item assuma funções sintáticas, semânticas e até
pragmáticas diversificadas, mesmo porque o discurso tem se mostrado um fator
e)Decategorialization: Grammaticalization leads to a decrease in cardinal categoriality of the entity
concerned. This implies a loss of optional markers of categoriality such as modifiers, on the one hand,
and of discourse autonomy on the other. (HOPPER apud Heine, Claudi, Hünnemeyer, 1991, p.20)
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decisivo na consolidação desses usos linguísticos, que ora estão se cristalizando na
língua.
3. O CERTO EM EVIDÊNCIA: PERSCRUTANDO O CORPUS
Decerto, muitos linguistas têm apresentado bastante interesse em estudar
processos de gramaticalização, que mostram como um item/construção gramatical passa
de uma a outra categoria morfológica/semântica.
Sob tal entendimento, fica-nos fácil compreender os interesses que movem esses
estudiosos a se debruçarem sobre tais fenômenos linguísticos. Um dos motivos que
alimentam esses “famintos” do conhecimento é o cunho funcional e ao mesmo tempo
dinâmico da língua, visto que “[...] Ela é funcional porque mantém integrados o sistema
linguístico e seus elementos com as funções que têm de preencher, e dinâmica porque
vê, na variabilidade da relação entre estrutura e função, a força dinâmica subjacente ao
constante desenvolvimento da linguagem” (GEBRUERS apud POGGIO, 2002, p. 28).
Sendo assim, são perceptíveis, na gramaticalização, não apenas o aspecto funcional da
língua, no sentido de perceber as atividades desempenhadas pela linguagem em
contexto de uso, mas também a sua dinamicidade e pluralidade, em contextos de
variação e mudança linguísticas do ponto de vista sintático, semântico, pragmático,
discursivo etc.
Para a caracterização do corpus que compõe este trabalho, selecionamos 15
sentenças variadas, sendo uma tirinha da Turma da Mônica e 14 frases ditas por
diversas personalidades famosas disponíveis na internet.
3.1 O PERCURSO GRAMATICAL DO ITEM CERTO
Comprovadamente o item certo assume acepções diversas, sendo estas
determinadas pelo contexto de uso. Partindo-se desse pressuposto, consideramos
importante, antes de qualquer análise a ser feita, trazer algumas definições dadas por
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dicionários da Língua Portuguesa acerca dessa palavra a fim de facilitar o entendimento
desse item em relação aos usos que os falantes do português tem feito dele.
Como podemos perceber pela tabela exposta anteriormente, o item certo, de
acordo com os dicionários consultados, assume definições e classes gramaticais
distintas, incluindo, consequentemente, os contextos de uso, que são múltiplos por
excelência.
Diante disso, podemos constatar que o item certo se origina do advérbio latino
certe: certo, certamente, por certo, sem dúvida. No entanto, essa mesma palavra podia
ser encontrada na própria língua latina em, pelo menos, duas classes morfológicas
distintas, a saberem: na dos advérbios, como mencionado anteriormente, e na dos
adjetivos (certus, certa, certum), significando decidido/certo, ou seja, na língua que deu
origem às línguas românicas, o certo podia ser classificado tanto como adjetivo ou
como advérbio, o que distinguia uma classe morfológica da outra era o uso dado a essa
palavra pelos seus falantes em contextos específicos e o morfema empregado no final
daquela, pois o radical da palavra permanecia sempre o mesmo.
Anos
1958
1962
1964
1999
Item – Significados
Certo 1. Adj. Que não tem êrro, que é verdadeiro: Um cálculo certo. 2. S.m. Coisa certa:
Deixar o certo pelo duvidoso. 3. Adv. Certamente, com certeza: Não podia certo haver
suspeita. Ao certo (Loc. Adv.) com certeza, com exatidão: Não sei ao certo se virá a Lisboa.
Forma latina: Certus. (AULETE, 1958, p. 919-920, grifo nosso);
Certo Adv. 1) Certamente, com certeza, na verdade, realmente, sem dúvida. 2) De maneira
irrevogável, irrevogavelmente. (FARIA, 1962, p. 177);
Certo Adj. Verdadeiro, correto, exato, leal. Latim: Certus, a, um. (BUENO, 1964,
p. 680, grifo nosso);
Certo [Do lat. certu] 1. Adj. Em que não há erro, exato, correto, verdadeiro: O relógio está
certo; 2. Pron. Indef. Não determinado; um, algum, qualquer: certo indivíduo; certo dia ele
apareceu; certa vez ela chegou; olhando de certa distância; 3. S.m. Coisa certa: “Ela ajudouo com movimentos ondulantes aconchegantes, sabia que ele estava fazendo o certo. 4. Adv.
Com certeza, certamente: “Certo na monotonia da existência, viajar ainda é o único prazer
verdadeiro”. Por certo Com certeza; decerto; certamente: “Vou ver quem é. Por certo é
gente nossa”. (FERREIRA, 1999, p.447, grifos nosso)
Sabemos ainda que o item certo é polissêmico, pois pode assumir inúmeras
funções sintáticas e diversos sentidos do ponto de vista da semântica, bem como
também pode ser plural em se tratando dos contextos de uso, pois a pragmática e o
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discurso desempenham um papel importantíssimo nesse quesito. Sendo assim,
analisaremos no próximo tópico alguns usos do item certo a fim de identificarmos quais
os mais recorrentes na língua portuguesa atualmente e quais os caminhos que esse item
poderá, hipoteticamente, tomar ao longo do tempo, do ponto de vista da
gramaticalização.
3.2 O ITEM CERTO: UM ESTUDO DE CASO
Com o objetivo de verificar o alcance das propostas acerca da gramaticalização,
examinamos os diversos usos do item certo, no português brasileiro, a fim de identificar
em que fase se encontra o processo de gramaticalização do item em análise. Para tal,
recorremos a algumas sentenças que apresentam em seu bojo o item a ser analisado
neste trabalho, as quais sinalizam o uso gramatical do certo enquanto adjetivo, advérbio,
etc. A seguir, elencamos as sentenças8 que servem como corpus para esta empreitada,
que tem como foco o item certo em processo de gramaticalização.
1)“Relaxa... uma hora dá certo”.
2) “Este país pode não dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme,
traficante se vicia e pobre é de direita”. (Tim Maia)
3) “É perigoso estar certo quando o governo está errado”. (Voltaire)
4)“Qualidade significa fazer certo quando ninguém está olhando”. (Henry Ford)
8
As sentenças de números 2 a 15, utilizadas neste trabalho, estão disponíveis em:
<http://pensador.uol.com.br/palavra_certa/> Acesso em: 13 dez. 2012.
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Nos exemplos (1, 2 e 3) o certo equivale a objeto direto do ponto de vista
sintático e a adjetivo do ponto de vista morfológico, ou seja, nos três exemplos o certo
aparece acompanhado do verbo dar, seja no infinitivo, seja no presente ou no pretérito
perfeito do indicativo, o que equivale a dizer que o certo, nestes casos, funciona como
complemento do verbo dar.
Já nas frases (4) e (5) o item certo, está acompanhando verbos que estão na
forma infinitiva, funcionando, semelhantemente, como a uma perífrase verbal. Sendo
que no exemplo (4) o certo se apresenta como um adjetivo antônimo, pois há uma
relação de oposição: certo/errado. Já no exemplo (5), o certo faz referência ao termo
qualidade, dito anteriormente na frase, visto que o item em análise está funcionando
como um adjetivo, equivalendo a fazer de forma correta/ exata.
5) “Tudo o que eu canto tem certo sentido. Eu não canto se não fizer sentido”. (Michael
Jackson)
6)“Ao chegar a certo nível de autoconhecimento, o indivíduo compreende algo de
sobrenatural em si mesmo”. (Conde Leon)
7)“Durante certo tempo, alguém pode alegrar-se consigo mesmo, mas a longo prazo, a
alegria deve ser compartilhada por duas pessoas”. (Henriky Ibson)
No exemplo (6), a sentença dita por Michael Jackson revela o ponto de vista do
cantor em relação à música enquanto arte/sentimento, pois para ele todas as suas
canções têm que ter sentido, caso contrário não há sentido para ele as cantarem. Além
do mais, o item certo na oração de Michael Jackson desempenha a função gramatical de
“pronome indefinido”, pois, nesta sentença, o item equivale a algum sentido. Já nos
exemplos (7e 8), o item certo equivale a determinado nível/ algum tempo, funcionando
como um “pronome indefinido”.
8) “Qualquer homem mais certo que seus vizinhos constitui a maioria de um”. (Henry
David)
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No exemplo (9), por sua vez, a sentença revela uma ideia de que qualquer
homem, no sentido mais amplo da palavra (de humanidade), que haja de uma forma
mais correta do que os demais se constitui como maioria. O item certo, neste caso,
equivale a um adjetivo de superioridade: o homem mais certo que.
9)“É certo que os fumantes causam alguns incômodos aos não-fumantes, mas tal
incômodo é físico, ao passo que o incômodo que os não-fumantes causam aos fumantes
é espiritual”. (Lin Yutang)
10) “Por certo, os que não obtêm dentro de si os recursos necessários para viver na
felicidade acharão execráveis todas as idades da vida”. (Cícero)
Nos exemplos (10 e 11), o item certo inicia uma oração subordinada substantiva
(é certo que), equivalendo a acertadamente/ decerto, respectivamente, sendo, portanto,
um advérbio.
11) “A palavra certa na hora certa é como um desenho de ouro feito em cima [sic] de
prata”. (Provérbios 25:11)
12)“A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas”.
(Mario Quintana)
13)“Eu não sou certinho, sou apenas um homem que ama a sua companheira... Ser
macho é poder dizer eu sou, sim, homem de uma única mulher”. (Tony Ramos)
14)“Por vezes a palavra representa um modo mais acertado de se calar do que o
silêncio”. (Simone de Beauvoir)
Nos exemplos (12, 13 e 14) o item certo aparece flexionado. Na sentença (12 e
13) o certo se apresenta no feminino singular (certa) em concordância com as palavras
que o antecede (palavra/ hora; resposta/ perguntas, respectivamente), funcionando como
adjetivo e equivalendo a exata, correta. Na (14) o termo destacado, em itálico, também
funciona como adjetivo, pois o fato de o item certo está flexionado no diminutivo
evidencia a sua função gramatical de adjetivo. Nessa sentença (14) certinho equivale a
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não sou perfeito, sem falhas, já no exemplo (15) o item certo aparece em uma forma
adverbial: acertado, equivalendo a correto, certo.
Diante das análises realizadas anteriormente, a partir das sentenças coletadas,
podemos perceber que o item certo apresenta acepções diversas. Acepções estas que se
divergem e ao mesmo tempo convivem umas ao lado das outras, ou seja, desde a sua
origem (língua latina), observamos que havia, no mínimo, duas formas distintas, a
saberem: adjetivo e advérbio, que ao longo do tempo continuam existindo.
No entanto, também notamos claramente que nas formas adverbiais e
substantivas, o item certo apresenta formas variantes, ou melhor, quando se trata de
adjetivos, o item em análise pode se apresentar como certo ou em formas flexionadas
como certa/ certinho ou outras. O mesmo pode ocorrer quando o item analisado, neste
trabalho, for um advérbio, pois, do ponto de vista semântico, os significados do certo
podem variar, a depender dos contextos de uso. E isso é o que verificamos nas
ocorrências do certo nas sentenças 10, 11 e 15. É importante ressaltar que o certo, em
alguns casos, também é utilizado para introduzir orações subordinadas substantivas (10
e11).
A partir das conclusões que chegamos até aqui, podemos dizer que o item certo
está em um grau de divergência9, segundo os pressupostos teóricos sobre a
gramaticalização propostos por Hopper (1991), pois, de acordo com as sentenças
analisadas anteriormente, o certo desempenha funções distintas. No entanto, esse item
gramatical apresenta a mesma etimologia em todas as sentenças, ora como adjetivo ora
como advérbio.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A gramaticalização é um processo que pode levar um item lexical para um nível
gramatical ou um item gramatical para um nível mais gramatical ainda. E, é pensando
9
Esse princípio refere-se ao fato de que, quando alguma entidade sofre gramaticalização, o resultado é que
existem agora “pares ou múltiplas formas tendo uma etimologia comum, mas divergentes
funcionalmente”.
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PROFESSORA DOUTORA MARIA LUIZA BRAGA
nisso que o item certo tem apresentado uma mudança de categoria funcional, pois,
contrariamente, ao que as gramáticas normativas têm taxado àquele como simplesmente
advérbio de afirmação, podemos perceber que, ao longo das discussões empreendidas
neste artigo, o item certo vem sofrendo um deslizamento funcional no sentido de que
tem apresentado funções e usos gramaticais diversos, visto que são os falantes que
determinam os usos que uma palavra/item/lexia pode assumir em contextos específicos.
Partindo-se desse pressuposto, podemos perceber que, além da classificação de
advérbio, o item certo assume também a função de adjetivo, podendo introduzir orações
subordinadas substantivas e que o nível de gramaticalização desse item está no estágio
de divergência, proposto por Hopper (1991).
Portanto, chegamos à conclusão de que ainda há muitos pontos a serem
observados em relação ao item gramatical certo e que as possíveis análises acerca desse
item estão longe de findarem, pois, como toda mudança na língua é lenta e gradual, o
processo de gramaticalização também o é, porque nesse processo existem muitos fatores
intra e extra linguísticos que estão imbricados. Fatores estes que são determinantes na
concretização da gramaticalização do um item lexical/ gramatical, visto que são os usos
realizados pelos falantes, que podem mudar o rumo da gramaticalização do item certo
na língua portuguesa.
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Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande
Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
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Recebido Para Publicação em 19 de fevereiro de 2013.
Aprovado Para Publicação em 23 de março de 2013.
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