Capítulo 1
M
eena Harper sabia coisas, coisas que ninguém mais sabia... coisas
que ninguém mais podia saber.
Uma delas era que o homem sentado ao seu lado no carro ia morrer.
Também havia muitas coisas que Meena Harper não sabia.
Uma delas era como dar a notícia da morte iminente para ele.
— Meena — disse ele, olhando para o perfil dela. — Você não faz
ideia de como estou feliz em vê-la. É engraçado ter me ligado. Eu estava
justamente pensando em você.
— É ótimo ver você também — concordou ela.
Era mentira. Não era ótimo vê-lo. Como contaria para ele? Principalmente porque a aparência dele estava péssima. O cheiro dele estava
péssimo. Ou talvez fosse o interior do carro. Ela não conseguia identificar
que cheiro era aquele.
— Eu também estava pensando em você — mentiu ela mais um pouco. — Obrigada por vir me encontrar.
Ela olhou para a rua escura e estreita. Sentia-se culpada por falar
tantas mentiras, inclusive que aquela era a rua onde morava. E por ter
dito que ele não podia subir porque os pais da colega de apartamento
estavam hospedados lá.
— Tem certeza de que não quer ir tomar um café? — perguntou ela.
— Tem um lugar logo ali na esquina. Seria bem melhor do que ficar
sentada aqui no carro.
Principalmente por causa daquele cheiro. E do que tinha que dizer
a ele.
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— Tenho certeza — disse ele, sorrindo. — Você não faz ideia do
quanto senti a sua falta.
Isso era novidade para Meena. Ela não tinha notícias dele havia mais
de um ano. A separação havia sido relativamente amigável, embora na
época tivesse ficado convencida de que estava de coração partido. Ela
era uma roteirista que tentava ganhar a vida escrevendo para uma novela agora cancelada. Ele era um dentista especializado em coroas de
cerâmica que queria se mudar para o subúrbio e construir uma família.
Naturalmente, as coisas não deram certo.
— Achei que você e Brianna estivessem muito felizes — falou ela. —
Por causa do seu novo consultório, do bebê e tudo mais.
Isso só tornava tudo pior. Como ia dar a notícia sobre a morte iminente quando ele tinha tantos motivos para viver?
Ele deu uma risada amarga.
— Brianna. Ela não significa nada para mim.
— É claro que significa — disse Meena, surpresa. — O que você está
dizendo?
Agora Meena estava preocupada de verdade com ele. David a tinha
largado por Brianna, que era o mundo para ele.
Tinha que ser um tumor no cérebro. Fora isso que quase o matou da
primeira vez. Mas ela havia pressentido e o avisou. Os médicos conseguiram encontrar o tumor a tempo de salvar a vida dele.
E era uma pena que o fato de ela saber sobre o tumor o tenha apavorado tanto que ele fugiu direto para os braços da enfermeira da radiologia.
Mas tudo bem. Meena tinha dado a volta por cima. É claro que essa
nova vida havia sido destruída por Lucien Antonesco, o homem que lhe
ensinou a verdadeira sensação de um coração partido.
E ela conseguiu nunca mais pensar nele.
Quase nunca.
Só que ultimamente ela vinha tendo sonhos terríveis com David. Nesses sonhos, ele estava morto. Não é que ela visse o cadáver. No sonho,
ela não conseguia ver o futuro de David. Só escuridão.
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Quando ela acordou, depois de sonhar com isso pela terceira manhã
seguida, sem fôlego pela sensação da escuridão se fechando ao seu redor,
soube que não tinha outra escolha além de ligar para ele.
Mas também sabia que não podia dar uma notícia assim pelo telefone.
Eles tinham que se encontrar pessoalmente.
David ficara surpreendentemente ansioso e se ofereceu para passar na
casa dela quando estivesse voltando para Nova Jersey, depois do almoço
e de uma reunião com dentistas que tinha na cidade.
Mas como Meena sabia que não devia dar o novo endereço para
ninguém, nem mesmo para ex-namorados com quem já tinha vivido,
ela automaticamente deu um endereço falso e foi ao encontro do carro
quando ele estacionou em frente ao prédio.
E, agora, ela começava a se arrepender desse plano. David estava
agindo de um jeito muito esquisito. E que cheiro era aquele?
— Você — disse ele. — Sempre foi você, Meena.
— David. — Meena estava confusa. — Você me largou pra ficar com
Brianna. Disse que queria uma pessoa que desse vida às pessoas, não
alguém que previsse mortes. Lembra?
— Eu devia ter ficado com você. Devia mesmo. Nos dávamos tão
bem, eu e você, tão melhor do que eu e Brianna. Por que não fiquei com
você, Meena? Por quê? Você era mágica, com sua... magia.
Por fim, ela compreendeu. Pelo menos agora sabia o que estava provocando o cheiro estranho. E isso tornava o trabalho dela bem mais simples.
— Tudo bem — disse ela, procurando a garrafa pelo chão do carro.
Ou talvez ele ainda estivesse bêbado desde o almoço. Quantos martínis
os dentistas bebiam quando se reuniam para almoçar, afinal?
— Lembra quando você usou sua magia e eu fiquei bom? Faça de
novo. Estou implorando.
— Não é assim que funciona — declarou Meena, ainda procurando
a garrafa. — Não estou dizendo que não posso ajudar. Acho que posso.
Você só vai ter que me ajudar também e me dizer onde está a garrafa.
Foi quando ele se lançou por cima do banco para beijá-la. E ela achou
a garrafa. Era na verdade uma garrafinha de bolso, que estava sendo
pressionada com força contra sua coxa de dentro do bolso da calça dele.
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Ah, droga, pensou Meena. É isso que mereço por tentar bancar a
salvadora. Por que sempre volto a fazer isso?
Ah, claro. Porque esse era seu trabalho.
E isso era uma coisa boa, pois achava que não conseguiria viver com
a culpa de outra alma ter morrido no seu plantão. Tinha acontecido mais
de uma vez, principalmente desde que conheceu Lucien Antonesco, que
infelizmente se mostrara ser um dos demônios caçados pela Palatina —
a organização pela qual ela havia sido contratada, depois de ter sido
despedida sem cerimônia alguma da novela (antes do cancelamento).
E não era um demônio qualquer. Era o líder de todos os demônios
na Terra, o príncipe das trevas.
Meena nunca tivera mesmo muita sorte no quesito namorados.
E como a maioria das pessoas não acreditava nela quando lhes contava
que estavam prestes a morrer, também nunca teve muita sorte nessa área.
Não tinha certeza do que a levou a pensar que o ex, David Delmonico,
valia a pena ser salvo. Até onde ela sabia, o planeta não ia ficar muito
pior se ele simplesmente desaparecesse.
Mas havia o bebê, pensou ela. O bebê merecia ter um pai.
— Meena — gemeu David outra vez. Felizmente, ele tinha afastado
os lábios dos dela, e agora estava grudado em seu pescoço. Graças a
Deus, porque o hálito dele fedia ainda mais do que o carro.
Tirando o fato de que agora ele estava tentando enfiar as mãos pelo
decote do vestido dela... o vestido cuja bainha ela mesma tinha feito,
com uma ajudinha de Yalena, no brechó. Porque embora o novo emprego de Meena pagasse bem, ela teve que comprar roupas novas, depois
que todas que possuía foram destruídas por um bando de parentes de
Lucien Antonesco, os Dracul. Frequentar brechós tinha se tornado um
novo hobby para ela.
— David — disse ela, usando o cotovelo para empurrá-lo pelo ombro. Mas não com muita força, porque sentia um pouco de pena dele.
Afinal, era um homem à beira da morte. — Não foi por isso que liguei.
— Sim — continuou ele com outro gemido. — Foi por isso sim. Meena
linda. Que idiota eu fui...
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— David. — Ela puxou a cabeça dele pelos cabelos e o olhou nos
olhos. Eram duas fendas embriagadas.
— O quê...? — perguntou ele, com olhos embaçados.
— Lamento que você esteja tendo problemas na sua vida pessoal. Mas
você escolheu Brianna e não a mim, lembra? E eu superei.
— Mas... — Os olhos dele começaram a se focar um pouco mais. —
Você disse ao telefone que não estava saindo com ninguém.
Ela continuou a segurar a cabeça dele pelos cabelos.
— Não estou. — Que simpático da parte dele esfregar na cara dela o
fato de estar solteira. Como se fosse culpa dela que o último namorado
tivesse tentado queimar metade do Upper East Side. — Mas por que
você acha que isso quer dizer que estou a fim de ter um caso com você?
Ele sacudiu um dedo na direção dela.
— Aceite, Meena. O fato de ainda estar solteira significa que nunca
me esqueceu.
— Ou talvez signifique que há um cara com quem saí depois de você
que eu nunca esqueci. Ou essa possibilidade nunca lhe ocorreu? É, eu
achei que não. — Ela soltou a cabeça dele para se inclinar e tirar a chave
da ignição. — David, vá pra casa e fique sóbrio.
Ela não ia falar para ele. Não desse jeito. Não enquanto ele estivesse
bêbado e se comportando tão mal. Primeiro, porque ele poderia não se
lembrar quando ficasse sóbrio.
E segundo, ele podia não lidar bem com a informação. Quem sabe o
que poderia fazer? Pular da ponte George Washington, talvez.
E sempre havia uma chance. Meena tinha aprendido que as coisas
podiam melhorar. Nossos destinos não estavam selados. Veja David.
Ela o tinha avisado uma vez que ele estava morrendo, e ele tomou uma
medida preventiva quanto à saúde, e agora estava...
Bem, talvez David não fosse um bom exemplo. Mas conseguia pensar
em muitos outros. Alaric Wulf, um dos guardas palatinos com quem
trabalhava. Ela o avisava quase todos os dias sobre alguma nova ameaça
para a qual ele estava se dirigindo, e como ele a ouvia, continuava vivo.
Era uma pena que ele não a ouvisse sobre mais nada.
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— Aprecie o que tem, David — aconselhou Meena, em vez de avisá-lo
que seus dias estavam contados. De novo. — Você tem muita coisa, e a
verdade é que... você pode não ter isso por muito tempo.
— Mas — disse ele, parecendo confuso. — Eu quero você.
— Não — retrucou Meena com firmeza. — Me largar pra ficar com
Brianna foi a coisa mais inteligente que você já fez. Acredite. Não fomos
feitos um para o outro. Pegue um táxi até a Penn Station e o trem de
volta para sua linda e segura casa em Nova Jersey. Eu mando isto pelo
correio. — Ela sacudiu as chaves na frente dele. — Você vai me agradecer
um dia, tenho certeza.
O que provavelmente só aconteceria depois que David estivesse sóbrio e ela tivesse ligado para dar as más notícias, e ele aproveitasse para
marcar um exame médico completo.
Meena começou a abrir a porta para sair do carro e voltar para o
novo apartamento, para a nova vida, da qual tinha certeza que David,
se conhecesse, fugiria em um nanossegundo.
Pois havia muitas coisas que Meena Harper sabia e que seu ex-­
namorado nem imaginava. Não só como as pessoas iam morrer e que
demônios e caçadores de demônios não eram personagens de ficção, mas
que em cada criatura do planeta, demônio ou não, havia a capacidade
para o bem e para o mal.
E que tudo que era preciso para alguém ultrapassar os limites era o
menor dos empurrões.
Era uma pena que suas premonições não a avisassem quando seria
bom fazer uso de um desses empurrões, nem com que finalidade... e nem
quando a morte iminente era a dela própria.
Essa informação poderia ter sido útil para Meena naquele momento,
quando estava saindo do carro de David e ele esticou a mão e agarrou
seu pulso com força.
A pior parte foi que ele não falou nada. Apenas ficou com a mão ao
redor do seu pulso, com o olhar fixo e morto.
E abriu bem a boca, revelando um par de caninos afiados.
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