PROJECTO LIVROS À SOLTA NA E.S.M. Uma Campanha Alegre Por Eça de Queirós Outubro 1871.
Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fora preso, e
condenado...Reparem bem! «E condenado... a varrer as ruas de Gouveia!»
De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de decepar
suas mulheres. São miudezas domésticas em que não intervimos. Nunca se
dirá que as Farpas se arrojam indiscretamente sobre o seio das famílias.
Que os maridos, quando lhes convenha, para melhor organização do seu
interior, partam suas mulheres aos pedaços — coisa é que nem nos
escandaliza, nem nos jubila! Talvez não imitássemos esse exemplo: não
por nos parecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar
excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte
estimada! E entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo
desejo invencível de partir alguma coisa, é mais simples ir à cozinha
trinchar o rosbife, do que à alcova retalhar a esposa!
Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de
Gouveia.
Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo,
marca uma pena diversa, não prevendo esse castigo de varrer as ruas de
Gouveia - de resto todo Local.
Mas quem sabe se não será uma
tremenda penalidade - o limpar as ruas de
Gouveia!
Talvez mesmo o juiz - por lhe parecer
insuficiente o degredo perpétuo - rompesse no
excesso arbitrário de entregar aquele facínora
ao suplício imenso de limpar as ruas da sua
vila! Bem pode ser que aquele marido esteja
cumprindo uma sentença pavorosa, e que o
devamos lastimar mais que os infelizes que S.
M. Alexandre II da Rússia (que Deus guarde e
muitos anos conserve em prosperidade e
glória) manda trabalhar, ao estalo do chicote,
nas minas de Orilieff! A imundície da província
tem mistérios. Limpar as ruas de Gouveia será
talvez a pena que de futuro adoptem, em
substituição da pena de morte, os códigos da Europa. Que grande honra,
meus amigos, para a sujidade nacional!
Mas uma coisa nos ocorre: - e é que, de
ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um
emprego municipal, e começa a considerar-se
uma pena infamante. E pode acontecer que os
senhores varredores de Lisboa - não querendo,
por uma susceptibilidade exagerada, passar
por
terem
assassinado
suas
esposas,
deponham com gesto de desdém o cabo das
suas vassouras nas mãos atarantadas da
câmara municipal! Por outro lado, dada esta
greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de
limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão
escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a
suspeitassem de ter empregado o trinchante na
pessoa da sua consorte. A única pessoa que
afoitamente ousaria varrer as ruas seria aquela
de quem se não pudesse suspeitar um crime,
aquela que fosse pela lei do Reino declarada
irresponsável. Ora há só uma neste caso. É o
chefe do Estado. Esse é o único que poderia
varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse
de pensar que ele andava ali, às vassouradas,
por sentença de um tribunal. Esse é
irresponsável; não comete crimes, nem sofre penas. Mas seria realmente
atroz que S. M. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas,
melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho,
adiante de si, em nuvens de poeira, O Diário de Notícias, jornal que tem
imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas
e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado
este caso: imundície dos seus vassalos!
Que a justiça, pois, nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as
ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer
cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundície
especial e pavorosa das ruas de Gouveia torna realmente essa pena igual à
de degredo: ou se o senhor juiz de Gouveia entende que matar a esposa é
acto tão meritório, que merece um emprego remunerado pela câmara.
Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos.
Em 1871, Eça de Queirós e Ramalho
Ortigão
formavam
uma
dupla
que
arremessava farpas a vários sectores da
sociedade
portuguesa.
Estas
eram
publicadas em jornais e em jeito de
folhetins.
Durante dois anos, e segundo o
próprio Eça, decidiram ”farpear até à morte
a alimária pesada e temerosa”, no auge da
juventude, das suas capacidades e cientes
do seu já importante papel no meio
intelectual, não cessaram de escrever
textos irónicos e alegres sobre o estado de
Portugal.
Esses textos, levados e tomados por uma campanha alegre,
pretendiam mostrar quão ridículo era o comportamento de certos
sectores, assim como servir a justiça e a verdade, demolindo a acerba,
má educação, má formação e interesses instalados.
A parte escrita por Eça, Uma Campanha Alegre tem dois volumes e
foi escrita em 1890
Julien Vergé, 11ºH 
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