1 RELIGIÃO E ESPORTE: A ARTICULAÇÃO DO MOVIMENTO ATLETAS DE CRISTO Elaine Rizzuti Profª de Educação Física da Universidade Federal de São João del-Rei Doutora em Educação Física e Cultura pela UGF/RJ Minas Gerais - Brasil RESUMO Neste estudo, procuramos demonstrar a relação mútua entre religião e esporte como fenômenos sócio-culturais presentes em diferentes culturas. Recorremos, inicialmente, às teorias de Mauss (2003), que explicam como esses fenômenos se manifestam, considerando-os como campos de representação onde são revelados traços morais, culturais e intelectuais de uma sociedade. Também utilizamos a teoria sociológica de Weber e Durkheim já que em ambos está fundamentada a questão a investigar deste estudo. Revisitamos a Grécia Antiga, palco seminal dos acontecimentos esportivos, chegando aos tempos modernos com o Barão Pierre de Coubertin inaugurando as Olimpíadas da Era Moderna e elevando-a a condição de “religião”, não no sentido literal da palavra, mas na capacidade de transformação do homem pelo esporte. Quanto à religião, limitamo-nos no protestantismo e na origem e expansão das igrejas evangélicas e o Pentecostalismo, tendo como foco o Movimento Atletas de Cristo, que tão bem articula a religião com o esporte. Fez parte da amostra, cinco atletas de alto rendimento, pertencentes ao Movimento. Partimos da premissa que os Atletas de Cristo favorecem nossas reflexões teóricas e consolida nossos objetivos. Os dados coletados foram balizados pela teoria da Análise do Conteúdo, de Bardin (1977). Finalmente, acreditamos, em tese, que religião e esporte são convergentes, relacionando-se por reforço mútuo sem perda de autonomia das partes INTRODUÇÃO Iniciamos o texto com a premissa de que pode-se -se não ser praticante de algum esporte e, igualmente, não pertencer a alguma religião, mas os dois fenômenos apresentam-se frequentemente relacionados em qualquer sociedade e cultura. Religião e esporte possuem fundamentos, preceitos e princípios distintos, que pretensamente se articulariam em seus significados. Muitos historiadores do esporte vinculam a sua criação e continuidade histórica reportando-se aos rituais sagrados das religiões. Tais considerações foram assumidas com base nos estudos sobre Olimpismo, tema de índice razoável de publicação no Brasil, conforme se pode 2 ver no levantamento feito por DaCosta e Miragaya (2008, p.37), em sua última revisão feita no primeiro semestre de 2008, desde que num total de: [...] 79 participantes brasileiros em estágios da IOA (Academia Olímpica Internacional) entre 1980 e 2007, sendo 24 em pós-graduação; a partir de 1993 houve adicionalmente 19 especialistas em eventos da IOA dedicados às Academias Olímpicas, sendo 8 pertencentes a órgãos de direção universitária. (...). Por iniciativa da AOB (Academia Olímpica Brasileira), o Brasil a partir de 1995 esteve representado por seis especialistas em „Congresos de la Asociación Iberoamericana de Academias Olímpicas‟ e por dois especialistas em Seminários Panamericanos de Academias Olímpicas. Em termos gerais, contavam-se em 2008 cerca de 16 mestres e 18 doutores – a maioria em Educação Física – em atividades regulares de Estudos Olímpicos no Brasil. Nestes termos, assumimos o Olimpismo1 como ponto de partida subsidiário do presente estudo, uma vez que esta doutrina traz em suas proposições, uma feição pressupostamente religiosa. Esta particularidade fundamenta-se na teoria do Barão Pierre de Coubertin que, em 1914, definiu o Olimpismo como “filosofia de vida” e, em 1917, compara-o a uma “religião atlética”, isto é, como uma disciplina comportamental do atleta. Essa caracterização supostamente religiosa do Olimpismo foi estudada por DaCosta (2006)2, a partir das declarações de Coubertin. E ao analisarmos esta particularidade do Olimpismo, buscamos reforçar a hipótese de relacionamento do esporte e, nele do Olimpismo, com nexos religiosos e por extensão com a religião evangélica na sociedade contemporânea. Tal vínculo, entretanto, necessitaria de demonstração e se tornaria justificável por serem, esporte e religião, fenômenos culturais (cerimônias, rituais, comportamento, formas de subordinação, dentre outros) antigos e persistentes da história da humanidade uma vez que, igualmente, ocorrem em diferentes culturas. A longa duração dessas duas práticas nos dá a oportunidade de tomá-los como objeto de estudo vis-à-vis metodologia da Nova História com seu foco central neste tipo de extensibilidade de fatos históricos. São dois fenômenos que comparados apresentam características comuns. Assim, partimos do princípio de que estaríamos diante de dois fenômenos comuns em qualquer sociedade no mundo ocidental, os quais além de serem produtores de sentido, dotam o indivíduo de sentimentos de pertencimento. Portanto, ambos se relacionam naturalmente por definição com as ciências sociais e humanas em nível de generalidades. Ademais, o estudo multidisciplinar dos campos religioso e esportivo com instrumental teórico da sociologia da religião e da sociologia do esporte também é 1 Tomamos o Olimpismo como doutrina que institui os Jogos Olímpicos na era moderna, em fins do século XIX. (DaCOSTA, 2007). 2 O autor, em seu artigo, dialoga com Moltman e Nikolaos Nossiotis e considera o Olimpismo, a partir das declarações de Coubertin, como paganismo, além de admitir o Olimpismo um tipo de doutrina, não de religião. 3 relevante, lançando novas perspectivas ao debate sobre a relação nestes campos entre si, sugerindo novos estudos e pesquisas. Contudo, como toda comparação, as semelhanças poderiam não se repetir nas particularidades dos fenômenos observados, solicitando então pesquisas pontuais e empíricas. Para a necessária perspectiva empírica do estudo, analisamos a religião e o esporte no Brasil, instituindo como fontes de observação o movimento “Atletas de Cristo” 3, objetivando analisar quais as interpretações religiosas que o grupo faz do binômio relacional esporte e religião. A escolha incidiu no Movimento dos Atletas de Cristo porque este adota o esporte como atividade legítima dos evangélicos pentecostais. Empiricamente, podese dizer que este movimento nunca adquiriu ou gozou de grande expressividade no contexto brasileiro, supostamente por conta da hegemonia católica identificada no país. Entretanto, neste caso a observação se mostrou pertinente por haver uma conjugação explícita do esporte com a religião. No que concerne a uma visão mais pontual da religiosidade dos Atletas de Cristo, sabe-se, historicamente, que no Brasil a religião de denominação evangélica4 tem se expandido de modo exponencial e visivelmente, talvez, como um dos fenômenos religiosos mais importantes ocorrido nos últimos tempos, sobretudo nas duas últimas décadas do século XX. Desta forma, nossa pesquisa, com característica multidisciplinar dos campos religioso e esportivo com elementos da sociologia da religião e da sociologia do esporte mostra-se relevante, pois, lança potencialmente novas perspectivas de debate sobre a relação desses dois campos, possibilitando novos estudos e pesquisas. A longa duração na história ou quase perpetuação da religião e do esporte nas diferentes culturas do mundo ocidental, nos dá a oportunidade de tomá-los como objeto de estudo. O PROBLEMA E QUESTÕES DA PESQUISA A partir das reflexões iniciais formulamos o problema da pesquisa, sob forma de um conjunto de questões a saber: i) seria o esporte um meio de promoção de religiões em determinadas circunstâncias ou até mesmo um elemento de substituição? Ii) teria o esporte mantido seu sentido religioso segundo o viés 3 O movimento Atletas de Cristo é formado por homens e mulheres evangélicas, inseridos em várias modalidades esportivas, sendo o maior número, no futebol. Outras informações sobre o movimento poderão ser adquiridas no site www.atletasdecristo.org 4 O conceito “evangélico” aqui usado refere-se a todos os seguidores das igrejas: protestantes, pentecostais e neopentecostais. É um movimento laico, evangélico e vinculado ao esporte, que também conta com a participação feminina, embora seja visível a superioridade numérica masculina, tendo como predominância o futebol. 4 explicativo de Coubertin para sua expansão e legitimação social? Iii) tais atletas, por suposto “evangelizadores”, passaram a ter maior penetração pública por se encontrarem inseridos nos dois campos aparentemente distintos? Para atender ao problema da pesquisa elaboramos os seguintes objetivos: 1) Identificar como se dá a relação entre Religião e Esporte no discurso dos Atletas de Cristo (relações estas que podem, em princípio, se dar por associação, integração, agregação). 2) Mapear categorias recorrentes dessa relação no discurso dos atletas de Cristo (pode ser uma relação de afinidade e proximidade em primeira instância). 3) Verificar se as religiões estão se apropriando de valores e práticas esportivas e/ou vice-versa. Em função do objeto ora em proposição, nosso grupo de informante foi constituído por cinco Atletas de Cristo de alto nível de competição esportiva, nas modalidades: futebol, karatê, remo e atletismo. Para a coleta de dados utilizamos um roteiro de entrevista semi-estruturada tendo como objetivo principal esclarecer as questões a investigar sobre o binômio relacional religião e esporte. Esse método de entrevista, pelas suas características, apresenta uma grande maleabilidade de aplicação, permitindo ao entrevistador um elevado grau de liberdade no sentido de poder encaminhar o informante, sem constrangimento, para os objetivos, definidos a priori, e, simultaneamente, permite incorporar idéias novas expressas pelos entrevistados (FRANCO, 2007). Os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e, mantidos no anonimato, salvaguardadas a exigência de identificação. ASPECTOS RELIGIOSOS Historicamente, a análise sociológica da religião ocupou um lugar central no trabalho desenvolvido pelos grandes sociólogos clássicos, como Max Weber, em sua obra “Ensaios de Sociologia”, (1982) e Émile Durkheim, “As formas elementares da vida religiosa”, (2003). As idéias destes dois grandes teóricos constituem, ainda hoje, o núcleo da sociologia da religião. A obra de Durkheim aborda o papel da religião enquanto perspectiva capaz de contribuir para a integração social. Weber centra sua análise nas diferentes formas de crença e de instituições religiosas, bem como do desenvolvimento de uma racionalidade que rejeite a pretensão das forças religiosas, como acreditava Durkheim, para mudanças sociais. Weber vai mais longe quando diz que “de um ponto de vista puramente ético, o mundo deve parecer fragmentários e sem valor, sempre que julgado à luz do postulado religioso de um significado divino da existência”. (p.248). 5 Em se tratando da presença da religião na vida dos indivíduos, nenhuma análise sociológica ou psicológica pura e simplesmente, teria sentido se não considerássemos que todo “o homem” é formado pela religião, antes mesmo de ter com ela uma relação consciente. (ENCICOLPÉDIA EINAUDI, 1994). Assim, consideramos que todas as religiões podem ser comparáveis, pois há elementos essenciais que lhes são comuns, podendo ser variáveis em seus elementos, templos, gerações, estruturação interna, dogmas e práticas. Para Durkheim (2003) a religião é sempre coletiva, pois pode revelar aspectos essenciais e permanentes da humanidade. A religião está fundada na “natureza das coisas”, e não sobre o erro ou a mentira, caso contrário não sobreviveria. A “natureza das coisas” figura sobre a realidade dando significação mais próxima a tal realidade. Para o fiel, por exemplo, tudo que lhe é concedido ou exigido, é real, que por suas próprias razões existem de fato, portanto, para o autor, “não há religiões falsas”. Isso traduz, em parte, a pluralidade, o encontro do diverso, favorecido, na atualidade, pela globalização, embora, alguns preceitos religiosos sejam imutáveis para algumas religiões mais tradicionais ou fundamentalistas. Outras mantêm suas identidades e seus aspectos comuns, mas buscam incessantemente atender às necessidades de seus seguidores que podem fazer escolhas tendo em vista a diversificação. Conceder à religião uma compreensão uníssona é como buscar apenas seu significado de crença e reverência ao sagrado. É nossa intenção nesta pesquisa ir mais além do simples significado, contextualizando-a com junto ao esporte, e é na multiplicidade de olhares e interpretações presentes na literatura selecionada, que a dificuldade de definição se mantém nestes dois fenômenos. De toda forma, nos lançamos na tentativa de tornar os objetos – religião e esporte – aliados e análogos num quadro de ações e práticas conjuntas. A religião é um repertório de interpretações que facilita a compreensão da vida e da história para as pessoas que a praticam. É nesse sentido, muitas vezes, que a religião constitui-se num sistema de sentido na medida em que se apresenta como uma mistura de elementos de onde as pessoas tiram as explicações e respostas às grandes perguntas, dúvidas e problemas da vida cotidiana. Tal argumentação pode finalmente buscar apoio na clássica definição de Geertz (1989), que em seu livro Interpretação das Culturas, onde sustenta a religião como “sistema cultural”, descrevendo-a como “um sistema de símbolos que atua 6 para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens.” (p.105). Independentemente das várias concepções da divindade, seja Deus, Alá, Buda, Jesus, dentre outros, da religião e das diversas expressões de religiosidade, a priori, é necessário que crente ou descrente, compreendamos o fenômeno com sua especificidade, para distingui-lo dos demais que se encontram nas mais diversas sociedades e culturas. Importante ressaltar que nesta pesquisa focamos nosso olhar para os evangélicos pentecostais. O MOVIMENTO EVANGÉLICO – um rápido panorama Historicamente sabe-se que a religião, de denominação evangélica se expande geométrica e visivelmente, talvez, como um dos fenômenos religiosos mais importantes ocorrido nos últimos tempos, sobretudo nas duas últimas décadas do século XX. Seguem padrões rígidos de disciplina com implicações sociais, com uma idéia de metodização e racionalização evidenciados analogamente na regularidade e estabilidade nos treinamentos e competições de atletas. (ANANIAS, 2007). Sua chegada ao Brasil deu-se no início do século XX, tendo sua explosão entre as décadas de 50 e 60, marcando sua visibilidade. Os mais recentes movimentos, os pentecostais, tornaram-se mais estruturais, orientando-se para o universo clientelístico de resposta às necessidades cotidianas (cura dos corpos, problemas afetivos, econômicos, profissionais, dentre outros), com a entrega de si ao Espírito Santo. (MACHADO, 2005; MONTEIRO, 1998; SANCHIS, 1997). O Pentecostalismo se caracteriza basicamente com a manifestação do Espírito Santo e do Sagrado, um de seus “sinais distintivos” em torno do qual giram os outros; assim há mais expressividade corporal durante os cultos, ou seja, o corpo começa a experimentar o contato com o sagrado cantando, dançando e louvando a Deus com liberdade de expressões, muitas vezes marcadas pela alegria. A glossolalia, o “falar em línguas” ou “linguagem dos anjos”, também se dá nos momentos de orações, durante os cultos e é considerada uma prova social da presença do Espírito Santo. O movimento evangélico seja, talvez, o fenômeno religioso mais importante ocorrido nos últimos tempos, sobretudo, nas duas últimas décadas do século XX, como resposta às necessidades cotidianas. Ao contrário do que se propala também como antes enfatizado, estes movimentos querem prestígio, respeitabilidade e reconhecimento social, com o objetivo de alcançar supostamente o triunfalismo e o intervencionismo. Acreditam na transformação da sociedade, cultivando por meio da fé e conversão individual, a conquista e a existência de um mundo melhor. A 7 visibilidade desses movimentos e seu impacto transformador e formador de opiniões, podem provocar mudanças de comportamento e hábitos culturais. O ESPORTE COMO OBJETO DE ESTUDO A importância que os gregos davam as atividades atléticas – versão original do esporte atual – pode ser analisada sob vários aspectos: educativo, como elemento fundamental de formação; utilitário, devido seu caráter guerreiro e militar; religioso, como forma de culto aos deuses; competitivo, na organização dos jogos atléticos; e estético, na busca da beleza física. Como evidências desta influência, podemos citar as construções voltadas à prática de atividades físicas, estádios, ginásios e palestras, bem como a realização dos Jogos Olímpicos, posteriormente, reeditados na era moderna (RAMOS, 1982). Este, talvez, o maior legado da Grécia Antiga para toda a humanidade, em virtude de sua abrangência, importância e permanência até os dias atuais. Neste contexto originário do esporte atual, cabe realçar o aspecto religioso que na Grécia atribui-se aos Jogos Olímpicos. Segundo relato de DaCosta (2002), a fonte primeva das Olimpíadas foi o culto da deusa Gaia (mãe terra), religiosidade bem reduzida, porém, por vezes identificada por outras influências de significado local. De índole similar seria o movimento “Cristianismo Muscular” na Inglaterra, no século dezenove, em consonância com a valorização pedagógica do esporte naquele período. É inegável que o esporte e a religião, nas últimas décadas, consubstanciaramse em manifestações culturais que mais se desenvolveram em diversos aspectos, identificando-se como fenômenos sociais e objetos de estudo em várias áreas de conhecimento. Religião e esporte possuem fundamentos, preceitos e princípios distintos, no entanto, se articulam e se entendem. Empiricamente, podemos dizer que não há “disputa” entre eles, a rivalidade está inserida no contexto de cada um destes fenômenos. A religião, na busca pelo maior número de adeptos e, consequentemente, maior visibilidade e, no esporte, a competição entre rivais, buscando dentre outros objetivos e interesses, a superioridade. O universalismo contido nos Jogos Olímpicos, também é o universalismo que a religião pleiteia e, ambos os fenômenos, caminham juntos sem se estranharem. Importante ressaltar que não é nossa intenção neste estudo, fazer uma leitura “econômica” ou empresarial dos dois fenômenos. Nosso olhar está voltado para um curso contínuo de trocas, assimilações, aproximações e afinidades. 8 Muito do que concebemos sobre esporte e religião, está fundada em Mauss (2003) sobre “fenômeno social total”, em que o autor acredita que, ambos, evidenciam uma sociedade, bem como, sua evolução e transformação. Estes fenômenos se manifestam como unidades universais, onde a atividade humana é o centro, ou seja, são campos de representação que revelam traços morais, culturais e intelectuais de um povo. Dentro dessa concepção Garcia (2007), também apresenta traços de religiosidade para o esporte: O espírito de luta e a representação de força, velocidade, resistência, habilidade, são atributos dos deuses que o esporte corporifica. Ao competir, ao lutar, ao tentar demonstrar nossa superioridade, estamos imitando os deuses. (p.66). O esporte tem seu espaço conquistado, referendado e consolidado e permite através de seu estudo verificar que suas características e singularidades exercem um fascínio e uma atração muito grande nas pessoas, conforme colocado por Helal (1989). justamente por se tratar de um momento especial, um contexto extraordinário, constantemente alimentado de mitos, casos, lendas e histórias fantásticas – „histórias de esporte pelo amor ao esporte‟ – (...) e outras como superação de obstáculos intransponíveis, levando atletas a condições de semideuses”. (p. 102). Apesar de toda essa apologia feita ao esporte, do refinamento de condutas sociais e pessoais sobre as emoções, não se pode negar que, para além desse momento mágico e sagrado, existe a penetração de domínios profanos, que o autor mencionado enumera como “a política, os negócios, e o profissionalismo, que representam no imaginário social, uma força que caminha na contramão desse processo” de divinização. (grifo nosso). (p.102). Os Jogos Olímpicos para o Barão Pierre de Coubertin, Representavam a institucionalização de uma concepção de prática de atividades físicas que transformava o esporte em um empreendimento educativo, moral e social, destinado a produzir reflexos no plano dos indivíduos, das sociedades e das nações. A esse „corpus‟ de valores Pierre de Coubertin chamou de Olimpismo. (TAVARES, 1999, p.15). Neste arcabouço podemos perceber a criação de um estilo de vida com objetivos que consideramos semelhantes ao de uma religião, ou seja, tanto o atleta como o fiel seguidor de alguma religião, terão que adotar estilos de vida para alcançar os objetivos através dos princípios quer de um ou outro. Se essa é a nossa proposta neste estudo, de aproximação dos fenômenos esporte e religião, então iremos respaldar nossa intenção com o excerto a seguir: O Olimpismo visa criar um estilo de vida baseado no prazer encontrado no esforço, no valor educacional do bom exemplo e no respeito aos princípios éticos fundamentais universais. (COI, 1997, p.8 apud TAVARES, 1999, p. 15). 9 Tal assertiva de autor nacional poderia perfeitamente se ajustar a determinadas religiões e, neste contexto de semelhança e por vezes de mútua integração, há que considerar os recentes avanços na pesquisa sobre a temática esporte e religião e vice versa nos países mais avançados em produção científica. O MOVIMENTO ATLETAS DE CRISTO Recentemente, alguns atletas profissionais de alto rendimento em várias modalidades esportivas passaram a ser conhecidos, no Brasil, não apenas pelo seu desempenho, mas também por suas convicções religiosas. Reunidos em torno de um mesmo universo evangélico, formam o grupo que se autodenomina “Atletas de Cristo”, com um total aproximado de seis mil atletas, segundo estimativa de uma das informantes entrevistadas. O movimento adota uma explicação “religiosa” da prática popular do esporte, sacralizando o espaço e o tempo de suas atividades de maneira a considerá-lo como campo de proselitismo. (AGUIAR, 2006; JUPPA, Jornal O Globo, 2009). Como tal, ele preconiza que o mundo inteiro pode ser alcançado com a mensagem da salvação que há em Jesus Cristo, utilizando a linguagem universal do esporte. Para isso baseiamse nos fundamentos da “fé cristã”. Em termos doutrinais, os Atletas de Cristo se definem como um ministério interdenominacional evangélico, aceitando todas as igrejas evangélicas como legítimas: protestantes, pentecostais e neopetencostais, não impondo nem impedindo a participação de seus filiados em qualquer denominação. Ou seja, deixa a cargo de cada atleta a escolha da igreja que deseja pertencer. Em razão disso, o movimento não se posiciona formalmente em relação às diferenças doutrinárias e aos pontos polêmicos, como algumas regras de conduta, existentes no campo evangélico. ATLETAS DE CRISTO – ORIGEM O Movimento Atletas de Cristo existe oficialmente desde 04 de fevereiro de 19845 e é uma entidade sem fins lucrativos que subsiste através de doações voluntárias. Tem como seu fundador o ex-atleta e goleiro do Clube Atlético Mineiro, João Leite. Depois de sua experiência de conversão surgiu a preocupação de propagação de sua fé entre os seus companheiros de profissão. Ele se uniu com um ex-jogador de basquete amador e pastor, Abrahão Soares, que na época dirigia a Mocidade para Cristo (MPC), com a intenção de “começar um trabalho de testemunho e de 5 Em alguns estudos encontramos as datas de 1978 e 1981 referentes à fundação do movimento. (AGUIAR, 2006; ANANIAS, 2007). Optamos pela data que é apresentada no site oficial www.atletasdecristo.org.br 10 evangelização no meio esportivo, alcançando vidas para Cristo”. O grande público começou a perceber a sua presença quando exemplares da Bíblia eram distribuídos aos adversários, geralmente no início das partidas. Em 1981, com a criação de um grupo de apoio formado com gente suficiente para suportar o nascimento de uma instituição é que o nome "Atletas de Cristo" passa a denominá-los como também às vezes a sigla ADC. Constam como fundadores de ADC no Brasil, João Leite da Silva Neto, seu primeiro presidente; Baltazar Maria de Moraes Jr., José Baltazar de Oliveira, Hélio Delvo Vilela, Hildo Zuge, Mirian Gomes Soares, Rita Maria Campos Leite Rocha e Abrahão Soares da Silva, George Foster, José Francisco Veloso, Ivênio dos Santos, Manfred Grellert e. Dervy Gomes de Souza. (AGUIAR, 2006). Em seu início, o movimento foi formado por atletas evangélicos que atuavam nas mais variadas modalidades esportivas e que pertenciam a diversas igrejas evangélicas sendo, por isso, um movimento paraeclesiástico. Assim caracterizado, o grupo teve como atribuição auxiliar as igrejas evangélicas e desenvolver projetos em comum com elas e com ministérios similares. O conceito “evangélico” aqui usado refere-se a todos os seguidores das igrejas: protestantes, pentecostais e neopentecostais. Em janeiro de 1983 foram criados os dois primeiros Grupos Locais de ADC: um em Curitiba, sob a liderança de Hildo Zuge e um em Salvador, tendo como líder Mário Lima. Em 1984 surgiu o Grupo do Rio de Janeiro, sob a liderança do Pastor Ezequiel Batista da Luz (Zick). Em 1985 surgiu o Grupo de São Paulo, com o trabalho do Johnny Monteiro. Depois vieram os grupos em Uberlândia, Joinville, Bauru e Recife. Atualmente há mais de cento e vinte Grupos Locais espalhados pelo Brasil. Num país onde o futebol é quase que idolatrado, e tendo jogadores de grande visibilidade em várias partes do mundo, estes atletas têm atuado como uma verdadeira vitrine e como referência no assunto. Entre os atletas renomados brasileiros há vários Atletas de Cristo que mostram com suas atitudes e em suas camisas, para um público importante em escala mundial, que Jesus os ama. Hoje, os Atletas de Cristo falam do amor de Deus no mundo todo “através da linguagem universal dos esportes”. Nosso objectivo principal é levar a mensagem que “Só Jesus Cristo Salva” a atletas profissionais, amadores, portadores de deficiência física, estudantes, militares e pessoas envolvidas directamente no desporto. Somos como um braço da igreja evangélica buscando alcançar pessoas que não estão sendo alcançadas, não por deficiência, mas devido a própria estrutura do desporto e a vida do desportista, (treinamentos, competições e estágios) que muitas vezes o impede de chegar até elas. Do pequeno grupo que deu início em 1981 hoje, passados pouco mais de 25 anos, estamos 11 representados em vários países do mundo através de atletas que são verdadeiros missionários no meio do desporto, levando a mensagem que a salvação e justificação do pecado é só pela graça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo. (ZICK, Diretor Geral de Atletas de Cristo na Europa. Disponível em: < http://jocum.pt/pt/index>. Acesso em junho 2008). No plano internacional, não é de surpreender, portanto, que a FIFA tenha dado início a uma rejeição ao que esta instituição chamou recentemente de „proselitismo religioso‟, como já referenciado nesta tese. Tal reação identificada em 2009 demonstrou a relevância do tema em seu aspecto esportivo além de reforçar a escolha dos Atletas de Cristo como respondentes à pesquisa. Assim disposto, pode-se retornar à revisão histórica do movimento que já em 1986 mostrava tendências a se desdobrar em outras modalidades esportivas além do futebol: naquele ano, o Diretor Executivo do Movimento passou a ser Alex Dias Ribeiro (ex-piloto de Fórmula 1), atuando à época como um ideólogo dos atletas. Nesse estágio, os produtos da grife „Atletas de Cristo‟ se resumiam a adesivos, porém atualmente contam com camisetas, jaquetas, bonés, e várias outras peças que divulgam sua imagem e ideal. Atualmente, o Movimento ADC conta com mais de seis mil atletas brasileiros e estrangeiros, atuando no Brasil e em vários de países, como Argentina, EUA, Portugal, Espanha, França, Itália, Turquia, Japão etc. (NUNES, [s.d]). Em termos doutrinais o grupo Atletas de Cristo se define como seguidores de princípios cristãos considerados inequivocadamente „fundamentais‟. Referencial teórico-metodológico Nossa amostra foi do tipo intencional com utilização de entrevista semiestruturada a fim de verificar as relações entre religião e esporte representadas pelos atletas.Os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e mantidos no anonimato. Os dados foram analisados sob o referencial teórico-metodológico da Análise de Conteúdo, sob a perspectiva das autoras Laurence Bardin (1977) e Franco (2007). Este procedimento metodológico “tem como ponto de partida „a mensagem‟, seja ela verbal (oral ou escrita), gestual, silenciosa, figurativa, documental ou diretamente provocada”. (FRANCO, 2007, p.19). Um dos procedimentos utilizados é a análise categorial, onde, a partir da totalidade do texto, classificam-se por frequência de presença ou ausência os itens de sentido direcionados à indagação do estudo em questão. No entanto, as categorias são como compartimentos que classificam elementos de acordo com os critérios do analista, ela não deve ser arbitrária, mas sim, “devem refletir os objetivos da pesquisa e ter como 12 apoio indícios manifestos e capturáveis no âmbito das comunicações emitidas” (FRANCO, 2007, p.27), atendendo às intenções e os objetivos da investigação. A Análise de Conteúdo se aplica a análise de textos escritos ou de qualquer comunicação reduzida a um texto ou documento, (FRANCO, 2007; BARDIN, 1977; BAUER & GASLKELL,2002). Priorizamos a entrevista semi-estruturada, objetivando compreender o sentido das comunicações de nossos atores sociais para reconstruir a representação de suas falas (interpretação) num contexto e texto organizados. A escolha do procedimento que consideramos mais adequado para a análise foi o de classificação segundo categorias6 (análise categorial), buscando o sentido das comunicações no momento do discurso (análise da enunciação, da fala), na tentativa de descobrir conteúdos e estruturas que confirmem nossas indagações. Na análise categorial, a partir da totalidade do texto, classifica-se por frequência de presença ou ausência os itens de sentido. As categorias são como compartimentos que classificam elementos de acordo com os critérios do analista. Estas categorias estabelecidas a priori pressupõem os resultados indicativos de nossos objetivos, no entanto, outras categorias poderão ser criadas de acordo com o que for emergindo do conteúdo das respostas de nossos informantes, no momento da análise e interpretação dos dados, o que se configura num procedimento explícito e fidedigno para fins de pesquisas. Finalmente, estabelecemos, a princípio, as seguintes categorias, de acordo com os objetivos da pesquisa: 1)Pontos de contato; 2) Pontos de aproximação e, 3) Pontos de associação. Análise dos resultados RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E ESPORTE NO DISCURSO DOS ATLETAS DE CRISTO Religião Mostrar o caminho e a verdade ( liberta da cegueira) Ler a Palavra Seguir Deus 6 Esporte Treinar diariamente Preparar técnica, física e psicologicamente Convergência Respeitar as diferenças de crenças Ter discernimento Respeitar o outro como alguém que Deus ama Alimentar-se bem Interseção Não houve interseção Bardin (1977) define como categoria a “passagem de dados brutos para dados organizados” (p.119) e, análise categorial como “operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos” ou contínuos. (p.153). (grifo nosso). 13 Propagar a palavra de Deus, a bíblia Crer no Apocalipse – tudo vai acontecer Orar pela vida de outras pessoas Denunciar crime de padres e pastores Conhecer a palavra de Deus Conhecer a Bíblia - ajuda no controle emocional Ser seu Senhor e Salvador Obedecer à palavra de Deus Ter fé em Cristo Superar o comodismo Descansar Ter disciplina Conciliar vida e esporte –ambos têm dificuldades Fortalecer o corpo e o espírito Ter regra Comprometimento Não- violência Ética Não fez referência Discriminação no esporte por ser atleta de Cristo Vitória: momento de oração Paixão Disciplina Persistência Obediência às regras Disciplina Disposição Entrega Paciência Vida íntegra Disciplina Concentração Convivência com as diferenças Não-agressividade Conciliação Coragem Ousadia Força Perseverança Aceitação da derrota Valor à vida Aceitação da derrota O esporte como ferramenta de evangelização Conhecimento de Jesus através do esporte Agregação de valores cristãos ao ambiente esportivo Salvação em Cristo é a verdadeira vitória Para introduzir a discussão sobre os resultados daremos mais ênfase aos pontos de convergência e fusão/intercessão, já que os pontos de aproximação (1ª 14 categoria) ficaram mais bem definidos como se pode ver nos fluxogramas mapeados anteriormente. As convergências nos remetem aos valores atribuídos, pelos informantes, ao grau de semelhança entre as práticas religiosas e esportivas, assim como, a definição dos conceitos, com base nos conhecimentos de cada um, valendo-se de teorias clássicas e contemporâneas. Embora os evangélicos tenham como uma de suas características o proselitismo como “militância religiosa”, não detectamos pontos que evidenciassem que religião tem se valido do esporte como um meio de promoção para se projetar ou se tornar visivelmente atraente. O esporte pode ser usado, como revisamos em estudos anteriores, para atrair, educar, “evangelizar”, mas não tem a função de doutrinar de modo efetivo e completo, ainda que dois dos atletas tenham se referido ao esporte como “porta de entrada” para a evangelização e, os outros dois, valeramse do objetivo primeiro do Movimento, que é levar a mensagem de Cristo, “a palavra”, como costumam dizer, através da “linguagem universal do esporte”. Nos pontos de associação/fusão/agregação (3ª categoria), categoria central do estudo pudemos considerar que há ainda pouca certificação de que na prática isto está ocorrendo, ainda que o Movimento dos Atletas de Cristo sugira essa associação. Portanto, ao invés de fusão ou associação, chamaremos de parceria ou convergência de valores e práticas vis-à-vis um mesmo propósito, sem, no entanto se fundirem. São como acordos feitos num processo de proximidade que nos parece, a princípio, com condições e possibilidades de agregação. INTERPRETAÇÃO E DISCUSSÃO É notável o fato de que, num país em que muitas vezes a religião é tratada como uma identidade nacional, também assim é tratado o futebol. Diante desta coincidência, percebe-se a ocorrência de um processo de configuração marcando a dinâmica destas duas instituições, revelando os poderes de ambas, possivelmente sem a perda da hegemonia de uma sobre a outra. Não há nenhum meio lógico que nos permita excluir nem o Movimento “Atletas de Cristo”, nem o esporte, como sistemas religiosos. Talvez, essa nossa especulação encontre reforço na idéia de Durkheim (2003): Para aquele que vê na religião uma manifestação natural da atividade humana, todas as religiões são instrutivas, sem exceção, pois todos exprimem o homem à sua maneira e podem assim ajudar a compreender melhor esse aspecto de nossa natureza. (p.4). Não se trata aqui de determinar argumentos forçosamente elaborados para dar sentido ao nosso objeto de estudo e investigação, sentido esse de querer tratar o 15 esporte, sobretudo o esporte de rendimento, como uma religião. Se a própria definição desta palavra já diz religare,(ligar novamente, re-ligar, juntar) isso nos autoriza tornar tal argumentação, um fato social. E é nesse sentido que buscamos em Durkheim uma das bases teóricas para alcançarmos parte de nossos objetivos nesta pesquisa. O autor observa ainda que, se a religião não tivesse raízes fincadas na realidade, não resistiria ao tempo e se tornaria irreal. O esporte, não está distante disso, pois tem suas raízes “fincadas na realidade” e resistiu e resiste ao tempo, e é real. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como o propósito geral de nosso trabalho era demonstrar a relação entre esporte e religião, pretende-se que este objetivo tenha sido atingido quando reanalisamos as abordagens teóricas sobre o tema por via entrevistas com os atores sociais, no caso, os Atletas de Cristo. Constatamos por meio de mapeamento de relações que há convergência, interseção entre as abordagens apresentadas, o que evidenciou uma aproximação entre esporte e religião. Há, em resumo, um diálogo, uma interlocução entre esses dois [fenômenos sociais postos em contiguidade no tempo e espaço. As convergências, em síntese final, representam uma grande interlocução entre as duas instituições, e os Atletas de Cristo são uma evidência desta postulação, isto é um grupo cuja imagem é construída com elementos tanto da religião como do esporte. Ademais, se religião é “religar,” “juntar”, o esporte cumpre, outrossim, este papel, pois conecta pessoas de todas as raças, crenças e culturas. Não há forças sociais tão grandes no mundo atual, capazes de unir pessoas de maneira tão regular em termos de valores humanos, como religião e esporte. Este fato, por si só, resume o que este estudo teve a intenção de demonstrar, e por esta razão de ter sido elaborado. Ou seja: a proposição em questão indica que religião e esporte são convergentes, relacionando-se por reforço mútuo sem perda de autonomia das partes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANANIAS, Elisângela Venâncio. Atletas em campo: movimento Atletas de Cristo como mediador nas relações entre campo esportivo e campo religioso. 2007. 98 fls. 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