DIDÁTICA E DIVERSIDADE NA SALA DE AULA
A PROFISSÃO DOCENTE E A PEDAGOGIA DA DIVERSIDADE
O mundo
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu
subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida
humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
– O mundo é isso – revelou. – Um montão de gente, um mar de
fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem
duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e
fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o
vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos
bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com
tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem
chegar perto pega fogo.
Eduardo Galeano
Comecemos por entender esta disciplina a partir do seu título. Para
Masetto (1997), a Didática como reflexão sistemática é o estudo das teorias de
ensino e aprendizagem aplicadas ao processo educativo que se realiza na
escola, bem como dos resultados obtidos. O que isso quer dizer? Que a
disciplina Didática tem por objeto de estudo esse tão complexo processo
ensino-aprendizagem e, principalmente, as reflexões em torno dele.
Essas reflexões têm na sua gênese a constatação da diversidade
presente em sala de aula. Mas, o que é diversidade? De acordo com o
Dicionário Aurélio, diversidade é: diferença, dessemelhança, dissimilitude. Ora,
isso nos é claro na medida em que nos lembramos de que dessemelhança é
algo presente em qualquer grupo de pessoas ou em que nos atemos à
realidade de que a escola é reflexo da sociedade na qual está inserida. Assim,
obviamente, há diferenças ou dessemelhanças ou dissimilitudes no ambiente
de sala de aula.
Até aqui esta constatação é algo fácil. Basta que apuremos nosso
olhar e nosso escutar para cada uma das diferenças entre seres humanos e
em diferentes ambientes. Difícil é lidar com ela quem dirige as situações de
aprendizagem em sala de aula, ou seja, o professor.
Por isso, em primeiro lugar, discutiremos a qualidade e a competência
na docência; em seguida, as dimensões dessa competência como condições
que permeiam o processo ensino-aprendizagem. Nesse contexto, poderemos,
então, refletir sobre a diversidade como a única possibilidade num ambiente
social e, em especial, na sala de aula. Complementando a disciplina, daremos
destaque à atuação transformadora do professor.
A PROFISSÃO DOCENTE E A PEDAGOGIA DA DIVERSIDADE
Para iniciar este estudo, analisaremos a competência e qualidade na
docência. Para tal, utilizaremos as reflexões de Terezinha Azerêdo Rios 1 no
seu livro Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade.
Esta autora contemplou-nos neste trabalho com importantes aspectos da
profissão docente, partindo do ensino competente.
O que é ensino competente? Poderíamos responder, simplesmente,
que é um ensino de boa qualidade. Mas é importante destacarmos que tanto
ensino competente quanto ensino de boa qualidade envolvem conceitos que
incluem: compreensão (o que é o termo, quais suas características) e extensão
(todos os que possuem as características que levam à compreensão).
Assim, comecemos a discutir qualidade, um termo de conceituação
retórica, ou seja, com um discurso primoroso, porém vazio de conteúdo.
Terezinha Rios faz uma incursão na história dos pensadores e traz a
compreensão deles para qualidade. Dois deles merecem destaque aqui.
Para Aristóteles (384-332 a.C.), a qualidade é compreendida na
relação com outros termos: a substância e a quantidade. A qualidade refere-se
ao “como é”, enquanto que a substância ao “que é” e a quantidade ao “quanto
é”. O “como é” dá significatividade à qualidade. Já Locke (1632-1704), divide as
qualidades em primárias e secundárias. As primeiras são as que se mantêm,
enquanto que as segundas são as circunstanciais.
Mas, e a Qualidade na Educação? É importante que tenhamos
consciência de que esta qualidade é diferente em diferentes culturas e
sociedades e em diferentes contextos históricos. Tanto o é que nas últimas
1
Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
décadas, no Brasil, a Qualidade na Educação tem sido vista por diferentes
concepções e práticas que se confrontam, avançam ou recuam. Desde a luta
pela escola pública e pela cultura nos anos 50; passando pelas reformas dos
anos 60-70 e a lei 5692/71, desqualificando a educação e seus profissionais;
pelo movimento de renovação pedagógica do final dos anos 70; pela qualidade
neoliberal do final dos anos 80; até repensar nosso projeto progressista,
reafirmando a qualidade sociocultural na educação atual.
Houve, também, no nosso país, a tentativa de “empréstimo da
indústria” do Programa de Qualidade Total para (sua transposição) a
Educação. Este programa teve sua criação na década de 50, na indústria
japonesa, e seus reflexos fizeram-se presentes na Educação brasileira na
década de 80. Eficiência, controle e produtividade são as bases da Qualidade
Total. “O que se deseja para a sociedade não é uma educação de qualidade
total, mas uma educação da melhor qualidade, que se coloca sempre à frente,
como algo a ser construído e buscado pelos sujeitos que a constroem.” (Rios,
2001: 74).
Educação de Qualidade é comumente entendida como algo bom ou
como sinônimo de “boa educação”. Questões aqui destacadas nos induzem a
perguntas como: toda educação possui qualidades? “Boa educação” é o
antônimo de “má educação”? A Educação pela qual lutamos carrega sempre
qualidades com valor positivo?
Enfim, como concebem alguns autores, de cujas idéias Terezinha Rios
compartilha, é importante que não nos sujeitemos à idéia de que Qualidade na
Educação seja uma expressão tão atrelada ao contexto histórico que nunca e
nada poderá conceituá-la. É preciso voltar esta investigação para a ação
educativa específica, a docência. Portanto, é necessário que investiguemos
também essa docência do ponto de vista da competência. “... de que docência
se fala quando se fala numa docência de boa qualidade? Que qualidades deve
ter a boa docência que queremos? Serão essas qualidades o que atualmente
tem sido chamado de competências?” (Rios, 2001: 75-76)
Competência ou Competências? O uso de plural ou singular, por
Terezinha Azerêdo Rios, é tomado como base para diversas discussões por
diversos autores em torno do termo no plural, (usado como sinônimo de outros
termos como capacidade, conhecimento, saber etc.) ou, no singular,
englobando esses mesmos termos em sua significação. Deste questionamento
podemos pensar em outros: competências de que se fala não seriam
componentes de uma competência? Podemos fazer referência a uma
competência parcial? Como a competência abriga a qualidade?
A referência às Competências é de uso recente por teóricos da
educação e em documentos oficiais desta área no Brasil. É um termo que
tende a substituir outras noções anteriores, como, por exemplo, de saberes e
conhecimentos (esfera educativa) ou de qualificação (esfera do trabalho).
Rios (2001) lembra Perrenoud (2000) quando define a competência
diante de determinada situação como a natureza dos esquemas de
conhecimentos do sujeito para a mobilização de recursos diante desta
situação. Explicando melhor: para Perrenoud, a competência é a capacidade
de agir eficazmente em um tipo definido de situação, que se apóia em
conhecimentos, mas não se reduz a eles, porém a como o sujeito os articula
neste “agir eficazmente”. Ainda Perrenoud, citado por Rios (2001), expõe a lista
das dez novas competências para ensinar:
1) Organizar e dirigir situações de aprendizagem.
2) Administrar a progressão das aprendizagens.
3) Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação.
4) Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho.
5) Trabalhar em equipe.
6) Participar da administração da escola.
7) Informar e envolver os pais.
8) Utilizar novas tecnologias.
9) Enfrentar os deveres e dilemas éticos da profissão.
10) Administrar sua própria formação contínua.
É importante que realizemos um “inventário” das competências para
procurarmos redelinear a atividade docente. Vamos partir da conceituação de
que competências são capacidades que se apóiam em conhecimentos e
“vasculhar” autores e documentos que assim, também, conceituem
competências.
Silva citado por Rios (2001: 79) define que “competências são
capacidades de natureza cognitiva, socioafetiva e psico-motora que se
expressam, de forma articulada, em ações profissionais, influindo, de forma
significativa, na obtenção de resultados distintivos de qualidade.”
Da mesma forma, também citado em Rios (2001: 79), nos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, encontramos:
“... O MEC chegou a um novo perfil para o currículo, apoiado em
competências básicas para a inserção dos nossos jovens na vida
adulta (...) tanto para o exercício da cidadania quanto para o
desempenho de atividades profissionais. A garantia de que todos
desenvolvam e ampliem suas capacidades é indispensável. (...) A
formação do aluno deve ter como alvo principal a aquisição de
conhecimentos básicos, a preparação científica e a capacidade
para usar as diferentes tecnologias relativas às áreas de atuação
(...). A nova sociedade, decorrente da revolução tecnológica e
seus desdobramentos na produção e na área da informação,
apresenta características possíveis de assegurar à educação uma
autonomia ainda não alcançada. Isso ocorre na medida em que o
desenvolvimento das competências cognitivas e culturais exigidas
para o pleno desenvolvimento humano passa a coincidir com o
que se espera na esfera da produção.” (Brasil/ MEC, 1999: 11,14,
25 e 26)
Algo, neste momento, é acrescentado ao nosso entendimento a
respeito do termo competência/competências, que é a sua validação no
mercado de trabalho ou na empresa. Isso porque o termo atrela-se aqui à
resolução de problemas (qualificação para tal). Trata-se da demanda do
mercado sem o acréscimo da demanda social. Nesse ambiente “ser
competente” é “resolver problemas”.
Essa idéia amplia-se um pouco mais na Administração de Recursos
Humanos no que se refere a uma ampliação de qualificação (formação para o
trabalho) para competência (atendimento ao mercado de trabalho). O ser
humano não é um recurso e nem o melhor recurso, o ser humano cria,
manipula, transforma, pensa sobre os recursos. Será competente um
profissional qualificado? A qualificação, como algo bom, é bom para quem?
Enfim, nessas últimas análises, o termo competência guarda o sentido
de saberes, habilidades, capacidades no campo de atuação e de qualificação
no espaço do trabalho. Mas, segundo a autora, o conceito de competência
como algo ideologizante está implícito no discurso para o trabalho pedagógico.
Porém, suas referências pressupõem flexibilidade, rompendo com modelos
fechados, o que toma um sentido inverso de discurso quando apropriado pelas
propostas oficiais. Indo ainda mais além, quando toma um sentido de ação
educativa a partir das práticas docentes.
A própria autora, ao delinear sua trajetória de discussão a respeito de
competência, mostra-nos o caminho investigativo percorrido por ela desde a
apresentação do conceito compreendido pela presença de dimensões técnica e
política, ampliado para a inclusão da dimensão ética e estética. Bem, sobre
isso trataremos mais à frente.
Por ora, importa-nos definir, mesmo que grosso modo, este termo no
âmbito da profissão docente, e, portanto, entendê-lo enquanto indispensável à
formação docente. Para tal, parecem-nos necessárias as palavras de Rios
(2001: 87):
“É no domínio da ética que se problematiza o que é considerado
bom ou mau numa determinada sociedade, que se questionam os
fundamentos dos valores e que se aponta como horizonte o bem
comum, sem dúvida histórico, mas diferente de um bem
determinado por interesses particulares e, muitas vezes,
insustentáveis (....) o bem comum é algo que se constrói no
esforço conjunto dos indivíduos, na superação das contradições
reais dos contextos sociais concretos, na instalação da
possibilidade de igualdade na diferença (...) É um bem coletivo ”
Portanto, a competência pode ser definida como um conjunto de
saberes e fazeres de boa qualidade, em que a referência é o bem comum,
garantida a presença da ética, da técnica, da política e da estética. Esta se
revela na ação, porém não é qualquer fazer que pode ser chamado de
competente, é necessário verificar a qualidade do saber e a direção do poder e
do querer que lhe dão consistência ou o saber fazer bem.
Um professor competente deve levar em conta as dimensões: técnica
(domínio dos conhecimentos e recursos para socializá-los); política (definição
de finalidades e comprometimento com os seus alcances); e ética (atitude
crítica ao definir, por exemplo, conteúdos, tendo como referência o bem
comum). A competência se constrói na práxis do agir concreto e situado do
sujeito.
É possível se falar em competência específica do professor? Sim, se
levarmos em consideração saberes a ensinar e domínio de saberes para
ensinar. É tarefa da escola desenvolver capacidades, habilidades e isso se
realiza pela socialização dos conhecimentos, dos múltiplos saberes.
Rios (2001) sintetiza suas discussões a respeito de qualidade e
competência docentes, destacando que:
competência e qualidade se relacionam, pois uma ação competente deve
possuir boas qualidades;
uma prática docente competente se constrói, é um processo;
o que se qualifica como bom tem caráter cultural e histórico, sendo
necessária uma atitude crítica.
Ainda trabalhando com o livro Compreender e Ensinar: por uma
docência da melhor qualidade, de Terezinha Rios, discutiremos agora as
dimensões da competência, tais como a autora nos apresenta.
A dimensão técnica: capacidade de lidar com os conteúdos – conceitos,
comportamentos e atitudes – e a habilidade de construí-los e reconstruílos com os alunos.
A discussão dessa dimensão é tratada por Terezinha Rios a partir do
termo techne formado pela conexão entre outros dois termos: poiésis, como a
produção que cria um objeto exterior ao sujeito e aos seus atos, e práxis, como
a ação com um fim em si mesma.
O que podemos traduzir desta associação entre poiésis e práxis?
A princípio, como a maneira ou habilidade especial de realizar algo.
Mas, se nos remetermos também à origem do termo techne teremos maior
clareza para o entendimento de dimensão técnica como a ação com poiésis, ou
seja, com a presença de uma dimensão também poética, que garante a
imaginação criadora dessa ação, que traz, como componentes dessa
habilidade técnica especial, a sensibilidade mais a razão.
A dimensão estética: presença da percepção sensível da realidade.
Vamos esmiuçar mais essa dimensão. O termo sensível é utilizado
pela autora como uma apreensão consciente ligada à intelectualidade, ou seja,
palpável, também, cientificamente falando.
A sensibilidade relaciona-se ao potencial criador e à afetividade
desenvolvidos num contexto cultural. É neste que o “afetar” um indivíduo
transforma-se em criatividade. Melhor explicando: uma obra de arte, por
exemplo, “afeta” um ou outro indivíduo, mas a sua capacidade de “afetar”
vários indivíduos que pertençam a um determinado contexto cultural faz, desta
obra de arte, criativa.
O que do nosso inconsciente se transforma em consciência
socialmente “bela”? Aquilo que, no nosso inconsciente, nos afeta no contexto
cultural ao qual pertencemos. Assim, a dimensão estética da competência
docente está intimamente ligada à criatividade e ao afetar o maior número
possível de alunos pela ação técnica (no sentido tratado acima) e criativa do
professor.
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