LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 237-243
Artaud, momo ou monstro?
Ana Kiffer
Do Momo ao Monstro
Queria apresentar a hipótese que tomará Antonin Artaud como semblante,
na história contemporânea da humanidade eurocêntrica, de uma monstruosidade
que se estabelece no conflito e combate com a sociedade e com a vida. Na linhagem do que ele mesmo esboçou a respeito de Van Gogh, o suicidado da sociedade
(ARTAUD, 1996). Reparem bem: suicidado não é suicida, mas também não é
assassinado. A monstruosidade de Van Gogh – Artaud se distanciará, portanto,
de uma historiografia dos monstros na cultura ocidental, onde esses aparecem
sempre atrelados a um mal de nascença, a uma deformação física congênita, a um
corpo monstruoso, e por isso mesmo desalmado, que vem indiciar o prenúncio e
o presságio de algum mal maior. No caso de Artaud – Van Gogh, a monstruosidade não se fará enquanto deformidade congênita, senão que se realizará na vida
do próprio infortúnio. Infortúnio esse que se apresentará numa conjunção entre
aquilo que Artaud tomou para si enquanto tarefa de prenunciar o mal, e o mal que
se abateu sobre a sociedade européia na primeira metade do século XX.
É claro que falar dessa conjunção significa re-visitar a temática das relações entre a arte e a vida, tão cara aos artistas vanguardistas, mas que permanecerá, em todo século XX, como “a pedra no meio do caminho”, sendo retomada
pelos neo-realistas ou pelo realismo socialista em literatura e, mesmo depois da
Segunda Guerra, por toda a edificação de uma arte engajada, como postulou o
filósofo Jean Paul Sartre no ensaio Que é Literatura?. Nos anos noventa, Gilles
Deleuze recolocará a questão sob outras bases, no ensaio intitulado Literatura
e Vida (DELEUZE, 1993). Essa amostragem só evidencia como ainda é fértil
recolocar essa mesma questão, de modo a resistir às evidências de um mercado
que quer o tempo todo nos convencer de modelos biográficos, autobiográficos ou
auto-ficcionais muito bem arrumados e estabelecidos.
É nesse sentido que proporei pensar a construção de uma monstruosidade
em Artaud, a partir do que chamarei aqui de monstro-grafia, num desejo expresso de que essa noção tensione a bio-grafia desse artista. Entendam, não se trata
de uma fobia formalista ou estruturalista que condena a biografia, trata-se de se
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apropriar dela, problematizando-a. Afinal de contas, quem saberia hoje dizer o
que define a vida, e mais além, uma história da vida?
Em 1924, Artaud envia seus poemas na tentativa de se fazer publicar na
Nouvelle Revue Française, a mais importante revista de literatura e arte da vanguarda francesa. O editor da Revista, Jacques Rivière, recusa em carta ao poeta a
sua publicação, explicando-lhe que seus poemas não eram suficientemente firmes
e bem acabados. Artaud responde à carta e nela escreve:
(...) meu espírito me abandona em todos os graus (...) há alguma coisa que destrói meu pensamento, alguma coisa que mesmo não me impedindo de ser isso
que eu poderia ser, me deixa, se posso dizer, em suspenso. (...) Gostaria que
compreendesse bem: já que não se trata desse mais ou menos de existência que
extravasa através do que a convenção chama inspiração, mas sim de uma ausência total, de um verdadeiro desperdício (ARTAUD 1976, I*, p. 24-28)104
[grifo nosso].
Rivière descobre, na leitura dessas cartas, uma originalidade ligada a uma
veracidade que o faz decidir publicá-las. A obra de Artaud nasce desse paradoxo:
“sou” publicado, autorizado à escrita, quando escrevo a impossibilidade de escrever. Essa impossibilidade será apresentada já aqui como um mal nevrálgico que,
mesmo não o impedindo de ser, o deixa em suspenso. Esse mal, foi lido na época,
e muito tempo depois, como sendo a doença de Artaud. Seria sífilis hereditária,
perguntaram-se médicos e críticos literários. Ou em 1937, atendido pelo jovem
psiquiatra Jacques Lacan, Artaud receberá o diagnóstico de psicose paranóica e o
prognóstico de que a psicose paralisará a sua capacidade criativa.
Também se sabe que suas fortes dores de cabeça levaram-no ao tratamento médico com láudano. Mais tarde, o remédio, a droga e o veneno se misturaram, como sabemos desde o pharmakon relido por Derrida (DERRIDA, 1991),
fazendo, por exemplo com que sua Correspondência amorosa com Gênica Athanasiou, publicada como Lettres à Génica Athanasiou (ARTAUD, 1969) seja um
interessantíssimo deslocamento do lugar literário das cartas de amor e do lugar
cultural do próprio amor, já que ali o amor se confunde com a mesma seqüência
da droga, do remédio, do veneno, do dinheiro, etc. Tensão necessária para que nos
104 “Je voudrais que vous compreniez bien qu’il ne s’agit pas de ce plus ou moins d’existence
qui ressorti à ce que l’on est convenu d’appeler l’inspiration, mais d’une absence totale, d’une
véritable déperdition. (...) Il y a donc un quelque chose qui détruit ma pensée; un quelque
chose qui ne m’empêche pas d’être ce que je pourrais être, mais qui me laisse, si je puis dire,
en suspens”.
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apropriemos desses lugares míticos da vida de Artaud. Mas, lá em 1924, o mal
que determinou a trajetória dessa obra em nascimento foi postulado pela própria
obra. Ou seja, de modo insuspeito, a Correspondência com Jacques Rivière viria
a traçar os rumos posteriores da escrita desse autor sob o signo do que sugeri aqui
pensar como monstro-grafia. Em 1937, de volta a Paris depois de sua viagem ao
México e à Serra dos Taraumaras, Artaud escreve livro enigmático que retoma
sob outro plano as questões que o fizeram debutar na escrita da Correspondência.
São As Novas Revelações do Ser, livro cujo autor assina “O Revelado”. Em início
de junho 1937, durante o processo para publicação desse livro, em carta à Jean
Paulhan105, Artaud escrevia:
Cher ami,/ Il ne faut même pas des initiales. Rappelez-vous. La correspondance
avec Rivière avait paru avec trois étoiles et de tout ce que j’ai écrit c’est peutêtre tout ce qui restera. Après 13 ans écoulés on dirait que j’en reviens au même
point mais le tour que j’ai fait était en spirale: il m’a mené plus haut (ARTAUD,
1982, VII, p. 180).
A espiral de Artaud é o gesto, por excelência, dessa escrita monstruosa.
Um segundo indício de uma monstro-grafia, ou de uma grafia monstruosa em
Artaud é a formulação do teatro da crueldade. O que significava essa proposta no
seio de sua obra e naquele momento histórico preciso, início dos anos trinta?
O Teatro da Crueldade se formulou para Artaud a partir, sobretudo, de seu
encontro com o teatro balinês. E, sobre este último, ele disse: “O primeiro Teatro
Balinês se sustenta na dança, no canto, na pantomima, na música, – é excessivamente pouco teatral, no sentido psicológico do teatro, tal qual o entendemos aqui
na Europa – remetendo o teatro, por conseguinte, ao seu plano de criação autônoma e pura, sob o ângulo da alucinação e do medo” (ARTAUD, 1994, IV). Ora, o
teatro da crueldade não se confundia com massacre, horror e sangue, mas sim com
esse mundo espectral, infantil, povoado de monstros. Ele permite, desse modo, ser
pensado muito mais pela linhagem medieval e oriental dos monstros, que, como
lembrou José Gil, foi elaborada numa relação de contraste e oposição (GIL, 2006,
p. 52), mais do que pelo mundo psicológico do indivíduo, seus medos e fobias.
Ao contrário, toda idéia do duplo, no teatro de Artaud, pressupõe a necessidade
de que o ator saia de si mesmo, para advir seu próprio duplo ou, como ele disse:
“o artista não é artista senão sob a condição de ser duplo e de não ignorar nenhum
dos fenômenos de sua natureza dupla”. Esse, aliás, era o vértice preponderante de
105 Jean Paulhan, que era em 1924 o secretário de Jacques Rivière, seria agora o diretor da
Nouvelle Revue Française.
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seu combate nos anos trinta em Paris, contra um teatro psicológico, reino de uma
comédia de costumes, feito para alimentar a gorda saúde dominante, como bem
sabemos ainda hoje!
A passagem do Teatro Alfred Jarry para o Teatro da Crueldade em Artaud, já é ícone de um adensamento dessa grafia monstruosa. Passagem ou tensão
criativa entre as figurações do momo e do monstro que acompanharam toda sua
trajetória. Isso porque, no Teatro Alfred Jarry, via-se já a ênfase recair sobre a
noção de um humor destruidor, que, como lembrou o crítico Carlo Pasi, se fazia
como provocação e revolta. Cito Pasi: “A vontade de escandalizar e sacudir as
certezas defensivas do público através de uma visão cáustica e inquietante do ser
encontra em Artaud um eco explosivo, e isso desde os primeiros manifestos do
“Teatro Alfred Jarry”” (PASI, 2002, p. 181). “Artaud considerava o humor uma
espécie de força de decomposição das faculdades racionais” (ibidem, p. 185).
Ora, esse humor destruidor de Jarry é que prepara o terreno para o teatro cruel.
Essa passagem significando apenas a radicalização de um projeto de obra e vida.
Um direcionamento cada vez mais drástico para essa zona difícil, ou esse limbo,
como diria o próprio Artaud.
Quando o poeta retoma a cena artística, em 1945, 1946, após sair de
nove anos interno em asilos psiquiátricos franceses durante a Segunda Guerra
Mundial, ele decide “encenar” um monólogo no Teatro do Vieux Colombier em
Paris, intitulado Tête à Tête avec Artaud le Momo, vale a pena transcrever aqui o
depoimento de Paule Thévenin, amiga e futura editora de Artaud:
Sabe-se quão fora do comum foi essa sessão e quantos desses que a assistiram foram por ela marcados. Eles se viram diante de um homem que se expôs
totalmente e muitos acharam isso insuportável. Antonin Artaud veio ao teatro
com três cadernos que continham um texto cuidadosamente preparado, assim
como cópias datilografadas de poemas que ele desejaria declamar. Teria sido o
confronto com o público muito forte? Ele, que diante dos amigos era um extraordinário leitor estava ali imerso na mais extrema dificuldade, sem conseguir ler
seus poemas, as folhas se lhe escapavam, se misturavam, caiam sobre a mesa.
Tinha-se a impressão de que ele se sentia impedido de dizer o que queria (ARTAUD, 1994, XXVI, p. 198).
Em carta posterior a André Breton, Artaud afirmará: “chegando diante do
público me pareceu que não haveria lugar para aquilo, que seria inoperante dizer
certas coisas diante de um público que não as queria ouvir, nem morder aquilo até
o fim” (ARTAUD, 1994, XXVI, p. 198).
Ana Kiffer
Nessa conferência, espetáculo sem cena ou cena sem espetáculo, vemos
efetivamente se romper a possibilidade de enunciação: sequer o momo enquanto
figura satírica ou carnavalizada da loucura e do excesso poderia dizer o que havia
a ser dito. Esse rompimento se deve ao dilaceramento das fronteiras que separavam o teatro da vida. Em 1937, pouco antes de ser preso e deportado da Irlanda
para uma França já implicada no nazi-fascismo, Artaud escreveu nas Novas Revelações do Ser, inspirado pelos estudos que empreendeu da cabala, do tarô e de
outras doutrinas místicas, o anúncio de uma catástrofe, através da imagem de uma
grande bola de fogo. Ali, ainda havia, para Artaud, a possibilidade de sair de si,
e em percorrendo outros duplos, investir num teatro curativo. Um teatro, decerto
ritualístico, que sacudisse as bases adoecidas da sociedade. Em 1947, no Vieux
Colombier, o Momo já não anunciaria a catástrofe, nem encarnaria o excesso e a
desmedida. Ele agora era o fruto mesmo dessa catástrofe, filho e testemunha ao
mesmo tempo. Monstro do que outrora foi Momo. Carlo Pasi observa:
Encontramo-nos aqui diante de sua última virada – Artaud o Momo, imagem
simbólica da opressão e da revolta. Nesse tête a tête a atmosfera é aquela de
que se sabe que viveu e que se traz na carne a certeza de que a subversão carnavalesca dos valores aconteceu de fato, mas não no sentido liberador, senão que
no maior massacre e fascismo que a humanidade já viveu. Quem, como Artaud,
profetizou o mal sugerindo ao mesmo tempo o seu remédio foi rejeitado (PASI,
2002, p. 193).
Artaud, o momo, é aí a encarnação do trágico e do patético, sua grafia se
libera da ortografia em direção a uma monstro-grafia, ele é a própria aberração.
Seus poemas não se escrevem mais sem que neles compareça essa letra que abandona a palavra, a sintaxe, o sentido para se unir física, sonora e brutalmente aos
corpos dos leitores, as glossolalias de Artaud são mais uma ênfase dessa grafia
monstruosa.
Vale lembrar José Gil quando diz que: “A inventividade, o extraordinário
movimento das figuras fantásticas opõem-se à imobilidade rígida das letras que
compõem a orto-grafia” (GIL, 2006, p. 58).
E desse modo, o Momo começa a ceder espaço para a múmia, figura
inquietante da morte que aparecerá como base para construção de seu primeiro
auto-retrato em Rodez em 1946. Momo, múmia ou monstro, o que importa aqui
sublinhar é a força e a evidência com que Artaud, em primeiro lugar, sofreu o fascismo da forma; segundo, colocou em cena o combate entre esse mesmo fascismo
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da forma e as potências invisíveis do informe; e, terceiro, alertou para os limites
mesmo da carnavalização como saída para os conflitos em sociedade.
Fascismo da forma X potência do informe
É mais uma vez José Gil quem nos lembra a tese Aristotélica que define
o monstro enquanto excesso de matéria não moldada, aquele que não foi exposto
à ação da forma (GIL, 2006, p. 76). David Lapoujade, em artigo sobre Samuel
Beckett, também alertará para a predominância, na cultura ocidental, do modelo
platônico-aristotélico onde somente através da ação se poderá inferir qualquer
potência. Cultura da produtividade e da virilidade, onde a potência da inação é
por completo rejeitada. Não por acaso personagens como Molloy, Malone (BECKETT) e Bartleby (MELVILLE) encontram seu destino trágico. Mais recentemente, Evelyne Grossman (GROSSMAN, 2003) vem alertando para o pacto
fascista da gestaltung, imagem gregária do pertencimento, produção de semelhanças.
O que entrevemos nessa trajetória de Artaud nos alerta para a necessidade presente de ainda questionarmos a fundo noções como forma e identidade, mas
também os seus contrários. Isso porque observamos de modo muito evidente a
presença contrastante de dois grandes discursos que invadem a cena cultural contemporânea. Um deles é aquele que vai em direção à edificação das identidades
minoritárias. Discursos ditos da “periferia” são os que surgem mais recentemente.
No entanto, não se pode deixar de sublinhar como essas mesmas noções serviram
à construção e manutenção dos grandes modelos hegemônicos de comportamento
e cultura, tendo sido sempre “financiados” por uma elite econômica e intelectual.
Outro discurso é aquele onde estamos sempre mais confortáveis, e que vai em
direção à crítica da própria edificação identitária e à necessidade de valorização de
conceitos antigos como hibridismo e mestiçagem. Parece-me que, para o avanço
dessa discussão, seria necessário repensarmos hoje, ao menos no âmbito da literatura, quais as relações entre a arte e a vida e como essas noções se agenciam nos
textos e na cultura. Indo um pouco mais longe, isso significaria pensar na função
fraterna da literatura hoje, tomando esse conceito de Deleuze em seu ensaio sobre
Bartleby (DELEUZE, 1993). Dito de outro modo: como nos colocarmos juntos,
de modo a produzir minorias menos identitárias que transtornem a lógica do eu,
do próprio e da propriedade?
Termino com um trecho da fala de Édouard Glissant, no último mês de
maio em Paris, numa comemoração difratária da “Memória dos escravos e de sua
abolição nas Américas e Oceano Índico”, que serviria de inspiração inicial ao de-
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sejo de criação de um comum nômade que busque percorrer a lógica binária do eu
e do outro, numa direção cada vez mais radical que possa, porventura, deslocá-los
de seus lugares de origem:
Quanto à memória dos povos, que se dissipam elas também, nós sabemos hoje
que a principal maneira de preservá-las é colocando-as juntas. Enquanto escutarmos sozinhos, em nosso meio, as misérias do mundo ou as suas glórias, ou
enquanto gritarmos sozinhos as nossas misérias e glórias, nós encurtaremos
nossa memória e nós desconheceremos essas dos outros106.
Referências
ARTAUD, Antonin. Oeuvres Complètes, Tome I*. Paris, Gallimard, 1976.
______. Oeuvres Complètes, Tome VII. Paris, Gallimard, 1982.
______. Oeuvres Complètes, Tome IV. Paris, Gallimard, 1982.
______. Oeuvres Complètes, TomeXIII. Paris, Gallimard, 1996.
______. Oeuvres Complètes, Tome XXVI. Paris, Gallimard, 1994.
______. Lettres à Génica Athanasiou. Paris, Gallimard, NRF, 1969.
DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris, Les Éditions du Minuit, 1993.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. São Paulo, Iluminuras, 1991.
GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D’Água, 2006.
GROSSMAN, Évelyne. La Défiguration, Artaud, Michaux, Beckett. Paris, Les Éditions de Minuit, 2003.
PASI, Carlo. “Humour Destruction” In: Europe, 2002 –Antonin Artaud. Paris, 2002,
179-194.
Ana Kiffer é Professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, atual coordenadora
da Pós-Graduação, autora do livro Antonin Artaud, uma poética do pensamento pela Editora
Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, A Coruña, Espanha, 2003.
106 Texto inédito, registro escrito da fala pronunciada por Glissant em Paris em maio de 2008.
Tradução minha.
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