O gradiente de umidade influencia a razão entre a área ocupada por
briófitas e liquens?
Claudia P. Paz
gradientes ambientais. Dependendo da
Introdução
Diversos organismos ocorrem
escala em que o ambiente é analisado
em ambientes que apresentam variações
podemos observar padrões relacionados
na disponibilidade de recursos. Essas
à obtenção e ao uso dos recursos que
variações
podem nos fornecer condições de prever
podem
ser
contínuas
e
aumentar ou diminuir gradativamente
a
ao
organismos em diferentes habitats no
longo
do
tempo
(gradientes
temporais) ou do espaço (gradientes
ocorrência
e
manutenção
dos
espaço e/ou no tempo (Givnish 1999).
espaciais). Um gradiente ambiental
Briófitas
e
liquens
são
temporal bem conhecido são as estações
organismos filogeneticamente distantes,
do ano. Nesse gradiente de temperatura,
porém utilizam recursos de forma
pluviosidade e incidência solar ao longo
similar e por isso quando eles co-
dos meses, ocorre uma variação na taxa
ocorrem pode haver competição pela
de crescimento das árvores como
obtenção de recursos. Tanto as briófitas
resposta à variação na disponibilidade
quanto
de recursos (Baker et al. 2003). Em
dependentes da umidade disponível no
gradientes
a
ambiente para o desenvolvimento das
disponibilidade de recursos pode variar,
estruturas vegetativas, reprodução e
por exemplo, conforme o relevo, uma
dispersão dos esporos. Briófitas são
vez que a distribuição de nutrientes no
plantas fotossintetizantes, porém não
solo pode variar gradativamente de
possuem
áreas mais altas (platô) para as áreas
armazenamento de água e nutrientes, e a
mais
sua reprodução depende da presença de
ambientais
baixas
(baixio),
espaciais
afetando
a
os
liquens
raízes
nem
são
altamente
tecidos
para
composição e abundância de plantas
água
(Zuquim et al. 2008). Para organismos
associações simbióticas entre algas e
sésseis,
recursos
fungos
que
depende de estratégias adaptativas e da
similar
às
a
obtenção
dos
(Glime
2007).
Liquens
apresentam
briófitas,
são
fisiologia
porém
são
tolerância às variações ao longo dos
1
considerados mais resistentes à seca
igarapé, assumindo que quanto mais
(Honegger 2008).
perto do igarapé maior é a umidade.,
Em florestas tropicais, onde a
Além disso, espero que a razão entre a
umidade do ar é geralmente muito
área ocupada por briófitas e a área
elevada, briófitas e liquens ocorrem
ocupada por liquens seja maior no lado
com muita freqüência nos troncos das
do tronco voltado para o igarapé do que
árvores. Sob condições de alta umidade
no lado oposto, assumindo que o lado
e incidência solar suficientemente baixa
do tronco voltado para o igarapé é mais
para não causar dessecação, briófitas
úmido do que o lado oposto.
podem apresentar taxas de crescimento
maiores do que a dos liquens (que se
Métodos
expandem a uma taxa média de cerca de
Realizei o estudo na reserva do
1 mm ao ano), e avançar sobre o espaço
Km 41 (02º 24’ S, 59º 43’ O), umas das
anteriormente ocupado por eles (Friedl
reservas do Projeto Dinâmica Biológica
2008). Em contrapartida, os liquens
de
podem ser favorecidos em locais onde a
(PDBFF/INPA/STRI) localizada a 80
umidade é relativamente menor, por
km ao norte de Manaus, na Amazônia
serem mais resistentes a seca, e
Central. O relevo da reserva é formado
poderiam avançar sobre o espaço
por platôs, baixios e vertentes que são
anteriormente ocupado pelas briófitas.
os
Assim, a área ocupada por briófitas e
característicos da região (Ribeiro et al.
liquens sobre troncos de árvores em um
1999).
Fragmentos
compartimentos
ambiente com variação na umidade
poderia variar de maneira previsível.
Meu
três
igarapés
orientados
são
A partir de um ponto em cada igarapé,
favorecidas em ambientes mais úmidos
estabeleci dois transectos de 30 m
e os liquens são mais favorecidos em
perpendiculares ao igarapé (um a leste e
ambientes mais secos. Espero, portanto,
outro
que a razão entre a área ocupada por
transectos. A partir do ponto escolhido
briófitas e a área ocupada por liquens
sorteei seis distâncias em cada transecto
seja maior quanto menor a distância do
e amostrei a árvore mais próxima com
que
as
testar
Selecionei para a amostragem
geograficamente no sentido norte - sul.
de
foi
geomorfológicos
a
hipótese
objetivo
Florestais
briófitas
a
oeste)
totalizando
seis
2
no mínimo 20 cm de diâmetro a altura
ocupada
do
árvores
briófitas:liquens foi utilizada como
amostradas. Evitei amostrar troncos
variável dependente em uma análise de
laminados, escamosos e fissurados e
covariância
busquei amostrar troncos com textura
distância do igarapé (gradiente de
similar no intuito de controlar um
umidade) e os lados do tronco foram
possível efeito de diferentes texturas de
utilizados como variável preditoras e a
tronco
orientação da vertente (leste ou oeste)
peito,
totalizando
no
36
estabelecimento
e
crescimento das briófitas e liquens. Para
por
liquens.
(ANCOVA)
A
razão
onde
a
como blocos.
calcular a área ocupada por briófitas e
liquens, fotografei os troncos a 1 m de
altura do solo, mantendo uma escala
centimétrica nas fotografias. Utilizando
o programa ImageTool® (Wilcox et al.
2002)
calculei
a
área
do
tronco
abrangida pela foto (utilizando a escala
como referência) e aárea colonizada por
Após uma análise preliminar dos
dados, detectei que a face de exposição
da vertente (leste ou oeste) poderiam
influenciar as variáveis mensuradas uma
vez que as diferentes faces estão
expostas a diferentes intensidades de luz
e, portanto, podem diferir quanto à
umidade. Por isso, para controlar esse
efeito utilizei a orientação da vertente
como um bloco nas análises estatísticas.
análises
utilizei
No lado do tronco voltado para o
igarapé a área ocupada por briófitas
variou entre 0% e 100% (média ± DP=
25,4 ± 27,5%), e a área ocupada por
liquens variou entre 0% e 100% (média
± DP= 30,7 ±31,4%). No lado do tronco
oposto ao igarapé a área ocupada pelas
briófitas ou liquens.
Nas
Resultados
a
razão
briófitas:liquens, calculada pela divisão
da porcentagem de área ocupada por
briófitas pela porcentagem de área
briófitas variou entre 0% e 94,9%
(média ± DP= 30,7 ± 31,9%) e a área
ocupada pelos liquens variou entre 0% e
78,3% (média ± DP= 18,84 ± 27,03%).
A razão média de briófitas:liquens foi
de 15,93 no lado do tronco mais úmido
e 19,89 no lado menos úmido. A razão
média ao longo do gradiente foi de
17,91. Não encontrei relação entre a
razão da área ocupada por briófitas e
liquens e a distância do igarapé, nem
entre a razão briófitas:liquens e o lado
o tronco, independente da orientação da
vertente (Tabela 1, Figura 1).
3
Tabela 1. Resultado da análise de covariância (ANCOVA) para a razão entre a área ocupada por briófitas
e a área ocupada por liquens em troncos de árvores amostradas na Reserva do Km 41, Manaus. SQ= soma
dos quadrados; g.l.= graus de liberdade.
SQ
g.l.
Orientação da Vertente
4281,8
1
Lado do tronco
101,4
Distância do igarapé
Lado x Distância
Erro
F
P
1
0,121
0,728
35,8
1
0,042
0,836
346,3
1
0,413
0,522
56083,5
67
Figura 1. Relação entre a razão briófitas:liquens (área ocupada por briófitas/ área ocupada por liquens) e
a distância do igarapé em troncos de árvores amostradas em uma floresta de terra firme na Amazônia
Central.
Círculos representam o lado do tronco oposto ao igarapé, e quadrados representam o lado do tronco
voltado para o igarapé. Formas cheias representam vertentes com face oeste, e formas vazias representam
vertentes com face leste.
4
umidade variam bastante ao longo do
Discussão
Ao contrário do que foi previsto
dia
não
dependem
somente
da
a razão entre a área coberta por briófitas
proximidade do igarapé, mas interagem
e a área coberta por liquens (razão
com outros fatores como, por exemplo,
briófitas:liquens) não está relacionada
a orientação da vertente, a inclinação do
com a distância do igarapé nem com o
terreno e a presença de clareiras.
lado
do
tronco.
possível
Além dos fatores ambientais,
explicação para isso é que apesar das
fatores bióticos poderiam causar uma
briófitas
variação na razão briófitas:liquens ao
serem
Uma
reconhecidas
organismos
altamente
dessecação,
provavelmente
como
sensíveis
a
longo do gradiente de umidade, como,
existem
por exemplo, os diferentes tipos de
espécies que apresentam mecanismos
substratos
fisiológicos que as permitem ocupar os
estabelecimento de briófitas e liquens.
ambientes mais secos Pharo & Zartman
Apesar de eu ter tentado controlar esse
2007). Assim, ainda que espécies de
fator selecionando um tipo preferencial
briófitas mais sensíveis a dessecação
de casca, ainda assim várias espécies de
deixem de ocorrer em áreas mais
árvores foram amostradas. Diferenças
distantes do igarapé, elas podem ser
entre as espécies de árvores quanto às
gradativamente substituídas ao longo do
características químicas e físicas da
gradiente por espécies mais resistentes,
casca poderiam afetar a ocupação de
mantendo
razão
briófitas e de liquens. Alguns tipos de
Outra
casca podem apresentar rugosidades ou
possibilidade é que talvez o gradiente de
pequenas fendas que aumentam a
umidade relacionado com a distância do
retenção de água e mesmo de esporos
igarapé seja muito sutil ou inexistente,
desses
já que a umidade na floresta como um
variações nas características químicas
todo é alta. Mesmo que a umidade seja
da casca do forófito, como por exemplo
um pouco maior próximo ao igarapé e
no pH, poderiam inibir ou facilitar o
na face do tronco voltada para o
estabelecimento
igarapé,
seria
liquens e briófitas (Glime 2007). A
suficiente para restringir a ocorrência de
estrutura da copa do forófito também
briófitas. Além disso, as condições de
pode influenciar a disponibilidade de
assim
briófitas:liquens
essa
a
inalterada.
variação
não
disponíveis
organismos.
e
para
o
Adicionalmente,
crescimento
dos
5
recursos. Em árvores com arquitetura de
poderiam excluir as briófitas ou reduzir
copa mais aberta, por exemplo, a
bastante a sua área de ocupação.
quantidade de água que escoa pelo
tronco
é
maior,
aumentando
Briófitas e liquens são grupos de
organismos
muito
diversificados
e
potencialmente o aporte de nutrientes
exibem uma grande variação quanto à
dissolvidos
pelas
adaptação e à tolerância a determinadas
&
condições ambientais. Essa variação
briófitas
para
e
aquisição
liquens
Scheidegger
2008).
(Budel
Características
pode
dificultar
as
interpretações
intrínsecas do forófito, portanto, podem
generalizadas sobre a ocupação desses
favorecer
organismos em gradientes ambientais.
ou
dificultar
o
estabelecimento das briófitas e liquens,
Assim,
o que pode interagir com o gradiente de
características intrínsecas às espécies de
umidade e dificultar a detecção de
briófitas e liquens e das características
possíveis padrões relacionados a esse
fisiológicas
gradiente.
compreendermos
Razões muito baixas entre a área
o
conhecimento
são
de
fundamentais
para
os
que
fatores
determinam sua distribuição no espaço.
ocupada por briófitas e a área ocupada
por liquens nas proximidades do igarapé
Agradecimentos
poderiam ser explicadas por efeitos
Para a realização deste trabalho
alelopáticos produzidos por algumas
agradeço
espécies de liquens (Fahselt 2008). De
Bernadete),
fato, algumas espécies de liquens são
Silva) e Leletícia Soares por me
conhecidas
por
produzirem
ácidos
ajudarem nas coletas de campo, subindo
liquênicos
que
podem
impedir
e descendo vertente. Ao Dé Junqueira e
e
o
o Zé Luis pelas correções (que não
estabelecimento de briófitas e epífitas
foram poucas) e pela paciência. Ao
vasculares (Keech et al. 2005). Em
Paulinho Henrique por tornar nossa vida
ambientes
mais colorida nesses dias. Ao Glauco
quimicamente
a
germinação
onde
disponibilidade
existe
de
grande
recursos,
ao
BB
(Marcel
Musguinho
Vaz
(Daniel
+
C.
a
Machado pelos sábios esclarecimentos.
competição por espaço pode ser intensa
A todos os amiguinhos que ofereceram
(Begon et al. 2006). Assim, os liquens
sua ajuda e/ou fizeram massagens nas
que produzem compostos alelopáticos
minhas
costas
quando
eu
estava
6
“subindo pelas paredes”. Pelos dias
Cambridge:
maravilhosos de curso, agradeço a todos
University Press.
os colegas, sem exceção (vide lista de
alunos,
professores,
Cambridge
Givnish, T.J. 1999. On the causes of
monitores,
gradients
in
tropical
tree
auxiliares, barqueiros...). Aos bonitões
diversity. Journal of Ecology,
que foram colírio para nossos olhos e
87:193-210.
alegria para nossos corações. A todos os
Glime,
J.M.
2007.
Physiological
professores que passaram pelo curso e
ecology.
nos ensinaram tanta lições. Agradeço a
Technological University.
todos que fizeram parte dessa vivência
Fahselt, D. 2008. Individuals and
inesquecível. A floresta amazônica por
population of lichens, pp. 252-
nos inspirar a cada novo dia e fazer
273. In: Lichen biology (T.H.
valer a pena todo o esforço.
Nash
Michigan:
III,
ed.).
Cambridge:
Cambridge University Press.
Friedl,
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Baker, T., D.F.R.P. Burslem & M.P.
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tree
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soil
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Lichen biology (T.H. Nash III,
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Cambridge
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fertility and water availability at
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local and regional scales in
39. In: Lichen biology (T.H.
Ghanaian tropical rain forest.
Nash
Journal of Tropical Ecology,
Cambridge University Press.
19:109-125.
III,
ed.).
Cambridge:
Keech, O., C. Carcaillet, & M.C.
Begon, M., C.R. Townsend & J.L.
Nilsson. 2005. Adsorption of
Harper. 2006. Ecology: from
allelopathic
individuals
wood-derived charcoal: the role
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Oxford: Blackwell Publishing.
Büdel, B. & C. Scheidegger. 2008.
Thallus
morphology
and
compounds
by
of wood porosity. Plant & Soil,
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Pharo, E.J. & C.E. Zartman. 2007.
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Bryophytes
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biology (T.H. Nash III, ed.).
landscape:
the
a
changing
hierarchical
7
effects of habitat fragmentation
Wilcox, D., B. Dove, D. McDavid & D.
on ecological and evolutionary
Greer. 2002. Image Tool for
process.
Windows.
Biological
Conservation, 35: 315-325.
Ribeiro, J.E.L.S., M.J.G Hopkins, A.
San
UTHSCSA.
Zuquim, G., F. R.C. Costa, J. Prado &
Vicentini, C.A. Sothers, M.A.S
R.
Costa,
Distribution
J.M.
Brito,
M.A.D.
Braga-Neto.
Souza, L.H.P. Martins, L.G.
communities
Lohmann, P.A.C.L. Assunção,
environmental
E.C. Pereira, C.F. Silva, M.R.
Central
Mesquita
Procópio.
Biodiversity
1999. Flora da Reserva Ducke.
10:241-246.
&
L.C.
Antonio:
of
2008.
pteridophyte
along
gradients
Amazonia,
&
in
Brazil.
Conservation,
Guia de identificação das plantas
vasculares de uma floresta de
terra-firme
na
Amazônia
Central. Manaus: INPA.
8
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