INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS
Milton Marques Júnior
Caros Alunos,
Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-lhes o
mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da leitura de textos
escolhidos de seus principais autores, como Homero e Virgílio, no gênero épico,
e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero dramático. Com a leitura dos autores
escolhidos, teremos condições de compreender um conceito sobre o Clássico e a
funcionalidade das literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas
especiÞcidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a perceber a
obra de Homero e de Virgílio como textos deßagradores do fenômeno literário do
Ocidente, importantes, portanto, para a nossa cultura.
O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias para perceber
na nossa época e na nossa cultura os elementos de um mundo antigo que muitos
supõem morto e enterrado no passado. Apenas com o contato direto com os
textos do passado é que teremos condições de entender o processo de evolução de
nossa cultura e o modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao
reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais especiÞcamente,
na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la melhor.
A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira unidade
mostrará uma introdução e contextualização do mundo clássico greco-latino; a
segunda unidade visa ao estudo de Homero, com a leitura detalhada do Canto
I da Ilíada; a terceira unidade pretende dar uma visão genérica dos autores do
teatro trágico, e a quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do
Livro I da Eneida.
No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita continuamente,
através de exercícios e questionários periódicos; participação nos debates no
fórum ou on-line e, evidentemente pela contribuição dada por cada um, a partir
da reßexão sobre temas discutidos nas aulas.
Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do material
que preparamos.
Professor Milton Marques Júnior
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UNIDADE I
UMA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS
1.1 Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação
1.1.1 O Clássico no mundo de hoje
Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula, diferentemente
do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros itens. Qual o sentido
desta diferença? Acreditamos que o termo esteja tão banalizado – característica
do mundo moderno, imediato e informatizado em que vivemos – que se torna
difícil entender o que é o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com
a mesma velocidade com que aparece e desaparece, nada é clássico, obviamente.
É isto mesmo: se tudo é clássico, nada é clássico. Não há mais distinção possível.
Mundo da imagem, não da reßexão; mundo da concepção de que a aprendizagem
é fácil e não diÞcultosa; mundo da atração que vem de fora e não da curiosidade
que vem de dentro. É nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer
coisa de somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não
há, então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta pergunta,
passemos a veriÞcar como o termo se constrói ao longo do tempo, para ser
destruído pela modernidade em que vivemos.
1.1.2 O Clássico na Grécia
A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora em
maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na Grécia e
em Roma, durante o período que se convencionou chamar de Antiguidade
Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas idéias, nem sempre
ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele denomina. Que se trata de uma
antiguidade é um fato inquestionável; que essa antiguidade é totalmente clássica,
isso é plenamente discutível. Comecemos por determinar esse período.
Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a História,
dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história ocidental, chamaram
de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo tempo entre os séculos VIII a. C.
e o século V da Era Cristã. Assim, a Antiguidade Clássica vai da redescoberta da
escrita pelos gregos (século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente,
no ano 476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros,
provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como podemos ver,
trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas pessoas, e não me reÞro
necessariamente aos historiadores, aludem a esses 1300 anos como se fossem um
coisa só! Nada mais errôneo. As duas principais culturas da Antiguidade Clássica
– a grega e a romana – se assemelham, mais esta àquela do que o contrário,
mas são diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos
diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no comércio...
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Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período cultural
da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece pouco, não? Possolhes aÞrmar, contudo, que se o conhecimento produzido, digamos, nesses cem
anos tivesse sobrevivido na íntegra, os estudiosos teriam matéria para muitos
e muitos séculos de estudo... Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa
de que tenham sido produzidas mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas
sobreviveram... É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior
nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura um bem
de valor incalculável.
Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da tirania;
a ÞlosoÞa questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita ganha relevância
jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico mostra que a humanidade
precisa de homens, não de heróis; cria-se o conceito de cidade (pólis) e de cidadão
(polites), e o direito é comum a todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de
escritores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e
de Þlósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na Ática, é o
palco de todas essas transformações. Veja o mapa abaixo.
1.1.3 O Clássico em Roma
Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é necessário
que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta cidade que dominaria
o mundo, primeiro pelas armas, depois pela herança cultural, começou como
uma simples vila de pastores, na metade do século VIII a. C., em 753. A Roma
que nos interessa, mais especiÞcamente, neste tópico, é a Roma compreendida
entre o século I a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro
do mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, apesar
de conturbado momento político que vai da transição da República ao início
do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando pelas guerras civis. A Grécia
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também viu seu momento especial ser marcado pelas guerras contra os persas
(início do século V a. C., cerca 499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do
Peloponeso (431-404 a.C.).
Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do aparecimento
da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o romance de costumes com
Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse intervalo se produziu o melhor da
literatura latina com o aparecimento de grandes poetas, protegidos por Mecenas,
amigo do imperador Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa
época também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17 a. C.),
poema que celebra a glória de Roma, na Þgura de Enéias, o troiano incumbido da
ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que daria origem à mais gloriosa das
cidades. É o período que se costuma chamar de Século de Augusto. Veja no mapa
abaixo a localização de Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e
estratégica no Mediterrâneo.
1.1.4 O Classicismo
Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico, período
que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade cultural e literária,
é de se esperar que estas características sejam irradiadas ao longo da história da
humanidade e recuperadas ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o
mundo moderno e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados
pelo humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento ÞlosóÞco,
artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra pela Europa ocidental,
tem como desdobramento natural o Classicismo. O Classicismo europeu se
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conÞgura para nós brasileiros na obra do português Luís Vaz de Camões (15251580), principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da gloriÞcação da
navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias, permitindo a
expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de navegação, até então,
desconhecida. O poema retoma a tradição da épica clássica de Homero e Virgílio,
na exaltação dos feitos heróicos de um povo, de uma nação ou de um herói, com
a exaltação centrada na Þgura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524),
tomado metonímica e Þccionalmente como a nação lusitana.
Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O Classicismo
é por deÞnição um movimento cultural que visa ao retorno do Clássico, em
outra circunstância, com outros objetivos. A nova Europa que nascia das
grandes navegações, a partir de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos
turcos otomanos, era o campo propício para a volta dos grandes heróis épicos,
navegadores, cujo símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais ÞlosóÞcos
de busca da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de
base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero (14831546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de indulgências, em
1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o protestantismo signiÞca perda
da hegemonia da Igreja Católica. O mundo que se descortina com novas culturas
leva a novas reßexões, e a própria conÞguração do universo se modiÞca com o
heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e
outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como centro desse
universo – antropocentrismo – em oposição ao teocentrismo medieval. É isso que faz
o gênio de Leonardo da Vinci (1452-1519), quando imagina e desenha O Homem
Vitruviano. Nada mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas...
108
1.1.5 O Neoclassicismo
Como última representação do Clássico greco-latino toma força, no
século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da racionalidade
iluminista. Tratava-se de um movimento literário nascido na Itália, desde 1690,
com a Arcádia Romana, e continuado em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de
onde chegaria ao Brasil e ßoresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante.
O ideal do movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade
de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos deuses
e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e generosa se
encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida simples, em meio à
natureza deleitosa, sem preocupações com o amanhã, que se perde diante da
ganância do homem, tem sua origem no poema Os trabalhos e os dias, do poeta
grego Hesíodo (século VIII a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo
nome do movimento – Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável.
Esse momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo
Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o Clássico da
Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina em ambos. Podemos
dizer que o Clássico greco-latino é contemporâneo de si mesmo, procurando o
seu próprio mundo e seu próprio tempo. O Classicismo surge em um momento
propício ao retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada
pelas grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um
passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a natureza
acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de um tempo mítico
e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens brutalmente jogam-se uns
contra os outros e a queda é fatal: na Idade de Ferro em que se encontram, não
há mais espaço para Vergonha (Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram
de seu convívio. Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito
menos com os deuses...
Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por exemplo, a
obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) Marília de Dirceu.
1.1.6 Há espaço para o Clássico?
“Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para
ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de
papel impresso da atualidade?”
Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo Calvino
(1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estudam e que pretendem
conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que somos ainda esmagados
por uma avalancha muito maior de informações incorpóreas do mundo
virtual da internet, que torna quase impossível uma reflexão sobre
elas. A rapidez e a quantidade da informação produzida, em ambiente
sedutor de alta tecnologia, contribuem para que se afaste o leitor do
livro e, mais especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo
antigo, obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é
inaudível ou quase.
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Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado como um ciclo,
permanece, porque fundado em valores universais e entranhados no ser humano.
O Clássico vive em permanente estado de movimentação, o que lhe garante a
eternidade. Há dois mil e oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado
e analisado. Nenhum outro autor na história da humanidade ocidental é tão
prestigiado quanto Homero. A Ilíada e a Odisséia continuam encantando gerações
e gerações de leitores, Þlmes continuam sendo feitos, em cada página há ainda
um mundo a se descobrir com relação a estes poemas, incansavelmente editados,
para Þcarmos apenas com Homero.
E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas,
inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta direta e
on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V a. C.) e verão que
o sistema de fogueiras acesas ao longo das ilhas do mar Egeu para dar a notícia
a Clitemnestra do retorno do rei Agamêmnon à Grécia,
acabada a guerra de Tróia, antecipa em, pelo menos, 2500
anos a internet...
Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é
de escolas, bibliotecas e uma melhor formação dos nossos
professores – parece que para isto é que não há espaço,
infelizmente –, pois para onde nos voltamos vemos a marca
viva do passado em nossas vidas, nos nossos nomes, nos
nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até
como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à
maneira de Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do
que não ler os clássicos” (1993: 16).
De forma a Þxar o exposto até aqui, propomos a
Busto de Homero
leitura acompanhada de uma das Liras de Marília de
(Museu do Louvre) Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua
erudição, passeia pela antiguidade greco-latina de Homero
a Horácio, passando por Virgílio e pelos ciclos da mitologia grega. Não há como
ler o narcisismo de Dirceu, sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as
penas e diÞculdades do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores
trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o aproveitamento
sadio da vida, na paz do campo, pelos pastores, sem preocupações com o
amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só é possível
com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso,
pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de
entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer
à tona essa relação existente nas diversas Liras, os seus
temas recorrentes e reescrituras, como a beleza divina de
Marília, os sofrimentos provocados por Amor e a exaltação
do carpe diem horaciano.
Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase
5000 versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas,
dividido e publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799
e 1812. O texto que vamos abordar, a Lira VII, pertence à
primeira parte do poema que trata do amor do pastor Dirceu
Fragmento da
por sua amada, a pastora Marília, cuja beleza é ressaltada e
Ilíada
110
enaltecida. De beleza divinizada, Marília chega a ser louvada como mais bela do
que as três deusas olímpicas, padrões da beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite
(Vênus) e Palas Atena (Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não
deixa de fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua mocidade, sua
força de mando e propriedades, além de sua destreza como poeta. É a parte
mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, reßete a natureza
equilibrada do mítico mundo clássico. É importante ressaltar a forte presença
mitológica, imprescindível para a compreensão do poema. Vamos à Lira VII1.
Lira VII
Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? se eu não vejo
Quem me empreste as Þnas cores!
Dar-mas a terra não pode;
Não, que a sua cor mimosa
Vence o lírio, vence a rosa,
O jasmim e as outras ßores.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
1
GONZAGA, Tomás
Antônio.
Marília
de
Dirceu. In: A poesia dos
inconÞdentes:
poesia
completa de Cláudio
Manuel da Costa, Tomás
Antônio
Gonzaga
e
Alvarenga
Peixoto;
organização de Domício
Proença Filho; artigos,
ensaios e notas de
Melânia Silva de Aguiar
et alii. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1966, p.
583-584
Mas não se esmoreça logo;
Busquemos um pouco mais;
Nos mares talvez se encontrem
Cores, que sejam iguais.
Porém não, que em paralelo
Da minha ninfa adorada
Pérolas não valem nada,
Não valem nada os corais.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Só no céu achar-se podem
Tais belezas como aquelas,
Que Marília tem nos olhos,
E que tem nas faces belas;
Mas às faces graciosas,
Aos negros olhos, que matam,
Não imitam, não retratam
Nem auroras nem Estrelas.
111
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Entremos, Amor, entremos,
Entremos na mesma Esfera;
Venha Palas, venha Juno,
Venha a Deusa de Citera.
Porém, não, que se Marília
No certame antigo entrasse,
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do Céu.
Trata-se de uma Lira constituída por quatro estrofes de doze versos
heptassílabos, nitidamente dividida em um agrupamento inicial de oito versos
(oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou quarteto), funcionando como
refrão, em que se observa uma mudança apenas na última estrofe, tendo em vista
a inutilidade do esforço de Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a
beleza de Marília. O esquema das rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG,
observando-se a existência de versos brancos.
Marília é retratada como pura e recatada, pois “sua cor mimosa/Vence
o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras ßores”. Sua beleza é sem igual,
superando as cores vivas dos corais e a brancura leitosa das pérolas. Preparase já nessa estrofe a divindade de Marília, com Dirceu chamando-a de “ninfa
adorada”, numa referência às divindades protetoras dos bosques, e da natureza
de modo geral, encarnadas por mulheres extremamente belas.
A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais brilhante
que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável pela abertura
das portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a saída de Apolo
cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe, fecha-se o ciclo: Marília
é constituída por algo superior aos quatro elementos básicos – terra, água, ar
e fogo – vez que não existe nestes quatros elementos nada comparável à sua
beleza.
A última estrofe é a conÞrmação dessa beleza com a alusão à disputa do
Monte Ida. Marília é confrontada com as três deusas olímpicas, consideradas
padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas Atena (Minerva) e Afrodite
(Vênus), aqui chamada pelo epíteto de Deusa de Citera. Recuperemos a história
mítica.
Palas Atena, deusa da sabedoria participa de um concurso de beleza,
envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais bela presente
na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais de Aquiles. A deusa
Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe darem atenção durante o casamento de
Peleu e Thétis, fez surgir entre os convidados um pomo de ouro, destinado “à
mais bela”. Prontamente as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto.
112
Zeus, não querendo decidir uma questão tão delicada, chamou Hermes e
mandou que ele as levasse ao Monte Ida, onde o pastor Páris faria a escolha.
Apresentando-se diante de Páris, cada uma das deusas tentou subornálo. Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibilidade na
guerra; Afrodite, desnudando os seios, garantiu-lhe o amor da mais bela
das mulheres, Helena da Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris entregou
o pomo a Afrodite, fazendo o ódio das outras duas se voltar contra si e
contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a guerra de Tróia,
desencadeada pelo rapto de Helena por Páris, ocasião em que Palas e Hera
se colocarão ao lado dos gregos, portanto, contrárias a Páris e aos troianos,
protegidos por Afrodite
Afrodite aparece no texto da Lira através de um dos seus vários epítetos
deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos duas tradições
são registradas: a primeira aÞrma que Afrodite seria a Þlha de Zeus e Dione,
conforme vemos na Ilíada, de Homero (V, 370-372; XIV, 224; XXIII, 185); a segunda,
defendida por Hesíodo, apresenta a deusa como Þlha de Urano e das espumas do
mar (versos 134-210). De acordo com a versão da Teogonia de Hesíodo, Urano teve
o órgão sexual cortado e atirado por seu Þlho Cronos ao mar. Assim, da mistura
do esperma do deus com as espumas, teria nascido Afrodite. Tão logo nasceu, a
deusa foi conduzida pelas ondas, ou por ZéÞro, o vento, para a Ilha de Citera, daí
o seu epíteto de Citeréia.
Páris, Þlho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado pelo
pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como futuro
responsável pela destruição do reino. Por piedade, o pastor incumbido de tal
tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido por Cassandra, sua irmã,
e reintegrado à família real. A quarta estrofe do poema, portanto, refere-se ao
julgamento que Páris, teve de fazer, para escolher a mais bela das três deusas,
cujas conseqüências serão o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a
destruição de Tróia. Ao aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a
superioridade de Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar
o mito. Páris a faria vencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se
não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de Tróia não
acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não morre. Vê-se, portanto,
que Helena contraposta a Marília, marca a oposição entre a beleza ruinosa
(Helena) e a beleza benfazeja (Marília), contribuindo para a harmonia do
mundo. E há mais: como o poeta-pastor diz que para formar o retrato de
Marília não bastam tintas do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória,
através do mito, o ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris,
para conÞgurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna possível
a perenidade e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito rememora. Tal
leitura só é possível com o conhecimento do mito de Páris e Helena, constante
do poema O rapto de Helena, de Colutos (século VI d. C.).
Texto para Exercício
Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos elementos do
mundo clássico nele existentes. Para a sua análise, recomendamos o conhecimento
do mito de Apolo e Dafne.
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Soneto 122
O Þlho de Latona, esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
O hórrido Piton, brava serpente,
Matou, sendo das gentes tão temido.
Ferio com arco e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente;
Nas tessálicas praias, docemente,
Pola Ninfa Penea andou perdido.
2
CAMÕES, Luís Vaz de.
Sonetos de Camões (corpus
dos sonetos camonianos);
edição e notas por
Cleonice Serôa da MoĴa
Berardinelli. Paris: Centre
Culturel
Portugais
Lisbonne; Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1980, p. 180.
Não lhe pôde valer, para seu dano,
Ciência, diligências, nem respeito
De ser alto, celeste e soberano.
Se este nunca alcançou nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu que espero de um ser que é mais que humano?2
Luís Vaz de Camões
Textos de Apoio
Mito de Apolo e Daphne
3 O dilúvio enviado
por Zeus, para punir
os
homens
(Les
métamorphoses, I, v. 253312).
114
Mito de Python (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os outros
animais sob formas diversas, assim que a umidade que ela ainda retinha
foi esquentada sob os fogos do sol, quando o calor inßou a lama e as águas
pantanosas, quando os germes fecundos das coisas, nutridos por um solo
viviÞcante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram com o
tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo das sete embocaduras deixou
os campos inundados e levou de volta suas torrentes para seu antigo leito,
quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua chama no limo recente, os
cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um grande número de animais;
eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no momento mesmo de seu
nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de alguns de seus órgãos; muitas
vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a outra não é senão ainda terra
informe. Com efeito, assim que a umidade e o calor se combinaram um com ou
outro, eles concebem; é destes dois princípios que nascem todos os seres; ainda
que o fogo seja inimigo da água, uma claridade úmida engendra todas as coisas e
a concórdia na discórdia convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta
de lama pelo dilúvio recente3, recomeça a receber do alto dos ares o calor dos
raios do sol, ela deu à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais
sua Þgura primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade
que ela engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recémnascidos, serpente então desconhecida, tu era um objeto de terror, tanto tu
ocupavas o espaço ao longo da montanha. O arqueiro divino, que jamais antes
não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos prontos
para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele a matou;
por negras feridas se espalhou o veneno da fera. Para que o tempo não pudesse
apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de concursos solenes, os
jogos sagrados que do nome da serpente vencida tomaram o nome de Pythicos.
Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos, suas pernas ou as rodas de seus
carros tinham tido a vitória, recebiam como recompensa uma coroa de carvalho;
o loureiro ainda não existia e, para cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela
fronte, Febo tomava emprestado seu ramo a árvores de toda sorte.
Mito de Daphne (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne,
Þlha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de uma
violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de sua vitória
sobre a serpente, o vira curvar, puxando a corda para si, as duas extremidades
de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas armas poderosas?
Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com elas eu posso desferir
golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um inimigo; ainda há pouco,
quando Python cobria grande superfície com seu ventre inchado de venenos, eu a
abati sob minhas ßechas inumeráveis. Para ti, que te seja suÞciente iluminar com
tua tocha não sei que fogos de amor; guarda-te de pretender meus sucessos”.
O Þlho de Vênus lhe respondeu: “Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te
furar a ti mesmo; tanto todos os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória
é inferior à minha”. Ele disse, fende o ar com o batimento de suas asas e, sem
perder um instante, se posta sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava
cheia de ßechas, ele retira duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o
amor, a outra o faz nascer. A que o faz nascer é dourada e armada com uma ponta
aguda e brilhante; aquela que o expulsa é arredondada e sob a haste contém
chumbo. O deus fere com a segunda a ninfa, Þlha de Peneu; com a primeira ele
traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a ninfa
foge até ao nome do amante; os abrigos das ßorestas, os despojos dos animais
selvagens que ela capturou fazem toda a sua alegria; ela é a êmula da casta Febe4;
uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem. Muitos pretendentes a
pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos, recusando-se ao jugo de um
esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o que é o canto do himeneu, o amor,
o casamento? Ela não se inquietava de sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse:
“Tu me deves um genro, minha Þlha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime,
ela tem horror às tochas conjugais; o rubor da vergonha se espalha sobre seu
belo rosto e, com os braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe
responde: “Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgindade;
Diana bem que o obteve do seu5”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados,
Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus votos.
Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele o espera e
ele está enganado por seus próprios oráculos6. Como uma palha leve se abrasa,
depois que se colheram as espigas, como uma sebe se consome ao fogo de uma
tocha que um viajante por acaso dela aproximou demasiado ou que ele ali deixou
quando o dia já nascia; assim o deus inßamou-se; assim ele queima até o fundo
de seu coração e nutre de esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos
da ninfa ßutuando sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele,
se ela tomasse cuidado com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os
astros; ele vê sua pequena boca, que não lhe é suÞciente apenas ver; ele admira
A
deusa
Diana
(Ártemis), a irmã de
Apolo, de cujo séquito
Daphne participava.
4
Referência a Júpiter
(Zeus), pai de Diana
(Ártemis).
5
Como deus da profecia,
Apolo deveria saber que
não teria sucesso no amor
com Daphne, mas o amor
engana até os profetas...
6
115
Cidade na Grécia, onde
Apolo tem seu templo
mais famoso.
7
Cidade na Jônia, onde
existe um templo de
Apolo.
8
Ilha no mar Egeu, em
frente a Tróia, onde
existe o célebre templo
de Apolo Esmintheu, o
dos ratos.
9
Residência
dos
soberanos da Lícia, na
Ásia Menor. Apolo é
chamado também de
Apolo Lício.
10
116
seus dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para
ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ainda. Ela, ela foge, mais rápido
que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais propósitos:
“Ó ninfa, eu te imploro, Þlha de Peneu, pára; não é um inimigo quem
te persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as
pombas com as asas trêmulas fogem da águia; cada uma tem seu inimigo; eu, é
o amor que me joga sobre tuas pegadas. Qual não é minha infelicidade! Cuidado
para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente feridas, a marca
das sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O terreno sobre o qual te
lanças é rude; modera tua corrida, eu te suplico, diminui a tua fuga; eu mesmo,
eu moderarei minha perseguição. Sabe, no entanto, que tu me encantaste; eu
não sou um montanhês, nem um pastor, ou um desses homens incultos que
vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes, imprudente, tu não sabes de quem
tu foges e porque tu foges. É a mim que obedecem o país de Delfos7 e Claros8 e
Tênedos9 e a residência real de Patara10; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que
ele revelou o futuro, o passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons
das cordas. Minha ßecha acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas
seguramente ainda, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A
medicina é uma das minhas invenções; em todo o universo me chamam o que
socorre e o poder das plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas
capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.”
Ele ia dizer ainda mais, porém a Þlha de Peneu continuava sua corrida
louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a seus
olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em sentindo
contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus cabelos
levantados; sua fuga realça ainda mais sua beleza. Mas o jovem deus renuncia
a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio amor, ele
segue os passos da ninfa redobrando a sua velocidade. Quando um cão gaulês
percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam, um para pegar a
presa, outro para salvar sua vida; um parece sobre o ponto de pegar o fugitivo,
ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso, estreita de perto suas
pegadas; o outro, incerto se ele o pegou, se livra das mordidas e esquiva-se da
boca que o tocava; assim o deus e a virgem são levados um pela esperança, outro
pelo medo. Mas o perseguidor, levado pelas asas de Amor, é mais rápido e não
tem necessidade de repouso; já ele se inclina sobre as espáduas da fugitiva, ele
roça com o hálito os cabelos esparsos sobre seu pescoço. Ela, no Þm das forças,
empalideceu; quebrada pelo cansaço de uma fuga tão rápida, os olhares voltados
para as águas do Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os
rios como tu têm um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza
demasiado sedutora”.
Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros; uma
Þna casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se mudam em
folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis, aderem ao solo por
raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore coroa sua cabeça; de seus
encantos não resta senão o brilho. Febo, no entanto, sempre a ama; sua mão posta
sobre o tronco, ele sente ainda o coração palpitar sobre a casca recente; cercando
com seus braços os ramos que substituem os membros da ninfa, ele cobre a
madeira com seus beijos; mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem,
diz ele, visto que não podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore;
para todo o sempre tu ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras,
minhas aljavas; tu acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres
farão escutar cantos de triunfo e o Capitólio11 verá vir até ele longos cortejos. Tu
crescerás, guardião Þel, diante da porta de Augusto12 e tu protegerás a coroa de
carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira jamais
conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será sempre ornada
com uma folhagem inalterável13”. Peã14 havia falado; o loureiro inclina seus
galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma cabeça.15
O MITO DAS RAÇAS HUMANAS16
De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais habitantes
do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele reinava ainda no
céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de inquietações, longe e ao abrigo
das penas e das misérias: a velhice miserável não pesava sobre suas cabeças; ao
contrário, braços e pernas sempre jovens, eles se alegravam nos festins, longe de
todos os males. Quando morriam, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens
lhes pertenciam: o solo fecundo produzia espontaneamente uma abundante e
generosa colheita, e eles, na alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio
de bens inumeráveis. Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela
vontade de Zeus Todo-Poderoso, os bons gênios da terra, guardiães dos mortais,
distribuidores da riqueza: é a honra real que lhes foi atribuída em partilha.
Em seguida uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi criada
ainda pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe nem pelo
espírito aos da raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia brincando ao
lado de sua digna mãe, a alma toda pueril, na sua casa. E quando, crescendo
com a idade, eles atingiam o termo que marca a entrada na adolescência, viviam,
então, pouco tempo, e, por sua falta de discernimento, sofriam mil penas. Eles
não sabiam abster-se de um descomedimento louco. Recusavam o oferecimento
de culto aos Imortais ou o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados,
segundo a lei dos homens que se deram moradas Þxas. Então Zeus, Þlho de
Cronos, encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos
deuses Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez,
os tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os
Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ainda merecedores, contudo,
de alguma honra.
E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a raça
de bronze, bem diferente da raça de prata, Þlha dos freixos, terrível e poderosa.
Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de Ares e com
as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu coração era como o
aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua força, invencíveis os braços
que se pregavam contra a espádua de seus corpos vigorosos. Suas armas eram
de bronze, de bronze suas casas, com o bronze eles trabalhavam, pois o ferro não
existia. Eles sucumbiram, sob os próprios braços e partiram para a estada mofada
do arrepiante Hades, sem deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por
apavorantes que fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol.
E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, Þlho de
Cronos, dele criou ainda uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais
11
Principal sítio de Roma.
Dois loureiros davam
sombra ao palácio do
imperador Augusto, no
Palatino.
12
O loureiro não perde as
folhas no inverno.
13
14 Um dos epítetos de
Apolo e nome do hino
em sua honra.
15
OVIDE.
Les
métamorphoses;
texte
traduit
par
Georges
Lafaye. Paris: Les Belles
LeĴres, 1928. Tradução
operacional de Milton
Marques Júnior.
HÉSIODE. Les travaux
et les jours. In: Thégonie,
Les travaux et les jours, Le
bouclier; texte établie et
traduit par Paul Mazon.
Paris: Les Belles LeĴres,
1996,
versos
90-201.
Tradução
operacional
nossa, a partir do texto
francês de Paul Mazon.
16
117
brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração nos
precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra e na
batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas das Sete Portas, outros sob o solo
cádmio, combatendo pelos Þlhos de Édipo; outros além do abismo marinho, em
Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por Helena dos belos cabelos,
e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A outros, enÞm, Zeus, Þlho de
Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e uma morada distante dos homens,
estabelecendo-os nos conÞns da terra. É lá que habitam, o coração livre de
inquietações, nas Ilhas dos Bem-Aventurados, à borda dos turbilhões profundos
do Oceano, heróis afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por
ano uma ßorescente e doce colheita.
E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio dos
da quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais tarde. Pois
esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer, durante o dia, cansaços
e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas duras angústias que lhes
enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ainda alguns poucos bens, misturados
aos seus males. Mas chegará a hora em que Zeus aniquilará, por sua vez, toda
esta raça de homens perecíveis: este será o momento em que eles nascerão com
as têmporas brancas. O pai, então, não parecerá com o Þlho, nem o Þlho com o
pai; o hóspede não será mais querido de seu anÞtrião, o amigo pelo seu amigo, o
irmão pelo seu irmão, assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles
envelhecerem, eles não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles
se exprimirão com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o
temor ao Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá
prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os
artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus respeitos;
o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O covarde atacará
o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso juramento. Ao passo
de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à linguagem amarga, à fronte
odiosa, que se compraz com o mal. Então, deixando pelo Olimpo a terra dos
largos caminhos, escondendo seus belos corpos sob véus brancos, Honra (Aidós)
e Justiça (Némésis), abandonarão os homens, subirão para os Eternos. Restarão
aos mortais apenas tristes sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos.
1.. Contextualização do Clássico: os períodos históricos das Literaturas
grega e latina
1.2.1. Introdução à Literatura Grega
A literatura grega compreende basicamente três momentos: o período
Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V – IV a. C.) e o período
Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do século III a. C., com a dominação
da Grécia por Roma, a literatura que se sobressai é a latina, iniciada pelas mãos
de gregos tomados como cativos pelos romanos nas guerras de conquistas.
O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato literário,
quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu desaparecimento por
quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a. C. Ainda se trata de uma cultura
oralizada, apesar da escrita, em que a literatura aparece cantada pelos aedos e
118
rapsodos, os poetas e cantores da época. É nesse momento que são produzidos
os poemas homéricos – Ilíada e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e
Os trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por isto que se
chama a esse período de arcaico. Diferentemente do sentido que a palavra tem
hoje, arcaico signiÞca para o mundo grego algo que está no princípio, na origem
dos fatos. Os poemas homéricos e hesiódicos são o princípio, a origem de toda
a literatura que se faz no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período
marca a reintrodução da escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a literatura
procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo mais próximo da
natureza e tendo no mito a sua explicação. Se Homero trata de heróis em guerra
ou retornando para casa após a guerra, Hesíodo trata da ordem do universo, de
como os deuses nasceram e da necessidade da justiça entre os homens.
O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo da pólis, da
cidade, que substitui o mundo anterior mais ligado à natureza. É um momento
complexo em que a ÞlosoÞa cria uma explicação lógica para o mundo, a partir
de um discurso racional. Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando
reßetir sobre a condição e a fragilidade humana. Mesmo apoiado nos mitos
antigos, o teatro revela o conßito do homem entre o passado e o presente da pólis
com suas leis escritas, diferentes das leis divinas do mundo mítico do passado.
Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes autores desse período, legandonos obras-primas como Orestéia, Édipo Rei e Hécuba, respectivamente.
O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela expansão
do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande (335-323 a. C.) e a
criação da Biblioteca de Alexandria, por volta do século III a. C., reunindo um
sem-número de obras importantes. O último grande poema do mundo grego,
pertencente a esse período e que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de
Rhodes, cerca de 295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre
a Grécia e começa a surgir a literatura latina.
1.2.2. Introdução à Literatura Latina
O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até Virgílio,
no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado com propriedade de
literatura. Da fundação de Roma (753 a. C.) à edição da Eneida (17 a. C.), distam
quase oito séculos. Desse tempo, apenas o período compreendido entre o século
III a. C. e o século III d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz
um momento particular da glória romana, é que pode ser chamado realmente
de literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma convergência entre
a cidade, que se faz senhora do mundo, e uma língua, que se faz literária. É o
estado social e político poderoso criando as condições para a existência de uma
língua de cultura.
O fervilhamento cultural da Alexandria dos Ptolomeus, produto direto da
helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana pelo mar mediterrâneo,
após a primeira vitória sobre Cartago, em meados desse mesmo século, e o
domínio militar sobre os gregos favorecerão o ßorescimento da literatura latina.
Dentre os nomes importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes
(295 a. C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja inßuência,
dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É, pois, a dominação
119
cultural grega, apesar do domínio militar romano, que permite a aÞrmação de
que a literatura latina é proveniente da literatura grega.
Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se entre a fase
primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.), em que predomina a
oralidade, e a literatura cristã (a partir do século III-IV da nossa era), que já se
distancia do espírito da Roma gloriosa. Nesse momento podem-se distinguir os
períodos Arcaico (século III – I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no
período Arcaico que passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius
Andronicus, escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma
tradução e adaptação da Odisséia de Homero, por sua temática ocidental, pois as
viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de retornar em deÞnitivo para
Ítaca. Não menos importante é o Bellum Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius,
escrito por volta do ano 209 a.C., tratando da primeira guerra entre Roma e
Cartago. Os primeiros cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando
a tradição de Enéias como mito fundador e herói itálico, além dos seus amores
com Dido, de onde se originaria a rivalidade entre Roma e Cartago. Deste modo,
Naevius não só antecipa Virgílio e a Eneida, mas também abre espaço para a
exaltação dos heróis nacionais.
O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta de 80 a. C.,
com a consolidação da língua literária, que tem na sua base a retórica. Os grandes
autores da poesia estarão nas décadas seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C.,
no início da chamada era de Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no
período Clássico que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio
(70-19 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-19 a. C.), Propércio (50-15 a. C.) e
Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência da literatura latina.
Glossário
Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, signiÞcando
cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos da poesia épica,
quando solicitado pelo público.
Antiguidade Clássica: Primeiro período da história ocidental, marcado pelo
reaparecimento da escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o seu início a
partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V da Era Cristã,
quando da queda do império romano do Ocidente, em 476.
Arcadismo: Movimento literário, originada na Itália a partir da fundação
da Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal, em 1756 com a
Arcádia Lusitana, e chegado ao Brasil em 1768, Þxando-se em Minas Gerais. Tinha
como objetivo recuperar a harmonia da vida simples do pastor, em contraposição
à vida desregrada e corrupta da cidade. O seu nome se liga a uma das regiões
mais antigas da Grécia, a Arcádia, no Peloponeso.
Carpe Diem: Expressão latina, proveniente da Ode XI, Livro I das Odes de
Horácio (século I a. C.), signiÞcando colhe o dia. O sentido é o de que devemos
aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser humano não deve
se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos deuses. Enquanto nos
preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo foge. Devemos, portanto,
saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para aproveitá-las.
120
Classicismo: Período cultural que se Þrma a partir do século XV, como um
desdobramento natural do Renascimento, uma vez iniciada a difusão da cultura
clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís Vaz de
Camões, cuja obra-prima é Os Lusíadas (1572).
Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago, nos
séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na Fenícia
(atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se transformando
em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146 a. C.) e aquela que
determina a derrota de Cartago e o controle de Roma sobre o Norte da África
é a segunda (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o Africano, vence Aníbal, o
Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no Norte da África.
Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do universo
e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formulada por Nicolau Copérnico
contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía o centro do
universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu redor.
Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo teria
se iniciado desde o século XI com o estudo das obras dos Þlósofos gregos.
Idade de Ferro: V. Idade de Ouro.
Idade de Ouro: Idade mítica do homem, presente na obra do poeta grego
Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do poeta grego,
o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e generosa. Não
sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e perdendo as benesses que
os deuses lhes deram. A última etapa da decadência humana é a Idade de Ferro,
em que a corrupção e os males grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar
à Idade de Ferro, o homem ainda passaria por mais três etapas: a Idade de Prata,
a Idade de Bronze, a Idade dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a
degradação vai se processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal
menos nobre e oxidável, o ferro.
Iluminismo: Movimento ÞlosóÞco-político nascido na França em meados
do século XVIII, preconizando a liberdade do homem através da razão. O
conhecimento é a luz que levará à razão.
Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano, no
Monte Ida, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual era a
mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo escolhido Afrodite,
seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a mulher mais bela do mundo,
Páris atrai a fúria das outras deusas contra si e contra os troianos. Seu ato terá
como conseqüências o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição
de Tróia.
Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (Þnal do século XVII até
a segunda metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vida simples na
natureza equilibrada, fugindo da dissolução do mundo urbano. Inspirado no
Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e harmônico.
Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o rapsodo
tecia a narrativa e compunha.
Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por Martinho
Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra a Igreja, na
Alemanha, no início do século XVI.
121
Renascimento: Movimento cultural ÞlosóÞco de origem italiana, cujo centro
foi a cidade de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o Renascimento tenha
iniciado com a redescoberta e difusão da cultura greco-latina.
Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se Þrma como
língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu apogeu
com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio Augusto César,
primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.).
Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C.,
vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia;
o ÞlosóÞco com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a
democracia.
122
UNIDADE II
ESTUDO DE HOMERO – O CANTO I DA ILÍADA
2.1. Estudo de Homero
Produzidos no período Arcaico da Literatura Grega (VIII – V a. C.), a Ilíada e
a Odisséia são os poemas fundadores de toda a literatura ocidental. A sua autoria
foi atribuída a Homero, aedo cuja existência é sempre questionada1. Tendo
sobrevivido na tradição oral por duzentos anos, estes dois poemas conheceram
sua primeira forma em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano
Pisístratos, acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a
escritura dos versos.
A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema, por
outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo em vista que
o aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então, escolhiam os episódios para
cantar ao seu público e, muitas vezes, introduziam versos de outros poemas.
A depuração dos textos só aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido
pelos sábios do Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de
Éfeso, Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam em
estudar, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os primeiros estudos
Þlológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por exemplo, que determina,
deÞnitivamente, o número de versos dos poemas. Essa Þxação, no entanto, não
impediu que os poemas conhecessem várias fontes.
Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a existência
de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII da Odisséia, cantando as façanhas
dos gregos em Tróia, e em especial as de Odisseus (nome grego de Ulisses), no
banquete oferecido por Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa
é de exaltação da nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização
arcaica, a Ilíada e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e comentados
em classe, na sala de aula, tendo não só ajudado a formar o espírito grego, mas,
principalmente, permanecido na cultura universal.
Visto consensualmente como o poema da fúria de Aquiles ou uma
Teomaquia, a Ilíada é a maior expressão da poesia épica em todos os tempos,
enfocando um mundo das origens, em que heróis são comandados por um grande
senhor, investido de um poder divino. Poema de estrutura oral, próprio para ser
cantado pelo aedo ou rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros dactílicos, fazendo
a exaltação dessa aristocracia da civilização arcaica, que tinha em Micenas o seu
apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor.
Os limites da Ilíada, normalmente conhecido como tratando da guerra de
Tróia, estão restritos, na realidade, a um momento especíÞco no início do décimo
ano do cerco dos Argivos (nome genérico para designar os gregos) a Tróia. A
narração desse momento parte da querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto
I) aos funerais de Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de
Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são chamados de
1
Nada menos do que
sete cidades da atual
Turquia, a antiga Ásia
Menor, dentre elas Chios
e Esmirna, disputam a
primazia de ser o local
de seu nascimento. O
que suscita a disputa é o
fato de que, na essência,
o dialeto dos poemas
homéricos é o jônio, com
alguns empréstimos do
eólio, língua da mesma
região.
123
A Ilíada se representa
com o alfabeto maiúsculo
e a Odisséia com o
alfabeto minúsculo.
2
Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um tema presente na tradição
oral há séculos antes de sua formulação como poema, no século VIII a. C., é
normal que Homero e os aedos de forma geral não precisem explicar muita coisa
que já é do conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não
é poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um conhecimento
anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados pelo seu epíteto ou pela
sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu nome. Aquiles é o Pelida (Þlho
de Peleu) ou o Eacida (neto de Éaco), mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus
é o Laertida (Þlho de Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Cronida (Þlho de
Cronos) e o “ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”;
Agamêmnon e Menelau são os Atridas (Þlhos de Atreu); aquele é o “Senhor
dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo são os Priamidas,
enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”...
Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu (o
pequeno), comandante dos Lócridas; Ájax Telamida (o maior), comandante
dos Salaminos; Diomedes, comandante dos argivos e dos tiríntios, ao lado
de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, comandante de Micenas e Corinto, e
comandante supremo dos gregos; Menelau, irmão de Agamêmnon, comandante
da Lacedemônia, Esparta e Auriclas; Nestor, comandante de Pilos e Dorion;
Odisseus, comandante de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion,
comandantes de Creta; Tlepôlemo, Þlho de Hércules, comandante de Rhodes;
Aquiles, comandante dos Mirmidões, Helenos e Aqueus; Pátrocles, amigo
dileto de Aquiles; Macâon e Podalírio, irmãos médicos, Þlhos de Asclépios,
comandantes da Oicália.
Entre os Troianos se destacam Heitor, comandante dos Troianos; Páris,
irmão de Heitor, raptor de Helena e causador da guerra; Enéias, Þlho de Anquises
e Afrodite, comandante dos Dardânios; Pândoro do arco de Apolo, Þlho de
Licaon, comandante dos Zeleus; Sárpedon e Glaucos, comandantes dos Lícios.
Dividida em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do
alfabeto grego2, distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilíada tem como
argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir dos muitos
episódios do poema. Cada canto, no entanto, apresenta o seu argumento,
os quais podem ser assim sintetizados:
Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611 versos).
Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo das naus e dos heróis
(878 versos).
Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461 versos).
Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos).
Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos).
Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de Heitor e
Andrômaca (529 versos).
Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos).
Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutralidade dos Deuses (565
versos).
Canto IX (Iota) – Embaixada a Aquiles (713 versos).
124
Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos).
Canto XI (Lambda) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos).
Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos).
Canto XIII (Nu) – Combate perto das naus gregas (837 versos).
Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos).
Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a ajuda de Posídon (764
versos).
Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos).
Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo contra Atena
(761 versos).
Canto XVIII (Sigma) – Fabricação das armas de Aquiles (617 versos).
Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon (424
versos).
Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles (503
versos).
Canto XXI (Phi) – A Verdadeira Teomaquia/ Combate perto do rio (611).
Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos).
Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897 versos).
Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804 versos).
Tudo concorrerá para se mostrar a razão da fúria funesta de Aquiles, núcleo
da Ilíada. Podemos observar, no entanto, no decorrer do poema, vários episódios
embrionários, ligados ou não à guerra de Tróia. Como temos um poema in medias
res – a narrativa abre com o início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e
não há um ßash-back continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo
ano da guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmentadas
e dispersas, aludindo ao motivo da guerra, como o rapto de Helena por Páris,
que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445). Outras referências se
encontram na Ilíada como a alusão ao casamento de Peleu e Thétis (Canto XVIII,
versos 433-434; Canto XXIV, versos 59-63), e a alusão ao julgamento de Páris
(Canto XXIV, versos 26-30).
Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis, apesar
de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura da Ilíada não suscita com
facilidade uma estrutura para o leitor desavisado. A ausência de Aquiles por
quase dois terços da narrativa, mesmo sendo o protagonista, torna ainda mais
complexa essa assimilação. Muitos heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas
genealogias desÞadas... Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos,
sugerimos uma estruturação da Ilíada dividindo-a em três momentos: a Querela
entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixada a Aquiles (Canto IX), o
Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII).
A querela entre os dois maiores heróis gregos da guerra de Tróia leva à
retirada de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo todo-poderoso
Agamêmnon. A conseqüência é a perda de espaço para os troianos que
conseguem acuar os gregos em seu próprio acampamento. Pela primeira vez,
em dez anos de cerco, os troianos acampam fora e longe das muralhas. O recuo
dos argivos conduz à embaixada despachada por Agamêmnon a Aquiles (Canto
125
IX). Os esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de
Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado duramente
em sua honra, porque o Atrida lhe tomara a sua presa de guerra, Briseida, o que
distingue um herói da grande massa. O fracasso da embaixada e um relativo
sucesso dos gregos (Canto X, Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e
Odisseus ao acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo
resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus, Agamêmnon,
Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra as hostes de Heitor que
conseguiu chegar ao acampamento grego (Canto XII-XVI) e ameaça queimar os
navios, chegando ainda a queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com
a ajuda de Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de
Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir todas as outras naus (XVI,
292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos gregos é a morte de
Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas armas por Heitor. Isto determina o
retorno de Aquiles à guerra.
Este último momento da Ilíada é importante, pois as desavenças entre
Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio atribuído por Aquiles
a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele precise participar das competições
dos jogos fúnebres em honra de Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a
Aquiles, bem como a reparação material da sua honra ofendida, com a devolução
de sua presa de guerra, Briseida. A conseqüência da paz entre os dois heróis é a
carniÞcina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a morte de Heitor
e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao belíssimo e tocante episódio do
resgate do corpo do Þlho por Príamo, no Canto XXIV.
Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilíada é o livro das
prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não veremos na Ilíada a morte de
Aquiles ou a queda de Tróia. Limitada entre a desavença Aquiles-Agamêmnon
e os funerais de Heitor, este poema frustra o leitor que for à busca de episódios
conhecidos como o do cavalo de Tróia ou a luta de Aquiles contra a rainha das
Amazonas, Pentesiléia, por exemplo. Mas isso não impede de o poema anunciar
a cada passo tanto a destruição de Tróia, quanto a morte de Aquiles. Para melhor
entendermos essas prolepses, faz-se necessário um breve estudo do Canto I, em
que se dá a desavença entre Aquiles e Agamêmnon, provocando a retirada do
Pelida dos combates.
2.2. O Canto I da Ilíada
O proêmio da Ilíada está circunscrito aos sete primeiros versos do Canto
I. Ali, numa mescla de proposição e invocação, o poeta apresenta o argumento
do poema – a fúria funesta de Aquiles que tantos heróis mandou para o Hades
cumprindo o que havia estabelecido Zeus. A narração propriamente dita
inicia-se a partir do verso 8, estendendo-se até o Þnal do Canto XXIV, após os
funerais de Heitor. O argumento do Canto I é o desentendimento entre Aquiles
e Agamêmnon. Preocupado com a peste que grassa no acampamento grego,
matando homens e animais, Aquiles convoca a ágora – a assembléia dos Aqueus
–, para saber qual a origem de tantos males. Ele descobre, através do sacerdote
Calcas que a culpa de tal desgraça cabe a Agamêmnon, autor de uma grave ofensa
126
ao sacerdote de Apolo Crises. É para desagravar Crises que Apolo desencadeou a
peste no acampamento Aqueu.
Querendo resgatar a Þlha, Criseida, que havia sido feita prisioneira
na tomada de Lyrnessos por Aquiles, Crises vai até Agamêmnon, a quem
coube a presa de guerra, e oferece-lhe um alto resgate, em troca da liberdade
da Þlha. Agamêmnon não só não aceita, mas também ofende e ameaça de
morte o sacerdote de Apolo. A descoberta da causa da peste leva Aquiles ao
confronto com Agamêmnon, sobretudo quando este ameaça tomar o quinhão
de qualquer outro, mesmo o de Aquiles, caso entregue Criseida de volta ao pai,
Crises. A discussão se instaura entre eles, com Aquiles se sentindo desonrado e
Agamêmnon se sentindo privado do seu prêmio. Aquiles só cede ao ímpeto de
matar Agamêmnon diante da intervenção de Palas, que, aparecendo só a ele, o
detém, puxando-lhe a cabeleira loura e o aconselhando a ofender com palavras
o quanto puder a Agamêmnon, mas evitando matá-lo. Privado de sua Briseida,
tomada por Agamêmnon, Aquiles se retira da guerra, lamenta a sua desonra à
mãe, queixa-se de Zeus que não está cumprindo a sua parte no acordo do destino
breve, mas glorioso. Thétis, sua mãe, resolve interceder por ele junto a Zeus e
obtém do pai dos deuses e dos homens a certeza de Aquiles voltar a ser honrado
pelos Aqueus, após derrotas para os Troianos. O canto se fecha com o banquete
dos deuses no Olimpo.
O que norteia o Canto I da Ilíada é a discussão travada sobre a honra do
herói. Como obter a glória que se busca sem a honra? Este é o drama de Aquiles.
De um lado se põe o senhor dos heróis, Agamêmnon, comandante supremo
do exército de coalizão dos Aqueus, que conta, aproximadamente, com cem
mil homens. Do outro lado está o maior dos heróis, o melhor dos Aqueus, o
mirmidão Aquiles, temido por todos os guerreiros Troianos, por ser, nas palavras
de Nestor, “a grande muralha dos Aqueus contra a guerra cruel” (Canto I, versos
288-289). É a prepotência de um contra a força do outro. Ofendido na sua honra,
Aquiles sente tomar-lhe o ímpeto desaÞador que o leva ser irônico e mordaz com
Agamêmnon, e a sentir ganas de matá-lo. Agamêmnon por sua vez, não abre mão
de seu direito como chefe supremo, poder que emana de Zeus, concentrado no
cetro que empunha, com uma honra, portanto superior à de Aquiles. É isto o que
diz também Nestor (Canto I, versos 278-279)
Em favor de Aquiles, no entanto, registre-se que o herói deseja a
contemporização, procurando compensar Agamêmnon de outras formas, uma
vez entregue Criseida ao pai – caberia ao Atrida três ou quatro vezes mais que
aos outros o butim partilhado, depois da ruína de Tróia (Canto I, versos 122129). Agamêmnon é que parte para o confronto (Canto I, versos 130-147), o que
desencadeia as ofensas de Aquiles (Canto I, versos 148-171; 225-245; 292-303).
Dentre elas, destaca-se a alusão à cara de cão de Agamêmnon (Canto I, verso 159),
numa referência a seu caráter impudente, cujo espírito só pensa no ganho (Canto
I, verso 149). Em outro momento, a avidez do cão, se associa ao medo do gamo
e ao prazer do vinho a que se entregaria Agamêmnon, vez que o grande senhor
não participa dos combates na visão de Aquiles (Canto I, verso 225). Tal é cupidez
de Agamêmnon que Aquiles o chama de devorador do povo, que precisa para
exercer seu mando reinar sobre gente nula (Canto I, verso 231). Aquiles Þnaliza
suas ofensas, não antes de jogar por terra o cetro do Atrida (Canto I, verso 245),
dizendo que se aceitasse sem contestação a força de mando de Agamêmnon, não
seria mais do que desprezível e nulidade (Canto I, verso 293).
127
As réplicas de Agamêmnon (Canto I, versos 177-187; 285-291) não Þcam
atrás. Mandando Aquiles reinar sobre os Mirmidões (Canto I, verso 180), numa
ironia cortante, cujo trocadilho se perde na tradução, Aquiles é para Agamêmnon
nada mais do que o povo que ele comanda – formiga. Agamêmnon replica diante
da ponderação que faz Nestor, na tentativa de sanar os ânimos: Aquiles pretende
ser o mais poderoso e reinar sobre todos, o que é uma afronta a seu comando e a
investidura divina de seu poder de senhor supremo (Canto I, versos 287-288).
Com fortes ironias despachadas de ambos os lados, nem a contemporização
de Nestor é capaz de apaziguar os dois que se ofendem mutuamente. Nestor e
Palas Atena são a racionalidade em contraponto à fúria e ao descomedimento
de ambos os heróis. Nessa arena está em jogo a honra ferida – Agamêmnon de
vasto poder não só não honrou o melhor dos Aqueus como também não honrou
a sacerdote de Apolo, Crises (Canto I, versos 10-11) –, o que desencadeia toda a
querela. Aquiles se retira da guerra, pois desonrado não pode alcançar a glória.
Será necessária a intervenção de Zeus, a pedido de Thétis, para que o herói volte
à guerra. Se Zeus lhe deu uma vida breve, que pelo menos em troca lhe conceda
a honra (Canto I, verso 353). Prêmio de guerra e honra/desonra com as variantes
das formas e tempos verbais correspondentes são as palavras centrais desse
capítulo.
Assim é que as prolepses desse capítulo são importantes para o
desencadeamento da narrativa: os versos 212-214 antecipam a embaixada a
Aquiles, que ocorrerá no Canto IX, e os esplêndidos presentes (Canto I, verso
212) que o Pelida aceitará no Canto XIX, como pagamento da desmedida de
Agamêmnon, pondo Þm ao desentendimento entre ambos. É o que lhe promete
Atena. Os versos 240-244, proferidos pelo próprio Aquiles, antecipam as vitórias
dos Troianos liderados por Heitor sobre os Aqueus; os versos 337-342 revelam a
necessidade que os Aqueus terão de ter Aquiles consigo para poderem combater
perto das naus sem perigo. Isto se dará com o retorno efetivo de Aquiles à
guerra, no Canto XX. Por Þm, o destino de Aquiles, aludido tantas vezes neste
Canto I (versos 352-356; 413-428; 517-527), será retomado ao longo da Ilíada,
principalmente no canto XVIII.
Glossário
Acaios: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente
de Acaia, regiões gregas, uma situada no Peloponeso e a outra na Tessália, no
continente. O mesmo que Aqueus ou Aquivos.
Ágora: A praça onde se reuniam os senhores para tomada de decisão sobre
alguma coisa. O termo, por metonímia acaba designando a própria assembléia.
Aqueus: V. Acaios.
Argivos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente da
região de Argos, uma das principais cidades do Peloponeso.
Atrida: Epíteto para Agamêmnon e Menelau, ambos Þlhos de Atreu.
Canto: Capítulo do poema épico, assim chamado porque o poema era para
ser cantado, não declamado.
Dânaos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente de
um dos ancestrais gregos, chamado Dânaos.
128
Dardânios: Nome genérico para designar os troianos, proveniente de um
dos ancestrais da raça troianos, chamado Dárdanos.
Epílogo: Parte Þnal do poema épico, quando se acaba a narração e
encaminha-se o Þm da narrativa.
Epíteto: Aposto ao nome de pessoas, deuses, heróis e cidades. Muito usado
no poema épico como recurso mnemônico, dando ritmo ao hexâmetro.
Flash-Back: Retorno ao passado de modo linear e organizado, de modo a
esclarecer fatos da narrativa.
Helenos: Nome genérico dado aos gregos, termo proveniente de parte dos
soldados tessálios comandados por Aquiles. O termo também se refere a Helena,
Þlha de Deucalião, visto como pai dos gregos.
Hexâmetro Dactílico: Verso característico do poema épico, construído com
seis medidas ou seis pés, tendo como base o pé dáctilo, constituído de uma sílaba
longa e duas breves.
Honras Fúnebres: Todas as pessoas que morriam deveriam ter direito
às honras fúnebres, sem as quais a sua alma não chegaria ao Hades, o mundo
inferior. As honras fúnebres do herói, por exemplo, consistiam na queima de sua
carne e no encerramento de seus ossos numa urna para posterior sepultamento
num túmulo, erigido sobre uma colina.
In Medias Res: Termo utilizado por Horácio (século I a. C.), para designar
a ação do poema épico, já bem adiantada quando a narração se inicia. O termo
signiÞca “no meio das coisas”, sem preâmbulos, sem explicação anterior.
Invocação: Uma das partes do poema épico, que consiste no pedido de
auxílio às Musas, como deusas protetoras das artes e do conhecimento, para
que elas comuniquem o seu saber ao poeta e ele possa cantar o que assinala na
proposição do seu poema.
Micenas: Cidade-estado ao nordeste do Peloponeso, reino ßorescente entre
os séculos XVI e XII a. C. O grande senhor Agamêmnon reinava absoluto sobre a
Micenas homérica, nos tempos míticos.
Mirmidão: Um dos epítetos para designar Aquiles, por reinar sobre os
soldados do mesmo nome. O nome é proveniente das formigas que habitavam
a ilha de Egina, transformadas em homens por Zeus, para que Éaco, avô de
Aquiles, pudesse reinar sobre eles. No plural, designa os soldados comandados
por Aquiles.
Narração: A parte mais longa do poema épico. Cerne do poema épico,
quando o poeta desenvolve minuciosamente em episódios o argumento
apresentado na proposição.
Pelida: Um dos epítetos de Aquiles. O termo é proveniente de Peleu, pai do
herói. Aquiles também pode ser chamado de Eacida, por causa do avô, Éaco.
Período Arcaico: Primeiro período da literatura grega, situado entre os
séculos VIII e V a. C. É o momento do início, quando surge a primeira forma
literária, o poema épico. Nesse período ainda surgiria a poesia lírica, em sua
forma de lírica amorosa, lírica exaltativa e bucólica.
Presa de Guerra: Trata-se do butim, do espólio conseguido pelo guerreiro,
depois de conquistada e destruída uma cidade. É assim que Briseida e Criseida
são tratadas na Ilíada: presas ou prêmios de guerra.
129
Proêmio: Versos iniciais e introdutórios do poema épico, reunindo a
proposição e a invocação. É onde se encontra o argumento do poema, apresentado
sinteticamente para ser desenvolvido posteriormente na narração.
Prolepse: Adiantamento da narrativa. Ao leitor ou ao ouvinte é dado
conhecer os fatos antes de eles acontecerem. Assim, não vemos a destruição
de Tróia ou a morte de Aquiles na Ilíada, mas sabemos que ambos os fatos vão
ocorrer, pois eles são adiantados, através de alusões as mais variadas.
Proposição: Parte do poema épico em que se apresenta o argumento. De
modo sintético, o poeta diz qual será o tema de seu canto. A Ilíada apresenta como
argumento a fúria funesta de Aquiles; a Odisséia, a volta de Odisseus para Ítaca.
Teomaquia: SigniÞca, literalmente, batalha dos deuses. Termo cunhado
para designar a Ilíada, sobretudo a partir do Canto XX, quando Zeus libera os
deuses para tomar partido na guerra de Tróia e formam-se os grupos de deuses
em defesa dos gregos ou dos troianos.
Teucros: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente
do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Teucro.
Tróades: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente
do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Tros.
Observação: Para uma melhor assimilação dos conteúdos desta unidade, faz-se
necessária a leitura do Canto I da Ilíada.
Exercícios
1.
2.
3.
4.
5.
130
“Nem a morte de Aquiles, predita desde o início, nem a tomada de Tróia
graças à artimanha do famoso cavalo de madeira, astúcia concebida por
Ulisses, Þguram na Ilíada.” Explique esta aÞrmação de Claude Mossé (A
Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1989.).
Explique por que na Proposição/Invocação da Ilíada, o poeta pede que se
cante “a ira funesta de Aquiles”.
Qual a origem da querela entre Aquiles e Agamêmnon?
Quais as conseqüências imediatas e as conseqüências posteriores para os
gregos dessa querela?
Considerando o Canto I da Ilíada, qual a importância de Aquiles para os
gregos?
UNIDADE III
VISÃO GENÉRICA DOS AUTORES DO TEATRO TRÁGICO
3.1 O Teatro Grego
Nesta terceira unidade, procuraremos fazer o estudo do teatro grego na
sua origem, mais especiÞcamente, da tragédia grega como fenômeno do período
clássico, numa reßexão sobre o mundo da Pólis.
É consenso entre os estudiosos do teatro grego que a sua origem está
ligada ao coro que anima o culto ao deus Dionisos. Deus da vegetação e da
fecundidade, Dionisos era o centro de um culto à fecundação – a faloforia,
condução do falo como representação do deus Príapo, seu Þlho com Afrodite –
em que se sacriÞcavam bodes e touros. A essência do culto consistia no abandono
dos limites entre o humano e o divino, quando grupo de seguidores de Dionisos
desejava o êxtase (deslocamento, espírito sem destino) e o entusiasmo (possessão
divina, animação por um transporte divino), para transformar-se em bacante.
As Grandes Dionisíacas ou Dionisias da Cidade eram a festa mais
importante do mundo grego, contando com a aßuência de toda a Grécia e do
exterior. Elas se davam entre os meses de março e abril, princípio da primavera,
quando o tempo abria para as navegações. A partir do século VI a. C. (534),
foram instituídos os concursos dramáticos pelo tirano Pisístratos, que contavam
tanto com o concurso de ditirambo (hino a Dionisos), quanto com um concurso
dramático. Os concursos duravam três dias para as tragédias e um para as
comédias, e tinham como espaço o teatro de Dionisos, ao pé da Acrópole, em
Atenas, onde cabiam 17000 pessoas. Um espaço tão grande numa época tão
remota, explica-se diante da função que o teatro tinha na Grécia: uma função
coletiva. As entradas eram subvencionadas pelo estado e o Þnanciamento do
coro e de um dos atores era feito por um cidadão rico. No século V a. C., apogeu
do período Clássico, esses concursos se tornaram freqüentes e estima-se, por
exemplo, que foram apresentados cerca 5000 ditirambos e mais de 1000 tragédias.
No início, as peças eram apresentadas na praça pública, a ágora, depois,
por conta do aßuxo de espectadores e para dar uma visualização melhor da
encenação foi construído o teatro de Dionisos, ao pé da Acrópole. O espaço físico
do teatro era constituído dos seguintes ambientes (veja a planta baixa de um
anÞteatro grego, em seguida):
•
•
•
•
•
Teatro: lugar onde se instalavam os espectadores para ver o espetáculo.
Orquestra: área circular para a dança, em cujo centro havia um pequeno
altar de pedra, consagrado ao deus. O coro faz aí a sua evolução.
Cena: cabana ou tenda servindo de bastidores, para a troca de máscaras
e de roupas. Boa parte da ação se passava no interior da cena. As cenas
chocantes de assassinato ou suicídio, por exemplo.
Proscênio: lugar à frente da cena, onde os atores encenavam as peças.
Párodos: passagens que davam acesso ao teatro e por onde entrava e saía o
coro.
131
O teatro como drama (a palavra drama signiÞca ação, em grego) apresentava
os seguintes componentes
•
•
Aristóteles (Poética,
18, 1456a) considera o
Coro como um ator nos
moldes de Sófocles, não
nos de Eurípides, que
já não tem inßuência
sobre a ação. No teatro
de Sófocles, o Coro
pode, sob o comando
do Corifeu, intervir na
ação, dialogando com
os personagens. Coro
signiÞca
dança,
em
grego.
1
•
•
•
•
•
O termo deriva em
grego de cabeça, cimo,
capacete.
2
132
•
Prólogo: cena de exposição, sob a forma de diálogo ou de monólogo,
precedendo a aparição do coro.
Párodos: entrada do coro, após o prólogo, num ritmo anapéstico (duas
sílabas breves e uma longa). Composto de estrofes cantadas que se
respondem.
Episódio: parte do drama entre duas entradas do coro. O primeiro episódio
fazia dialogar os atores entre eles e com o coro.
Estásimo: parte cantada pelo coro, mas sem haver deslocamento. O
primeiro estásimo se apresenta como um conjunto variável de estrofes
cantadas pelo coro, ao que se seguem dois outros episódios, seguidos de
dois estásimos.
Coro: coro de dança, grupo de pessoas que Þguram em uma dança.
Unidade coletiva que cantava sob a direção do Corifeu ou declamava
dançando. A maior parte das vezes, o coro era formado por velhos ou por
mulheres infelizes, conhecedores profundos dos rituais religiosos.1
Corifeu2: Chefe do coro, representando uma intervenção breve do coro nas
cenas dialogadas.
Komos: canto comum ou alternado ente coro e personagens, auge lírico de
dor (mais freqüentemente), na tragédia.
Êxodos: Saída do coro de cena. Toda a peça se desenrola entre o párodos e
o êxodos, dividida por estásimos e separadas por episódios. Consistia de
fato no último episódio, por vezes longo e complexo.
A parte coral da encenação tinha um grande rigor formal, se apresentando
em uma série de evoluções na orquestra, ao redor do altar. As evoluções podiam
ser para a direita, e assim se chamavam de estrofes, ou para a esquerda, chamadas
de antístrofes. O epodo consistia em um canto adicional, terceira estrofe, em que o
coro Þcava imóvel. Para a encenação dos autores ou do coro se utilizavam metros
variados para os versos.
No capítulo IX (1451b) da Poética, primeira obra a sistematizar um estudo
sobre a tragédia grega, Aristóteles diz que “o poeta deve ser fabricante de intrigas
mais do que de metros”. Como o teatro grego era estruturado em versos de
metros variados, Aristóteles ensina que não basta criar o verso, mais importante é
a intriga (o que em grego se diz mito). Tratando a tragédia como uma poesia que
imita os homens nobres e melhores do que nós, entenda-se aí a deÞnição do herói,
o Þlósofo aponta para a origem da tragédia na improvisação de uma declamação,
por ocasião da faloforia.
Com a evolução do gênero, a tragédia passa a ser a imitação de
uma ação nobre e acabada, com limite de extensão, em linguagem agradável
(condimentada), executada por personagens que agem, sem utilizar a narração,
sendo através do binômio piedade e terror que a tragédia opera a puriÞcação
das emoções, o que Aristóteles denominou de catarse. A linguagem agradável
(condimentada, no termo grego utilizado) diz respeito ao ritmo, melodia e canto.
A ação se imita pela intriga, como reunião dos acontecimentos – Þnalidade,
princípio e alma da tragédia –, cujas partes se constituem de peripécias,
reconhecimentos e patético.
Para Aristóteles, a peripécia é quando a ação resulta no contrário do
esperado, segundo a verossimilhança e a necessidade. Já o reconhecimento é a
passagem da ignorância ao conhecimento. O reconhecimento com peripécia faz
a intriga mais bela, porque mais elaborada, resultando na piedade e no terror,
emoções de que a tragédia supõe ser a imitação. O patético é a ação destrutiva ou
dolorosa, como os assassinatos, as grandes dores, os ferimentos e todas as coisas
visíveis do mesmo gênero. A essência da tragédia consiste em passar da felicidade
à infelicidade, não por causa dos vícios ou da maldade, mas por grande erro do
herói.
3. 2. Autores Trágicos
O primeiro dos autores trágicos foi Téspis de Lesbos que ganhou o prêmio
de melhor tragédia, instituído pela primeira vez em 534 a. C., quando da
organização das Grandes Dionisíacas por Pisístratos, em Atenas. A ele se atribui
o costume de mascarar os atores (GRIMAL, 1986: 31). No entanto, apenas três
autores da tragédia grega nos chegaram: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Vejamos o
que cada um produziu e o que foi poupado pelo tempo.
Ésquilo (525-456/5 a. C.) coloca um segundo autor em cena (deutoragonista),
depois um terceiro, imitando Sófocles. Era considerado grande músico. Das 90
peças que lhe são atribuídas, apenas sete tragédias nos chegaram: Os Persas (472),
peça isolada. Sem fazer parte de uma trilogia, o que era habitual, Os Persas é a
única peça do teatro trágico grego que abordava um tema contemporâneo, a
guerra dos gregos contra os persas, de que Ésquilo foi um dos combatentes; Os
Sete contra Tebas (467), peça premiada; As Suplicantes (463), Þm de uma trilogia;
133
Orestéia (458); trilogia completa, composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides;
Prometeu Acorrentado (?), início de uma trilogia.
Sófocles (497-406 a. C.) é o mais premiado dos teatrólogos, tendo ganhado o
prêmio das Grandes Dionisíacas 26 vezes, o que dá um total de 78 peças premiadas.
Atribuem-se-lhe 123 peças, embora só tenhamos conhecimento efetivo de sete.
Sófocles inova com a inclusão de um terceiro ator em cena (tritagonista). As sete
tragédias conservadas pela tradição são Ajax (445), Electra (421? 413?) Filoctetes
(409, ciclo troiano); Antígona (442), Édipo Rei (421), Édipo em Colona (401, ciclo
Tebano) e As Traquinianas (444, ciclo de Héracles).
Eurípides (480-406 a. C.) reduz o tamanho e a signiÞcação do coro, aumenta
as peripécias e os efeitos de surpresa. Com o aumento da intriga, acresce o
número de personagens. Atribuem-se-lhe 92 peças, mas apenas dezoito tragédias
e um drama satírico nos chegaram: O Ciclope (drama satírico com base no Canto
IX da Odisséia de Homero), Alceste (438), Medéia (431), Hipólito (428), Os Heráclidas
(428), Andrômaca (428), Hécuba (424), A Loucura de Hércules (415), As Suplicantes
(415), Íon (~421 e 413), As Troianas (?), IÞgênia em Táuris (?), Electra (413), Helena
(412), As Fenícias (410), Orestes (408), As Bacantes (peça póstuma), IÞgênia em
Áulis (peça póstuma) e Rhésos (tragédia atribuída). Grande é o número de peças
pertencentes ao ciclo troiano.
Numa visão didática dos ciclos da tragédia grega, podemos falar dos
Primórdios, com Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, abordando a prepotência;
do Ciclo Tebano com Édipo Rei e Antígona, ambas de Sófocles, tratando,
respectivamente da impotência e da intolerância, e do Ciclo Troiano, com Ajax,
de Sófocles, em que se aborda a dignidade do herói; a Orestéia, de Ésquilo, em
que a maldição dos atridas é Þnalmente redimida, e três peças de Eurípides,
especialmente escolhidas: IÞgênia em Áulis, sobre a ambição; Hécuba, que trata da
dor individual, e As Troianas, abordando a dor coletiva.
Dada a impossibilidade de se estudarem todas estas peças, recomendamoslhes a leitura de Édipo Rei, por se tratar de peça muito conhecida e amplamente
editada. Lembramos que muitos dos assuntos das tragédias estão na poesia épica,
sobretudo aquelas peças que enfocam o ciclo troiano. Para o momento, Þquemos
com uma visão rápida de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, como peça importante
para a compreensão dos primórdios do mito.
3.3. Prometeu Acorrentado
1
ESCHYLE. Tragédies:
Les suppliantes, Les perses,
Les sept contre Thèbes,
Prométhée enchaîné; texte
établi et traduit par Paul
Mazon. 2. éd. Paris: Les
Belles LeĴres, 2002.
Ésquilo traz para a tragédia a idéia de Justiça, mais ou menos estranha a
Homero, mas que aparece com nitidez em Hesíodo (v. Trabalhos e dias). Afirma
Paul Mazon na introdução geral à obra de Ésquilo3:
“Ésquilo compreende que a essência do drama deve ser esta idéia de justiça,
que se incorporou à deÞnição mesma do homem. Toda ação humana formula
uma questão de direito. A tragédia tratará, portanto, das questões de direito”
(ÉSCHYLE, 2002: XI).
Uma idéia original em Ésquilo é a de que o direito se desloca, pela
incapacidade do homem em retê-lo. Ao querer mais do que lhe compete, o
homem vê o direito colocar-se ao lado do adversário. A única maneira de
134
combater o excesso é a moderação, virtude suprema aos olhos do grego. Ao saber
se moderar, o homem poderá conservar consigo o direito que lhe cabe. Entregarse às paixões é o meio mais rápido para que o homem se veja privado do seu
direito.
A discussão travada em Prometeu acorrentado enfoca justamente a concepção
de direito e justiça. Texto de data desconhecida, esta peça faz parte de uma
trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu libertado e Prometeu porta-fogo –, em que
personagens divinos são mostrados numa teomaquia, a exemplo de Homero e
de Hesíodo, com a diferença de que nos dois poetas épicos as teomaquias não
constituem tragédias, pois não comportam uma idéia moral.
Tendo roubado o fogo sagrado de Zeus para dá-lo aos humanos, Prometeu
é punido com o acorrentamento ao Cáucaso, com o sepultamento vivo pela
montanha e, posteriormente, com o martírio de uma águia, a águia de Zeus, que
vem comer-lhe o fígado diariamente. Na peça, que ora estudamos, única que
nos sobrou, só vemos as duas primeiras partes da punição: o aprisionamento e o
sepultamento vivo de Prometeu, embora Hermes anuncie ao Titã a terceira parte
da punição.
O conßito Zeus x Prometeu, no entanto, vai além do roubo do fogo ou do
ludíbrio de Prometeu a Zeus. Não há dúvida de que o Titã se rebelou e quebrou
a lei divina ao levar o fogo aos homens, mas Prometeu é detentor de um segredo
importante para Zeus, o oráculo de Thêmis, que lhe foi anunciado e cujos
desdobramentos ele conhece por ser ele sabedor do que vai acontecer, vez que seu
nome signiÞca o que conhece antes. No conßito da peça Þca clara a desmedida de
Zeus em relação a Prometeu, sendo a Força e o Poder, deuses que acompanham
Hefestos na missão de acorrentar Prometeu, o símbolo desta desmedida. Ao que
parece, o endurecimento da punição é menos pelo roubo do fogo e mais por ser
o Titã detentor de um segredo danoso a Zeus, cuja revelação depende de sua
libertação.
Na trilogia, se estabelece que é da desmedida que se reconhece,
dolorosamente, a moderação e o domínio de si, como virtudes importantes e
necessárias, mesmo no Olimpo. Zeus como um deus cósmico, que ordena o
universo, deverá se moderar e permitir a libertação de Prometeu – primeiro
com Hércules matando a águia, depois com a troca de Prometeu pelo Centauro
Quíron, que, ferido por Hércules, aceitará descer ao Hades em lugar do Titã –
para não pôr em risco a ordem que ele mesmo criou. Desse modo, é importante o
episódio de Io, antepassada de Hércules, que toma boa parte da peça.
A peça se inicia com Hefestos, acompanhado do Poder e da Força, levando
Prometeu, que segue e se mantém calado, para o aprisionamento. Hefestos é
quem tem a obrigação de prender Prometeu ao rochedo do Cáucaso. O erro de
Prometeu foi roubar o fogo brilhante de onde nascem todas as artes para leválo aos homens: Prometeu está sendo punido por ser benfeitor dos homens. Zeus
como novo mestre, que impõe uma nova ordem, tem coração inßexível, duro
como um rochedo.
O Poder demonstra sua força sem concessões, enquanto Hefestos mostra-se
constrangido em aprisionar Prometeu, revelando o conßito da técnica obrigada a
servir ao poder constituído. Daí dizer-se que a peça trata da prepotência, palavra
que não deve ser entendida como arrogância, mas com o sentido de alguém ter o
poder sobre todas as coisas.
135
Prometeu só se pronuncia a partir do verso 88, para lamentar-se de sua
condição, iniciando com a invocação das forças da natureza:
“Éter divino, ventos de asa rápida, águas dos rios, sorriso inumeráveis das
vagas marinhas, Terra, mãe dos seres, e tu, Sol, olho que tudo vê, eu os invoco
aqui: vede o que um deus sofre pelos deuses!” (v. 88-92).
O roubo do fogo numa férula, entregando-o aos mortais é mais do que uma
rebelião contra Zeus, é a aÞrmação de Prometeu como mestre de todas as artes.
O fogo aí aparece como um grande recurso, permitindo aos seres humanos a
entrada na civilização. Toda a constituição da peça aponta para os primórdios,
para os mitos da origem, do mundo arcaico, portanto. Assim é que o coro,
formado pelas Oceânides, mostra a nova lei que se impõe a partir de Zeus, lei
que destrói os colossos do passado, numa alusão aos Titãs e à titanomaquia – a
luta e vitória de Zeus contra os Titãs e, sobretudo, seu pai, Cronos. Esta vitória, só
possível com a astúcia de Zeus, mais do que a força dos seus adversários, conta
com a ajuda de Prometeu, antigo aliado do deus supremo do Olimpo. O que leva,
então, Prometeu a cair em desgraça e passar da ventura à desventura, como diria
Aristóteles? Foi o fato de ele ter infringido o direito e ter dado cegas esperanças
aos seres humanos. Ele comete a desmedida e não segue o aforisma básico da
contenção: “Conhece-te a ti mesmo” (v. 309).
Oceano, pai das Oceânides, intervém para recriminar Prometeu por sua
falta de humildade e por querer se opor a um monarca, cujo poder não tem
contas a prestar. Mesmo assim, Oceano tenta ajudar Prometeu, mostrando-se
disposto a intervir junto a Zeus a seu favor, mas é ironizado pelo Titã. Em lugar
de se mostrar humilde, Prometeu passa a desÞar todos os benefícios que levou
aos seres humanos. E aí, ßagramos o conßito dialético da peça: quem ensinou aos
seres humanos todas as artes, para libertação da ignorância, ignora a arte de se
libertar a si mesmo:
“No início, eles viam sem ver, eles escutavam sem ouvir, e, iguais às formas
oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles
ignoravam as casas de tijolo ensolaradas, eles ignoravam o trabalho da madeira;
eles viviam sob a terra como formigas ágeis, no fundo de grotas fechadas ao
sol” (v. 447-453).
Prometeu ensina aos seres humanos a astronomia, os números, as letras, a
arte de construir os carros atrelados a cavalos, os navios a vela, a medicina, as
artes divinatórias, a ornitomancia, a queima da carne envolta na gordura para
saber os presságios; revelou-lhes os tesouros sob a terra – ouro, prata, bronze,
ferro: “Com uma palavra tu saberás tudo ao mesmo tempo: todas as artes aos
mortais vieram de Prometeu (resposta ao Corifeu, v. 505-506).
O episódio de Io (v. 591-886) é dos mais importantes na peça, pois anuncia
o nascimento do libertador de Prometeu, treze gerações depois. Perseguida pelo
fantasma de Argos, o cão de Hera, morto por Hermes, enquanto a vigiava, Io vai
falar com Prometeu, que lhe prediz o futuro: ela, fugindo aos moscardos que a
picam, atravessará o estreito que separa a Europa da Ásia e que levará seu nome
(futuro estreito de Bósforo ou passagem da vaca, pois Io se apresenta como uma
136
novilha). Depois, chegando ao Egito, Io dará à luz Epafos, iniciador de gerações que
vão culminar em Hércules, o futuro libertador do Titã (v. genealogia em seguida).
A Io, Prometeu revela parte do oráculo de Thêmis sobre a queda de Zeus:
o deus pai terá um casamento de que se arrependerá, pois o Þlho por ele gerado
será mais forte que o pai, proporcionando a sua queda. Com a queda, Zeus saberá
qual a diferença entre reinar e servir (v. 926-927).
Hermes, mensageiro de Zeus, aparece como núncio de castigos maiores (v.
944-1093). Querendo descobrir qual o casamento que proporcionará a queda de
Zeus, Hermes encontra um Prometeu cheio de orgulho e de ironia, para quem o
segredo só será revelado com a libertação. Em resposta a Hermes que lhe diz ser
Zeus desconhecedor do lamento, Prometeu retruca:
“Não existe nada que com a velhice, o tempo não ensine” (v. 980).
Hermes anuncia o castigo além do acorrentamento: ele será sepultado vivo
pela montanha e, depois, a águia de Zeus comerá o seu fígado eternamente. Na
sua fala Þnal, Prometeu faz o encerramento com o mesmo lamento inicial sobre a
injustiça de que é vítima:
“Mas eis os fatos e não mais as palavras: a terra vacila; nas suas profundezas,
ao mesmo tempo, muge a voz do trovão; em ziguezagues embrasados o raio
surge explodindo; um ciclone faz turbilhonar a poeira; todos os sopros do ar se
lançam ao ataque uns aos outros; a guerra é declarada entre os ventos, e o éter
já se confunde com os mares. Eis, portanto, a tormenta que, para me espantar,
manifestamente vem sobre mim, em nome de Zeus. Ó Majestade de minha
mãe e tu, Éter, que faz rolar em torno do mundo a luz oferecida a todos, vós
vedes bem as iniqüidades que eu suporto? (v. 1080-1093)
É essencial para o estudo da peça que compreendamos o seguinte: Prometeu
está ligado ao mito primordial da criação da terra, dos deuses e dos homens, fruto
de uma teogonia, que se desdobra em uma titanomaquia, para estabelecimento de
uma cosmogonia (v. Hesíodo, Teogonia.), em que Zeus reinará absoluto, mesmo
partilhando o poder com os irmãos Posídon (deus do mar) e Hades (deus do
interior da terra, o mundo inferior). Por outro lado, o oráculo de Thêmis revela
uma possível queda de Zeus, o que resultaria no retorno ao caos. É a justiça que vai
de encontro ao direito. É do direito de Zeus punir Prometeu pelo roubo do fogo,
levado aos seres humanos, mas é justo que ele seja punido por tirá-los da cegueira
em que viviam, abrindo-lhes as portas da civilização? Eis a grande questão da peça.
Para não correr o risco de retorno ao caos com a perda do seu poder, Zeus
terá de se vencer a si mesmo, moderando a sua desmedida e proporcionando
a libertação de Prometeu, através de uma das mulheres por ele fecundadas, Io.
A libertação sairá das mesmas mãos de quem puniu. Saindo da ventura para
desventura, Prometeu conhece antecipadamente a possível queda de Zeus, mas
ignora como poderá se libertar. Submetido à força e ao poder, seu trunfo é a
justiça divina, o oráculo de Thêmis.
Por Þm, podemos ver Prometeu acorrentado como uma alegorização da Pólis,
no sentido de que a civilização está em desacordo com o poder prepotente que,
como diz Oceano, não tem contas a prestar.
137
Genealogia de Hércules
GLOSSÁRIO
Acrópole: Literalmente, cidade alta, cidade no cume. É a parte alta da
cidade de Atenas, onde se encontra o Partenon, grande templo em louvor de Palas
Atena, a deusa protetora da cidade.
Antístrofe: Movimento do coro para a esquerda, em torno do altar, no
centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.
Bacante: Seguidor de Dionisos, tomado pela fúria do deus. O deus Dionisos
também era conhecido como Baco.
Catarse: A tragédia tinha por objetivo inspirar terror e piedade. A catarse
era a conseqüência disso, objetivando a puriÞcação das emoções.
Deuteragonista: O segundo personagem em cena, introduzido por Ésquilo.
Ditirambo: Hino a Dionisos, cantado durante a procissão da faloforia.
Entusiasmo: Trata-se da possessão divina, a animação por um transporte
divino, para transformar-se em bacante.
138
Estreito de Bósforo: Passagem que divide a Europa da Ásia, que dá acesso
do Mar de Mármara ao Mar Negro ou vice-versa. Na parte Européia do Estreito
de Bósforo encontra-se Istambul, que já foi Constantinopla e já foi Bizâncio. Seu
nome signiÞca literalmente “Passagem da Vaca” por causa de Io.
Estrofe: Movimento do coro para a direita, em torno do altar, no centro da
orquestra, durante a apresentação da tragédia.
Êxtase: Trata-se do deslocamento do espírito. O seguidor de Dionisos
buscava sair de si para ir ao encontro do deus ou para que o deus pudesse
entrar nele.
Faloforia: Procissão para culto de Dionisos e da fertilidade. Os seguidores
do deus carregavam um enorme falo sobre o andor, em homenagem ao deus
Príapo, agradecendo pelas colheitas e pela fertilidade.
Grandes Dionisíacas: Festas entre os meses de março e abril, durante a
primavera, em honra ao deus Dionisos, para culto da fertilidade e da colheita.
Durante essas festas acontecia o concurso de teatro.
Oceânides: Filhas de Oceano e Téthys. Hesíodo alude a quarenta e uma
Oceânides, mas a lista teria pelo menos três mil. São, como o próprio nome indica,
divindades marinhas.
Ornitomancia: É a prática de se descobrir o futuro a partir do vôo dos
pássaros ou do estudo de suas entranhas.
Peripécia: Ação que na Tragédia resulta no contrário do esperado.
Pólis: Assim se chama a cidade grega, a partir do século VI a. C. A pólis
marca a entrada da Grécia na democracia, com os cidadãos (polites) se reunindo
em torno da praça (ágora) para tomar as decisões.
Protagonista: O personagem principal. Até Ésquilo, tratava-se do único
personagem em cena.
Reconhecimento: Momento da tragédia em que o personagem sai da
ignorância para o conhecimento dos fatos.
Teomaquia: Batalha dos deuses. É assim que acontece na Ilíada, nos Cantos
XX e XXI, quando Zeus libera a participação dos deuses na guerra de Tróia,
para que eles tomem o partido que lhes parecer melhor. Também na Teogonia
de Hesíodo existe uma teomaquia, mais especiÞcamente uma titanomaquia, na
luta de Zeus contra os Titãs, liderados por seu pai Cronos. Zeus é o vencedor,
aprisionando os Titãs no Tártaro.
Titanomaquia: V. Teomaquia.
Trilogia: conjunto de três peças trágicas, apresentadas por ocasião dos
concursos.
Tritagonista: Terceiro personagem em cena, introduzido por Sófocles.
139
UNIDADE IV
ESTUDO DE VIRGÍLIO – O LIVRO I DA ENEIDA
4.1 Estudo de Virgílio
Publius Vergilius Maro (Mântua, 70 a. C. – Brundísio ou Bríndise, 19 a.
C.), considerado um dos maiores poetas da língua latina, viveu no período
Clássico da literatura latina – a chamada Idade de Ouro do imperador Otávio
Augusto –, momento em que a literatura atinge seu apogeu, contando para isto
com o concurso da Þgura de Mecenas, amigo de Otávio. Estudante de gramática
e retórica na juventude, Virgílio prefere a companhia de Þlósofos e poetas, por
reconhecer na timidez uma barreira para enfrentar os debates retóricos. A partir
da vitória de Otávio sobre Marco Antônio (31 a. C.), na batalha de Actium,
e de sua aclamação como princeps (29 a. C.), Virgílio cai nas graças do futuro
imperador, que lhe encomenda uma epopéia sobre a glória romana.
De suas obras mais importantes, temos notícia das Bucólicas (39 a. C.),
poema do campo, em que pastores na natureza ideal desfrutam da felicidade
fazendo poesia, cuja base são os Idílios de Teócrito (poeta grego do século III a. C.);
as Geórgicas (29 a. C.), poema didático, dedicado a Mecenas, sobre a agricultura
e a criação dos animais, inspirado em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (poeta
grego do século VIII a. C.) e em De rerum natura de Lucrécio (poeta latino 99/9455/50 a. C.)1. Por Þm, aquela que é considerada a sua obra-prima a Eneida (17 a.
C.), epopéia inspirada na Ilíada e na Odisséia de Homero (VIII a. C.), narrando a
fundação das bases da futura Roma, o que virá a ser feito pelos descendentes de
Enéias, personagem central do poema.
A epopéia mais antiga entre os latinos é a tradução/adaptação da Odisséia
de Homero por Livius Andronicus – Odissia (cerca de 250 a. C.) –, em cuja
composição o poeta utilizou versos saturnianos. Só com Ennius e os Anais (século
II a. C.) é que os romanos terão uma epopéia com o hexâmetro dactílico ou
espondaico, dando a Roma a sua primeira obra de porte. Segundo Pierre Grimal
(1997: 174), para escrever a sua epopéia, a Eneida, Virgílio aglutina a tradição
homérica à nova tradição de Ennius, este considerado o pai da literatura latina.
Tendo começado a composição da Eneida por volta de 29-28 a. C., dez anos
depois Virgílio ainda não se dava por satisfeito com o que escrevera, por isto teria
determinado a destruição de sua obra, quando estava próximo a sua morte, em
19 a. C. Por interferência de Otávio é que o poema foi editado. O já imperador
incumbiu dois amigos de Virgílio, também poetas, L. Varius e Plotius Tucca, de
cuidarem da edição da Eneida, publicada dois anos depois da morte do poeta, em
17 a. C. (GRIMAL, 1997: 237).
A lenda da fundação de Roma reserva o ano de 753 a. C. para a sua
construção. Com a queda de Tróia, Enéias e um grupo de troianos são impelidos
pelo destino a deixar a cidade de Príamo e ir em busca de fundar uma nova
Tróia, tão gloriosa quanto aquela que acabava de ser tomada pelos gregos, após
O poema foi lido por
Virgílio, que alternava
a leitura com Mecenas
quando este cansava,
a Otávio, em 29 a. C.,
na Campânia, em seu
retorno
vitorioso
do
Oriente (GRIMAL, 1997:
128)
1
141
Veja-se, por exemplo,
Tito Lívio, na bibliograÞa.
2
Tradução nossa
original grego.
3
do
dez anos de cerco. A chegada dos Troianos à Península Itálica põe em confronto
Enéias e Turno, rei dos Rútulos, pela posse da terra. Vitorioso, Enéias funda o
reino de Lavínio, cujo nome é originário da Þlha do rei Latino, Lavínia, que ele
recebe como esposa. Seu Þlho Iulo, em seguida, funda a cidade de Alba Longa,
onde reinará por trinta anos, e seus descendentes por trezentos anos. Passado
esse tempo, a sacerdotisa vestal Rhéia Sílvia dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo,
netos de Numitor, rei de Alba longa, proporcionando assim as condições para a
futura fundação de Roma. Em linhas gerais, este é o argumento da Eneida, com a
ressalva de que o poema encerra com a morte de Turno por Enéias. Mesmo que
não vejamos o desenrolar dos acontecimentos, eles são anunciados ao longo da
narrativa, desde o Livro Primeiro, numa antecipação do destino de Enéias e da
glória romana.
A história de Enéias, como ancestral de Roma, está na tradição latina2, mas
é na Ilíada que Virgílio encontra a deixa literária para escrever a Eneida. A glória
de Enéias como mito fundador e o destino de seus descendentes são anunciados
no Canto XX do maior poema homérico, nos versos 292-3083:
Imediatamente, [Posídon] diz aos deuses imortais:
Ai de mim! sinto uma grande dor por Enéias do grande coração,
Que depressa baixará ao Hades, sob o braço do Pelida,
Por ter sido persuadido pelas palavras de Apolo, o que fere de longe.
Tolo! Não é ele [Apolo] que vai socorrê-lo contra a morte ruinosa.
Mas qual a necessidade de que ele sofra estas dores,
Inutilmente, pelos males dos outros, ele que sempre ofereceu
Presentes aos deuses que habitam o vasto céu?
Eia, vamos subtraí-lo da morte e levá-lo conosco,
Se por um lado, o Cronida se indignaria de ver Aquiles
Matá-lo, por outro lado, o destino deseja vê-lo salvo,
Para que não pereça, sem posteridade e aniquilada,
A raça de Dárdanos, que, dentre todos os seus Þlhos,
Nascidos dele e de uma mortal, o Cronida mais amou.
Já a raça de Príamo, o Cronida odeia.
É o poderoso Enéias que reinará, doravante, sobre os troianos,
Ele e os Þlhos de seus Þlhos, que nascerão em seguida.
Descendente de Dárdanos, Þlho amado de Zeus, Enéias deve ser salvo
da luta contra Aquiles. Assim manda o Destino, para que ele possa ser rei dos
troianos um dia, bem como os Þlhos de seus Þlhos. É com este argumento que
Posídon, apesar de estar ao lado dos gregos na guerra de Tróia, salva Enéias de
ser morto por Aquiles, envolvendo o Pelida em um nevoeiro tenebroso, e jogando
Enéias em outra frente de combate, onde não será alcançado pelo melhor dos
aqueus, Aquiles. Nestes versos também se encontra a personalidade piedosa de
Enéias, sacriÞcando aos deuses do Olimpo.
Contando com 9896 versos, dividida em doze Livros ou Cantos, nós
podemos distribuir, didaticamente, os argumentos de cada livro da Eneida da
seguinte maneira:
Livro I (756 versos): Os Troianos na África – Enéias em Cartago
Livro II (804 versos): As Narrativas de Enéias – O Fim de Tróia
142
Livro III (718 versos): As Narrativas de Enéias – Os Anos de Errância
Livro IV (705 versos): Os Amores de Enéias e Dido – Morte de Dido
Livro V (871 versos): Enéias na Sicília – Jogos Fúnebres em Honra de
Anchises
Livro VI (901 versos): A Descida aos Infernos – Entrevista com Anchises
Livro VII (817 versos): Enéias no Lácio – Juno e Alecto Semeiam a Discórdia
Livro VIII (731 versos): A Aliança com Evandro – O Escudo de Enéias
Livro IX (818 versos): O Cerco aos Troianos – Batalha contra Turno
Livro X (908 versos): O Primeiro Embate – Morte de Mezêncio
Livro XI (915 versos): O Segundo Embate – Morte de Camila
Livro XII (952 versos): A Decisão – Morte de Turno
Muitos são os estudos sobre a Eneida, cada qual apresentando uma estrutura
do poema. A estrutura da Eneida mais conhecida é aquela que divide o poema em
duas partes, relacionando os seis primeiros livros à Odisséia e os seis últimos livros
à Ilíada, numa estruturação invertida com relação aos poemas homéricos. Apesar
de simplista, podemos dizer que, em linhas gerais, esta estruturação não deixa de
ser correta. Como, no entanto, trata-se de um poema de uma intertextualidade
complexa, nós propomos uma estrutura triádica para a sua análise, de modo a
cobrir com mais propriedade o poema. A saber:
I.
II.
Provações (Livros I-IV): As provações são um rito de iniciação para
Enéias como mito fundador. O herói, além de perder a pátria e o pai, tem
a missão imposta pelo destino de fundar uma nova Tróia. As provações,
que se revelam entre os Livros I e III, apresentam uma transição no Livro
IV, em que se mostram as provações de Dido, e a renovação dos votos da
missão de Enéias. O Livro I mostra a tempestade desencadeada por Éolo
a mando de Juno, que faz Enéias se desviar de sua rota e bater com os
costados no litoral da África do Norte, a Líbia de então, onde Dido constrói
o reino de Cartago. O Livro II é o início das narrativas de Enéias, mais
especiÞcamente enfocando a queda de Tróia. Trata-se do melhor relato nas
grandes epopéias da vitória dos gregos sobre os troianos, após uma guerra
de dez anos. O Livro III dá continuidade às narrativas de Enéias, desÞando
o itinerário diÞcultoso do herói, digno da Odisséia: viagens pelo mar, pestes,
tempestades, errâncias, profecias sombrias, morte do pai, nova tempestade,
desvio de rota... O Livro IV mostra os amores de Enéias e Dido, com o herói
vendo-se obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu destino. O
desdobramento de amor e fuga de Enéias leva Dido à morte, origem míticopoética dos desentendimentos futuros entre Roma e Cartago. Aqui se dão
as três principais perdas de Enéias: a pátria, a esposa e o pai.
Rituais (Livros V-VIII): Os rituais revelam o rito de passagem de Enéias
em busca do pai e da pátria. Primeiro, os ritos fúnebres com que ele celebra
o pai, no Livro V, com os jogos na Sicília, em Drépano, após um ano da
morte de Anchises; em seguida, no Livro VI, Enéias faz a Catábasis (descida
ao inferno para o reencontro com o pai, que o aconselha e mostra o futuro
glorioso de Roma), num ritual de conhecimento e clariÞcação do destino,
e a Anábasis, subida de volta ao mundo dos vivos para encontrar a pátria,
143
III.
ritualisticamente encontrada no Livro VII, na chegada ao Lácio, após o
cumprimento da sombria profecia de Celeno (Livro III), de que os troianos,
de fome, comeriam as próprias mesas. É aí que se dá o rito fundador, com a
invocação aos deuses: deuses do local, Ninfas, Rios e cursos d’água, Noite,
Júpiter do Ida, a mãe frígia Cibele, sua mãe celeste Vênus, e o pai Anchises,
que se encontra no Érebo, nos Infernos. A este ritual, Júpiter responde
com três trovões, aprovando e conÞrmando o destino do herói, que passa
a demarcar a terra prometida, já construindo uma fortiÞcação (Livro VII,
versos 137-159). Finalmente, a transição que se opera no livro VIII, transição
que vai da aliança com o Arcádio Evandro, que passeia com o troiano sobre
o sítio da futura Roma, ao recebimento das armas forjadas por Vulcano, em
que se anuncia, ainda uma vez a glória de Roma, futura senhora do mundo.
É este o momento em que Enéias põe termo aos ritos e revela-se um rei
pronto para a guerra de conquista do novo reino.
Combates (Livros IX-XII): Tendo adquirido a têmpera necessária e feitas
as alianças indispensáveis com o Arcádio Evandro (Livro VIII) e o Etrusco
Tarcão (Livro X), Enéias parte para a guerra contra Turno, rei dos Rútulos.
No primeiro grande embate, Enéias mata o cruel Mezêncio, no Livro X; no
segundo grande embate, morre Camila pelas mãos de Arrunte, no livro
XI; por Þm, Enéias mata Turno, no Livro XII. A posse da terra é também
a posse da mulher, Lavínia, em cuja homenagem ele colocará o nome do
reino – Lavínio. Está formada a base para a construção da futura Roma. Em
suma, mito fundador, Enéias perde a pátria e o pai, para, reencontrando o
pai, ser o pai da nova pátria (vejam-se, no Livro I, os versos 555, 580 e 699, e
no Livro III, o verso 716, em que Enéias é chamado de Pater, pai.). É verdade
que o poema termina de maneira abrupta com a morte de Turno por Enéias,
não se vendo, portanto, a fundação de Roma, sequer do reino Lavínio. No
decorrer do poema, contudo, anuncia-se a cada passo o destino de Enéias,
vinculado à fundação da Roma gloriosa, senhora do Mediterrâneo, no início
da sua glória, e senhora do mundo com Augusto.
4.2 O Livro I da Eneida – Fim das Provações pelo Mar
Georges Dumézil se refere aos últimos seis livros da Eneida como presididos
pelos “Fata fermés” ou destinos fechados (1995: 365-387). Ele considera que
Enéias só verá com clareza o seu destino, após fazer a anábasis, a subida do
inferno, voltando para o mundo dos vivos. Tendo visto no mundo das sombras
a glória da futura Roma, apresentada pelo seu pai Anchises, Enéias se apressa a
voltar às naus e juntar-se aos seus companheiros. Os destinos são fechados para a
maior parte dos personagens, que serão levados ao aniquilamento, como é o caso
de Evandro (cujas esperanças estão depositadas no Þlho Palante), Palante, Lausos,
Camila, Mezêncio e Turno.
No que diz respeito a Enéias, seu destino será conÞrmado pela profecia de
Fauno, pai de Latino, e de um arúspice a Evandro, a quem Enéias vai pedir ajuda.
Além do apoio de Evandro, Enéias vai contar com a ajuda dos Etruscos de Tarcão,
que querem vingança de Mezêncio e de suas crueldades. Na profecia de Fauno,
a Þlha do rei Latino deverá ser dada em casamento a um estrangeiro; na do
arúspice, as tropas contra Mezêncio devem ser comandadas por um estrangeiro.
Para chegar a esta clareza, no entanto, Enéias faz um caminho tortuoso, narrado
144
nos primeiros quatro livros da Eneida, o caminho das provações. Vamos fazer um
breve estudo do Livro I para podermos entender as provações do herói.
Para o leitor que não se dá conta de que está diante de uma estrutura
narrativa in medias res, este Livro I da Eneida seria o início das provações de
Enéias, com a tempestade desencadeada por Éolo a pedido de Juno, perseguidora
do herói troiano. O verdadeiro início das provações, contudo, acontece bem antes,
com a queda de Tróia, mas o leitor só o conhecerá com o ßash-back proporcionado
pelo herói, nos Livros II e III. Abrindo com o proêmio – misto de invocação e
proposição –, o Livro I nos apresenta o argumento do poema, dirigindo a uma
leitura que não pode desconsiderar a ação do destino. Assim é que o herói Enéias
nos é apresentado, compelido à fuga de Tróia pelo destino, exilado da pátria pela
ação do destino – fato profugus (v. 2)4 e assinalado pelos deuses por sua piedade
– insignem pietate uirum (verso 10). Sua missão é chegar à Itália, nas terras da
Lavínia e ali construir os altos muros da futura Roma.
A narração já nos mostra Enéias em meio à tempestade, perseguido
pela cólera de Juno, ressentida com fatos passados e temendo fatos futuros.
Ainda irada com a escolha de Páris, no julgamento do Monte Ida, e com o
rapto do troiano Ganimedes por Zeus – fatos passados –, Juno continua com o
seu propósito de acabar com os troianos, sobretudo, após saber que se Enéias
fundar uma nova Tróia, isto será a causa da perdição de Cartago, a cidade por
ela protegida e que está sendo erguida por Dido na costa da África do Norte, na
Líbia de então (versos 12-33)5. Cartago é o Þm da errância custosa a Enéias e sua
gente, antes de atingir o Lácio:
(Juno) distanciava (os troianos) para bem longe do Lácio, por muitos anos
e (os troianos) erravam por causa dos fados por todos os mares em torno.
Tamanha diÞculdade era fundar a nação Romana. (I, versos 31-33)
Este primeiro capítulo é proléptico, contando com algum ßash-back sobre a
guerra de Tróia. A prolepse mais importante é a referente ao destino de Enéias,
com Júpiter predizendo e reaÞrmando a Vênus a missão de Enéias como mito
fundador, que dará aos homens leis e muralhas; e a glória da futura Roma. Os
destinos dos troianos, portanto, permanecem imutáveis, nada fará com que o
Deus mude suas decisões: Enéias reinará no Lácio por três anos, após submeter
os rútulos, fundando o Reino de Lavínio; Iulo reinará trinta anos após Enéias,
fundando o reino de Alba Longa; por trezentos anos reinarão os troianos
até o nascimento de Rômulo e Remo, que irão fundar Roma. Ciente do seu
destino e dos trabalhos que irá enfrentar, Enéias exclama ao deparar-se com o
formigamento da construção de Cartago:
4
Todas as citações da
Eneida são da edição
da Les Belles LeĴres,
de Paris, constante da
bibliograÞa. As traduções
do latim e do grego são
nossas, salvo quando
forem
devidamente
r e f e r e n c i a d a s .
Esclarecemos
também
que as traduções são
operacionais,
com
o
sentido de entender o
texto no seu original, sem
pretensões poéticas.
Ó afortunados, dos quais as muralhas já surgem! (I, verso 437)
Na continuidade da prolepse, o narrador nos conta da dominação da Grécia
por Roma. Oprimida pela casa de Assáraco, o Þlho de Tros, de cuja linhagem
sairão Anchises e Enéias, a Ftia, a ilustre casa de Micenas e a vencida Argos,
ironicamente serão subservientes aos Troianos outrora derrotados. Conclui-se
essa prolepse com a expansão do Império Romano, com César, e o período da Pax
Romana, com Augusto (versos 257-296)6. Roma será um império sem limites e sem
Þm:
5
Hoje Tunísia.
Analisaremos este trecho,
mais
minuciosamente,
em seguida.
6
145
A estes eu não Þxo limites nem tempo:
Um império sem Þm eu lhes dei (I, versos 278-9).
A prolepse da narrativa, no entanto, não se dá apenas com o futuro glorioso
de Roma. Ocorre também com o amor de Enéias e Dido, fato que acontecerá no
Livro IV. A partir dos versos 667 e seguintes, prepara-se este amor, quando, por
ocasião do banquete a Enéias, seu Þlho Ascânio é trocado, numa intervenção de
Vênus, por Cupido, para insußar a paixão em Dido, que Þcará desde já embebida
de um amor que lhe trará a infelicidade (I, verso749):
E a infeliz Dido bebia um longo amor.
Como sabemos, este Livro I é a chegada de Enéias em Cartago, onde
terminam as suas provações pelo mar, o que denominaremos de rito iniciático. O
Þnal das provações se dará em dois momentos, no templo de Juno e no banquete
a Enéias, oferecido por Dido. Nas paredes do templo, que está sendo construído
em homenagem a Juno, Enéias vê cenas da guerra de Tróia, que o levam às
lágrimas. A Fama já havia difundido o infortúnio dos troianos em todos os
recantos do mundo:
Parou e chorou: “Em que lugar” perguntou “Achate,
Que região na terra não está cheia de nossas dores?”
(I, v. 459-460)
Das cenas vistas por Enéias se destacam: Príamo e Aquiles irritado contra os
atridas (A irritação de Aquiles contra os atridas, e mais especiÞcamente Agamêmnon,
é o tema do Canto I da Ilíada); recuo dos gregos ante os troianos (o que acontece na
Ilíada até o Canto XVI); recuo dos troianos ante Aquiles (Ilíada, a partir do Canto XX);
morte do rei Rheso da Trácia (Ilíada, Canto X); morte de Troilo ante Aquiles (Ilíada,
Canto XXIV, segundo relato de Príamo); dor das mulheres troianas (Ilíada, Cantos
XXI-XXIV); morte, ultraje e resgate do corpo de Heitor (Ilíada, Cantos XXII-XXIV) e
a luta de Pentesiléia, rainha das Amazonas, aliadas dos troianos, morta por Aquiles
(Pós-Homérica, de Quinto de Esmirna, episódio fora da Ilíada).
O segundo momento, que determina o Þm das provações, é uma espécie de
catarse de Enéias, quando instado por Dido a narrar as suas aventuras, o que se dá
nos dois Livros seguintes. Enéias fala da queda de Tróia, da perda da esposa (Livro
II) e de sua errância, por terra e por mar, momento em que perde o pai (Livro III).
Enéias tem consciência das provações (I, v. 198-207), alerta os seus companheiros
para o fato, mas não perde a esperança de dias melhores, prometida pelo destino:
Por vários acasos, por um sem grande número de perigos
Dirigimo-nos para o Lácio, onde os fados um domícilio aprazível
Acenam; ali as leis sagradas nos permitirão ressuscitar o reino de Tróia.
Tende paciência, e conservai-vos para as coisas favoráveis
(I, versos 204-207).
A análise de um trecho especíÞco do Livro I nos dará a consciência da
estrutura triádica do herói Enéias. Trata-se dos versos 223 a 296, em que se
observa a reaÞrmação do destino de Enéias para a gloriÞcação de Roma.
146
Sabemos que na Eneida, o destino de Enéias é fechado7, pois se trata de um
destino bom: o herói está determinado pelos deuses a fundar uma cidade tão
gloriosa quanto Tróia recém-destruída e assim perpetuar a progênie de Dárdano
e a casa de Assáraco. Impelido, portanto, pelo fado – fato profugus –, Enéias se
lança ao mar com os Penates de Tróia, em busca do lugar prometido e anunciado
por Creúsa, sua esposa, que, no momento da destruição de Tróia, desaparece e,
posteriormente, reaparece-lhe na condição de simulacro, para lhe falar das terras
da Hespéria, onde à beira do Tibre opulento o aguardam a fortuna e uma esposa
real. Após várias errâncias pelo mar, Enéias chega à costa da África, apesar da
perseguição da deusa Juno (Hera), ainda ressentida com os troianos desde o
julgamento do Monte Ida – este apenas um dos motivos –, quando sua beleza foi
preterida por Páris, em favor de Vênus (Afrodite).
Salvo por Netuno da tempestade desencadeada por Éolo a mando de Juno,
Enéias consegue aportar na Líbia e assim escapar do naufrágio. A sua chegada,
última provação do herói no mar, é observada por Júpiter (Zeus), pai dos deuses,
a quem coube determinar o destino de Enéias. Estamos no Livro I da Eneida,
mais ou menos no seu primeiro terço8. É nossa intenção montar a estrutura e
desenvolver a análise de um trecho de 73 versos, compreendido entre os versos
223 e 296 deste Livro I.
O trecho pode ser divido em dois momentos: a queixa de Vênus a Júpiter
(versos 223-253) e a conÞrmação do destino de Enéias (versos 254-296). O primeiro
momento é bem simples, pois se resume exatamente à queixa de Vênus a Júpiter,
intercedendo pela sorte de seu Þlho Enéias, cobrando ao pai a promessa feita:
os romanos, nascidos do sangue reanimado de Teucro, seriam os senhores do
mundo:
É daí, sem dúvida, que, no curso dos anos, outrora prometeste,
(nasceriam) os Romanos; do sangue reanimado de Teucro
deverão surgir os senhores que manterão com toda soberania
o oceano e as terras: que pensamento, pai, te mudou?9
Ver DUMÉZIL, Georges
(1995: 365): “A longa
noite de Tróia, os anos
de incerta navegação, os
oráculos e os milagres,
a
tentação
púnica
evitada, tudo teve um
sentido: reconduzida a
sua origem ausoniana,
a realeza de Príamo vai
reßorescer sobre esta
terra prometida enÞm
tocada, a Itália.”
7
O Livro I tem 756
versos.
8
A tradução, apenas
operacional, é nossa.
9
(I, 234-237)
Embora Vênus saiba que o destino de Enéias vai se cumprir – é determinação
do pai Júpiter –, as provações tantas por que Enéias já passara (o que só vamos
conhecer com a narrativa em ßash-back dos Livros II e III) não foram suÞcientes
para conduzi-lo a seu termo. O mundo inteiro teria se fechado com a tempestade
de Juno, proibindo o herói de chegar à Itália (I, verso 233).
Sabemos que todas as provações são necessárias para a formação do
herói, fazendo parte, portanto, de seu rito de passagem, Vênus não teria, pois,
que questionar Júpiter sobre as determinações já conhecidas. Mas as razões de
mãe são sempre de ordem emocional... No questionamento a Júpiter, Vênus
compara a sorte de Enéias à de Antenor. Este troiano, para muitos um traidor,
conseguiu escapar da destruição de Tróia e chegar sem perigos ao norte da Itália,
onde fundou Pádua no vale inferior do rio Pó, ali vivendo em tranqüilidade. A
comparação que mostra o sucesso de Antenor e os fracassos de Enéias tem sua
razão de ser. Antenor não é de raça divina, Enéias é. Como permitir a um simples
mortal, visto por muitos como traidor da pátria, sem ter sido assinalado pelos
deuses, ter êxito na sua fuga e viver em paz? Enéias além de ser duplamente
147
Neste Livro I, ainda há
outras duas ocorrências
do epíteto nos versos 305
e 378.
10
148
divino – Þlho de Vênus e neto de Júpiter – foi designado pelo Destino para
cumprir uma missão gloriosa. Trata-se de um herói em sua plenitude, escolhido
pelos deuses (leia-se Júpiter) para perpetuação de uma raça e, mais ainda, para
a construção de uma nova Tróia, desta feita com a devida anuência divina. Bem
ao contrário da outra Tróia que fora destruída por ter sido construída no erro e
por nele ter persistido. Mito civilizador, que expande a civilização troiana para
o Ocidente, Enéias deve ter suas provações de viagem terminadas, pois já se
mostrou pio o suÞciente para merecer chegar ao termo do seu destino. É chegada
a hora de ver realizada a promessa à prole – a entrada na alta morada do céu (I,
verso 250) e a recompensa pela piedade (I, verso 253) – com a retomada do cetro e
a reconstituição da realeza troiana, a partir de Enéias (I, verso 253).
É neste pequeno fragmento que se revela, de modo inequívoco, o conßito
entre Vênus e Juno. Esta persegue, aquela protege Enéias. Este embate será
vencido temporariamente, de modo ardiloso por Vênus, no Livro IV, quando do
acordo entre as duas deusas para unir Enéias a Dido. Vênus acha lamentável,
terrível mesmo (infandum!, verso 251) que os troianos tenham que padecer, sendo
abandonados com seus navios pela cólera de uma única divindade.
É importante observar que deste pequeno fragmento de trinta versos,
pelo menos três idéias fundamentais para a compreensão da Eneida surgem.
A primeira é a noção de que os deuses, mesmo interferindo na trajetória do
herói, podendo até retardar o cumprimento do destino, não podem mudar
o determinado pelo destino. Enéias sofreu todas as provações possíveis e
imagináveis, mas seu destino será cumprido. A segunda é a idéia de que o
herói tem uma contrapartida a apresentar pelo destino bom que o aguarda. Não
é porque o destino será cumprido que o herói não deva mostrar-se merecedor
dele. As provações de Enéias são a sua preparação, seu rito de passagem para a
condição do herói civilizador. É isto o que representa o recebimento das armas
fabricadas por Hefestos, no Livro VIII da Eneida. A terceira idéia está ligada a um
conceito religioso caro aos romanos: a piedade (pietas). A piedade de Enéias já
se encontra na Invocação do poema (v. 10); o epíteto por que Enéias deverá ser
conhecido, pius Aeneas, o piedoso Enéias, incansavelmente repetido ao longo da
narrativa, já se encontra no verso 220 deste Livro I10.
De acordo com Pierre Grimal (1981: 73), a pietas era uma atitude que
consistia em observar escrupulosamente não somente os ritos, mas também as
relações existentes entre os seres no universo. Inicialmente, tratava-se de uma
espécie de justiça do mundo material, capaz de manter as coisas do mundo
espiritual no seu lugar ou de remetê-las para lá, cada vez que algo de natureza
acidental pudesse provocar a desarmonia, portanto a injustiça. Grimal faz ainda
uma leitura etimológica do termo pietas, apontado uma relação estreita com o
verbo piare, que designa uma ação de apagar uma mancha, um mau presságio,
um crime (1981: 73).
Ora, Enéias é piedoso, pois a sua atitude é de temente e obediente aos
deuses, e de cumpridor dos rituais sagrados, atitude devidamente comprovada
no curso da narrativa – veja-se o ritualístico Livro V, por exemplo –, mas já
testada no Livro II (versos 717-720), quando o herói se recusa a levar em suas
mãos os Penates de Tróia, pois se encontrava sujo de poeira e sangue da guerra
travada contra os invasores argivos. Impuro, ele se encontrava proibido de tocálos (me.../ aĴrectare nefas, versos 718-719). É, pois, na condição de piedoso, que
Enéias deveria fundar uma nova Tróia, limpando a anterior de sua mancha, do
seu erro, assunto a que voltaremos mais adiante.
Constatamos, portanto, que este pequeno trecho das queixas de Vênus nos
apresenta duas das três partes estruturais da Eneida: as provações e os rituais
advindos da piedade. A terceira parte – as guerras – será apresentada no trecho
seguinte, o da resposta de Júpiter.
A segunda parte do trecho, a conÞrmação do destino de Enéias (I, versos 254296), nos revela uma complexidade muito maior, pois Virgílio na composição
do seu poema utiliza-se substancialmente da história de Roma. Logo de início,
vemos o resultado da missão de Enéias, como uma forma de Júpiter tranqüilizar a
angústia da Þlha, para depois nos ser mostrado o roteiro que levará ao Þm dessa
missão. Tranqüilidade expressa num rosto que serena o céu e as tempestades
(uoltu, quae caelum tempestatesque serenat, verso 255), prometendo que os destinos
dos descendentes de Vênus permanecem imutáveis (manent immota fata, versos
257-258) e que a deusa verá surgirem os muros da cidade e ela mesma elevará
Enéias aos astros do céu (feres ad sidera caeli/ magnanimum Aeneam, versos 259260). Aqui se conÞrma o Enéias empreendedor, fundador de cidades. Mais
abaixo, veremos, na revelação dos arcanos do Destino, o Enéias guerreiro que fará
grande guerra na Itália, domando povos ferozes, além do Enéias empreendedor e
sacerdote, pois dará leis e cidades aos homens. Não é suÞciente que o herói seja
apenas um mito fundador, ele deve ser um mito civilizador, cabe-lhe, portanto
introduzir a civilização, o que se fará através das leis, na Península Itálica:
Este à Itália levará grande guerra, os povos ferozes
aniquilirá e estabelecerá leis e muralhas aos homens
(I, versos 263-264)
Itália Antiga (Tito-Lívio, História de Roma)
149
A condição de Vestal
exigia da sacerdotisa a
castidade. Este foi um
expediente de Amúlio,
após matar os Þlhos
homens
do
irmão
Numitor. Impondo o
sacerdócio à sobrinha,
ele não teria que se
preocupar com uma
linhagem
masculina
que pudesse tirá-lo
do poder. Vesta era
uma deusa romana,
identiÞcada
com
a grega Héstia, é a
personiÞcação
da
Lareira (sempre no
centro, seja do altar,
da casa ou da cidade).
Protetora
do
fogo
sagrado, Vesta teria
sido introduzida no
Lácio por Enéias (v.
Livro II da Eneida,
versos 296-297). Numa
também lhe erigiu
um templo, com fogo
perene e inextinguível
(v. Ovídio, Fastos, 6,
255-298). Tito Lívio nos
mostra Numa Pompílio
como
rei
virtuoso
que escolhe jovens
donzelas
obrigadas
à castidade para o
serviço de Vesta e lhes
dá um tratamento pago
pelo estado (I, XX: 1-3).
11
Enéias terá um reinado curto, após a submissão dos Rútulos, o que ocorrerá
após a morte de seu rei, Turno (V. Livro XII), não nos permitindo ver a fundação
de Roma, distante da fundação do reino de Lavínio por Enéias cerca de 350 anos.
Assim como não vemos a morte de Aquiles e a destruição de Tróia na Ilíada, fatos
apenas anunciados a cada passo da narrativa, também não veremos a construção
e fundação de Roma, na Eneida, embora isso também seja anunciado ao longo da
narrativa. Vejam-se os Livros VI e VIII, por exemplo.
A descendência de Enéias está garantida através de Iulo, seu Þlho, fundador
de Alba Longa, onde reinarão seus descendentes e de onde surgirá Roma. A
construção de Roma virá com Rômulo, Þlho de Marte com Rhéia Sílvia ou Ília.
Corrigindo uma usurpação – o trono tomado por Amúlio de seu irmão Numitor
–, o deus Marte se une a Rhéia Sílvia, sacerdotisa Vestal11 obrigada pelo tio
Amúlio, e ela dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo. Uma vez adultos, os rapazes se
descobrem netos de Numitor, matam Amúlio e restituem o reino de Alba Longa
ao avô. Agraciados com um pedaço de terra cada um (Rômulo no Palatino e Remo
no Aventino), a Rômulo cabe fundar a cidade, orientado pelo augúrio dos doze
abutres (Veja-se a seguir a genealogia do Rômulo e Remo, o mapa das colinas de
Roma e o mapa da Roma dos primórdios).
12
13
Destrona o irmão, mata os
sobrinhos homens e obriga a
sobrinha a ser vestal (Tito
Lívio, I, III: 10-11).
12
Rhea Silvia engravida de
Marte e dá à luz gêmeos,
expostos no leito do
Tibre, aleitados por uma
loba e criados pelo pastor
Faustulus (Tito Lívio, I,
IV:1-9)
13
150
Mapa das colinas de Roma (Tito-Lívio, História de Roma)
Mapa da Roma dos primórdios (Tito-Lívio, História de Roma)
O importante é ver como Rômulo é apresentado nessa prolepse de Júpiter
– ele receberá a nação, construirá as muralhas mavórcias e dará seu nome aos
romanos (I, versos 276-277). Rômulo consulta, recebe e interpreta os augúrios,
tendo por isto recebido com a anuência divina a cidade, o que lhe confere
a função sacerdotal; ele constrói as muralhas e dá nome ao povo, o que lhe
confere a função empreendedora, por Þm, as muralhas são guerreiras: muralhas
mavórcias, de Marte, o que lhe confere a função guerreira. Deste modo, há uma
perfeita simbiose entre Enéias e Rômulo, desempenhando ambos as três funções
do indo-europeu – Sacerdote, Guerreiro e Empreendedor.
A Eneida, podemos dizer, acompanha esta estrutura do indo-europeu, vez
que é possível dividir o poema em três momentos: as provações, os rituais e as
guerras, com Enéias desempenhando as três funções. Se não vemos a fundação de
Roma, mas acompanhamos a fundação de várias cidades pelo herói (v. Livros III,
IV, V e VII).
A glória de Roma nos aparece apresentada em prolepse por Júpiter a Vênus
entre os versos 278 e 296. Dentro do espírito da Roma imperial em que Virgílio
vivia, é natural que se cresse na glória perpétua do grande império que começava
a ser construído por Augusto. A Eneida, a um só tempo, se refere ao passado e
ao presente, numa exaltação do imperador Otávio Augusto, reconhecendo as
151
A esse respeito se
pronuncia
André
Bellessort, na introdução
que prepara para a
edição da Eneida da Les
Belles LeĴres, traduzida
por ele (VIRGILE, 1952:
VIII): “Virgile tourné
vers le passé évoque
l’origine divine de ceĴe
Rome
maîtresse
des
nations et se tournant
vers l’avenir en proclame
la pérennité” (Virgílio
voltado para o passado
evoca a origem divina
desta Roma senhora das
nações e se voltando para
o porvir proclama sua
perenidade).
14
152
mudanças por que passara Roma desde o Þnal do segundo triunvirato, com a
vitória de Otávio sobre Marco Antônio em Actium (31 a. C.)14, ligando-o à Þgura
de Rômulo, fundador da cidade. Augusto aparece como novo fundador de Roma,
permitindo um tempo de paz e prosperidade. Assim, Enéias surge como a ligação
entre os dois – Rômulo e Augusto – nas suas funções triplas de rei guerreiro, rei
sacerdote e rei empreendedor. Observe-se que, assim como Enéias, Augusto perde
o pai, perde a nação, para ser o reconstrutor de uma nova nação e, portanto, ser o
pai dessa nação.
A fala de Júpiter, portanto, não deixa a menor dúvida sobre esse destino
glorioso – aos romanos não ponho limites nem tempo para as conquistas: dei-lhes
um império sem Þm (I, versos 278-279). Os romanos, gente togada, devidamente
já favorecidos por Juno, dobrada pela força da pietas, serão os senhores do mundo
(rerum dominos, verso 282 ). Mais do que promessa de Júpiter, este é o seu desejo –
sic placitum (I, verso 283).
Um dos momentos mais importantes do trecho em estudo é o que trata
da dominação da Grécia por Roma, numa ironia do destino, invertendo as
proposições: os antigos troianos, derrotados pelo exército de coalizão comandado
por Agamêmnon, que tinha em Aquiles o seu guerreiro mais temido, agora
dominarão a Grécia, através da descendência que fará surgirem os romanos.
Assim é que a casa de Assáraco manterá em servitude a Ftia e a ilustre Micenas, e
dominará os Argivos vencidos (I, versos 283-285).
Enéias é proveniente da casa de Assáraco e não da de Laomedonte. Se Zeus
e os deuses têm raiva de Laomedonte, por sua impiedade, e de seu Þlho Príamo
por permitir a impiedade, os provenientes de Assáraco, no caso Enéias e seus
descendentes e protegidos, serão os escolhidos para a fundação da nova Tróia sob
os auspícios dos deuses, por causa da piedade de Enéias. A piedade de Enéias já
é conhecida desde a Ilíada (Canto XX, 292-308), quando Posídon o salva das mãos
de Aquiles. A justiÞcativa é que Enéias não tem que morrer pelos outros, vez que
o herói tantos presentes ofereceu aos deuses do vasto céu. Para que o destino se
cumpra, é imperioso salvar Enéias. Eis o mote para Virgílio escrever a Eneida.
Por sua vez, Laomedonte, pai de Príamo demonstra sua natureza ímpia
ao negar o pagamento prometido a Apolo e a Posídon pela construção das
muralhas de Tróia. Príamo aceita que o Þlho, Páris, traga para casa uma mulher
casada, Helena, após o Þlho ter violado o laço sagrado da hospedagem, que
lhe foi concedida por Menelau. A falta é grave, pois atinge diretamente a Zeus
Hospedador. Aceitando a falta do Þlho, a mancha recai sobre todos os habitantes.
A contaminação de Páris atinge a todos, por não ter sido repudiado por Príamo.
O erro de um, não combatido, torna-se o erro de todos. Some-se a isto o fato de
que Tróia foi construída por Dárdanos (a cidadela) e Ilos (a cidade) sobre a colina
onde, jogado por Zeus do Olimpo, caiu o Erro, temos todas as condições para a
destruição de Tróia. Nascida do erro e tendo permanecido no erro, a cidade deve
ser destruída.
Enéias, tendo nascido da casa de Assáraco, longe, portanto, da mancha
de Laomedonte e de Príamo é o escolhido para fundar a nova cidade com a
aquiescência dos deuses. É por isto que Creúsa não pode seguir Enéias, quando
da fuga de Tróia. O herói deve cortar todos os laços com os da raça de Príamo
e de Laomedonte, independente de sua vontade. A rejeição dos deuses à ida de
Creúsa com Enéias simboliza a rejeição à descendência de Príamo, na fundação
da nova cidade por Enéias (Livro II, versos 776-779). Da progênie de Enéias
nascerão os que oprimirão os antigos opressores de sua raça: Roma dominará
sobre a Grécia para ser a senhora do mundo.
No primeiro “Hino a Afrodite”, datado do Þnal do século VII a. C., a
deusa do amor anuncia a Anquises, seu amante naquela ocasião, que dela ele
terá um Þlho que reinará sobre Tróia, cuja descendência será continuada com o
nascimento de Þlhos e de Þlhos dos Þlhos. Seu nome será Enéias, diz a deusa,
porque uma atroz angústia a confrange por ter-se deixado cair no leito de um
mortal (HOMÈRE, 1936, versos 196-199). Enéias, pois, está fadado pelo aviso
da mãe, a ser o rei de Tróia. Virgílio o que faz é contar com a tradição homérica
da Ilíada aliando-a ao anúncio do “Hino Homérico a Afrodite”. Juntando essas
peças e atribuindo a pietas ao herói, eis a razão da Eneida: mostrar a supremacia
de Roma sobre o mundo, Roma, em cuja origem teve um herói piedoso15 (Veja-se
a seguir a genealogia troiana).
Com os olhos voltados para a sua época, Virgílio não poderia deixar de mostrar
a importância da Gens Iulia, a família Júlia, inicialmente, vinculando Júlio César a
Iulo, filho de Enéias. A extensão do império romano, apenas limitado pelo oceano,
mas com a fama chegando até os astros, dever-se-á a Júlio César, divinizado após
a morte e recebido nos céus pela própria Vênus16. Depois, mostrando o tempo de
Augusto e a paz estabelecida pelo seu governo:
Então os duros séculos, com as guerras cessadas, amansar-se-ão;
a Fé encanecida e Vesta, Remo com o irmão Quirino
darão as leis; e com as junturas estreitadas por ferro
as terríveis portas da Guerra fechar-se-ão; dentro o Furor ímpio
sentado sobre armas selvagens e apertado nas costas
por cem nós de bronze, horrível, fremirá com a boca ensangüentada
(I, versos 291-296).
A Augusto cabe a honra de fazer um governo próspero, proporcionado pela
paz . A condição da paz, no entanto, depende do respeito aos ritos religiosos e
17
Veja-se Grimal, falando
de Virgílio: “C’est parce que
la race romaine avait été
fondé par um héros juste
et pieux que Rome avait
reçu l’empire du monde”
(1981: 167) – Porque a raça
romana foi fundada por
um herói justo e piedoso,
Roma recebeu o império
do mundo
15
16
Grimal nos informa
que César foi a última
divindade
instalada
pelo povo romano no
Fórum. No local em que
seu corpo foi queimado,
construiu-se uma coluna
de mármore e um altar.
Um dos primeiros atos
de Otávio, após tomar a
responsabilidade como
herdeiro de César, foi
proclamar oÞcialmente
a
divinização
do
“mártir”. Otávio ainda
fez construir um templo
diante do local onde
foi a pira de César,
consagrado ao novo
deus, Diuus Iulius (1981:
232).
17
Grimal se refere a um
altar da Paz dedicado
a Roma por Augusto,
em 9 a. C., cuja frisa
imortaliza no mármore a
cerimônia da dedicatória.
Diz Grimal: “On y voit
l’Empereur
avec
sa
famille, les magistrats,
les prêtres, le Sénat,
allant em procession
accomplir le sacriÞce aux
dieux” (Vê-se na frisa
o Imperador com sua
família, os magistrados,
os sacerdotes, o Senado,
indo
em
procissão
cumprir o sacrifício aos
deuses. GRIMAL,1981:
183)
153
Tito-Lívio (I, XXI:
4-5) apresenta Numa
Pompílio
instituindo
uma festa solene para
a Fides, no dia 01 de
outubro. Numa Pompílio
sucedeu Rômulo, no
período de 717 a 673,
quando foi rei (TitoLívio, I, XXI: 6). Foi com
Numa que os romanos
adquiriram uma sólida
reputação de pietas e
construíram um altar à
Fides, fundamento da
vida social e também das
relações internacionais,
na medida em que Fides
implica a substituição
das relações de força
pelas relações fundadas
sobre a conÞança mútua
(Grimal, 1981: 18)
18
dos elos familiares, que tão bem caracterizavam a cultura romana da época. A
paz augusta, para Virgílio tem uma lei estabelecida pela Fidelidade (Fides), a
personiÞcação da Palavra Dada, representada por uma mulher idosa, de cabelos
brancos, mais velha do que Júpiter. Grimal a caracteriza como o respeito à
palavra, fundamento de toda a ordem social e política (Grimal, 2000)18. Ainda
para Grimal, a Fides é uma das manifestações mais primitivas da Pietas romana,
aparecendo como o respeito aos compromissos (1981: 74). Virtude cardinal
romana, a conÞança substitui a força pela clemência, reconhecendo o direito de
todos os homens “de boa fé” à vida, mesmo se a sorte das armas lhes havia
sido contrária (1981: 75). A Virtus como disciplina das emoções e controle de
si mesmo; a Pietas como respeito mútuo aos rituais religiosos, e a Fides como
Þdelidade aos compromissos constituíram a trilogia do ideal da moral romana,
para a defesa e garantia do grupo social, seja a família, seja a cidade, como diz
Pierre Grimal (1981: 75). A seguir, veja-se a frisa do altar à Paz, erigido por
Augusto.
É a aparição de Rômulo
a Proculus Julius, após
a sua apoteose, que
conÞrma a condição
divina de Rômulo e a
condição de Roma como
senhora do mundo: “Abi,
nuntia, Romanis caelestes
ita uelle ut mea Roma
caput orbis terrarum”
– “Vai, anuncia aos
romanos
a
vontade
celeste que minha Roma
(seja) senhora de todo o
mundo” (Tito Lívio, I,
XVI: 5:8). Quirino forma
uma tríade com Júpiter
e Marte (depois será
substituído por Minerva).
Deus
guerreiro,
assimilado a Rômulo,
após a sua apoteose
19
Frisa do altar à Paz (Museu do Louvre)
Vesta, a deusa do fogo sagrado, seja do altar do lar ou da cidade, também
é responsável pela paz, juntamente com Quirino, a divinização de Rômulo19,
agora em concordância com o irmão, Remo. A união da família em torno do fogo
sagrado representa a união mesma da cidade. As desavenças do início da cidade
154
devem ser postas de lado, em proveito do bem comum20. Os três deuses elencados
por Júpiter correspondem às três funções do indo-europeu, aglutinadas em favor
da paz:
Fides = Firmeza e empenho da Palavra Dada, razão para o progresso (paz);
Vesta = Proteção divina da casa e da cidade pelo fogo puriÞcador (paz)
Quirino e Remo = guerra conciliada (paz)
Com o templo da guerra fechado21 e o Furor ímpio aprisionado, Roma
dominará sobranceira sobre os povos, pela força da conÞança e da lei. Este o
sentido apresentado por Anchises a Enéias, na segunda prolepse dos destinos
romanos na Eneida, no Livro VI:
Tu regerás com poder os povos, Romano, lembra-te
(estas serão tuas artes), impor a paz e os costumes,
poupar os sujeitos e debelar os soberbos
(v. 851-853).
Este breve trecho do Livro I da Eneida nos abre a perspectiva de leitura do
poema a partir de uma caracterização do herói Enéias e do seu destino glorioso,
qual seja a fundação das bases de uma grande cidade de onde se originará Roma,
futura senhora do mundo. Enéias na sua caminhada pode ser lido e analisado
pelos epítetos com que é brindado. Sabemos que o epíteto mais comum na Eneida
é pius Aeneas, o piedoso Enéias, o que contribui para a sua caracterização como o
sacerdote, na visão triádica da sociedade indo-européia. Ao lado desse epíteto,
encontramos outro também muito freqüente, pater Aeneas, o pai Enéias, por sua
condição de mito fundador e civilizador, coerente com a visão indo-européia do
rei empreendedor. Por Þm, há outros três epítetos que se unem em um só, para a
formação do rei guerreiro: Aeneas heros, o herói Enéias (Livro VI, verso 103), com
suas variantes Troius heros (o herói troiano, Livro VI, verso 451; Livro XII, verso
502) e Laomedontius heros (o herói Laomedôntio, Livro VIII, v. 18), e ingens Aeneas
(o enorme Enéias, Livro VI, v. 413; Livro VIII, verso 367). Destacando-se também
pela sua estatura física, Enéias combina em si todas as habilidades que o tornam o
grande herói, por cujas mãos nascerá uma grande cidade. Não é gratuito o fato de
ele ser apresentado pela Sibila de Cumas a Caronte, o barqueiro do inferno, como
Troius Aeneas, pietate insiginis et armis (VI, verso 403) – O troiano Enéias, insigne
pela piedade e pelas armas –, conÞrmando o verso 10 do Livro I, na primeira
Invocação do poema, insignem pietate uirum – herói insigne pela piedade.
Em nossa leitura da Eneida, percebemos que o herói Enéias aglutina as três
funções da cultura indo-européia identiÞcadas por Dumézil (1995): a função
Sacerdotal (Religião); a função guerreira (Guerra) e a função empreendedora
(Riqueza). A partir da estrutura triádica que apresentamos para a Eneida –
Provações (Livros I-IV), Rituais (Livros V-VIII) e Guerras (Livros IX-XII),
podemos constatar como as duas partes iniciais se juntam para mostrar Enéias
em cumprimento da sua função sacerdotal. Nos primeiros oito livros da Eneida,
portanto, o herói é o pio Enéias, temente aos deuses, oferecendo-lhes rituais e
sacrifícios, por eles escolhidos para dar nova pátria aos Penates, sendo guiado
pelos deuses, em especial por Vênus e Apolo, contando com o apoio de Júpiter,
a interferência de Mercúrio e a ajuda de Netuno, para ser o construtor da nova
A morte de Remo
por
Rômulo,
apesar
do fratricídio, marca
simbolicamente
a
inviolabilidade
futura
da cidade (Grimal, 1981:
12) Segundo Tito Lívio,
após terem recolocado
o avô Numitor no trono
de Alba Longa, Rômulo
e Remo receberam terras
onde foram expostos
para ali fundar, cada um
uma cidade. Rômulo
escolheu o Palatino e
Remo o Aventino, em
busca dos augúrios (Tito
Lívio, I, VI: 3-4). Para
Remo apareceram seis
abutres e para Rômulo,
doze. Começando a traçar
os limites da cidade,
Rômulo é ironizado por
Remo que salta por cima
das muralhas iniciadas,
sendo morto pelo irmão.
Rômulo teria dito: “Sic
deinde, quicumque alius
transiliet moenia mea” –
“assim (pereça) qualquer
um outro que, a partir
de agora, saltar minhas
muralhas” (Tito-Lívio, I,
VII, 1-3).
20
21 O templo de Jano foi
construído por Numa
Pompílio, segundo Tito
Lívio (I, XIX: 2). Quando
aberto anunciava Roma
em
armas;
quando
fechado, reinava a paz ao
redor dele.
155
Tróia. Mito fundador, pai da pátria, cabe ao pai Enéias, tantas vezes assim
chamado ao longo do poema, a função sacerdotal. Nos últimos quatro livros da
Eneida, Enéias cumpre a sua função guerreira, sendo o herói que conquista a terra
e a mulher, após ser devidamente provado pelos deuses.
Assim como o Livro IV mostra uma transição do Enéias das provações ao
Enéias ritualístico, porém dentro da mesma função sacerdotal, o livro VIII é um
livro de transição entre uma função e outra, pois aí se dá a aliança de Enéias com
Evandro e, posteriormente com Tarcão, que o reconhecem como o prenunciado
pelos deuses para conduzir os destinos do Lácio. Não é por outro motivo que,
nesse Livro, se dá a fabricação de suas armas por Vulcano, o que lhe concede a
condição de herói pronto para as próximas funções – a guerra e a grandeza –, vez
que o trabalho entalhado no seu escudo por Vulcano lhe mostra a grande glória
que seus descendentes terão pela frente.
É emblemático como nesse Livro VIII, Evandro leva Enéias a passear pelos
sítios onde será erigida a futura e gloriosa Roma, deixando entrever a terceira
função, a do empreendimento e da riqueza. Esta relação – a de um troiano
ajudado por um grego a construir a glória da futura Roma, mais tarde dominador
da futura Grécia, é bem sintomática. Enéias e Evandro não apenas se unirão na
guerra contra Turno e Mezêncio. Eles estão unidos pela amizade que Evandro
tinha a Anquises e por serem, de certo modo, da mesma família. Atlas gera duas
Þlhas, Electra e Maia, que se ligarão a Zeus, dando origem, respectivamente à
família de Enéias e à de Evandro. Relações amigáveis que vêm dos antepassados
e se conÞrmam no presente para abrir a perspectiva da glória futura. Após
esse reconhecimento de Enéias por Evandro, a celebração da aliança com um
banquete ritualístico marca o Þm dos grandes rituais do herói. É o momento da
apresentação do futuro e da fabricação das armas que permitirão a conquista da
terra para a realização da terceira função.
O início dos combates, no Livro IX, com o cerco dos rútulos aos troianos,
tal como na Ilíada se dá o cerco dos troianos aos gregos, prepara a arrancada de
Enéias à consecução do seu destino. O cruel Mezêncio morre por suas mãos no
Livro X; Arrunte mata a amazona Camila, no Livro XI, e Enéias mata Turno no
Livro XII. Está feito o caminho para a conquista da terra e da mulher. Morto o
inimigo, embora a narrativa ali termine, permanece a perspectiva anunciada a
cada passo da Eneida: a fundação de Roma, tornando-se esta cidade a cabeça do
mundo. Aí se completaria a terceira função, a da riqueza e a da paz, conforme o
prognóstico de Anchises (v. Livro VI).
Desse modo, podemos dizer que Enéias aglutina em si as três funções
– sacerdote, guerreiro e empreendedor – pois, como sabemos, ele é um mito
fundador (v. Livro III). Mais do que isso, ele é o pai da pátria, conforme se
anuncia ao Þnal do Livro III, fazendo o seguinte itinerário: Enéias perde a pátria,
perde o pai, vai à busca do pai, para fundar a nova pátria, sendo, portanto, o pai
da pátria, que será a cabeça do mundo.
Observação: Para a assimilação mais eÞcaz do conteúdo desta unidade,
recomendamos a leitura do Livro I da Eneida de Virgílio.
156
Glossário
Anábasis: Movimento ritualístico de subida dos Infernos, realizado por
Enéias no Livro VI da Eneida.
Aventino: Um dos montes sobre o quais Roma foi erigida. O Aventino
coube a Remo.
Cartago: Cidade no norte da África, atual Tunísia. Travou três guerras
contra Roma – Guerras Púnicas – entre os séculos III e II a. C., até ser totalmente
destruída. Fundada por colonos tírios que teriam em seu comando, segundo o
mito, a rainha Dido.
Catábasis: Movimento ritualístico de descida aos Infernos, realizado por
Enéias no Livro VI da Eneida.
Ganimedes: Jovem troiano de rara beleza, Þlho de Tros, raptado por Zeus
(Júpiter) para servir de escanção no Olimpo. Este rapto é um dos motivos por que
Hera (Juno) tem raiva dos troianos e persegue Enéias.
Destinos Fechados: Diz-se do destino que será cumprido, sem que nada
possa alterá-lo. Enéias chegará ao Lácio e fundará as bases da futura Roma.
Ninguém pode alterar tal decisão, nem mesmo os deuses. Juno, por exemplo, o
máximo que poderá fazer é retardar o acontecimento.
Jogos Fúnebres: Jogos realizados em homenagem a um herói morto. Estes
jogos se dão no Livro V da Eneida, em homenagem a Anquises, pai de Enéias.
Lácio: Região na parte ocidental da Península Itálica, às margens do mar
Tirreno e cortada pelo rio Tibre, aonde Enéias chega para fundar a nova Tróia, a
futura Roma.
Líbia: Para a geograÞa dos tempos de Virgílio, o norte da África era
praticamente dividido entre a Líbia e o Egito. Quando Virgílio se refere à Líbia no
Livro I da Eneida, devemos entender não a Líbia atual, mas a Tunísia, onde está
situado o sítio arqueológico de Cartago.
Palatino: Um dos montes sobre os quais Roma foi erigida. O Palatino coube
a Rômulo.
Parcas: Irmãs míticas que personiÞcavam o destino. Eram conhecidas como
Moiras pelos gregos e se chamavam Cloto, Láquesis e Átropos.
Penates: Deuses protetores do lar e da cidade. Quando Enéias é incumbido
pelos deuses a fugir de Tróia, ele deverá levar consigo os Penates, necessários
para a fundação da nova cidade.
Rito de Passagem: Rito obrigatório na formação do herói. Uma vez pronto,
o herói poderá ser investido nessa nova condição. Após descer aos Infernos e
fazer as alianças com Evandro e Tarcão, Enéias está pronto para receber as armas
fabricadas por Vulcano.
Rito Iniciático: Rito que inicia o herói e o prepara para a sua condição Þnal.
Enéias tem que passar por todas as provações, para poder mudar de status e ser
considerado o novo pai. Com a morte de Anquises e os jogos fúnebres em sua
homenagem, Enéias está pronto para a descida aos Infernos.
Tibre: Rio que corta a cidade de Roma em duas partes. É às margens do
Tibre que Enéias irá fundar a nova cidade, que dará origem a Roma.
Tírios: Colonos oriundos de Tiro, na Fenícia (atual Líbano) para o norte da
África, onde ediÞcaram Cartago.
Vestal: Sacerdotisa da deusa Vesta, protetora do fogo sagrado. Às vestais se
impunha a castidade.
157
Exercícios
1. Leia atentamente o trecho abaixo e disserte sobre o que se pede:
“Houve uma cidade antiga, colonos tírios a ediÞcaram, Cartago, defronte
da Itália e longe da foz do Tibre, abundante em riquezas e temível pelo seu ardor
guerreiro; diz-se que Juno a amava mais do que todas as outras terras, mais do
que a própria Samos. Lá, em Cartago, estavam suas armas, lá estava seu carro;
já então a deusa tencionava não só favorecer aquele reino, mas também que ele
dominasse os demais, se de algum modo os fados o permitissem. Ela, porém,
ouvira que uma raça oriunda do sangue troiano um dia lançaria por terras as
cidadelas tírias; ouvira que um povo, reinando ao longe e soberbo na guerra,
viria para o excídio da Líbia: assim determinaram as Parcas. Satúrnia, isto
temendo e lembrada da antiga guerra que dirigira, como primeira das deusas,
junto de Tróia, a favor dos seus caros argivos, e também porque as causas da
ira e os cruéis ressentimentos ainda não tinham abandonado sua memória, mas
permaneciam gravados no fundo do coração o juízo de Páris e a afronta da sua
beleza desprezada, e não só a geração odiosa dos troianos mas igualmente as
honras do raptado Ganimedes; inßamada por esses ultrajes, afastava para longe
do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do furor dos Dânaos e do
implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados, andavam errantes, há longos anos,
ao redor de todos os mares. Tanto era pesada a tarefa de fundar a nação romana!
(Eneida, Livro I, tradução de Tassilo Orpheu Spalding)
A que parte da Eneida se refere o trecho? Contextualize.
1.2. Quais os dois povos diretamente envolvidos no trecho e quais seus
respectivos destinos?
1.3. Por que Juno é chamada de Satúrnia?
1.4. IdentiÞque o povo que ela persegue e explique os motivos da
perseguição.
2. Com base na leitura do Livro I da Eneida, explique por que Enéias é
um mito fundador.
3. Em que termos se dará a sucessão de Enéias?
4. Quando e de que forma se dará o surgimento de Roma?
5. Qual o prognóstico para a glória de Roma?
6. Que grande homem virá de Iulo, quais suas glórias e que período
histórico virá em seguida, conduzido por outro grande homem?
158
7. Por que o Livro I da Eneida pode ser chamado de proléptico? Dê
exemplo.
8. O que é a estrutura triádica da Eneida?
9. Que deus protege Enéias na conÞrmação de seu destino? Dê dois
exemplos.
10. Explique o texto abaixo, contextualizando-o:
“Tal é a minha vontade. Tempo virá, após decorridos muitos lustros, que a
casa de Assáraco oprimirá a Ftia e a ilustre Micenas, e dominará sobre a vencida
Argos. Depois nascerá César, troiano de bela origem, que estenderá seu império
até o Oceano e sua fama até os astros” (Livro I).
Textos
Depois de você ter assistido às aulas, lido os textos, participado das
explicações e dos debates, tente fazer a leitura dos dois textos abaixo, com base
na experiência adquirida da leitura do Clássico.
Lendo a Ilíada
Olavo Bilac
Ei-lo, o poema dos assombros, céu cortado
De relâmpagos, onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternizado
O espantoso poder da argiva gente.
Arde Tróia... De rastos passa atado
O herói ao carro do rival, e, ardente,
Bate o sol sobre um mar ilimitado
De capacetes e de sangue quente.
Mais que as armas, porém, mais que a batalha,
Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha:
– Esse amor que ora ativa, ora asserena
A guerra, e o heróico Páris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.
(Obra reunida; organização e introdução de Alexei Bueno. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.103)
159
Os Lusíadas (Canto I, Estrofe 3)
Luís Vaz de Camões
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que Þzeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto um peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(Obra completa; organização, introdução, comentários e anotações de
Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963,
p. 9.)
CONCLUSÕES
Esperamos que durante o processo, possamos acompanhar sua evolução,
caro aluno, com relação à assimilação dos valores do mundo clássico. É
fundamental para uma discussão de uma aprendizagem efetiva que os que
estão integrados a este estudo possam reconhecer a permanência dos elementos
clássicos na nossa cultura. Consideramos que o conhecimento que foi posto à
sua disposição é um caminho que lhe permitirá, caro Aluno, aprofundar seus
conhecimentos sobre o assunto. Estamos conscientes, no entanto, de que são
necessárias mais leituras, por isto mesmo, estendemos a nossa bibliograÞa com
autores que consideramos básicos e incontornáveis. Acreditamos que os primeiros
passos foram dados, os demais dependem agora da vontade, da necessidade e,
claro, das condições oferecidas daqui por diante, para que se possa avançar nesse
caminho. Por outro lado, temos a plena convicção de que os estudos do Clássico,
mesmo que de forma introdutória, contribuirão sobremaneira para a formação do
professor da área de Humanidades e, por conseguinte, para o aperfeiçoamento
do processo ensino-aprendizagem nesta área do conhecimento humano.
Bibliografia
ALMEIDA. Zélia Cardoso de. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1989.
ARISTÓTELES et alii. A poética clássica; tradução de Jaime Bruma. 2. ed. São
Paulo: Cultrix, 1985.
BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e religião
romana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1991 (2 vol.).
160
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2002.
EURIPIDE. Hécube; texte établi par Louis Méridier; traduit par Nicole Loraux et
François Rey; introduction et notes de Jean Alaux. Paris: Les Belles LeĴres, 2002.
EURIPIDE. Iphigénie à Aulis; texte établi et traduit par François Jouan. Paris: Les
Belles LeĴres, 2002.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana; tradução de Victor
Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
GRIMAL, Pierre. La civilisation romaine. Paris: Flammarion, 1981 (este livro já se
encontra traduzido para o português, editado pelas Edições 70 de Lisboa).
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo; tradução de António M. Gomes da Silva. Lisboa:
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HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina; tradução de
Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
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texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles LeĴres, 1996, versos 90201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses; estudo e tradução de Jaa Torrano. 6. ed
(revisada e acrescida do original grego). São Paulo: Iluminuras, 2006.
HOMÈRE. Hymnes; texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles
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ensaio crítico de Milton Marques Júnior e tradução do grego de Erick France
Meira de Souza. João Pessoa, Zarinha Centro de Cultura; Editora Universitária da
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MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo; tradução de Emanuel
Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70, 1989.
OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles
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Gaston Baillet, introduction et notes de Jean-Noël Robert. Paris: Les Belles LeĴres,
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VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris: Presses
Universitaires de France, 2004. (Este livro encontra-se traduzido para o
português)
VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et religion en Grèce ancienne. Paris: Seuil, 1990. (Este
livro encontra-se traduzido para o português).
VIRGILE. Énéide; texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Belessort. 7.
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VIRGÍLIO. Eneida – Canto IV: a morte de Dido; tradução de J. Laender; organização
de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon; ensaios de Milton Marques
Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e Leyla Thays Brito da Silva; comentários
à tradução de Fabrício Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de
Cultura/Editora Universitária da UFPB, 2006. *
* Estes livros podem ser adquiridos na Livraria do Zarinha Centro de Cultura,
através do site www.zarinha.com.br
Filmografia
Tróia: mito ou realidade. Eagle Media, 2004.
PETERSEN, Wolfgang. Tróia. Warner Bros., 2004.
CAMERINI, Mario. Ulisses. DVD Video, 2003 (1955).
KONCHALOVSKI, Andrei. Odisséia. DVD Video, s.d.
Sites na Internet para os textos clássicos
Biblioteca Augustana
www.Ģ-augsburg.de/~harsch/augusta.html
Perseus
www.perseus.tufts.edu/
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