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A revista Cidadania & Meio Ambiente
é uma publicação da Câmara de Cultura
Caros Amigos,
A relevância do Fórum Social Mundial 2009 (Belém, PA, de 27/
01 a 01/02/08) motivou-nos a publicar essa edição Especial de
Cidadania & Meio Ambiente. Ela constitui nossa contribuição
às entidades e movimentos da sociedade civil que, como nós,
militam por uma sociedade mais justa e inclusiva.
Assim como o FSM 2009 é um espaço aberto plural, diversificado, não confessional, não governamental e não partidário, esta
edição procura agregar em quatro módulos temáticos – Modelo de
Desenvolvimento, Segurança Alimentar, Segurança Hídrica e Direitos
Humanos e Cidadania – um mosaico de dados balizador da atual
realidade planetária.
Não temos a intenção de esgotar nenhuma perspectiva, afirmar
pontos de vista sectários ou apresentar soluções esquemáticas.
Desejamos tão somente oferecer informações que permitam a
percepção da urgência por atitudes e ações coletivas que
minimizem a crise planetária e humanitária em andamento. Da
identificação dos males atuais é que poderemos articular as negociações para resgatar a civilização – e nossa morada sideral –
da atual destruição programada.
A informação necessária à compreensão reflexiva das “emergências” abordadas em cada módulo transcende o limitado número
de páginas da edição. Na verdade, cada artigo é uma fonte inesgotável de pesquisa cruzada através de referências bibliográficas
e de links para consultas on-line a instituições e aos próprios articulistas. Cada artigo é apenas a “ponta do iceberg”, que merece
ser apreciado em sua totalidade. Objetivamos – à semelhança
do FSM 2009 – ampliar a rede de discussão crítica e de engajamento às questões planetárias. Daí o cuidado que tivemos em
selecionar textos riquíssimos em conteúdo, a cujos autores expressamos nosso grato reconhecimento.
Esperamos já na próxima edição regular da Cidadania & Meio Ambiente apresentar um balanço das questões discutidas no FSM 2009.
Helio Carneiro
Editor
www.camaradecultura.org
[email protected]
Diretora
Regina Lima
[email protected]
Editor
Hélio Carneiro
[email protected]
Subeditor
Henrique Cortez
[email protected]
Projeto Gráfico
Lucia H. Carneiro
[email protected]
Revisores
Vanise Macedo
Adílson dos Santos
Colaboraram nesta edição
The New Scientist
Norbert Suchanek
Rogério Grasseto Teixeira da Cunha
Ladislau Dowbor
Hervé Kempf
PNUD
Leonardo Boff
Miguel A. Altieri
Revista Consciencia.Net
Moisés Vélasquez-Manoff
Herton Escobar
Miguel Mora
Mário José de Lima
Henrique Cortez
João Suassuna
Roberto Malvezzi
Charles Kenny
Carlos Ferreira de Abreu Castro
Aldicir Scariot
Frei Beto
Leonardo Sakamoto
OMS-UNICEF
João Alfredo Telles Melo
Francisco Alves
Mike Davis
Horand Knaup
Visite o portal EcoDebate
[Cidadania & Meio Ambiente]
www.ecodebate.com.br
Uma ferramenta de incentivo ao
conhecimento e à reflexão através de notícias,
informações, artigos de opinião e artigos
técnicos, sempre discutindo cidadania e meio
ambiente, de forma transversal e analítica.
A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se
responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos
em matérias e artigos assinados.
Editado e impresso no Brasil - Distribuição gratuita.
Especial 2009
Capa: Foto The Children at Risk Foundation
MODELO DE DESENVOLVIMENTO
4
6
8
12
14
18
20
Reduzir o consumo: chave para um futuro sustentável – Henrique Cortez
Como a economia está matando o Planeta – New Scientist
Desenvolvimento: por quê e para quem? – Norbert Suchanek
Débito de futuro: a crise definitiva – Rogério Grasseto
A lógica do sistema é insustentável ambientalmente – Ladislau Dowbor
Como os ricos estão destruindo a Terra – Hervé Kempf
Mudança de clima e pobreza mundial – PNUD
SEGURANÇA ALIMENTAR
23
24
26
30
33
35
A fome sempre existiu, mas hoje resulta do consumo – Por Leonardo Boff
Agricultura sustentável e soberania alimentar – Miguel A. Altieri
O biorrisco das tecnologias Traitor e Terminator – Revista Consciência.Net
Vegetais: dieta para o planeta superpovoado – Moisés Velásquez-Manoff
Planeta de famélicos e de obesos – Miguel Mora
Uma porta para o nada – Mário José de Lima
SEGURANÇA HÍDRICA
39
40
44
46
52
54
58
A questão dos aqüíferos fronteiriços – Henrique Cortez
Rio São Francisco: as questões técnicas da transposição – Por João Suassuna
O século do agronegócio: água virtual – Henrique Cortez
Água: a questão na América Latina – Roberto Malvezzi
Água e corrupção: uma questão de vida e de morte – Charles Kenny
Escassez de água: crise silenciosa – Carlos F. Castro e Aldicir Scariot – PNUD
Saciar a sede de água e cidadania – Frei Beto
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA
Por que a Lei Áurea não representou a abolição definitiva? – Leonardo Sakamoto
2,5 bilhões sem saneamento – OMS-UNICEF
Aquecimento global: ecologismo dos pobres e ecossocialismo – João A.Telles Mello
Por que morrem os cortadores de cana? – Francisco Alves
Planeta favela – Mark Davis
Todos em guerra contra Gaia – Leonardo Boff
África: a corrida do ouro verde – Horand Knaup
Para onde caminha a humanidade? – Roberto Malvezzi
Azrainman
61
66
68
72
76
79
80
83
M O D E L O D ED E S E N V O L V I M E N T O
E
ste tema central é completamente desprezado pelos governos e pelas empresas, já que almejam apenas a manutenção do modelo que melhor atende aos seus interesses
– quaisquer que sejam.
O manejo sustentável dos recursos naturais e a agricultura
familiar não figuram na agenda de compromissos dos grandes interesses econômicos e, em conseqüência, também não
são brindados na agenda dos governos.
Ainda mantém-se a “versão século XXI” do modelo colonial,
no qual as colônias exportavam produtos primários (com
pequeno valor agregado) para beneficiamento pelas metrópoles, que os reexportavam (com grande valor agregado).
Assim, as colônias financiaram o desenvolvimento dos países
colonialistas – e ainda é assim que o Terceiro Mundo
financia os países que se dizem desenvolvidos.
Precisamos intensificar as discussões sobre este modelo econômico. É necessário questionar a quem ele serve e a quem
beneficia. Ou questionamos para encontrarmos outro modelo de desenvolvimento ou continuaremos no modelo colonial
de exportação de produtos primários.
Neste sentido, destacamos nosso conceito base: “Compreendemos desenvolvimento sustentável como sendo socialmente justo, economicamente inclusivo e ambientalmente responsável. Se não for assim não é sustentável. Aliás, também
não é desenvolvimento. É apenas um processo exploratório,
irresponsável e ganancioso, que atende a uma minoria poderosa, rica e politicamente influente.”
Henrique Cortez
4
REDUZIR O CONSUMO:
chave para um futuro sustentável
Pesquisadores do Australian
Commonwealth Scientific and Research
Organization (CSIRO) confirmam
as previsões do controverso livro
The Limits to Growth, editado em 1972,
que previa o colapso global,
em termos econômicos e ecológicos,
em meados do século 21.
por Henrique Cortez
A
cada dia novos estudos e pesquisas
confirmam que o atual modelo de desenvolvimento, baseado no “infinito”
crescimento do consumo, é insustentável.
Vivemos em um planeta finito, com recursos igualmente finitos. Logo, o conceito
de desenvolvimento baseado na expansão infinita da economia não funcionará
por muito tempo. Pena que reconhecer o
óbvio nem sempre seja simples.
substancialmente nosso consumo, a economia mundial entrará em colapso em meados deste século.”
O livro Limits to Growth1 desenhou cenários para o futuro da economia global e meio
ambiente, recomendando mudanças profundas na nossa forma de viver, para evitar
uma catástrofe. Em artigo publicado na atual edição do Global Environmental Change,
o pesquisador do CSIRO, Dr Graham
Turner2, comparou a análise do livro com
os dados globais dos últimos 30 anos.
A pesquisa é a primeira tentativa de testar, exaustivamente, as previsões do livro,
que permanece como um dos mais completos modelos globais vinculando o meio
ambiente e a economia global.
“Os dados reais dos últimos 30 anos basicamente confirmam os modelos do The
Limits to Growth. Eles mostram que, de
acordo com o modelo, o mundo seguiu
exatamente a trajetória insustentável, que
o livro já definia como cenário provável.
A modelagem original prevê que, se continuarmos nesta trajetória, sem reduzir
“Dados atuais como os preços crescentes do petróleo, as mudanças climáticas,
as crises de água, de alimento e de segurança claramente confirmam a tendência
de colapso definido como provável no
premonitório livro”, informa Turner.
Até o momento, as recomendações do The
Limits to Growth, que incluem mudanças
fundamentais nas políticas de sustentabilidade e de comportamento de consumo, não foram executadas.
Os limites do crescimento documentados
no livro resultaram de um estudo realizado
por Meadows et al, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) por encomenda do Clube de Roma3. A obra modela
as conseqüências do rápido crescimento
demográfico mundial frente aos recursos
naturais finitos. Ou seja, as conseqüências das ações antrópicas sobre o meio ambiente. O livro tornou-se best-seller da história ambiental, vendendo mais de 30 milhões de exemplares em 30 idiomas.
“Desde 1972, The Limits to Growth tem suscitado muitas críticas, mas nossa pesquisa
indica que as principais restrições contra a
modelagem são falsas”, diz o Dr. Turner.
O tema está cada vez mais relevante e foi
discutido no relatório “Special report: How
our economy is killing the Earth”, publicado
pela revista New Scientist (ver pág.6 ).
NOTA:
1 – A íntegra do artigo “A Comparison of The
Limits to Growth with 30 years of reality”,
publicado em Global Environmental Change,
Volume 18, Issue 3, August 2008, Pages 397411 Globalisation and Environmental
Governance: Is Another World Possible? é restrito a assinantes. O abstract pode ser baixado
em www.ecodebate.com.br de 19/11/2008.
2 – E-mail: [email protected]
Henrique Cortez – Coordenador do Portal
EcoDebate.
Cidadania&MeioAmbiente
5
COMO A ECONOMIA ESTÁ
MATANDO O PLANETA
por New Scientist
Em plena crise global, com governos e mercados aterrorizados com uma
possível recessão mundial, a revista New Scientist analisa no relatório Special
report: How our economy is killing the Earth a insensatez da busca pelo
crescimento ilimitado (ver gráfico) que está levando o planeta ao desastre.
“The Wee Man”. Foto: Law Keven
Nosso planeta enfrenta uma crise.
6
O consumo dos recursos aumento com extrema rapidez, a biodiversidade está declinando e
quase todos os indícios
mostram como nós, humanos, estamos afetando a
Terra em larga escala. A
maioria aceita a necessidade de um modo de
vida mais sustentável
via redução das emissões de carbono, desenvolvimento de
tecnologia renovável e aumento da eficiência energética.
Essa última afirmação é tida
como heresia econômica. Para
a maioria dos economistas, o
crescimento é tão essencial
quanto o ar que respiramos.
Para eles, o modelo econômico
atual é a única força capaz de
resgatar os pobres da pobreza,
de alimentar a crescente população mundial, de enfrentar o
custeio dos gastos públicos e
de estimular o desenvolvimento tecnológico – sem falar no
sustento de estilos de vida crescentemente caros. Eles não conseguem impor limites ao crescimento econômico.
Estarão os esforços
para salvar o planeta
fadados ao fracasso?
Contingente crescente de
especialistas examina os índices
de insustentabilidade e afirma
que a adesão individual ao controle das emissões de CO2 e o ambientalismo em termos coletivos
são fúteis enquanto nosso sistema econômico estiver lastreado na suposição de crescimento. A ciência diz-nos que se quisermos agir seriamente em defesa da Terra, teremos que reformar o atual modelo econômico.
Desde o estouro da bolha econômica internacional, ficou claro como os governos apavoramse frente a qualquer situação
que ameace o crescimento, como
provam os bilhões de dinheiro
público vertidos em um cambaleante sistema financeiro. Em
meio à confusão, qualquer desafio ao dogma de crescimento
precisa ser analisado muito cuidadosamente. E essa questão
centra-se numa pergunta há
muito colocada: como enquadrar os recursos finitos da Terra
ao fato de que o crescimento
econômico exige o crescimento
dos recursos naturais para
sustentá-lo?! Para a economia
alcançar sua atual dimensão foi
necessário todo o desenvolver
da história humana. Mas no
contexto em que agora se apresenta, em apenas duas décadas
o cenário econômico dobrará.
Neste número especial, New Scientist reúne os pensadores mais
categorizados em política, economia e filosofia; eles discordam
profundamente do dogma do
crescimento e concordam com os
cientistas que monitoram nossa
frágil biosfera. Herman Daly, pai
da economia ecológica, explica
por que nossa economia é cega
aos custos ambientais de crescimento (The World Bank’s blind
spot)1, enquanto Tim Jackson,
conselheiro para desenvolvimento sustentável do governo
do Reino Unido, envereda por
números para mostrar que os remendos tecnológicos não compensarão a velocidade horripilante na qual a economia está se expandindo (Why politicians dare
not limit economic growth)2.
Gus Speth, ex-conselheiro ambiental do Presidente Jimmy Carter,
explica por que após quatro décadas trabalhando nos mais altos níveis da articulação de políticas dos EUA acredita que os
A globalização e a
“
financeirização da economia
criaram um modelo apenas
baseado no consumo desmedido
e na especulação.
”
valores verdes não têm chance
alguma contra o capitalismo de
hoje (Champion for green
growth)3. E Susan George, principal cabeça da esquerda política argumenta que somente o esforço global capitaneado por governos poderá mudar o rumo do
curso destrutivo em que nos encontramos (We must think big to
fight environmental disaster)4.
Para Andrew Simms, diretor de política da New Economics Foundation, baseada em Londres, é crucial demolir uma das principais
justificativas para crescimento desenfreado: a de que ele pode resgatar os pobres da pobreza (The
poverty myth)5. E o radialista e
ativista David Suzuki explica
como ele inspira os líderes empresariais e políticos a mudarem seus
pensamentos se (Interview with
an environmental activist)6.
O que uma verdadeira economia
sustentável seria é explorado em
Life in a land without growth7,
quando New Scientist recorre a
uma concepção de Daly para
imaginar a vida numa sociedade que não torra os recursos
mais rapidamente do que o mundo pode recriar. Espere observações duras a respeito de riqueza, imposto, trabalho e taxas
de natalidade. Mas, como enfatiza Daly, a transição do crescimento para o desenvolvimento
não tem que significar o imobilismo soturno típico da tirania
O REGISTRO GRITANTE DA CRISE QUE NOSSO PLANETA ESTÁ ENFRENTANDO
1- Temperatura média da superfície no Hemisfério Norte
2- População
3- Concentração de CO2
4- PIB
5- Perda de florestas tropicais e bosques
6- Água utilizada
7- Extinções de espécies
8- Consumo de papel
9- Veículos motorizados
10- Pesqueiros explorados
11- Investimento internacional
12- Redução de ozônio
1
12
6
2
3
5
4
1750
1800
1850
7
10
8
1900
11
9
1950
2000
comunista. A inovação tecnológica nos dar-se-ia cada vez mais
dos recursos que já temos e,
como a filósofa Kate Soper apresenta em Nothing to fear from
curbing growth8, restringir nossa dependência pelo trabalho e
pelo lucro melhoraria nossas vidas de muitas maneiras.
Trata-se de uma perspectiva que
John Stuart Mill, um dos fundadores da economia clássica, teria
aprovado. Em Princípios de Economia Política, publicado em 1848,
Mill previu que, uma vez encerrado o crescimento econômico,
emergiria uma economia ‘estacionária’ que possibilitaria o foco no
melhoramento humano: “Haveria
uma amplitude nunca vista para
todos os tipos de pensamento,
progresso moral e social... em prol
do melhoramento da arte de viver, com muito mais probabilidade deste objetivo ser alcançado
quando as cabeças deixam de se
fixar na arte de acumular”.
Os economistas de hoje rejeitam
tais idéias como ingênuas e utópicas; mas, com os mercados financeiros em derrocada, o preço
dos alimentos em alta vertiginosa, o mundo em processo de aquecimento e o preço do petróleo no
pico (ou em baixa), tais idéias estão se tornando cada vez mais difíceis de serem ignoradas.
■
Nota do Editor: Recomendamos a leitura on-line (em inglês)
dos textos referenciados no artigo da New Scientist. Abaixo, os
links para acessá-los:
1 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.300special-report-economics-blind-spot-is-a-disaster-for-theplanet.html
2 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.100special-report-why-politicians-dare-not-limit-economicgrowth.html
3 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.500interview-champion-for-green-growth.html
4 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.100special-report-why-politicians-dare-not-limit-economicgrowth.html
5 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.600special-report-does-growth-really-help-the-poor.html
6 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.200special-report-interview—the-environmental-activist.html
7 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.900special-report-life-in-a-land-without-growth.html
8 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026787.000special-report-nothing-to-fear-from-curbing-growth.html
Gráfico:Springer-Verlag, Berlin, Heidelberg, New York.
Cidadania&MeioAmbiente
7
DESENVOLVIMENTO:
?
POR QUE E PARA QUEM
por Norbert Suchanek
A definição de pobreza, segundo o padrão econômico
hegemônico vigente, é a grande responsável pelo
contingente de milhões de seres humanos a cada ano
reduzidos à indigência. A miséria só será erradicada
quando o modelo das sociedades de subsistência for
aceito e integrado ao mercado mundial.
“Por iniciativa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Nós, o Presidente Jacques Chirac, da França, o
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, o Presidente Ricardo Lagos, do Chile, e o Secretário-Geral
das Nações Unidas, Kofi Annan, nos reunimos, hoje, 30 de janeiro de 2004, em Genebra, para intercambiar opiniões a respeito de temas sociais e econômicos globais. Expressamos nossa forte preocupação com
as tragédias humanas causadas pela fome e pobreza no mundo. Recordamos que 1,1 bilhão de pessoas lutam
para sobreviver com menos de um dólar por dia.”
Declaração dos Presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Jacques Chirac, Ricardo Lagos e o Secretário-Geral das Nações
Unidas, Kofi Annan, encontro “Ação contra a fome e a pobreza”.
ECONOMIA
DE SUBSISTÊNCIA: RIQUEZA... SEM DÓLAR
Era um dia de muito calor. Mas a cabana de palafitas era fresca
e bem ventilada. Eu não sentia nenhum calor. Estava a 20 mil
km fora do meu apartamento alugado, agora junto com uma
família Papua de cinco pessoas, às margens do Rio Ok Tedi, no
ano de1993. Nas refeições ofereciam-me batata-doce, sagu e
legumes. Quase tudo de que precisavam para viver chegava de
seus próprios jardins florestais cheios de frutas e legumes, às
margens do rio. Caça, remédios e lenha chegam do mato perto
da horta e o rio era repleto de peixes. Eu estava cheio de admiração e inveja. Eles tinham tudo o que eu não tinha. Eles tinham uma casa, uma grande horta e jardim, e um território próprio. E eu não tinha nada disso, somente um trabalho dependente para ajudar-me mais ou menos a pagar aluguel, telefone,
alimentação, computador e energia elétrica. Em comparação
88
aos meus generosos anfitriões, eu era uma pessoa pobre.
Mas na definição do Banco Mundial e de instituições para o
desenvolvimento, esta família que tem tudo de que precisa é
uma das famílias mais pobres do mundo, porque esses Papuas não ganham nenhum dólar por dia. O fato é que eles não
têm nenhuma necessidade de ganhar dinheiro.
Diferente é o lingüista de uma igreja fundamentalista norte-americana que vive entre os Papuas num container com ar condicionado e gerador movido a diesel. E que se alimenta somente
com pão branco importado, geléia de laranja e, para um cidadão
dos Estados Unidos, o “indispensável” creme de amendoim,
igualmente importado. O trabalho dele era estudar a língua local
para traduzir a Bíblia. A minha família de Papua, com tolerância,
ainda sorria sobre o jeito de viver dele.
“Hoje, prevalece o modelo da revolução verde. Em Punjab, região
noroeste da Índia, 150 mil agricultores se suicidaram no espaço de 10 anos, porque seu campo não valia mais nada e porque
não tinham mais do que viver,
após terem abandonado sua cultura de subsistência, que ao menos os tornavam auto-suficientes e os alimentavam!” - Vandana Shiva, vencedora do prêmio
Nobel Alternativo, em 1993, e Diretora da Fundação de Pesquisa
em Ciência, Tecnologia e Recursos Naturais, Índia.
Exatamente como os Papuas ao Leste de Papua-Nova Guiné vivem desta economia de subsistência, também vivem até hoje milhares de famílias de outros povos, em outros
continentes. Uma economia de muita liberdade sofisticada. Esta economia de subsistência é a forma ideal de uma economia regional, sustentável e ecológica - ou seja, ela é
exatamente o que o “novo” modelo
de movimento ecológico internacional para o desenvolvimento sustentável almeja. Mercado local contra mercado mundial.
O cultivo local, a produção local, o
mercado local e o consumo local: o
pequeno agricultor de subsistência no Brasil, os povos indígenas
Penan da Ilha Borneo, os Papuas
de Nova Guiné fazem tudo isso de
forma perfeita. Trocam o excedente com seus vizinhos, não precisam
de dinheiro para viver.
“Por séculos os princípios de subsistência permitiram a sociedades
em todo o planeta sobreviverem
e até mesmo prosperarem. Nessas sociedades, os limites da natureza foram respeitados, guiando os limites do consumo humano.” - Vandana Shiva
Os habitantes da aldeia indígena Kikretum, dos Kayapó (Pará), não precisam de dólar para
garantir sobrevivência e qualidade de vida. Foto: Antonio Cruz/ABr
É claro que estes camponeses e povos autônomos que produzem seus próprios alimentos nunca vão ao supermercado para
comprar frutas e legumes. O mercado mundial não tem nenhuma
chance para ganhar dinheiro com eles. E nenhum empresário tem
chance de desempregá-los. Estes povos autônomos só vão ser
pobres quando alguém tirar a terra deles. Quando alguém matar o
rio deles. Ou quando alguém mudar a cultura e o jeito de vida
deles para o estilo consumista ocidental, movendo-os, neste momento, à dependência.
Foi exatamente isso que aconteceu em nome do desenvolvimento, com financiamento do Banco Mundial ou com apoio de instituições estatais e internacionais para o desenvolvimento e vários
grupos religiosos fundamentalistas nas últimas décadas.
Cidadania&MeioAmbiente
99
QUEM NO MUNDO
É CONSIDERADO POBRE?
■ Segundo o Banco Mundial, quem ganha menos de um
dólar por dia vive na pobreza extrema. Já quem ganha
até dois dólares por dia vive na pobreza. Calcula-se que,
atualmente, 1,2 bilhão de pessoas vivem em situação de
pobreza extrema.
■ Hoje, 2,7 bilhões de pessoas vivem na pobreza, ou
seja, com cerca de US$2 por dia.
■ Segundo o Banco Mundial, a China conseguiu
avanços notáveis na luta contra a pobreza extrema. O
contingente de pobres caiu de 606 milhões, em 1981,
para 212 milhões em 2001.
■ A Índia tem cerca de 350 milhões de pessoas
sobrevivendo com menos de US$ 1 por dia.
O Brasil é um país rico, mas com uma grande parcela
da população vivendo na pobreza. Segundo o IBGE, são
57 milhões de pobres no país.
■
Paulo Galvão Júnior e Rodrigo de Luna Barbosa, “O
Futuro
G-13 – Parte 2: os quatro graves problemas mundiais”,
2007, Conselho Federal de Economia.
global. Os povos são tidos pobres se viverem numa casa feita
por eles mesmos, com materiais naturais ecologicamente adaptados como o bambu e a lama, e não em casas de concreto. Os
povos sustentáveis são percebidos como pobres quando usam
roupas de fibras naturais feitas com suas próprias mãos e não
roupas com fibras sintéticas.”
Uso como exemplo a Nova Guiné, onde em 1993 investiguei as
conseqüências de mineração de ouro e cobre (financiada por
instituições internacionais) numa região em que quase 100% da
população viviam da subsistência autônoma. Para alguns destes
povos habitantes das áreas baixas do Rio Ok Tedi ficou impossível viver com a subsistência. Devido à mineração de cobre e
ouro, grande parte do rio foi poluída e sufocada pelos resíduos
da atividade: metais pesados e o veneno mais forte do mundo, o
cianeto. Os jardins da floresta, às margens do Rio Ok Tedi, foram
encobertos e destruídos com lama cinza de metais pesados.
No mundo, a cada ano, milhões de pessoas perdem a terra e a
existência – em função de projetos de desenvolvimento equivocados que só almejam o mercado mundial via fornecimento de matérias-primas baratas e trabalhadores baratos transformados, neste
momento, em pobres de verdade, porque passaram a receber um
dólar por dia. Esse sistema de criação de pobreza acontece agora,
por exemplo, na Índia, onde no estado Orissa povos indígenas são
expulsos por causa da mineração de ferro, cobre e bauxita.
VIDA EM SUBSISTÊNCIA X RENDA MONETÁRIA
Nem para as companhias transnacionais e nem para os fundos de
pensão internacional é possível ganhar diretamente com os povos
indígenas autônomos, sendo preciso expulsá-los e transformá-los
em pobres. Por isso, os povos que vivem de subsistência, ainda
em lugares não globalizados, precisam se deslocar e se transformar em trabalhadores locais ou em pequenos agricultores dependentes do mercado mundial, como, por exemplo, produtores de
soja ou produtores de dendê e mamona para biodiesel.
Esta é a única chance para aumentar o capital internacional. Por
isso o Banco Mundial e as instituições de desenvolvimento estabeleceram a quantia de um dólar para a definição de pobre. Por
causa desta definição equivocada estas instituições e governos
podem destruir impunemente, em nome do “desenvolvimento”,
estas sociedades de subsistência – que foram nomeadas falsamente de “sociedades atrasadas” – e integrá-las ao mercado
mundial, como se este fosse o único caminho para a humanidade.
A economia de subsistência das sociedades africanas reflete
milenar integração ao meio ambiente, existência sustentável,
estrutura social estável e identidade cultural. Foto: Morgana
ECONOMIA DE MERCADO CRIA POBREZA GENERALIZADA
As economias sustentáveis não são pobres no sentido de ausência
de bens. Mas a ideologia do desenvolvimento as definem assim
porque não participam da economia de mercado, e não consomem
os produtos industrializados. Segundo a cientista Vandana Shiva:
“Os povos são percebidos como pobres se comerem painço
(produzido pelas mulheres) e não a junk food (alimentos industrializados) produzida e comercializada pelo agrobusiness
10
Este sistema de desenvolvimento quer mudar a vida em subsistência para uma existência que precisa estar associada à renda
monetária, qualquer que seja. Mas a renda sem dólar em seu
próprio território tem na realidade muito mais riqueza e valor do
que a renda de um trabalhador de 10 ou 20 dólares por dia no Rio
de Janeiro ou São Paulo.
Por isso, na opinião da ecologista Vandana Shiva, o não ter dinheiro não está relacionado ao problema da pobreza no “Terceiro
Mundo”. O que faz a miséria é a restrição de acesso aos recursos
básicos como água e comida. “Uma vida de subsistência que o
ocidental rico chama de pobreza não é uma vida de qualidade
menor. Ao contrário, economia com base de subsistência possui
Jhaan
povos autônomos só vão ser pobres quando alguém
“lhesOs tirar
a terra, matar o rio, mudar a cultura e introduzir
o padrão de vida consumista ocidental que leva à dependência.
uma qualidade de vida de alto nível, quando focamos valores
como direito à alimentação, água saudável, existências sustentáveis, estruturas sociais estáveis e identidade cultural.”
Agricultores de subsistência são chamados há decênios pelos
economistas, técnicos ou outros empregados do sistema em que
vivemos de “atrasados”, um obstáculo ao desenvolvimento. Por
isso eles “precisam” ser expulsos. Por isso eles são as maiores
vítimas dos grandes projetos de desenvolvimento – como os
atuais projetos brasileiros do PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento), em especial o da Transposição do Rio São Francisco. Os maiores beneficiários serão as empreiteiras que irão
executar as obras e os grandes fazendeiros, critica o cientista
Aziz Ab’Saber. Os grupos que perdem são os agricultores tradicionais que plantam nas vazantes do Rio Jaguaribe no Ceará.
“Os vazanteiros que fazem horticultura no leito dos rios que
`cortam´ - que perdem fluxo durante o ano - serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: ‘A cultura de vazante já era’. Sem ao
menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis
que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que
viessem a ser identificados e implantados.” Aziz Ab’Saber:
Se a ONU e as instituições de desenvolvimento e governos desejam combater a pobreza e a miséria de verdade, eles precisam
primeiro esquecer a definição de pobreza associada a um dólar
por dia. Eles precisam acabar com os mecanismos e ideologias
que na realidade criam a pobreza, como, por exemplo, a cobiça
irresponsável da indústria na aquisição de materiais básicos e de
”
novos mercados, e que está atualmente consubstanciada na
ideologia do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
“O Banco Mundial calcula que, se quisermos cumprir com
os compromissos assumidos durante a Reunião de Cúpula
de Milênio, ou seja, reduzir à metade o número de homens,
mulheres e crianças que sofrem de fome antes de 2015, será
preciso que a ajuda pública para o desenvolvimento aumente 50 bilhões de dólares por ano, ou seja, que passe dos
atualmente 60 para 110 bilhões de dólares por ano.” Expresidente da França, JACQUES CHIRAC, Genebra, 30 de
janeiro de 2004.
“Então os US$50 bilhões de ajuda humanitária do Norte
para o Sul é apenas um décimo dos US$500 bilhões que são
sugados através de parcelas de pagamentos e outros mecanismos injustos da economia global imposta pelo Banco
Mundial e pelo FMI. Se queremos seriamente dar fim à pobreza, precisamos seriamente pôr fim aos sistemas que criam a pobreza ao roubar as riquezas do bem comum e as
rendas dos pobres. Antes de fazermos da pobreza um capítulo da história, precisamos entender a história da pobreza
corretamente. A questão não é o quanto as nações ricas
podem dar; a questão é o quanto menos elas devem retirar.”
Vandana Shiva
■
Norbert Suchanek - Jornalista, autor de livros e artigos sobre
Ecologia, Desenvolvimento e Direitos Humanos e colaboradorarticulista do Portal EcoDebate. Artigo escrito com a
colaboração da socióloga Márcia Gomes, março de 2007.
Cidadania&MeioAmbiente
11
Débito de
futuro:
Foto: Guesus
a crise
definitiva
Temos que frear o consumismo
desregrado, reduzir paulatinamente
Enquanto o Homem Vitruviano, de Leonardo da
Vinci (1452-1529), traduz as concepções de proo que achamos ser necessidade,
porção, simetria e equilíbrio aplicadas à natureza
humana, o burlesco Homer de Vitruvio (acima)
aumentar a reciclagem, repensar
representa o desequilibrado homem contemporâneo, vitimado por seu consumismo insustentánosso estilo de vida e mudar a nossa
vel (fast-food, eletrônicos, e-lixo, poluentes...).
relação com o meio ambiente.
Caso contrário, só teremos uma opção: a extinção!
por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
E
mbora a crise econômico-financeira atual
motive preocupação, principalmente em
relação às conseqüências para os mais pobres, preocupo-me muito mais com turbulências de outra natureza, que só tendem a aumentar e terão impacto muito mais profundo.
Isso porque estou convicto de que as crises
ocasionadas pela reação da natureza aos nossos despautérios ambientais (embora negligenciadas pela maioria da mídia e da sociedade) aumentarão muito em freqüência, serão
muito piores e terão efeitos mais duradouros
que aquelas geradas pela criatividade burra
de engravatados milionários.
Ao focarmos nossa atenção apenas nos
aspectos econômicos da crise atual, estamos perdendo uma importante chance de
discutir com coragem as bases insustentáveis da economia global. Ou seja, o modelo que se baseia no crescimento eterno
12
e funciona no formato de um fluxo linear,
que começa na extração de recursos naturais e termina na disposição de lixo. Mas
não. O principal tema que domina as discussões é o temor da recessão e da queda no consumo, vendidas como monstros terríveis. Na verdade elas são, sim,
monstros, mas apenas se aceitarmos esse
modelo. Por isso que é preciso analisá-lo
e criticá-lo a partir de uma perspectiva externa, para fugir das amarras que nos impõe e mostrar suas incongruências.
CONSUMO
E CRESCIMENTO SUICIDAS
Por exemplo, essa falsa necessidade de que
é preciso crescer, crescer sempre, crescer a
qualquer custo. Mas a economia não existe
como algo que paira suspenso no vácuo (embora alguns financistas tenham lucrado muito vendendo essa idéia, antes que a bomba
estourasse no colo de todos). Ela precisa de
dois elementos básicos, além do trabalho humano: matéria-prima e energia. Como seu suprimento destes é finito, simplesmente não há
recursos naturais suficientes para sustentarem um crescimento constante da economia.
Aliás, não há recursos suficientes nem mesmo para sustentar por muito tempo a taxa atual de consumo de recursos naturais, ainda que
as economias permaneçam com a dimensão
atual, sem crescimento algum! É até assustador, de tão simples e óbvio.
Não há pirotecnia de argumentos tecnicistas que possam contradizer essa realidade
inquestionável. Até uma criança pode entender isso facilmente (às vezes elas entendem melhor do que muitos adultos nas principais cadeiras das maiores universidades).
Experimente. Dê a ela uma pilha de qualquer
coisa (feijões, bolinhas, botões – que seriam
os recursos naturais não-renováveis) e pro-
ponha um jogo: “Olha, toda a vez que você
quiser brincar ou ganhar um doce (os objetos de consumo), você tem que jogar no lixo
um item”. A criança trocará seus itens até
que acabem, e só então irá abalar-se de verdade. Mas daí perceberá que os recursos
finitos são justamente isso, finitos e, uma
vez terminados, adeus consumo.
ESTAMOS
EM “DÉBITO DE FUTURO”
Diversos cálculos já foram feitos mostrando que o planeta não conseguirá suprir
recursos naturais suficientes para sustentarmos taxas até mesmo modestas de crescimento até o fim deste século. Outros cálculos comparam a quantidade de recursos que consumimos a cada ano com
aquela que o planeta é capaz de repor no
mesmo período. Essas estimativas mostram que, a partir de meados de 1980, passamos a gastar mais recursos naturais do
que o planeta pode repor. Com isso, criamos um débito de futuro.
Os responsáveis pela idéia usam uma metáfora, pela qual vão somando o consumo
diário de recursos desde o dia primeiro de
janeiro. Na data em que o uso acumulado
iguala a quantidade que o planeta é capaz
de repor ao longo do ano inteiro, chega-se
ao limite que poderíamos ter consumido
naquele período. A partir daí, passamos a
avançar nos recursos do futuro. E essa data
tem chegado mais cedo a cada ano.
cursos que fosse inferior à capacidade de
reposição do planeta. “Ah, mas recessão
gera desemprego e pobreza”, dirão. Sim, é
verdade, mas apenas se forem mantidos
outros pressupostos e pilares dessa estrutura socioeconômica. Se houvesse distribuição mais eqüitativa da riqueza gerada,
o problema seria menor. Mais, se o lucro e
a produtividade não fossem os únicos parâmetros a guiarem as atividades econômicas, e sim a função social das mesmas, teríamos mais elementos positivos para combater o desemprego.
Por fim, e mais importante, o problema seria
imensamente menor se a estrutura econômica não fosse calcada no consumismo, num
sem-número de necessidades fictícias que
foram criadas nos últimos séculos, e sem as
quais convivemos sem grandes crises durante 99,9% do tempo em que estivemos aqui
neste planeta.
Reduzindo-se a necessidade de satisfação
dos desejos de consumo, reduz-se também
a precisão de dinheiro para adquiri-los, o
que casa perfeitamente com uma distribuição mais eqüitativa da riqueza e com o foco
voltado à função social das produções industrial, agrícola e de serviços.
E se você acha a proposta muito radical, é
bom lembrar que a crise ambiental já vem
apresentando-se aos poucos. É um furacão
Catarina aqui, um desastre de Nova Orleans
ali, uma abertura do mar do Pólo Norte acolá. Não sabemos ao certo se a catástrofe
ambiental virá na forma de uma batida abrup-
CONSUMISMO:
A PRAGA
QUE DEVORA A
TERRA
Qual a solução? Bem, em primeiro lugar, seria necessário
que houvesse uma estagnação do crescimento e uma recessão por algum tempo, até
que as economias chegassem
a um nível de consumo de re-
População em bilhões
Ou seja, não estamos nem pagando e nem
estacionando a nossa dívida, mas aumentando-a continuamente. Pior ainda, a própria quantia que descontamos
a cada ano de nosso futuro também vem aumentando. É como
POPULAÇÃO MUNDIAL E
se estivéssemos na mão de um
Média variável
agiota cruel:nós mesmos! Por
das projeções
isso, ainda que toda a economia do planeta parasse subitaMundo
mente de crescer, ficaríamos estacionados no volume atual e,
mesmo assim, a Terra não
agüentaria por muito tempo.
CONSUMO
Nove bilhões de
pessoas em 2050
População sustentável
ao nível de consumo
de renda média
A população da Índia
deve suplantar a da China
por volta de 2030.
População sustentável
ao nível de consumo
de renda alta
ta contra o muro que afetará a todos (ou a
maioria) de uma vez só ou se seguirá de forma mais gradual e dispersa, como tem acontecido, intensificando-se aos poucos. Porém, qualquer que seja o processo, logo não
será questão de escolha: seremos forçados
a uma redução drástica no consumo. Dependendo da magnitude da crise, talvez sejamos obrigados até mesmo a mudar para
um estágio pré-industrial.
Não defendo agora um retorno ao estilo de
vida pré-industrial como solução. Primeiramente, porque não sei se seria preciso ser
tão radical. Ademais, por julgar que nunca
conseguiremos isso por vontade própria, por
mais que seja interessante do ponto de vista ambiental. Teremos sim (por bem ou por
mal) que frear muito o consumismo, reduzir
paulatinamente o que achamos ser necessidade (e no geral não o é...), mudar a nossa
relação com o meio ambiente, repensar nosso estilo de vida, aumentar muito a reciclagem e tentar ir equilibrando por aí.
Aqueles que começarem mais cedo estarão mais preparados e sofrerão menos (física e psicologicamente) com as mudanças que inevitavelmente virão. Bem, há
outra opção: a nossa extinção.
■
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha –
Doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews e biólogo, colunista
do Correio da Cidadania (www.correio
cidadania.com.br), parceiro estratégico do portal
EcoDebate na socialização da informação socioambiental. Artigo publicado em www.ecodebate
(12/11/2008) com o título As outras crises.
Os bens que hoje acumulamos serão
resíduos e lixo amanhã. As projeções
indicam que, antes do ano 2050, a
Terra abrigará nove bilhões de indivíduos. Segundo o Global Print Network,
nosso planeta é atualmente incapaz
de garantir o sustento de dois bilhões
de pessoas com padrão de consumo
semelhante ao dos países mais ricos
da atualidade. E já somos seis bilhões
e meio de almas.
De acordo com a pegada ecológica
– a métrica que possibilita calcular a
pressão humana sobre o planeta –,
se cada habitante da Terra vivesse o
estilo de vida do cidadão americano
médio, o sustento da população
mundial exigiria nada menos do que
cinco Terras.
Fontes: Population Division of the Department of Economic and Social
Affairs of the United Nations Secretariat, World Population Prospects:
The 2004 Revision; Global Footprint Network, 2005.
Cidadania&MeioAmbiente
13
Para o professor Ladislau Dowbor,
do PPG em Administração da PUC-SP,
“o drama é que nós não temos tanto
tempo assim” para agir em benefício
do Planeta. Nesta entrevista à IHU
On-Line, Ladislau faz uma análise
da situação do planeta, a partir
dos dados apontados pelo relatório
do International Panel of Climate
Change ou Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
que tratou do aquecimento global.
LADISLAU DOWBOR
“A lógica do sistema é simplesmente
insustentável ambientalmente.”
IHU ON-LINE – QUAIS OS PRINCIPAIS PONTOS DE CONVERGÊNCIA E
DIVERGÊNCIA ENTRE OS CIENTISTAS SOBRE O AQUECIMENTO GLOBAL?
LADISLAU DOWBOR – O principal ponto é que há pouquíssimas
divergências. Uma das coisas impressionantes do Relatório do
Painel Intergovernamental, publicado em fevereiro, é que ele foi
chamado o “relatório das certezas”. Foram deixadas de lado não
as coisas sobre as quais há divergência, mas aquelas onde as
certezas não são completas. Surgiram dúvidas apenas em relação
a aspectos originados de pressões políticas. Temos, por exemplo, o grupo Exxon Mobil, que é produtor de petróleo, que tem
financiado pessoas das mais variadas áreas para tentar dar suficientes “mexidas” no ambiente, para causar a impressão de que
ninguém tem certeza das coisas. Na realidade, a grande característica é a convergência.
Existe um debate em curso referente à dimensão da participação humana nos processos de aquecimento global e qual é a parte das vari-
14
ações naturais, ligadas a ciclos solares. Esse é um argumento válido
em termos científicos, mas em termos políticos é secundário. Mesmo
que haja uma participação num processo natural de aquecimento, os
impactos para a sociedade, para a agricultura, para a nossa vida vão
ser iguais. Se a gente ainda, além de um processo natural, estiver
aumentando as emissões do efeito estufa, as coisas só vão piorar.
Hoje, no conjunto, estamos razoavelmente seguros do processo.
Essa segurança está ligada à forma como olhamos para o futuro. Se
começarmos a tomar medidas hoje, com mudanças corretivas climáticas, vamos ter que esperar algumas décadas até as coisas começarem a se reequilibrar. O que preocupa, basicamente, é o seguinte: não
podemos esperar ter todas as certezas para começa a agir. Porque o
ritmo de mudar os rumos é muito lento pela inércia dos processos
planetários. Esperar que as catástrofes surjam de maneira generalizada para começar a tomar medidas é simplesmente irresponsável.
IHU – O QUE FARIA PARTE DE UM DEBATE
da economia mundial, as pessoas mais
pobres, tem uma voz muito fraca no PlaHá um imenso segmento
L.D. – Está no centro, hoje, o problema
neta. Por exemplo, sabemos que a pesca
das alternativas energéticas, que vem
industrial oceânica está destruindo as
da economia mundial
tanto pelo lado do impacto ambiental –
reservas de vida dos mares e a principal
que está baseado
emissões de gás, aquecimento global etc.
base de vida do Planeta. Isso está im– como pelo fato de que estamos liquipactando cerca de trezentos milhões de
simplesmente em destruir
dando a principal reserva de energia mópessoas no mundo, que vivem diretavel do Planeta. Essa nossa pequena esmente de pesca artesanal, buscando
as bases de sobrevivência
paçonave Terra veio com reservas de
suas proteínas nas costas marítimas. A
do Planeta, sobretudo das
combustível, que chamamos de petróleo.
cada dia, sentimos isso nas costas braLevaram mais de 100 milhões de anos para
sileiras, inclusive, porque há menos peigerações futuras.
se constituir e teremos acabado com ela
xes. E não há como gritar. Afinal, se grita
em 200 anos. A pressão nisso é muito
com quem? São empresas que dizem
forte e o mecanismo é simples. Tirar petróleo da Arábia Saudita custa
“esse é um espaço internacional, as águas são internacionais,
dois dólares o barril. No mercado internacional, esse bruto vai se
trata-se de uma economia de mercado, e estamos legitimamente
vender entre 60 e 70 dólares o barril. Os lucros das empresas que
pescando o que queremos”.
extraem o petróleo são tão gigantescos que ninguém consegue segurar a vontade delas de ganhar dinheiro.
A relação de poder é central porque temos uma economia que se
globalizou enquanto que os controles políticos da economia, a chaO ponto central é que elas não estão produzindo o petróleo, e sim
mada política econômica, continuam fragmentados em cerca de 200
apenas extraindo reservas naturais que pertencem ao Planeta.
países. Não se consegue montar um sistema de controle. Algumas
Isso leva a uma reconsideração de como vemos os recursos nadas áreas mais destrutivas são claramente da área do banditismo.
turais em geral. Lester Brown caracteriza isso como o sistema
Temos cerca de 65 paraísos fiscais, que essas empresas usam para
natural de suporte da economia. Estão no centro a alternativa
evadir impostos, para lavar dinheiro de droga. A África está inundaenergética e o comportamento da sociedade em relação ao conda por armas de pequeno porte, que são vendidas para diversos
junto dos recursos naturais do Planeta, que as empresas explogrupos políticos. Ninguém controla o comércio mundial de armas.
ram sem produzir, apenas extraem, como é o caso da destruição
Depois são investidos gigantescos recursos para controlar o terroflorestal, da destruição da vida marítima, da poluição das águas.
rismo. São claros sinais de um processo econômico que está globaPara as empresas, isso vem virtualmente ou quase de graça. Dá
lizado, e não temos os sistemas de controle correspondentes. Formuito dinheiro. Há um imenso segmento da economia mundial
mas de governança planetária estão na ordem do dia.
que está baseado simplesmente em destruir as bases de sobrevivência do Planeta, sobretudo das gerações futuras.
IHU – TUDO BEM QUE VIVEMOS NA CULTURA CAPITALISTA, MAS NÃO
POLÍTICO SOBRE O CAOS AMBIENTAL?
“
”
PODEMOS VISLUMBRAR A POSSIBILIDADE DA PREOCUPAÇÃO AMBIENTAL
Nesse processo, há um estudo interessante do Banco Mundial sobre o fato de que todo esse processo de globalização serve a mais
ou menos um terço do Planeta. O relatório se chama “Os próximos 4
bilhões”, que foca os 4 bilhões de habitantes do Planeta que não
estão sendo beneficiados pelo processo de globalização. Isso significa que a problemática do aquecimento global, do esgotamento dos
recursos naturais, e a problemática da desigualdade, do não acesso
a bens e direitos básicos convergem e geram o que está na mesa em
termos políticos. Temos que produzir outras coisas, produzir de outras maneiras, e administrar esse processo de forma inovadora.
IHU - QUAL A ALTERNATIVA PARA QUE O PODER E OS INTERESSES
ECONÔMICOS NÃO PREVALEÇAM SOBRE AS QUESTÕES AMBIENTAIS?
L.D. – O motor desse processo de ruptura de equilíbrios planetários são hoje as grandes corporações. Hoje elas têm produtos
internos empresariais. O PIB empresarial equivale ao PIB de muitas nações. As empresas têm gigantescos recursos financeiros e
mobilizam os recursos naturais a nível globalizado, contando que
não há governo mundial. Então, por exemplo, se temos empresas
que geram determinado caos num país, é natural que o governo
tome medidas. Na esfera das empresas transnacionais, como não
há governo mundial, faz-se o que se quer. Cortam-se as florestas
nos países de governos mais fracos, consegue-se, via corrupção, outros métodos de exploração de recursos naturais. É preciso ver também que essa massa dos 4 bilhões do “andar de baixo”
SER MAIOR DO QUE A PREOCUPAÇÃO ECONÔMICA GANANCIOSA? ATÉ
POR UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA…
L.D. – A preocupação está surgindo sob forma basicamente de
conscientização, de uma maneira cada vez mais generalizada no
Planeta. Isso é importante. Tanto assim que, sentindo a pressão,
muitas empresas hoje estão se declarando a favor de responsabilidade social e ambiental. Por exemplo, vejamos a força do Instituto
Ethos, que tenta agrupar as empresas que tentam uma certa responsabilidade. Surgem movimentos como o Ethical Market Place,
nos Estados Unidos, e no Brasil já surgiu também um com o nome
de Mercado Ético (www.mercadoetico.com.br –, inspirado por Hazel
Henderson). Temos todo o trabalho das Nações Unidas, a imensa
importância que foi a Eco 92, no Rio de Janeiro. Enfim, o progresso
da tomada de consciência é cada vez maior.
Mas quando olhamos a força da principal base de poder político do
país, que é o governo Bush, cercado por grandes grupos de empresas
de petróleo e grandes grupos que estão ligados ao governo norteamericano, vemos que temos uma longa briga pela frente. Há esperança pelo trabalho das ONG’s, pelas empresas que estão se dando conta
da responsabilidade social e ambiental, há esperança quando algumas mídias, nesse caso mais raras, começam a efetivamente divulgar o
problema. Mas é um processo longo. A janela de tomada de consciência avança mais lentamente do que a proximidade da vulnerabilidade.
O drama é esse: nós não temos tanto tempo assim.
Cidadania&MeioAmbiente
15
IHU – EM QUE MEDIDA UMA MUDANÇA DO
PADRÃO ENERGÉTICO MUNDIAL PODERÁ AJUDAR
NO CONTROLE DO AQUECIMENTO GLOBAL?
ESSA AJUDA VIRIA EM CURTO, MÉDIO OU
LONGO PRAZO?
L.D. – Se nos colocarmos na frente da televisão para registrar diversos programas,
vamos encontrar dezenas de mensagens publicitárias: que é preciso comprar um carro
mais potente, com mais cilindradas. Nós
continuamos a empurrar uma coisa que sabemos ser simplesmente irreal.
“
Peguemos como exemplo a cidade de São
Paulo. Hoje estamos utilizando carros individualmente. Para irmos de um lugar a outro, é preciso energia para transportar as
duas toneladas do carro para uma pessoa que pesa só 70 quilos
e a média da velocidade do trânsito em São Paulo é 14 quilômetros por hora. Na cidade de São Paulo há 6 milhões de automóveis e quase todos, hoje, andam em primeira e segunda marcha o
tempo todo, revelando o gigantesco desperdício que estamos
cometendo.
Há cidades que optaram pelo transporte público. Temos iniciativas muito interessantes. Por exemplo, em Barcelona, foram inaugurados, neste mês, 100 estacionamentos de bicicletas públicas.
Em toda a cidade, em qualquer lugar, as pessoas estão a uma
distância a pé de pegar uma bicicleta. A pessoa pega um cartão,
paga um dinheiro pequeno, se identifica, e é liberada a bicicleta.
Ela vai onde quer e larga a bicicleta em outro estacionamento;
tranca e outra pessoa pode pegar. É uma coisa pequena, mas na
realidade envolve a mudança do estilo de todos nós. Eu me peguei dias atrás levando uma carta para o correio. Estava atrasado, e era urgente. Tirei minha Blazer de duas toneladas, mais os
meus 90 quilos, para levar para o correio uma carta de 20 gramas.
Isso é surrealista. Sabemos, pois os cálculos já foram feitos, que
nós precisaríamos de quatro planetas para sustentar isso. O nosso modelo de consumo é simplesmente inviável.
As montadoras de automóvel, as concessionárias, as autopeças,
toda essa gente não está nem aí. Enquanto não houver uma regulamentação rigorosa sobre esses processos, a tendência é a pessoa simplesmente comprar o carro quando seus recursos o permitem. Estou pegando o exemplo do carro porque é óbvio, e é imensamente absurdo. Mas podemos pegar outras coisas. Eu tenho
problemas a cada vez que compro algo numa loja. Compro um
produto que já vem embrulhado num plástico, esse plástico está
dentro de uma caixinha, daí a moça me dá uma sacolinha, e quer
que eu leve isso dentro da sacola da loja para mostrar aos outros
onde eu comprei. Há países onde quando se entrega uma geladeira
numa casa a empresa é obrigada a retirar a embalagem e usá-la de
novo em outras entregas, ao invés de guardarmos em nossa casa,
para depois jogá-la na rua e haver ainda o custo de o lixeiro levá-la.
É só a gente parar para pensar. Estamos com um modelo, que a
publicidade e as novelas nos empurram, de sermos consumidores
frenéticos. E nos dizem que isso é bom para o PIB. Na realidade,
isso é de uma demagogia profunda. O cálculo que fazemos nas
cidades é que nós jogamos fora, por dia, meio quilo de embalagens
16
por pessoa. Tudo isso é custo de produção. É petróleo, são as florestas que produzem papel. Tudo isso jogado fora, desperdiçado de maneira surrealista. Outro
exemplo: o japonês gosta de barbatana de
tubarão. Grandes empresas de pesca caçam os tubarões, sendo que no ano de
2005 foram mortos 93 milhões de tubarões.
Eles cortam as barbatanas e jogam o resto
fora. O drama não é só fazer essa burrice.
Isso se ensina nas escolas de administração: “você otimiza a sua viagem, o diesel
do barco de pesca, se você pega só as
coisas que vão render mais”. A lógica do
sistema é simplesmente insustentável. Constatamos que estamos
chegando ao limite do caos onde a busca de lucro por corporações, por grupos privados, gera o caos para o resto do Planeta.
Esperar que as
catástrofes surjam de
maneira generalizada
para começar a tomar
medidas é
simplesmente
irresponsável.
”
IHU – EM QUE ALTERNATIVAS PODEMOS PENSAR QUANDO FALAMOS
DE MUDANÇA DE PADRÃO ENERGÉTICO?
L.D. – Os estudos estão avançando bem. O problema é que a
indústria não está interessada, não acompanhando esses processos. A energia geotérmica tem um gigantesco potencial. Cada vez
que se aprofunda na Terra aumenta a temperatura, e se pode usar
essas diferenças de temperatura para gerar energia. Temos a energia
solar, a energia eólica, e a produção de células fotovoltaicas começa
a ser perfeitamente viável. E estão surgindo com muita força tanto a
expansão do etanol e do biodiesel, como a transformação energética
a partir da celulose, que permitirá utilizar todos os subprodutos dos
vegetais. Há países que estão investindo na energia nuclear, em
meio ao debate que vivenciamos. Hoje, as alternativas estão razoavelmente bem mapeadas. Só que não enchem os bolsos como o
petróleo. Esse é o lado da mudança das fontes de energia.
Do lado do consumo de energia, há imensos ganhos. Quando aconteceu o choque do petróleo, ainda nos anos 1970, em que ele aumentou brutalmente de preço, os americanos fizeram uma campanha
gigantesca de redução do consumo de aquecimento doméstico, que
é uma grande absorção de energia nos Estados Unidos durante o
inverno. Descobriram que com coisas simples, como pôr janelas
duplas, com vácuo, é possível mudar radicalmente. E realmente conseguiram reduzir drasticamente o consumo de energia no país. Mas
isso envolve uma mudança de cultura da população, e essa cultura
envolve a participação dos meios de comunicação.
O principal controlador de mídia no mundo, que é Rupert Murdoch, e tem a Fox e outros canais que controlam grande parte da mídia
mundial, estão com toda a força do lado da expansão do consumo,
porque daí todo mundo fica mais rico. Esse é o discurso. O peso da
mídia, sua democratização, o acesso a essas informações, está se
tornando crucial para poder mudar a cultura ambiental no Planeta.
O erro do cálculo do PIB – Outro ponto importante é que
temos que mudar o cálculo do PIB. Até hoje, se aumentarmos
a produção de petróleo, isso aumenta nosso PIB. O Banco
Mundial começou a mudar esse cálculo. Ele diz que tirar o
petróleo da terra não é produto, é descapitalização. Estamos
vendendo os móveis da casa. Abater florestas também já não
é considerado (como calculamos no Brasil hoje) aumento do
PIB e sim descapitalização. É destruição de
um capital natural que não estará disponível para gerações futuras. Essas são mudanças da forma de cálculo do produto, o
que é essencial.
meses por ano de solo congelado. Nós
somos um dos países mais bem dotados
Constatamos que
em água do planeta. Frente a isso e frente à demanda crescente de cereais no plaestamos chegando ao
neta e à nova pressão de uso de produlimite do caos onde a
tos agrícolas na parte energética, substiIHU – Que relação podemos estabelecer
tuindo o petróleo, o Brasil tem cartas exbusca de lucro por
entre modelos alternativos de energia, motremamente fortes na mão. Vai depender
delos alternativos de produção e padrões
de como ele passa a utilizá-las. Existe prescorporações, por grupos
alternativos de consumo? Que modelo de
são dos grandes grupos, tanto nacionais
privados, gera o caos
produção e de organização social deveria
– como os grandes produtores de soja,
emergir da crise anunciada pelas prováveis
as tradicionais agroexportadoras –, como
para o resto do Planeta.
alterações climáticas em escala planetária?
os gigantes do comércio de grãos, que
L.D. – De um lado, temos um conjunto de
estão interessados simplesmente em utinovas metodologias de cálculo. O cálculo do
lizar o Brasil como um espaço físico para
PIB é, em termos metodológicos, simplesmente errado. Temos inexpandir a produção para alimentar os automóveis.
dicadores de progresso genuíno, em que descontamos o que estamos descapitalizando do planeta. As diversas metodologias de
A alternativa para mais um ciclo agroexportador, com todos os
cálculo que estão surgindo estão resumidas num livrinho muito
desastres, tanto ambientais como sociais, será dinamizar o conjunbom que se chama Os novos indicadores de riqueza, de Jean
to da base de pequenos e médios produtores do Brasil, associanGadrey. Temos que passar a contabilizar corretamente. Imagine
do com uma produção energética, mas com o que se chama de
que, na nossa casa, calculemos nossos gastos, as nossas entracultivos associados. É feita a agroexportação e é realizado, no meio
das, o salário, mas estamos vendendo os móveis e esquecemos de
desse processo, em rodízio, um conjunto de produtos alimentares.
calcular isso. Estamos, com isso, reduzindo o capital. Então temos
Com isso, se tira esses agricultores da miséria, indo-se muito além
que fazer outro tipo de cálculo.
da dinâmica já positiva que tem hoje o Pronaf e se organiza uma
base agrícola diversificada. Essa é a grande oportunidade sobre a
No conjunto, precisamos equilibrar nesse processo três elemenqual estamos trabalhando. A negociação internacional vai depentos desse cálculo do aquecimento global:
der da capacidade do Brasil de entender a carta que tem.
1) energia, a sua forma de produção e seus volumes e formas
de consumo;
IHU – QUAIS OS MAIORES RISCOS DO USO ENERGÉTICO DA
2) a produção de alimentos, porque não podemos desenvolAGRICULTURA?
ver ou sustentar artificialmente a produção de automóveis no
L.D. – Isso envolve conseqüências das relações de poder. O
mercado à custa da produção e do equilíbrio alimentar do
mundo produz hoje mais de um quilo de cereal por dia, por habitanplaneta, que já é muito crítico; e
te. Comer um quilo de arroz por dia é muita coisa. Não há insufici3) o nível das emissões.
ência de produção de alimentos. O que há é o mau uso desses
alimentos e má distribuição. Disso resulta o fato de que temos hoje
Esse processo precisa ser sustentável no longo prazo. Cada país
cerca de 1 bilhão de pessoas desnutridas no planeta. A grande
terá de buscar os processos correspondentes. Por exemplo, a
preocupação é a seguinte: quem conseguirá falar mais alto? As
Coréia do Sul fez com o trabalho voluntário um gigantesco propessoas que têm fome ou os proprietários de automóveis que
cesso de reflorestamento do país. Há países que estão cobrando
querem continuar a ajudá-lo de maneira que desperdice energia?
taxas muito mais elevadas às pessoas que usam carros em centros urbanos, caso de Singapura, onde as pessoas passam a
A problemática ambiental precisa ser vista conjugada com outro
preferir o transporte coletivo, que é muito mais econômico. Quangrande drama planetário, que é a desigualdade. Só venceremos o
do olhamos as diferentes iniciativas, vemos que está todo mundesafio resgatando a inclusão da base, do conjunto dos excluídos
do buscando alternativas para uma consciência vaga e difusa, à
do planeta, ou dos excluídos do Brasil, no nosso caso, cruzando
medida que estamos indo lentamente para um desastre. Os ameisso com o desenvolvimento da agricultura familiar, a associação da
ricanos têm uma fórmula “simpática” que se chama “slow motion
agricultura energética com a agricultura alimentar, num processo
catastrofe”. Estamos vivendo uma catástrofe em câmera lenta.
equilibrado e de distribuição equilibrada dos resultados.
■
“
”
IHU – O SENHOR INSISTE NUM APROVEITAMENTO DA MÃO-DE-OBRA
EXCEDENTE. NO CASO BRASILEIRO, DE QUE FORMA ESSA MÃO-DEOBRA PODERIA SER APROVEITADA NA ELABORAÇÃO DE UM PLANO DE
PRODUÇÃO ENERGÉTICA E DE ALIMENTOS NUM MESMO ESPAÇO
INTEGRADO, DE FORMA A ASSOCIAR A AGRICULTURA ALIMENTAR COM A
PRODUÇÃO ENERGÉTICA?
L.D. . – Para já, nós temos 20 milhões de pessoas, como ordem de
grandeza, ocupadas na agricultura. É muita gente. Nós temos hoje
a maior reserva de terra, de solo agrícola, parada do planeta. Nós
temos um clima excelente. Nós não temos, como na Rússia, sete
Ladislau Dowbor – Formado em Economia Política pela Universidade
de Lausanne, Suíça, e doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central
de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Também faz
consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e
municípios. É autor e co-autor de cerca de 40 livros, e de numerosos
artigos. Destacamos o livro Formação do Terceiro Mundo. 15. ed. São
Paulo: Brasiliense. O professor tem um site pessoal – http://dowbor.org/
– onde publica seus artigos.
Entrevista publicada originalmente pelo IHU On-line [IHU On-line é
publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
Cidadania&MeioAmbiente
17
Bonacheladas
COMO
os ricos estão destruindo
a TERRA
por Herve Kempf
Nossa biosfera está morrendo e, com ela,
o sustento de bilhões de seres vivos.
Mas a elite globalizada que dita os modelos
de interação homem-meio ambiente
permanece insensível a tudo que não seja
o seu próprio ego e imensos lucros.
E, assim, a crise planetária cevada na
insustentabilidade continua triunfando.
Haverá meios de reverter esse quadro caótico?
Leia, aqui, como enfrentar as forças
destrutivas para reinaugurar uma nova era de
LIBERDADE
ECOLOGIA
FRATERNIDADE
18
V
ivemos uma emergência. Em
menos de uma década, teremos
de mudar de rumo – assumindo
que o colapso da economia norte-americana ou a explosão do Oriente Médio não
imponham uma mudança via caos. Para confrontar essa emergência, temos deentender
o objetivo do plano de ação: criar uma sociedade sóbria; delinear o caminho para sair
do impasse; realizar essa transformação
com justiça, isto é, forçando os mais aquinhoados a segurarem o fardo da transformação dentro e entre as sociedades e inspirarem-se nos valores coletivos de “Liberdade, ecologia, fraternidade”.
OS PRINCIPAIS OBSTÁCULOS A ENFRENTAR
EM PRIMEIRO LUGAR, as arraigadas certezas recebidas – na verdade, preconceitos –
que orientam a ação coletiva, sem que ninguém realmente as analise em profundidade. E a mais poderosa dessas idéias preconcebidas é a crença no crescimento como
único e exclusivo meio de solucionar os problemas sociais. Uma crença ferozmente defendida até mesmo quando os fatos contradizem-na. Uma posição que descarta a ecologia, pois seus apóstolos defensores têm
consciência de que o crescimento é incapaz
de solucionar a questão ambiental.
A SEGUNDA CERTEZA, menos convincente, embora amplamente disseminada, proclama que o progresso tecnológico solucionará os problemas ambientais. A propagação
dessa idéia dá aos indivíduos a esperança
de não ter de enfrentar sérias mudanças nos
comportamentos coletivos graças ao progresso tecnológico. O desenvolvimento da
tecnologia – ou melhor, de certos canais técnicos em detrimento de outros – reforça o
sistema e avaliza proveitosos lucros.
A TERCEIRA CERTEZA vem a ser a inevitabilidade do desemprego, concepção fortemente atrelada a duas certezas prévias. O
desemprego tornou-se uma determinante
fabricada pelo capitalismo para assegurar
a docilidade da população, muito especialmente dos nichos operários. No entanto,
outra forma de olhar a questão indica que a
transferência de riqueza das oligarquias à
efetivação dos serviços públicos; um pesado sistema de tributação sobre o capital
e a poluição, não mais sobre o emprego;
uma política agrícola sustentável para os
países em desenvolvimento e pobres e a
pesquisa em eficiência energética constituem imensas fontes de emprego.
A QUARTA CERTEZA geralmente associa a
Europa e os Estados Unidos a uma comunidade de riqueza. No entanto, os caminhos
de cada um deles divergem. A Europa ainda
é o arauto de um ideal universalista, cuja
validade é manifestada pela habilidade em
reunir – apesar dos problemas – estados e
culturas tão diferentes. Outras características – como o consumo de energia, os valores culturais (por exemplo, o sentido crítico
do alimento), a rejeição à pena de morte e à
tortura, a desigualdade menos pronunciada
e a manutenção de um ideal de justiça social, de respeito ao direito internacional e de
apoio ao Protocolo de Kyoto na questão
climática – separam a Europa dos Estados
Unidos. Aquela está distanciada do poder
opressor e deve se aproximar mais dos países pobres, a menos que este realmente
mostre que pode mudar.
A OLIGARQUIA
PODE SER DIVIDIDA
O primeiro obstáculo a vencer é o poder do
próprio sistema. Os fracassos que ocorrerão não serão em si mesmos suficientes para
fragilizarem o sistema, pois, como sabemos,
as forças oligárquicas podem criar pretextos para promoverem um sistema autoritário
despido de qualquer grau de democracia.
De qualquer modo, o movimento social despertou e pode continuar ganhando poder.
Mas, sozinho, ele não será capaz de enfrentar abertamente o surgimento da repressão:
será necessário que as classes médias e parte da oligarquia – não-monolítica – claramente optem pelas liberdades públicas e pelo
bem comum.
Os meios de comunicação de massa constituem um desafio central. Hoje, eles apóiam
o capitalismo devido à sua própria condição econômica. Em sua maioria, as mídias
dependem de publicidade, fato que lhes torna difícil pleitear a redução do consumo.
Além disso, o desenvolvimento de publicações independentes que precisam de
publicidade aumenta ainda mais a pressão sobre os jornais pagos de grande circulação, muitos dos quais abrigados nos
estábulos de grandes grupos industriais.
Embora imensa, não é certo que as possibilidades de informação geradas pela Internet– pelo menos enquanto a rede permanecer com livre acesso – sejam fortes o
suficiente para contrabalançarem o peso
dos meios de comunicação de massa, caso
todos se tornem a voz da oligarquia.
A mais poderosa
“idéia
preconcebida
é a crença no
crescimento como
único e exclusivo
meio de solucionar
os problemas sociais
e acabar com a
pobreza.
”
Não obstante, nem todos os jornalistas
estão escravizados; assim, poderiam ser
galvanizados para o ideal de liberdade.
A terceira força – manca – é a esquerda.
Considerando que o componente socialdemocrata tornou-se seu centro de gravidade, esse grupo abdicou de toda e qualquer ambição de transformar o mundo. Ao
estabelecer um acordo com o liberalismo
de livre-mercado, a esquerda mergulhou
de cabeça em seus valores do liberalismo
de livre-mercado tão fortemente que já não
ousa – exceto em condições muito cautelosas – deplorar a desigualdade social.
Para coroar a questão, ainda se recusa a
envolver-se verdadeiramente nas questões ambientais.
Assim, permanece aferrada à idéia de progresso concebida no século 19 e ainda acredita que ciência é produzida do mesmo modo
como à época de Albert Einstein, e entoa o
canto do crescimento econômico sem o mais
leve traço de reflexão crítica. Além disso,
para ela, “capitalismo social” em vez de “democracia social” tornou-se indubitavelmente o termo mais apropriado.
A despeito de tudo, poderão os desafios
do século 21 ser encampados pelas correntes da tradição diferentemente daquela
que um dia identificou na desigualdade seu
motivo primário de revolta? Esse hiato está
no coração da vida política. A esquerda
renascerá ao unir as causas da desigualdade e do meio ambiente – ou, incapaz disso – desaparecerá na desordem geral que
se baterá sobre ela e sobre tudo mais?
De qualquer forma, não devemos deixar de
ser otimistas. Otimistas, pois existem cada
vez mais pessoas que entendem – ao contrário de todos os conservadores – a novidade histórica da situação: estamos vivendo uma nova e nunca antes vista fase da
história da espécie humana. Eis um momento em que após ter conquistado a Terra e
atingido seus limites, a humanidade tem de
repensar sua relação com a natureza, com
o espaço e com seu próprio destino.
Estamos otimistas pela amplitude da conscientização frente à importância dos desafios atuais, e pelo fato de que o espírito
de liberdade e de solidariedade despertou. Desde Seattle e dos protestos contra
a Organização Mundial de Comércio, em
1999, o pêndulo começou a balançar em
direção à preocupação coletiva acerca das
escolhas futuras e da busca por cooperação em vez de competição.
A, até certo ponto, bem-sucedida, embora ainda incompleta, luta européia contra
os Organismos Geneticamente Modificados; a perseverança da comunidade internacional na efetivação do Protocolo de
Kyoto, de 2001, apesar do boicote dos
Estados Unidos; a negativa européia em
participar da invasão do Iraque, em 2003;
e o reconhecimento unânime e urgente
dos desafios propostos pelas mudanças
climáticas são sinais de que o vento do
futuro começou a soprar.
Apesar da escala dos desafios que nos
esperam, começam a surgir soluções –
em oposição aos prognósticos sombrios
promovidos pelos oligarcas – e o desejo
de reconstruir o mundo está em franco
renascimento.
■
Hervé Kempf – Jornalista especializado em
informação ambiental e ecológica desde 1988. Editor de Meio Ambiente do jornal Le Monde, desde 1998, e criador da revista ambiental Reporterre.
Também publica em jornais científicos e econômicos. O texto acima foi
extraído de seu novo livro – How the Rich Are
Destroying the Earth
(Chelsea Green Publishing, 2008) – e publicado
em www. alternet.org/
environment/107988, em
22/11/2008. Tradução livre realizada pela editoria de Cidadania & Meio
Ambiente.
Cidadania&MeioAmbiente
Cidadania&MeioAmbiente
19
19
fotos: Bangladeshboat. e Pinakianisk
MUDANÇA DE CLIMA
E POBREZA MUNDIAL
Os países desenvolvidos
– maiores poluidores –
são os mais aptos a
enfrentar as
conseqüências do
aquecimento global que
vai penalizar os países
pobres e desencadear
forte retrocesso do
desenvolvimento em
escala planetária.
por PNUD
20
O
Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –
Combatendo a Mudança Climática: Solidariedade Humana num Mundo Dividido – revela um mundo cada vez mais dividido entre nações altamente poluidoras e países pobres.
E mostra que, enquanto os pobres contribuem de maneira desprezível ao aquecimento global, são eles que vão sofrer os resultados mais imediatos da mudança no clima. O aquecimento global, alerta o relatório, provavelmente desencadeará um forte retrocesso no desenvolvimento e o completo fracasso em implementar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),
acordados na Organização das Nações Unidas em 2000, para a
redução da pobreza mundial.
AS DESIGUALDADES
PEGADAS
DE CARBONO DESIGUAIS:
Enquanto apenas 13% da população do planeta vivem nas
nações economicamente mais desenvolvidas, são essas as nações responsáveis por mais da metade da emissão dos gases de
efeito estufa.
■ O estado australiano de Nova Gales do Sul (6,9 milhões de
habitantes) tem uma pegada de carbono de 116Mt CO2.
■ Esse índice é comparável ao total de Bangladesh, Camboja,
Etiópia, Quênia, Marrocos, Nepal e Sri Lanka juntos.
■
■ Nos
Estados Unidos, os 23 milhões de habitantes do estado do
Texas somente são responsáveis
por mais emissões de gás carbônico (CO2) do que os 690 milhões de
habitantes da África subsaariana.
■ Um residente médio dos Estados Unidos é responsável pela
emissão de 20,6 toneladas de gás
carbônico por ano. Um chinês médio, 3,8 toneladas; um etíope, apenas 0,1 tonelada.
■ O crescimento per capita de
emissão de CO2 no Canadá desde 1990 (cinco toneladas) é
maior do que o total de emissões per capita na China hoje.
■ Os Estados Unidos e a União
Européia juntos são responsáveis por 10Gt dos 29 Gt liberados
anualmente em todo o planeta.
Se todo o mundo seguisse a trajetória dos Estados Unidos nas emissões de CO2, afirma o relatório, nós
precisaríamos de nove planetas para
absorver, a salvo, todos os gases
que provocam o efeito estufa.
APARTHEID DA ADAPTAÇÃO
Enquanto os países mais pobres
são os mais despreparados para se
adaptarem às mudanças climáticas,
são as suas populações que passarão pelo maior deslocamento nas
próximas décadas.
“
Adaptação tornou-se
um eufemismo para
injustiça social em
escala global.
■ O relatório afirma que US$ 279 mi-
lhões foram prometidos ao Fundo
Especial de Mudança Climática, formado para ajudar os países pobres a
mitigar os efeitos do aquecimento
global. Isso corresponde à metade
do que o estado alemão de Baden
Würtemberg planeja gastar anualmente para fortalecer suas proteções
contra enchentes.
■ Em alguns locais, a agricultura comercial poderá se tornar 8% mais produtiva em conseqüência do aquecimento global. Por outro lado, a previsão para a agricultura irrigada por
chuvas, da qual depende o agricultor mais pobre, é de que se torne 9%
menos produtiva. A estimativa para
2060 é de que a renda da África do
subsaariana caia um quarto em relação aos níveis atuais.
■ Na Etiópia, os reservatórios armazenam 50 metros cúbicos de água por
pessoa. Na Austrália, eles armazenam
4.700 metros cúbicos por residente.
■ A França gasta atualmente em sistemas de monitoramento meteorológicos mais do que gasta toda a África subsaariana. A Holanda possui 32
vezes mais estações meteorológicas
por 10 mil km² do que a África.
■ Quando furacões, enchentes e secas atingem o mundo desenvolvido,
companhias de seguro privadas compensam grande parte das vítimas. Nos
países mais pobres, a cobertura dos
seguros é extremamente limitada e desastres naturais podem
desencadear a condenação à pobreza por gerações. Isto ficou
demonstrado quando o furacão Mitch atingiu Honduras, em
1998. A porção mais pobre da população, com menos cobertura
de seguro, perdeu mais e levou mais tempo para se recuperar. Os
mais ricos perderam menos e começaram o processo de reconstrução mais rápido. Fenômeno semelhante aconteceu quando
Nova Orleans foi arrasada pelo furacão Katrina, em 2005. Em
2001, quando Gujurat na Índia sofreu um forte terremoto, somente 2% das vítimas possuíam seguro.
■ O relatório destaca ainda outra questão relacionada: a atenção da mídia enfoca mais os desastres que acontecem no primeiro mundo, tais como a enchente causada pelo furacão Katrina. Igualmente devastadores furacões na América Central
recebem apenas uma fração da atenção e uma fração dos recursos de reconstrução pós-desastre.
”
“
Nos países mais pobres,
a cobertura dos seguros
é limitada e desastres
naturais podem
desencadear a
condenação à pobreza
por gerações.
Numa seção especial do relatório, o ex-arcebispo da Cidade do
Cabo, Desmond Tutu, chama a isso de o surgimento do Apartheid
da Adaptação. As desigualdades são várias:
■ Os países ricos possuem muito mais recursos para aplicar em
defesas contra enchentes, sistemas de armazenamento de água e
em modificações na agricultura. O Reino Unido gasta anualmente US$1,2 bilhão no manejo de enchentes e prevenção da erosão
costeira. A Agência Ambiental requisitou US$ 8 bilhões a serem
investidos no fortalecimento das defesas contra enchentes em
Londres. O estado alemão de Baden-Württemberg estima que
terá que gastar um excedente de US$685 milhões por ano, em
infra-estrutura de proteção contra enchentes. O Japão elaborou
planos de proteção do país contra a elevação dos níveis do mar,
cujos custos poderiam chegar a US$93 bilhões.
■ Ao mesmo tempo, mulheres do Delta do Ganges, Bengala
Ocidental, na Índia, se preparam contra os crescentes riscos
de enchente, construindo como refúgio plataformas elevadas
feitas de bambu. Soluções semelhantes estão sendo introduzidas nas ilhas Char, em Bangladesh. No Egito, estima-se que
o aumento do nível do mar pode custar ao país US$ 35 bilhões
e desalojar dois milhões de pessoas.
”
Adaptação tornou-se um eufemismo para injustiça social em escala global, alertam os autores do Relatório de Desenvolvimento
Humano. Cada vez mais, o mundo é dividido entre países que
estão desenvolvendo a capacidade de se adaptar à mudança climática e aqueles que não estão.
■
Cidadania&MeioAmbiente
21
S E G U R A N Ç A AL I M E N T A R
22
A
produção agrícola mundial é, comprovadamente, mais
do que suficiente para alimentar a população do planeta.
Mesmo assim enfrentamos uma inaceitável crise alimentar.
A partir de dados estatísticos coletados em 2006, a FAO (Food
and Agriculture Organization, das Nações Unidas) pôde afirmar que a produção de alimentos no planeta é suficiente para
garantir à população mundial uma dieta diária de quase
3.000 calorias. Portanto, o problema da fome episódica ou
crônica não é a falta do que comer, mas os recursos financeiros
para ter-se acesso ao alimento, cada dia mais caro.
A crise alimentar atual é causada pela conjunção de fatores
associados: especulação agrofinanceira, aumento artificial do
preço das commodities, fatores climáticos adversos, consumo
e desperdício obscenos, agricultura intensiva e asfixia da agricultura familiar, entre outros.
Em muitos países – em especial na África e na Ásia –, o
potencial de crise é maximizado pelos “grandes interesses
econômicos internacionais” (entenda-se os países economicamente desenvolvidos), que não têm o menor escrúpulo em
especular, em manipular os preços das commodities e em
incentivar a substituição da produção de alimentos pela de
agrocombustíveis. Afinal, se os países economicamente desenvolvidos já não se importam com a fome de 800 milhões
de indivíduos, porque se importariam com a fome de 1 bilhão
e meio? A insegurança alimentar é hoje a mais gritante, abjeta
e desnecessária realidade mundial.
Henrique Cortez
FOME
por Leonardo Boff
A
fome é uma constante em todas
as sociedades históricas. Hoje,
entretanto, ela assume dimensões
vergonhosas e simplesmente cruéis. Revela
uma humanidade que perdeu a compaixão
e a piedade. Erradicar a fome configura-se
como imperativos humanístico, ético, social e ambiental. Uma precondição mais imediata e possível de ser posta logo em prática é um novo padrão de consumo.
A sociedade dominante é notoriamente
consumista. Dá centralidade ao consumo privado, sem autolimite, como objetivo da própria sociedade e da vida das
pessoas. Consome não apenas o necessário, o que é justificável, mas o supérfluo, o que questionável. Esse consumismo só é possível porque as políticas econômicas que produzem os bens supérfluos são continuamente alimentadas,
apoiadas e justificadas.
Grande parte da produção destina-se a gerar o que, na realidade, não precisamos
para viver decentemente. Como se trata
de supérfluos, recorrem-se a mecanismos
de propaganda, de marketing e de persuasão para induzir as pessoas a consumirem
e a fazê-las crerem que o supérfluo é necessário e fonte secreta da felicidade.
O fundamental para esse tipo de marketing é criar hábitos nos consumidores a
Sokwanele
Sempre existiu,
mas hoje resulta do consumo.
tal ponto que se crie neles uma cultura
consumista e a necessidade imperiosa
de consumir. Mais e mais se suscitam
necessidades artificiais e em função delas, monta-se a engrenagem da produção e da distribuição.
As necessidades são ilimitadas por estarem ancoradas no desejo que, por natureza, é ilimitado. Em razão disso, a produção tende a ser também ilimitada. Surge
então uma sociedade, já denunciada por
Marx, marcada por fetiches, abarrotada de
bens supérfluos, pontilhada de
shoppings, verdadeiros santuários do
consumo, com altares cheios de ídolos
milagreiros, mas ídolos; no termo, uma
sociedade insatisfeita e vazia porque nada
a sacia. Por isso, o consumo é crescente e
nervoso, sem sabermos até quando a Terra finita aguentará essa exploração infinita de seus recursos.
materiais. O PIB não contempla a beleza
de nossa poesia, nem a solidez dos valores familiares, não mede nossa argúcia,
nem a nossa coragem, nem a nossa compaixão, nem a nossa devoção à pátria.
Mede tudo menos aquilo que torna a vida
verdadeiramente digna de ser vivida”.
Três meses depois, ele foi assassinado.
Para enfrentar o consumismo urge sermos
conscientemente anticultura vigente. Há
que se incorporar na vida cotidiana, os
quatro “erres” principais: reduzir os objetos de consumo, reutilizar os que já temos usado, reciclar os produtos dandolhes outro fim e finalmente rejeitar o que é
oferecido pelo marketing com fúria ou
sutilmente para ser consumido.
Não causa espanto o fato de o Presidente
Bush conclamar a população para consumir mais e mais e, assim, salvar a economia
em crise, lógico, à custa da sustentabilidade do planeta e de seus ecossistemas.
Sem esse espírito de rebeldia conseqüente contra todo tipo de manipulação do
desejo e com a vontade de seguir outros
caminhos ditados pela moderação, pela
justa medida e pelo consumo responsável e solidário, corremos o risco de cairmos nas insídias do consumismo, aumentando o número de famintos e empobrecendo o planeta já devastado.
■
Contra isso, cabe recordar as palavras de
Robert Kennedy, em 18 de março de 1968:
“Não encontraremos um ideal para a nação nem uma satisfação pessoal na mera
acumulação e no mero consumo de bens
Leonardo Boff - Teólogo, professor
adjunto de Ética, de Filosofia da
Religião e de Ecologia na (UERJ).
Artigo publicado pelo O Tempo, MG em
09/05/2008 e no EcoDebate , 12/05/2008.
Cidadania&MeioAmbiente
23
SOBERANIA ALIMENTAR
por Miguel A. Altieri
Somente desafiando
o controle que as
multinacionais exercem
sobre o sistema de
produção de alimentos
e o modelo
agroexportador
patrocinado pelos
governos neoliberais
poder-se-á deter a
espiral de pobreza,
fome, migração rural e
degradação ambiental.
24
AGRICULTURA INDUSTRIAL:
MODELO NÃO-SUSTENTÁVEL
A agricultura mundial está numa encruzilhada. A economia global impõe demandas conflitantes sobre os 1.500 milhões
de hectares cultivados. Não apenas se
exige que a terra agricultável produza alimento suficiente para uma população em
crescimento, como também que forneça
biocombustíveis, e que o faça de modo
ambientalmente correto, preservando a biodiversidade, diminuindo a emissão de
gases de efeito estufa e ao mesmo tempo
garantindo aos agricultores uma atividade economicamente viável.
Essas pressões desencadeiam uma crise
no sistema de produção de alimento em
escala planetária sem precedentes: a crise já se manifesta nos protestos contra a
escassez de alimentos em muitos países
da Ásia e da África. Afinal, 33 deles estão
à mercê da instabilidade social devido à
carência e ao preço dos alimentos. Tal cri-
se, que ameaça a segurança alimentar de
milhões de indivíduos, resulta diretamente de um modelo de agricultura industrial,
que não só depende perigosamente dos
hidrocarbonetos como também se converteu numa das maiores forças entrópicas
da biosfera. As crescentes pressões sobre
a área agrícola em retração estão solapando a capacidade de a natureza suprir as
demandas de alimentos, de fibras e de energia para a humanidade. E o impasse decorre do fato de o contingente humano depender dos serviços ecológicos (ciclos de
água, agentes polinizadores, solos férteis,
clima local benevolente etc.) que a agricultura intensiva continuamente empurra para
além de seus limites.
Antes mesmo do final da primeira década
do século 21, a humanidade conscientizase de que o modelo industrial capitalista
de agricultura dependente do petróleo já
não é capaz de garantir o suprimento de
alimentos. O desafio imediato de nossa ge-
foto: Luc Legay
AGRICULTURA SUSTENTÁVEL:
ração é iniciar a transição nos sistemas de
produção de alimentos para que eles não
dependam mais do petróleo.
SEGURANÇA ALIMENTAR
Os preços inflacionários do petróleo inevitavelmente incrementam os custos de
produção; os preços dos alimentos chegaram a tal ponto que um dólar hoje compra 30% menos produtos que há um ano.
Na Nigéria, uma pessoa gasta 73% de seus
rendimentos em alimentos; no Vietnã,
65%; e na Indonésia, 50%. Essa situação
agudiza-se rapidamente na medida em que
a terra agrícola é destinada à produção de
biocombustíveis e que as alterações climáticas reduzem a produtividade agrícola via secas ou inundações. Expandir o
contingente de terras agricultáveis aos biocombustíveis ou aos transgênicos – que
já alcançam mais de 120 milhões de hectares – exacerbará os impactos ecológicos
das monoculturas, que continuamente
degradam os ciclos da natureza.
Além disso, a agricultura industrial atualmente contribui com mais de 1/3 das emissões globais dos gases de efeito estufa, em
especial o metano e os óxidos nitrosos.
Continuar com esse processo degradante
promovido pelo sistema econômico neoliberal não é uma opção viável nem ecologicamente honesta, pois não reflete as externalidades ambientais. O desafio imediato de
nossa geração é iniciar a transição nos sistemas de produção de alimentos para que
eles não dependam mais do petróleo
AGRICULTURA SUSTENTÁVEL
E SOBERANIA ALIMENTAR
Necessitamos de um paradigma alternativo de desenvolvimento agrícola que propicie formas de agricultura ecológica, sustentável e socialmente justa. Redesenhar
o sistema de produção de alimentos a formas mais equitativas e viáveis para os
agricultores e consumidores requererá
mudanças radicais nas forças políticas e
econômicas que determinam o que produzir, como, onde e para quem. O livre
comércio sem controle social é o principal mecanismo que desaloja os agricultores de suas terras e vem a ser o principal
obstáculo à garantia do desenvolvimento e da segurança alimentar regionais. Somente desafiando o controle que as empresas multinacionais exercem sobre o sistema de produção de alimentos e o modelo agro-exportador patrocinado pelos go-
foto:Gustavo Ferri
dólar compra
“Um
hoje 30% menos
alimentos do que
há um ano.
”
vernos neoliberais é que se poderá deter
a espiral de pobreza, fome, migração rural
e degradação ambiental.
O conceito de soberania alimentar – como
o promovido pelo movimento mundial de
pequenos agricultores, a Via Campesina –
constitui a única alternativa viável ao sistema alimentar em colapso, totalmente falho ao postular que o comércio livre internacional seria a chave para solucionar o
problema alimentar em escala mundial. A
soberania alimentar enfatiza os circuitos
locais de produção-consumo e as ações
organizadas para se ter aceso à terra, à
água, à agrobiodiversidade etc., recursoschave que as comunidades rurais devem
controlar para poderem produzir alimentos
com métodos agroecológicos.
AGRICULTORES E
CONSUMIDORES:
ALIANÇA ESTRATÉGICA
Não há dúvida de que uma aliança entre agricultores e consumidores é de importância
estratégica. Ao mesmo tempo em que os consumidores devem interferir na cadeia alimentar ao consumirem menos proteína animal,
também precisam se conscientizar de que sua
qualidade de vida está intimamente associada ao tipo de agricultura praticada nos cinturões verdes que circundam povoados e cidades. E isso não ocorre apenas pelo tipo e
pela qualidade dos cultivos ali produzidos,
mas igualmente pelos serviços ambientais,
como a qualidade da água, o microclima e a
conservação da biodiversidade etc. que essa
agricultura multifuncional gera.
Porém, a multifuncionalidade somente transparece quando a paisagem é dominada por
centenas de pequenas propriedades biodiversas que, como demonstram os estudos,
podem produzir entre duas a dez vezes mais
por unidade de área que as propriedades
em escala industrial. Nos Estados Unidos,
a agricultura sustentável – em sua maioria
garantida por pequenos e por médios agricultores – gera uma produção total maior
que os monocultivos extensivos, ainda sendo capaz de reduzir a erosão e conservando
mais a biodiversidade. As comunidades no
entorno das pequenas propriedades apresentam menos problemas sociais (alcoolismo, dependência de drogas, violência familiar, etc.) e exibem economias mais fortes que
aquelas cercadas por propriedades grandes
e mecanizadas.
No estado de São Paulo, as cidades cercadas por grandes plantações de cana-de-açúcar são mais quentes que as rodeadas por
propriedades agrícolas médias e diversificadas. Portanto, deveria ser óbvio para um consumidor urbano que comer constitui a um só
tempo um ato ecológico e político. Ao comprar alimentos em mercados locais ou em feiras de agricultores vota-se por um modelo
de agricultura adequada à era pós-petróleo.
Por outro lado, ao comprar em grandes cadeias de supermercados perpetua-se o modelo agrícola não-sustentável.
A escala e a urgência do desafio que a humanidade enfrenta são sem precedentes, e
as providências a serem tomadas são de
ordens ambiental e social, politicamente
exeqüíveis. Erradicar a pobreza e a fome
mundiais exige um investimento anual de,
aproximadamente, 50 bilhões de dólares –
uma migalha se comparado ao orçamento
militar mundial que abocanha mais de um
trilhão de dólares por ano. A velocidade com
que se deve implementar a mudança deve
ser urgente. No entanto, será que existe vontade política para transformar radical e velozmente o sistema nutricional, antes que a
fome e a insegurança alimentar alcancem
proporções planetárias e irreversíveis? ■
Miguel A. Altieri – Professor da University of California, Berkeley e da Sociedad Científica Latinoamericana de Agroecología
(SOCLA). Artigo publicado originalmente em
www.cadtm.org e nos sítios EcoPortal.net,
http://ecoportal.net/content/view/full/78323 e
EcoDebate (12 Maio 2008).
Cidadania&MeioAmbiente
25
O BIORRISCO DAS TECNOLOGIAS
TRAITOR E TERMINATOR
Fotos Rodrigo Baleia/Greenpeace
por Revista Consciência.Net
A tecnologia de restrição no uso genético cria um mecanismo
de exclusão tecnológica e submete a humanidade
aos imperativos de lucro das multinacionais da transgenia.
CONHEÇA O PERIGO QUE NOS AMEAÇA.
D
esde 1994, os transgênicos apareceram à venda nas prateleiras de
supermercado dos EUA. Introduzidos em nossa alimentação sem consulta prévia ou estudos que verifiquem seus potenciais riscos a médio e longo prazos, convivemos com tecnologias cada vez mais avançadas e que, hoje, não se restringem a substâncias químicas e artefatos mecânicos. A tecnologia de hoje utiliza seres vivos como matéria-prima e instrumento. A questão é: em
prol de quem elas estão sendo criadas?
26
TRAITOR e TERMINATOR são definições para
tecnologias empregadas na manipulação
genética de organismos vivos. Ambas as
palavras parecem ter saído de uma história
de terror. Afinal, a transferência de genes
entre espécies distintas é alusiva à história de Mary Shelley, onde, no final, a zelada criatura destrói seu criador. Não considerando a tentativa de construção moral –
empregada pela autora de Frankenstein
como barreira ao desenvolvimento tecnológico –, devemos constar que o uso da
transgenia na medicina e em cultivares comerciais ou experimentais pelo mundo tem
sido regulado por instrumentos legais como
o Protocolo de Cartagena, do qual o Brasil
é um dos 131 signatários. Alguns países
como Argentina, Chile, Uruguai, Canadá,
Estados Unidos, Austrália e Rússia ainda
não assinaram o protocolo.
O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO
O Protocolo de Cartagena é o primeiro e
único acordo internacional existente na
Convenção sobre Diversidade
Biológica (CDB), sendo adotado
em 2000, para entrar em vigor apenas em 2002. Desde então, ele
rege a transferência, o manejo, o
uso e a comercialização de Organismos Geneticamente Modificados (OGM/transgênicos). Essas
questões importantes no âmbito
nacional e internacional serão discutidas na 3a Reunião das Partes
do Protocolo de Cartagena
(MOP-3) em Curitiba, a partir do
dia 13 de março.
gentina, a empresa teve sua soja
introduzida em plantações no Rio
Grande do Sul. O material modificado disseminou-se, contaminando 80% da área semeada no estado. Naquela época, os produtores levantavam a hipótese de que
a soja modificada também tivesse se espalhado para outros estados. A propagação da soja contrabandeada caracterizava-se
como fato consumado, o que permitiu em 2004, ao governo federal, liberar para comercialização a
soja ilegal.
A conhecida polêmica entre entidades civis, movimentos amEssa situação fez as entidades ambientalistas versus as empresas
bientalistas afirmarem que liberar
de biotecnologia gira em torno
a comercialização da soja transdos conflitos criados por integênica desencadearia uma série
resses desiguais, como as leis
de outras medidas favoráveis às
de comércio e o regime de biosempresas de biotecnologia. Dessegurança internacional. Concita maneira, a Monsanto conseliar tais interesses, seguindo-se
guiu que suas pesquisas em bioo Princípio da Precaução propostecnologia e comercialização da
to formalmente na Conferência
sua soja, milho e algodão fossem
Rio-92 e reiterado constanteautorizadas. A CTNBio, responA soja produzida via tecnologia GURT obriga o agricultor a
mente pelas organizações ambisável pela regulação das pesquicomprar sementes a cada safra, já que abole a possibilidade
entalistas, demonstra-se impossas e do comércio de transgênisível pois, até hoje, não é recocos no país, concedeu autorizanhecido, como norma jurídica, apenas um
O T de transgênico deveria estar nas embação para a Monsanto, em nota pública.
princípio não universalmente aplicado.
lagens com produtos que contêm soja transgênica. Você já viu algum estampado?
AS EXTERMINADORAS
A utilização do Princípio da Precaução fere
DO FUTURO
interesses comerciais, englobando áreas
TRANSGÊNICOS:
De origem inglesa, as palavras TRAITOR e
como saúde, meio ambiente, agricultura, coA IMPORTÂNCIA DO BRASIL
TERMINATOR referem-se a traços (de traits
municação e do direito, pois parte do presEm períodos de COP8/MOP3 a discussão
para expressão genética) e exterminador
suposto da ‘Incerteza científica’ quanto à
aumenta e ambientalistas declaram preo(de Terminator). Quando nos referimos às
implementação e uso de novas tecnologicupação com relação à posição do Brasil,
sementes Terminator logo vem à cabeça
as. O desafio em torno da Biossegurança é
no que diz respeito à transgenia. Por ser o
o filme de ficção estrelado por Arnold
justamente o reconhecimento da ocorrênsegundo maior produtor de soja no munSchwarzenegger. Dividido em três partes,
cia de danos oriundos do emprego de nodo, na sua maioria convencional, os olhos
a saga narra a história de uma família tenvas tecnologias e para isso faz-se necessáde países produtores de transgênicos
tando impedir que o futuro seja devastario uma criteriosa avaliação de risco.
como Canadá, Estados Unidos e Argentido pelas máquinas. O Exterminador do
na e de empresas transnacionais que faFuturo vivido por Schwarzenegger volta
A Comissão Técnica Nacional de Biossegubricam sementes modificadas, como a
ao passado para proteger o futuro sobrerança (CTNBio), que desde março de 2005,
Monsanto e Delta & Pine, voltam-se para
vivente e líder da resistência, John
através da Lei de Biossegurança (Lei 11.105),
o Brasil. O país é considerado estratégico
Connor, que tenta no presente salvar o
na difusão global dos transgênicos, tais
mundo que um dia será dominado por
regula o uso de OGM´s no país, tem como
multinacionais são as grandes propagamáquinas altamente desenvolvidas pelo
diretrizes o estímulo ao avanço científico na
doras de seus “benefícios” e uma posicomputador Skynet.
área de biossegurança e biotecnologia, a proção positiva do Brasil, com relação aos
teção à vida e à saúde humana, animal e vetransgênicos, pode ajudá-las na impleNão é à toa que o termo tenha sido colocagetal e a observância do Princípio da Precaumentação de seus produtos.
do na semente produzida por nossos vizição para a proteção do meio ambiente
nhos da América do Norte. Em 1998, a mul(art. 1o). Mas segundo o atual presidente da
Desde 1996, a Monsanto está em destatinacional Delta & Pine obteve do DeparComissão, Walter Colli, o Princípio da Preque na briga pela liberalização dos transtamento de Agricultura dos EUA (USDA)
caução ainda deverá entrar num consenso e
gênicos. De forma ilegal, permitindo o cono direito de patente sobre o ‘Controle de
a partir dele a Comissão continuará seu tratrabando de suas sementes através da ArExpressão Genética Vegetal’ das sementes
balho (O Estado de SP, 17/02/2006).
Cidadania&MeioAmbiente
27
“
Em nosso país, apenas 10
transnacionais têm o controle
monopólico das principais atividades
agrícolas do país.
”
que se comportam como suicidas, ao terem determinados traços de expressão genética ativados. A empresa do ramo de sementes, transgênicos e agrotóxicos é uma
das mais expressivas na área de sementes
geneticamente modificadas e híbridas.
O termo correto para tais tecnologias é
Tecnologia de Restrição no Uso Genético, em inglês Genectic Use
Restriction Technology (GURT’s). As tecnologias GURT’s dependem da ativação
ou desativação de genes através de
indutores químicos ou pela multiplicação
de organismos estéreis, já com seus genes de esterilização ativados. Dentro das
GURT’s existem duas tecnologias distintas: a T-GURT e a V- GURT (ver quadro).
A tecnologia Terminator confere às empresas que obtiverem o uso de sua patente um benefício econômico inigualável, pois a partir dessas sementes é criado um mecanismo de exclusão tecnológica: O agricultor seria obrigado a comprar
sementes a cada safra, o replantio seria
abolido, e não por vias contratuais como
é atualmente, mas pela impossibilidade
genética de replantio.
TECNOLOGIA DE RESTRIÇÃO NO USO GENÉTICO
TRAITOR / T-GURT
Do inglês trait variety genetic use restriction technologies, onde o T refere-se a
traits (traços) e consiste na transferência de genes que conferem determinadas
características (traços) à semente e suas respectivas plantas. Tais particularidades podem ser de esterilização ou não, e ocorrem mediante a aplicação de
determinado produto químico. As características podem conferir o crescimento,
o nascimento de frutos etc. Tal tecnologia também é conhecida como switch
technologies, ao pé da letra, tecnologias de interruptor, nas quais as plantas
são ligadas por interruptores químicos.
TERMINATOR / V-GURT
Do inglês variety genetic use restriction technologies, onde o V refere-se a variety
(variedade) e consiste na transferência de genes que tornam totalmente estéreis
as sementes da 2.ª geração e, por isso, são denominadas sementes suicidas e
/ou estéreis. A tecnologia V-GURT, vulgo Terminator, representa o último grau
no processo de esterilização das gerações iniciado pela hibridação, onde por
meio do melhoramento genético – diferente de transgenia – as gerações de
sementes posteriores não atingem o mesmo grau de excelência da primeira
geração, tendo algumas comportamento inclusive estéril.
CORPORAÇÕES MAIS ENVOLVIDAS COM AS TECNOLOGIAS GURT’S:
* Monsanto
* Bayer
* Novartis-Syngenta
* Du Pont
* Advanta
* Aventis
28
Devido a essa questão que fere o direito
dos agricultores em perpetuar suas plantações sem a intromissão de empresas
multinacionais e também pelo fato de que
a tecnologia Terminator não tem comprovação segura quanto aos seus riscos de
disseminação, contaminação e na saúde, é
criada uma moratória, em 2000, com relação a sua venda, uso, patenteamento, licenciamento e registro como OGM. Entendendo o perigo que a tecnologia representa, foi a CDB de 2000 quem primeiro requeriu aos governos de todo o mundo a não
comercialização e o não plantio – inclusive experimental – dessas sementes.
Segundo o economista David Hathaway
as tecnologias Traitor e Terminator foram
criadas para fortalecer a proteção sobre o
direito de propriedade das empresas que
as fabricam, assegurado que os agricultores que as utilizem não as replantem,
nem a concorrência as copiem. As tecnologias Traitor também conferem benefícios econômicos às multinacionais ao comercializar sementes em conjunto a outros produtos fornecidos pela empresa,
como o caso da soja Round-up Ready da
Monsanto, resistente ao herbicida
trole algum sobre a forma
como são produzidos alimentos e remédios; como
serão distribuídos, comercializados ou se são benéficos ou não à sociedade. Para o MST, o Brasil já
sofre este risco, pois apenas 10 transnacionais têm
o controle monopólico
das principais atividades
agrícolas do país. São
elas: Bunge, Cargill, Monsanto, Nestlé, Danone,
Basf, ADM, Bayer, Sygenta e Norvartis.
Round-up fabricado por ela, e do milho
Starlink, resistente ao herbicida fabricado pela Aventis.
O BLOCO
DAS BIOTECNOLOGIAS
Desde 1996 é possível verificar a fusão e
incorporação de empresas do ramo farmacêutico, de agroquímicos, sementes e
alimentos. Segundo Gabriel Fernandes, um
dos dirigentes da campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, sozinha a Monsanto domina 88% do mercado de sementes transgênicas e em relação ao mercado
de sementes mundial, 10 empresas concentram 50% do mercado. Conhecidas
mundialmente como empresas do ramo de
cereais e agroquímicos, agora Cargill,
Novartis, Du Pont, Pioneer, Quaker Oats
Co., Delta & Pine colocam suas fichas no
monopólio de sementes.
Já empresas como Bayer, Basf, CibaGeygi, Syngenta-Novartis, Pfizer, Pharmacia permanecem enfocadas nas tecnologias de laboratório e suas possíveis patentes para uso medicinal. Segundo o jornal inglês The Independent, os recursos
biológicos do continente africano têm sido
explorados por uma dezena de multinacionais do Oeste, sem que os benefícios
conquistados a partir de seus derivados
sejam repassados aos países ou comunidades de origem. Para Beth Burroows, do
instituto norte-americano Edmonds, um
dos responsáveis pelo relatório que demonstra a ação dessas empresas no continente, “é uma nova forma de pilhagem
colonial, o problema é que vivemos num
mundo em que as empresas apropriam-se
do que querem e onde querem e depois
nos passam a idéia de que assim fazem
para o bem da humanidade”.
Para o Movimento dos Trabalhadores sem
Terra (MST), entidades ambientalistas
como o Greenpeace e entidades de defesa do consumidor como o Instituto de
Defesa do Consumidor -IDEC, a fusão de
empresas de setores tão diversos e tão
primordiais, como alimentos, sementes e
medicamentos, representa um perigo para
a sociedade, que em breve não terá con-
de empresas
“deA fusão
alimentos, sementes
e medicamentos
representa um perigo:
a sociedade não terá
controle sobre sua
produção.
”
Recentemente, a empresa
Monsanto alegou não ter
interesse em usar a biotecnologia Terminator, mas
nada se referiu à tecnologia T-GURT da soja
Round-up Ready, produzida pela transnacional pertencente ao
grupo americano Elly Lilly – a maior produtora de defensivos e drogas farmacêuticas, do planeta. Mesmo vivenciando
uma briga por patentes e royalties em Argentina, Brasil, EUA e Canadá, a empresa
de biotecnologia continua a passar a idéia
de que seu trabalho é apenas em benefício da humanidade.
O perigo das sementes suicidas Terminator e suas irmãs Traitor é sua contaminação do meio ambiente: por se tratarem
de organismos vivos passivos da reprodução, a humanidade não teria tamanho
controle. A disseminação das sementes
transgênicas é uma ameaça diferente da
vivida pelo personagem de ficção John
Connor, mas não tão diferente se vista
pela perspectiva do computador Skynet,
que fora de controle estava destruindo a
humanidade. Infelizmente, não teremos
um herói como Schwarzenegger voltando ao passado para salvar o que restaria
da humanidade sendo dominada pela biotecnologia, hoje praticamente monopolizada por empresas que se dizem humanitárias, mas que, ao fim de todo o balanço, entregam sua alma às contas de seus
acionistas.
■
Reportagem especial da Editoria de Ecologia da
Revista Consciência.Net, março de 2006. http://
www.consciencia.net/2006/0309-biorrisco.html
Contato:[email protected]
Cidadania&MeioAmbiente
29
Foto:Timsnell
VEGETAIS
DIETA
PARA
O PLANETA
SUPERPOVOADO
O aumento da renda
pessoal em escala global
repercute no crescente
apetite pela dieta à base
de carne. Mas essa escalada pode ter sérias conseqüências para a saúde
do planeta e da própria
humanidade. Especialistas discutem a questão e
indicam que para a Terra
superpovoada a solução
será a dieta vegetal.
por Moises Velasquez-Manoff
N
o primeiro trimestre de 2008, os
preços dos grãos sofreram uma
escalada nunca vista em 30 anos.
Em média, os preços dos alimentos estão
54% mais altos do que em 2007. Os grãos
subiram 92%. Turbas famintas em busca
da subsistência revoltaram-se no Haiti, no
México e em Bangladesh. Os especialistas apontam uma “tempestuosa conjunção” de especulação, seca na Austrália e
desvio de grãos para a fabricação de biocombustíveis como responsáveis pela crise mundial de alimento. No entanto, para
outros, a escalada do preço dos grãos é
apenas a concretizacão de uma previsão
há muito anunciada: a crescente população mundial tem maior poder de compra, e
os novos consumidores estão se banqueteando com mais carne! Por isso, boa parte da crescente produção agrícola mundial é destinada ao consumo animal.
Embora os estoques de grãos sejam mais
do que suficientes para alimentar a população do planeta, a atual escalada de preços revela que essa provisão não garante
que os mais pobres não passem fome. Em
breve, chegará o dia em que não haverá
30
grãos em quantidade suficiente à alimentação humana e à ração animal – ao menos
nos EUA, aos atuais índices de consumo.
Somem-se a isso os impactos ambientais
da atual produção industrial de carne e não
se pode deixar de pensar se, em 2050, com
uma populacão mundial prevista para 9,5
bilhões, não estaremos todos condenados
ao vegetarianismo.
Talvez nem todos, alegam os especialistas.
Mesmo com as inovações tecnológicas alimentares, provavelmente comeremos muito
menos carne. E, quem sabe, os habitantes da
África subsaariana comerão um pouco mais.
Um terço da terra cultivável do mundo é destinada à produção de alimento para gado e
aves de corte, e aproximadamente 36% da
produção mundial de grãos viram ração animal. O problema, dizem os especialistas, reside na ineficiência da conversão do grão em
carne. Para se produzir meio quilo de carne
são necessários sete quilos e meio de grão.
Para a carne de porco, a relação é de um para
três; e para o frango, de um para dois. (Peixes
de sangue frio, que não precisam de energia
para manter temperatura corporal, são criados com maior eficiência.)
O INSUSTENTÁVEL MODELO AMERICANO
“Os grãos usados para alimentar gado e
não pessoas estão exercendo enorme pressão sobre os estoques”, informa Katarina
Wahlberg, coordenadora do programa de
políticas econômicas e sociais do Global
Policy Forum, ONG sediada na cidade de
Nova Iorque.
“Os atuais níveis de consumo são insustentáveis”. O americano médio consome
aproximadamente 140 kg de carne por ano,
informa a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
Cada um deles consome 885 kg/ano de
grãos, diz Lester Brown, autor de “Plan B
3.0: Mobilizing to Save Civilization”. E apenas 110 kg de grão são consumidos na
forma de pão, massas e cereais. O restante é ingerido via produtos animais.
Se todos os habitantes do planeta consumissem grãos na escala dos EUA, sua
atual safra mundial de dois bilhões de
toneladas de grãos alimentaria apenas 2,5
bilhões de indivíduos – dois quintos da
população mundial! Se o mundo comesse no padrão italiano – 400 kg/ano de
grão por pessoa – teríamos como alimentar cinco cinco bilhões de pessoas. E se todos nós adotássemos o regime alimentar vegetariano, típico dos
habitantes da Índia – 5 kg/
ano de carne por pessoa
ou 200 kg de grão –, a atual produção mundial de
grãos poderia alimentar 10
bilhões de indivíduos.
rápido para cada indivíduo
reduzir sua pegada de carbono. “Essa providência
pode ser tomada imediatamente. É algo que poderíamos fazer imediatamente.
Não precisamos inventar
nada renovável.”
Para Lester Brown, as comparações acima têm sérias
implicações. Mesmo se
Foto:Fiona MacGinty
desconsideramos os aspectos morais da questão,
não podemos esquecer que pessoas famintas conduzem ao desassossego social – fato de conseqüências para todos.
“Quantos estados desabarão antes do fracasso global da civilização?”, interroga
Brown. “Ninguém sabe a resposta, porque ninguém jamais enfrentou tal realidade. As tendências de consumo mundial
indicam maior – e não menor – consumo
de carne. De 1970 a 2005, a produção mundial de carne nos países em desenvolvimento mais que quintuplicou: de 30 milhões para 162 de milhões de toneladas,
segundo a FAO. Se a tendência continuar, a demanda global por carne aumentará
pela metade novamente antes de 2030.
Um terço da terra
“cultivável
no mundo
Por volta de 2050, a produção mundial de
carne mais do que dobrará a do nível de
2000: alcançará 513 milhões de toneladas/
ano. O aumento do poder de compra em
escala mundial acelera o apetite por carne. Segundo o relatório de 2003 da National Academy of Sciences, aproximadamente 1,1 bilhão de novos consumidores
– pessoas com significativa renda disponível – emergiu em décadas recentes. Um
contingente que se soma aos 850 milhões
de consumidores dos países ricos. Todos
querem comer carne.
E, como os novos consumidores aumentaram esse consumo de carne, também
deixaram de ser menos saudáveis. Cerca
de 1,6 bilhões de adultos ao redor do
mundo apresentam sobrepeso (400 milhões são obesos), informa a Organização Mundial de Saúde (OMS). Infelizmente, cerca de 800 milhões sofrem desnutrição crônica. “O mundo não precisa ter
famintos”, diz a médica Polly Walkert,
é destinada à
produção de
alimento para gado
e aves de corte, e
cerca de 36% da
produção mundial
de grãos vira ração
animal.
”
diretora associada do Center for a Livable Future, do Johns Hopkins Bloomberg
School of Public Health, em Baltimore.
“Trata-se de uma questão de justiça que
deveria incomodar a todos.”
A CARNE E O IMPACTO AMBIENTAL
Mesmo abstraindo a questão da escassez
de grãos, muitas vozes afirmam que o impacto ambiental é argumento suficiente
para repensar a produção animal em escala industrial. A criação de animais para alimento gera 18% dos gases estufa na forma de metano, mais que todo o setor de
transporte. “Mudar a dieta humana é essencial para controlar a mudança climática”, afirma Peter Singer, professor de Bioética da Universidade de Princeton, em
New Jersey. Também é um modo simples e
O relatório “Livestock
Long Shadow”, da ONU,
de 2006, concluiu que a
produção animal, como é
atualmente praticada, apresenta uma gama de ameaças a exigir atenção imediata: da degradação de terra à perda de biodiversidade. Um relatório subseqüente da Pew Commission on Industrial Farm Animal Production ecoou aquelas conclusões, acrescentando que o uso rotineiro de antibióticos
na criação animal aumenta o risco de se
criarem os animais resistentes aos antibióticos. Até mesmo os oceanos são afetados pela produção de animais de corte.
Em águas litorâneas, as zonas mortas causadas por despejos de nutrientes – boa
parte proveniente de dejetos animais – tornam-se um problema crônico. E uma cota
crescente da pesca mundial agora é transformada em farinha e óleo de peixe para
ser adicionada à ração animal.
Os altos preços dos alimentos tornaram a
pesca mais lucrativa, afirma H. Bruce Franklin, autor de “The Most Important Fish in
the Sea: Menhaden and America.” Os peixes são freqüentemente vitais para seus
ecossistemas, já que devoram volumosa
quantidade de microorganismos e servem
de alimento para os maiores. (O menhaden
comum médio, com 20 cm de comprimento, filtra de quatro a sete galões de água
do mar por minuto.) A exaustão dessas criaturas pode provocar o desequilíbrio em
um ecossistema. “Os oceanos não podem
mais agüentar esse tipo de pressão”, afirma Bruce Franklin.
AS
PASTAGENS E OS ECOSSISTEMAS
Muitos estudiosos observam que os animais de corte não precisam competir com
os seres humanos por grãos, nem a atividade de criação tem necessariamente de ser
destrutiva. Enormes parcelas de terra ao
redor do mundo são próprias para pastagem. Os ruminantes – animais que digerem
capim e plantas que o homem não come –
Cidadania&MeioAmbiente
31
animal, como é atualmente praticada, apresenta
“ A produção
uma gama de ameaças a exigir atenção imediata:
da degradação de terra à perda de biodiversidade.
”
convertem esses vegetais em carne, alimento para os seres humanos. Se a criação de
gado mimetizar as grandes migrações do
bisão nas pradarias americanas – áreas naturais comuns a mitos ecossistemas préexistentes à instalação da pecuária –, a
atividade pode melhorar o ecossistema em
lugar de degradá-lo, afirma John Ikerd, professor emérito de Economia Agrícola da
Universidade de Missouri, no estado de
Columbia. “Contamos com um tremendo
potencial para produzir muito mais proteína, e conseguir isso da maneira correta,
sem danificar o solo”, diz Ikerd.
Em muitas regiões, como grandes extensões da África, os animais garantem a proteína necessária que, caso contrário, seria
indisponível. Lá, por exemplo, a criação de
gado deveria aumentar, informa Pierre
Gerber, co-autor do relatório “Livestock’s
Long Shadow”. As preocupações ambien-
tais são importantes, diz ele, mas igualmente relevante é o bem-estar humano. “Não
se deve parar a produção de proteína animal devido a questões ambientais. Na verdade, é a questão ambiental que deve equacionar a atividade produtiva.”
■
Moises Velasquez-Manoff – Artigo publicado no Christian Science Monitor (18/7/
2008) e em www.globalpolicy.org com o título Diet for a More-Crowded Planet: Plants.
A PECUÁRIA E A DEVASTAÇÃO NA AMAZÔNIA
■ Enquanto isso, no Sudeste, ocorreu o inverso: a área de
pastagem diminuiu 15% e o rebanho encolheu 3% no período 1996-2006, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) compilados no Anuário da Pecuária Brasileira (ANUALPEC), do Instituto FNP (www.fnp.com.br).
■ O aumento das exportações de carne, nos últimos anos,
deixou um “vácuo” de abastecimento no mercado interno,
que está sendo suprido, ao menos parcialmente, com carne
produzida na Amazônia. As exportações nacionais do setor
aumentaram 126% entre 2002 e 2006. “Como o Norte não
tem ainda condições de exportar, o Sudeste exporta e a gente
preenche a lacuna”, diz o diretor de pesquisa ambiental do
Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental
do Pará (Idesp), Jonas da Veiga.
■ Segundo levantamento realizado pelo Instituto do Homem
e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apenas 5% da carne produzida em áreas de desmatamento da Amazônia são
exportadas. E dos 95% que ficam no país, quase 70% são
enviados ao Sudeste. Só 12% viram alimento dentro da própria Amazônia Legal.
■ A pecuária é o setor produtivo que mais influencia no desmatamento da Amazônia. Cientistas e ambientalistas estimam que mais de 70% das derrubadas florestais são feitas
para a abertura de pastagens. Os pesquisadores do Imazon
calculam que 253 mil km2 na Amazônia foram ocupados por
pastos, entre 1990 e 2006 – uma área maior do que o Piauí.
O rebanho da região aumentou 180% no mesmo período,
passando de 26 milhões para 73 milhões de cabeças, o equivalente a 36% do total nacional. Entre 2000 e 2005, 27 frigoríficos instalaram-se na região.
“A Amazônia abriu espaço para a pecuária crescer com produção barata, caso contrário o preço da carne no mercado
interno teria aumentado muito”, avalia o pesquisador Paulo
Barreto, que coordenou a pesquisa. A grande vantagem da
região é o preço baixo – ou quase nulo – da terra. “Fazendeiros que se apossam de terras públicas ganham mais do que
o normal, pois não compraram a terra, nem pagam aluguel
pelo seu uso”, escrevem os autores.
■
■ O consultor José Vicente Ferraz, do Instituto FNP, vê a expansão da pecuária na Amazônia como um “fenômeno natural”
associado ao perfil “nômade” do setor, que está sempre em
busca das terras mais baratas para produzir. “Como se costuma dizer, não existe boi barato em cima de terra cara”, diz. “As
terras mais baratas hoje estão no Norte e Nordeste. O pecuarista
vende um hectare aqui (no Sudeste) e compra 10 hectares lá.”
Fonte: Herton Escobar, de O Estado de S.Paulo (22/10/2008).
32
foto:BrennanMercado
A reunião da FAO para tratar da crise alimentar
global destacou que o problema agrava-se pela
concentração da distribuição de alimentos
e de matérias-primas, e à produção em mãos
de poucas e poderosas empresas de agronegócio.
Assim, os pobres e as crianças
são os que mais sofrem com a crise alimentar.
por Miguel Mora
C
inqüenta chefes de Estado e de Go
verno, 150 ministros de Agricultu
ra e cerca de 20 responsáveis por
instituições supranacionais reuniram-se
no início de junho, na sede da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), em Roma, para
resolverem a crise alimentar global que
ameaça milhões de pessoas.
O rascunho das conclusões da reunião,
ao qual os países estabelecem os últimos
retoques por grupos regionais, desenha
um futuro “de imenso sofrimento humano, assim como de descontentamento
social e de instabilidade política, que ameaçam colocar em perigo os desenvolvimentos econômico e social.”
FAMÉLICOS
E OBESOS
Um dado facilitado pela FAO resume graficamente a situação:
% do lado infeliz – 820 milhões de cidadãos passam fome; entre eles, 178 milhões de crianças desnutridas.
% do lado afortunado – um bilhão de
seres humanos sofre de sobrepeso; desses, 300 milhões já se tornaram obesos.
No relatório apresentado à reunião, a FAO
admite que os dados da fome não variaram desde 1990, o que leva à certeza de
que as políticas desenvolvidas até agora
foram um fracasso. O estudo atribui a crise à mudança climática, à escassez de cereais (a produção está no mesmo patamar
desde 1983), ao aumento da demanda na
China e na Índia, ao preço do petróleo, à
elaboração de biocombustíveis, à especulação que domina os mercados de futuros de sementes e matérias-primas e a
uma política agrícola e comercial protecionista e não-solidária.
Há muitos problemas diferentes que, se não
forem resolvidos rapidamente, podem piorar o panorama. Segundo a Oxfam (uma
fundação de caridade internacional com
sede em Oxford, no Reino Unido), se os
países continuarem investindo em biocombustíveis, e não em alimentos para o consumo humano, em 2025 haverá 600 milhões
a mais de esfomeados no mundo.
Um fenômeno recente começa a preocupar
os especialistas: junto à desnutrição que
grassa em uma parte do mundo, a má alimentação começa a causar estragos na
outra metade. No México, o número de pessoas obesas e com sobrepeso duplicou
entre a população mais pobre, entre 1988 e
1998. O percentual atinge, hoje, 60%.
“VAMPIROS
MUNDIAIS” DOS ALIMENTOS
A culpa, destacam diversas Organizações
não-governamentais (ONGs) que participam
da reunião, não é tanto dos países, mas de
um modelo liberal em que mandam as multinacionais e os intermediários. Segundo Antonio Onorati, da Crocevia, “...os preços agrícolas são decididos pelos grandes distribuidores, cadeias como Auchan ou WalMart que compram diretamente dos produtores e ganham a fatia maior do preço final.”
Marco de Ponte, secretário-geral italiano
da “Ajuda e Ação” tornou pública a lista
das cinco empresas que controlam mais de
80% do mercado de cereais, com os lucros
de 2007: Cargill (36%), Archer Daniels
Midland (67%), ConAgra (30%), Bunge
(49%) e Dreyfuss (19% em 2006).
Outro setor em expansão é o dos produtores de sementes, herbicidas e pesticidas::
Monsanto, Bayer, Dupont, Basf, Dow,
Potashcorp. “A globalização alterou a relação comercial da agricultura”, explica
Alberto López, representante espanhol na
FAO. “O capital que antes especulava em
imobiliárias está hoje na compra de futuros
de matérias-primas. A demanda cresceu
muito rapidamente, e é necessário conter o
impacto facilitando a distribuição, a eficácia produtiva e o consumo responsável.”
A FAO propõe soluções a curto, médio e
longo prazos: mais dinheiro, mais ajuda
aos países pobres, um comércio mais justo, melhor coordenação entre as instituições e as ONGs, potencializar a produção
em pequena escala, orientada ao consumo local e regional.
Entretanto, os preços cada vez mais altos dos alimentos agravam o problema
para a parte mais frágil da cadeia – a infância. A organização “Médicos sem
Fronteiras” exige, em Roma, ajuda imediata para as 20 milhões de crianças que
sofrem de desnutrição aguda. “Nas últimas semanas, vimos um aumento brutal
de casos na Etiópia, onde já há 120.000
crianças em situação de emergência médica”, lembra Javier Sancho.
■
Miguel Mora – Artigo publicado em El
País (03/06/08). A tradução é do Cepat.
Publicado pelo IHU On-line, 05/06/2008
[IHU On-line é publicado pelo Instituto
Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São
Leopoldo, no Rio Grande do Sul]. Publicado
no www.ecodebate.com.br em 06/06/08.
Cidadania&MeioAmbiente
Cidadania&MeioAmbiente
33
33
UMAPORTAPARA
ONADA
Buscar reorganizar a produção de
alimentos, primeiramente em
atendimento às carências nacionais,
parece mesmo fora do propósito dos governos que se revezam.
por Mário José de Lima
A
crise energética terminou
por empurrar os preços da
economia de forma a pro
mover uma reorientação
nas estruturas produtivas
na agricultura mundo afora. Chacoalharamse as condições de produção de alimentos
básicos, mudando as expectativas dos negócios futuros e sinalizando a possibilidade de mais uma grave crise a se abater sobre a população mundial. O que devemos
ter em mente é que a situação de hoje põe a
possibilidade de a falta de alimentos atingir
ou, melhor dizendo, ampliar a faixa da população já carente de alimentos. Para uma parcela significativa da população mundial, há
muito tempo as condições de subnutrição
são uma marca de sua realidade.
Segundo estimam as Nações Unidas, das
seis bilhões de pessoas que vivem hoje
no planeta, algo próximo a um bilhão sofre
de fome crônica. Mas esse número é uma
estimativa grosseira, pois negligencia os
que sofrem de deficiências de vitaminas e
de nutrientes e de outras formas de subnutrição. O número total de desnutridos
ou de carentes críticos de nutrientes está,
provavelmente, próximo aos três bilhões –
cerca da metade da humanidade. A severi-
34
dade dessa situação torna-se clara pela
estimativa das Nações Unidas de um ano
atrás: em média, 18.000 crianças morrem,
diariamente, em conseqüência direta ou
indireta da subnutrição.
FOME
NOS
EUA
E MUNDO AFORA
A carência de produção raramente pode
ser tomada como a razão pela qual as pessoas estão famintas. Isso pode ser visto
mais claramente nos Estados Unidos; lá, a
despeito de a produção ser maior do que a
população necessita, a fome permanece
como um sério problema. De acordo com o
Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos, em 2006, 35 milhões de pessoas
viviam em famílias sob condições de insegurança alimentar, incluindo 13 milhões de
crianças. Devido à carência de alimentos,
adultos, vivendo em 12 milhões de famílias, não podiam comer refeições balanceadas e sete milhões de famílias tinham porções menores ou não contavam com uma
ou mais refeições diárias. Em aproximadamente cinco milhões de famílias, as crianças não dispõem de alimento suficiente,
em algum momento durante o ano.
rotina a fome antes desta crise, chama a
atenção para o fato de que, nos países
pobres, não é incomum que grandes provisões e alimentos mal distribuídos existam em meio à disseminada e persistente
fome. Magdoff recorre a dois exemplos
presentes na imprensa mundial, ratificando sua afirmação: primeiramente, um artigo, de pouco tempo atrás, no New York
Times, contando uma história com o título “Pobres na Índia morrem de fome quando trigo em excesso apodrece” (02/12/
2002); o outro, uma manchete no Wall
Street Journal, expressando, em 2004, “Necessidade em meio à abundância, um paradoxo indiano: grande colheita e fome
crescente” (25/06/2004).
Não estamos distantes da situação indicada e até enfrentamos estados mais graves
de subnutrição na realidade brasileira. As
oscilações nas condições de fornecimento
de alimentos no mundo repercutiram em
nosso mercado interno de forma intensa,
empurrando os preços e criando situações
de desabastecimento de produtos básicos.
AGRONEGÓCIO E DÉFICIT ALIMENTAR
Em artigo recente, Fred Magdoff
(Monthly Review, maio, 2008), que diz ser
Eis uma situação inusitada para um país
detentor de gigantescas reservas de re-
cursos naturais e população excedente de
formação recente. A forte expansão das
cidades brasileiras é resultado da intensa
e rápida mecanização pela qual passou a
agricultura brasileira nos últimos trinta
anos. À medida que se promovia a reorganização produtiva que se desdobrou
desde o final dos anos 60, impondo um
novo padrão tecnológico à agricultura,
operaram-se mudanças importantes na
estrutura da propriedade fundiária do país.
dobramentos da fronteira agrícola brasileira,
desde o final dos anos 60, é formada pela
produção de uma das mais valorizadas commodities da atualidade – a soja. A rota de
plantio dessa leguminosa é a da destruição
da Floresta Amazônica. Apoiada nos avanços da tecnologia agronômica e no desenvolvimento de novas variedades, a produção de soja alcança, com elevados níveis de
produtividade, as regiões tropicais.
O
O fortalecimento da agricultura de base
capitalista, apoiada pela mecanização, pelo
uso intenso de adubos químicos e de outros recursos de mesma base no combate
GOVERNO E O AGRONEGÓCIO
A Amazônia experimenta, agora, a intensificação da pressão que se desdobra desde
os anos 60 sobre sua reserva florestal e de
terras, ao tempo que sua população é em-
GALERIA DA FOME
mente nacional: a crise alimentar e as questões do desemprego e do ambiente. Tivesse Sua Excelência centrado suas preocupações a esses três temas, teria encontrado, na pequena e na média produção, um
caminho seguro para a construção de um
quadro de estabilidade e de desenvolvimento sociais. Contudo, buscar reorganizar a produção nacional de alimentos, primeiramente em atendimento às carências
das populações nacionais, parece mesmo
fora do propósito dos governos que se revezam desde os últimos vinte anos. Principalmente ao explicitarem a estratégia nacional de construir uma nova inserção nas
relações internacionais, abandonando o
objetivo de ampliação do mercado nacional.
(da esq. para dir.):
1. Dhaka/India. Foto:Uncultured
2. Escultura anti-pobreza/Coréia. Foto: Kaspian
3. Cebu City/Filipinas. Foto: Zerone Eric Ouano
4. Senegal. Foto: Elrentaplats
5. Menina de rua em São Francisco/EUA.
Foto: Femuruy
6. África. Foto: Breezs Debris
às pragas, mais o uso de sementes geneticamente transformadas, implica a expansão das unidades produtivas e o esmagamento da pequena produção de base familiar. Aliado a isso, ocorre o avanço sobre o controle da cadeia produtiva das
matérias oriundas de produção agrícola e
sobre as estruturas de comercialização.
Associada à formação e ao aprofundamento das relações capitalistas na agricultura, ampliam-se os contingentes de migrantes orientados para as áreas urbanas,
fortalecendo o número das unidades familiares dependentes do mercado para se
abastecerem de alimentos.
Em função das condições de emprego nas
cidades, é nestas parcelas da população
que se encontra o maior déficit alimentar.
São famílias que não conseguem acompanhar o comportamento altista dos preços
dos alimentos.
Por outro lado, parcela importante dos recursos apropriados pela grande empresa
agrícola é orientada à produção de alguma
mercadoria que integre a pauta dos negócios internacionais. Uma faixa importante da
produção que se desenvolveu com os des-
purrada para áreas urbanas a ponto de
assistir ao esvaziamento das regiões agrícolas. Em cerca de duas décadas, a estrutura de distribuição populacional é posta
ao contrário, e mais de 70% da população
alcançam as áreas urbanas. Ampliam-se
as necessidades de abastecimento pelo
mercado sem que existam condições geradoras de emprego e de renda para centenas de milhares de famílias deslocadas.
Ou seja, haverá mais famílias submetidas
à miséria e à subnutrição.
Nesses dias, o Presidente da República
anunciou uma estratégia de luta contra a
crise alimentar. Para ampliar a angústia de
quem vive o flagelo da fome, em sua fala, ele
anunciou que prepara o país para se servir
dos preços altos dos alimentos. O fato de
centrar as medidas governamentais nos níveis de rentabilidade possíveis graças aos
preços elevados deixa de lado os interesses
da população – ou de sua maior parcela. O
grupo presente na reunião presidencial é
esclarecedor: além dos ministros, havia empresários do agronegócio.
O país perde, com a atitude do governo, a
oportunidade de enfrentar três graves problemas da atualidade mundial, e particular-
A busca em “aproveitar” as
condições de rentabilidade
para melhorar a posição nacional nas relações internacionais corresponde a ampliar a base da produção
para atender ao mercado internacional.
A conseqüência de tal estratégia é que, em última instância, estaremos colando os preços internos aos internacionais, como já acontece com as
commodities presentes nas nossas exportações. Ou seja, dados os níveis correntes do poder de compra das populações
nacionais, ou pelo menos a maior parcela
populacional, estaremos contribuindo
para dificultar, ainda mais, o acesso ao
mercado de alimentos.
Essa crença exacerbada no poder do capital esquece as raízes da crise – e seus
matizes – vivenciada pela humanidade
nos dias atuais. Os governos do mundo
laboram no esquecimento das grandes crises, inclusive a que lançou o mundo nos
desastres maiores do século XX; todavia, os brasileiros, notadamente os mais
novos, laboram no esquecimento da história recente das transformações capitalistas no país e dos seus resultados sobre
as populações nacionais.
■
Mario José de Lima é professor de
Economia da PUC. Artigo publicado
originalmente pelo Correio da Cidadania –
www.correiocidadania.com.br – e por
www.ecodebate.com.br em 31/05/2008.
Cidadania&MeioAmbiente
35
36
Cidadania&MeioAmbiente
37
SEGURANÇAHÍDRICA
38
D
urante milênios, a água foi bem comum e direito fundamental até que o modelo consumista e predador
da civilização contemporânea decidiu que apenas os que
podem pagar têm acesso à água. De bem comum a água
tornou-se commodity e instrumento de domínio: quem controla nascentes e mananciais controla a vida!
A privatização das fontes de água em escala mundial é
uma questão crucial a pesar sobre o destino da humanidade. Os colossais interesses privados – com apoio explícito
ou velado dos governantes de plantão – já se apropriam
“legalmente” dos estoques de água via projetos estratégicos cristalizados em barragens, transposições duvidosas,
redirecionamentos de bacias hidrográficas, construção de
hidrovias, privatização de mananciais...
Não bastasse a cobiça do “mercado”, as águas do planeta
também são vítimas de degradação qualitativa via despejos
de rejeitos não tratados que comprometem sua potabilidade. A insegurança hídrica é uma realidade: 1,2 bilhão de
indivíduos não tem água de qualidade para beber e 2,5
bilhões são desprovidos de saneamento básico.
Neste século de hidronegócio e de água virtual, a seiva
da vida também alimenta a indústria da corrupção e da
guerra: grande parte dos conflitos políticos e sociais no
futuro próximo deixará de ter como causa o petróleo e
será provocado pelas disputas em torno da água doce. É
tempo de se dar um basta à exclusão hídrica. A água tem
de voltar a ser de todos.
Henrique Cortez
A QUESTÃO DOS AQÜÍFEROS TRANSFRONTEIRIÇOS
por Henrique Cortez
O
s subterrâneos podem conter até 100
vezes o volume de água doce encontrada na superfície da Terra. Mas eles têm
sido negligenciados no âmbito do direito
internacional, apesar da sua importância
ambiental, social, econômica e, evidentemente, pela sua importância estratégica.
A Assembléia Geral da ONU recebeu, em 27
de outubro de 2008, o projeto de um novo
tratado internacional para salvaguardar essas enormes reservas de águas subterrâneas compartilhadas por mais de um país. O
projeto de convenção sobre aqüíferos transfronteiriços aplica-se a 96% dos estoques
de água doce do planeta, em aqüíferos subterrâneos, a maioria dos quais ultrapassam
as fronteiras nacionais.
Muitos aqüíferos compartilhados estão
sob ameaças ambientais em razão de mudanças climáticas, crescente pressão demográfica, exploração excessiva, poluição
da água e esgotamento de reservas “fósseis”. O projeto de tratado exige que os
estados não prejudiquem os aqüíferos existentes e cooperem para prevenir e controlar a poluição. Preparado ao longo dos últimos seis anos pela Comissão de Direito
Internacional das Nações Unidas, com a
assistência de peritos do Programa Hidrológico Internacional da UNESCO, o tratado tem por objetivo preencher uma lacuna
nos tratados internacionais.
Para acompanhar o projeto de tratado, a
UNESCO publicou o primeiro mapa-múndi dos
aqüíferos compartilhados (ao alto). O mapa
mostra os locais dos aqüíferos e fornece informações básicas sobre a qualidade da água e
sua taxa de reposição pela precipitação. Os
mapas foram desenvolvidos pelo WHYMAP
(World-wide Hydrogeological Mapping and
Assessment Programme), a partir de 1999, para
coletar e consolidar informações hidrogeológicas em escala global. Até agora, o inventário
inclui 273 aqüíferos compartilhados: 68 estão
nas Américas, 38 na África, 65 na Europa de
Leste, 90 na Europa Ocidental e 12 na Ásia.
O crescimento da demanda de água, desde
1950, tem sido crescentemente atendido pela
utilização dos recursos subterrâneos. Globalmente, 65 % da água são utilizados na irrigação, 25 % no abastecimento de água potável e
10 % na indústria. Os aqüíferos subterrâneos
são responsáveis por mais de 70 por cento da
água utilizada na União Européia, e, muitas
vezes, são a única fonte de abastecimento em
regiões áridas e semi-áridas.
Aqüíferos fornecem 100 % da água utilizada
na Arábia Saudita, 95% em Malta e Tunísia,
e 75 % no Marrocos. Os sistemas de irrigação, em muitos países dependem em grande
parte dos recursos de águas subterrâneas:
a Líbia em 90 %, 89 % na Índia, 84 % na
África do Sul e 80 % em Espanha. Um dos
maiores aqüíferos do mundo é o Aqüífero
Guarani, com mais de 1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
Um dos problemas mais críticos está no fato
de que muitos aqüíferos não são recarregados de forma regular pelas chuvas. No norte da África e na Península Arábica eles foram formados há mais de 10.000 anos, quando o clima era mais úmido e, atualmente, já
não recebem recarga pluvial.
Em outras regiões, mesmo os aqüíferos renováveis estão ameaçados pela sobre-exploração ou poluição. Nas pequenas ilhas e
zonas costeiras do Mediterrâneo, as águas
subterrâneas são utilizadas em velocidade
superior à alimentação pelas chuvas, reduzindo os volumes estocados nos aqüíferos.
Os aqüíferos na África – alguns dentre os
maiores do mundo – estão ainda sub-explorados, mas a agência da ONU informa que
“eles têm um potencial considerável, desde
que os seus recursos sejam geridos e utilizados de forma sustentável.”
Uma vez que os aqüíferos geralmente se
estendem por várias fronteiras nacionais,
a utilização sustentável dos aqüíferos africanos depende de acordos e mecanismos
de gestão compartilhada, que são necessários para prevenir a poluição ou a exploração excessiva. Já na década de 1990,
Chade, Egito, Líbia e Sudão estabeleceram uma autoridade comum para gerir o
sistema aqüífero Nubian.
No projeto relativo ao aqüífero Iullemeden,
que se estende ao longo de 500 mil quilômetros quadrados no semi-árido e na savana
tropical do oeste da África, Níger, Nigéria e
Mali aprovaram, em princípio, um mecanismo consultivo para a gestão do aqüífero. A
UNESCO diz que esses mecanismos ainda
são raros, mas o novo tratado internacional,
aprovado no âmbito da ONU, pode incentivar a sua constituição.
■
Henrique Cortez com informações da
UNESCO. Para visualizar os mapas
disponíveis, acessar www.whymap.org –
Publicado em EcoDebate (27/10/2008).
Cidadania&MeioAmbiente
39
RIO
SÃO FRANCISCO
QUESTÕES TÉCNICAS DA TRANSPOSIÇÃO
Represa Arnaldo Ribeiro Gonçalves, RN, com capacidade de 2,4 bilhões de m3,em outubro de 2003, quase seco pela evaporação e sobreexploração.
A análise dos fatores geológico, populacional,
hídrico, econômico e político exige urgente
reflexão, antes de se iniciar este ambicioso projeto.
por João Suassuna . fotos: Henrique Cortez
E
ngrossando as fileiras de retirantes da seca, o presidente Lula, ainda muito jovem, dirigiu-se
a São Paulo, onde se estabeleceu no ramo da metalurgia, que o obrigou a afastar-se definiti
vamente de seu torrão natal. Evidentemen-te, por abraçar esse novo desafio em sua vida, o
presidente distanciou-se das questões ambientais do Nordeste seco, a ponto de não vislumbrar ou
mesmo não ter idéia formada sobre as conseqüências delas advindas, quando das tomadas de decisões
em projetos envolvendo assuntos relacionados ao ambiente natural da sua região. Isso ficou muito
claro nas decisões tomadas no projeto de Integração da Bacia do rio São Francisco com as bacias do
Nordeste Setentrional, mais conhecido hoje como Transposição do rio São Francisco.
O FATOR GEOLÓGICO
Vários são os pontos sobre os quais recaem esses nossos argumentos, a começar pela construção
dos 700km de canais a serem abertos em plena caatinga nordestina, localizados em geologia cristalina, portanto nos piores solos da região.
Nesse tipo de geologia, os solos são rasos e pedregosos, nos quais a rocha que os originam está
praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns pontos. Isso significa que a construção de
canais em tal situação (os canais terão 25m de largura, 5m de profundidade e 700km de extensão)
volta e meia encontrará rochas em seu traçado, o que demandará, em muitos casos, o uso de
explosivos para a desobstrução de seu caminho, dificultando e atrasando o cronograma de execução da obra. Partindo-se da premissa de que, nessas condições, é possível a execução de 100m de
canais por dia – difícil de ser alcançado devido às dificuldades já relatadas –, seriam necessários
cerca de 7 mil dias para concluir os 700km de canais, correspondendo a mais de 17 anos para
execução das obras.
Portanto, não procede a informação das autoridades responsáveis pelo projeto de que as águas do São
Francisco já estarão disponíveis à população dos estados receptores no Natal do ano de 2006.
40
O FATOR POPULACIONAL
Outra questão a ser comentada diz respeito ao número de pessoas que serão atendidas pelo projeto. Segundo as autoridades
serão abastecidas 12 milhões de pessoas no semi-árido nordestino. Ora, os estados receptores das águas do rio São Francisco
(Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba) possuem uma população
de 13,5 milhões de habitantes. Excluídos desse total o contingente populacional já atendido pelo abastecimento d´água nas grandes capitais e nos principais centros urbanos desses três estados, o número de pessoas cai para 9,5 milhões.
A pergunta que não quer calar é a seguinte: onde estão esses 12
milhões de habitantes que serão atendidos pelo projeto?
As dimensões dos canais já citadas anteriormente e a constante movimentação da água no seu interior irão facilitar sobremaneira as perdas da água por evaporação. Além do mais,
existem as perdas ditas casuais, que são aquelas motivadas
pelo furto da água. Isso será uma realidade, principalmente em
comunidades próximas aos canais, as quais, em anos secos,
buscarão o abastecimento de qualquer forma, facilitadas que
serão pela ausência ou incapacidade da ação de órgãos fiscalizadores na região. Certamente, os volumes de água calculados para o abastecimento dos estados receptores do projeto
terão que ser revistos, diante das perdas que serão inevitáveis e não previstas, pelo menos com a exatidão exigida em um
projeto dessa magnitude.
O FATOR
APTIDÃO DO SOLO
Nesse sentido, preocupanos, também, a informação de
que Sua Excelência pretende
desapropriar 2,5km de terras,
em ambos os lados dos canais, ao longo de seus 700km,
beneficiando uma área de 350
mil ha de terras, para o desenvolvimento da agricultura familiar regional.
Sem tirar o mérito e a importância de se apoiar a agricultura
nordestina, cabe-nos um alerta
ao senhor presidente: com a
inexistência de estudos de aptidão de solos nesses locais,
fica difícil a obtenção de êxito
no empreendimento. Esses solos, de péssima qualidade (geologia cristalina), não se prestam para o uso em atividades
irrigacionistas. Pretender dar
apoio à agricultura familiar
nessas condições edáficas,
com o uso irrestrito das águas
do Velho Chico, irá resultar em
riscos previsíveis, com conseqüências incalculáveis.
O FATOR
EVAPORIMÉTRICO
Outro assunto que merece ser
citado diz respeito ao exagerado índice evaporimétrico
existente na região por onde
irão passar os canais (estimase na região semi-árida um
potencial evaporimétrico da
ordem de 2.000mm ao ano), o
que resultará numa evaporação exacerbada das águas
que irão ser transpostas.
▲ Caicó, RN. Sem acesso à água não há cidadania.
▼ Represamento clandestino em afluente do rio Piranhas-Açu, PB.
Esses solos, de péssima
“
qualidade (geologia cristalina),
não se prestam para o uso em
atividades irrigacionistas.
”
O FATOR
VOLUMÉTRICO
Outro aspecto importante a
ser mencionado é a insuficiência volumétrica do rio São
Francisco para o atendimento das necessidades do projeto. Segundo avaliação técnica realizada no Recife pela
Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência – SBPC,
o rio São Francisco já não
possui vazões suficientes
para esse atendimento. O rio
é detentor de uma vazão alocável de apenas 360m³/s, dos
quais 335m³/s já foram outorgados (desse volume estão
sendo efetivamente utilizados
91m³/s), ou seja, já há direito
ao uso desses volumes. Portanto, o que resta no rio é um
saldo de apenas 25m³/s para
ser utilizado em um projeto
cuja demanda média é de 65
m³/s, podendo chegar a uma
demanda máxima de 127m³/s.
As autoridades insistem em
afirmar que a vazão de 25m³/s
é irrisória (cerca de 1%) se
comparada ao volume regularizado do rio em sua foz, de
cerca de 1.850m³/s. Sobre essa
questão, lembramos que os
cálculos têm que ser feitos
levando-se em consideração
os volumes alocáveis do rio
(os 360m³/s permitidos para
fins consuntivos) e não a sua
vazão regularizada na foz (os
1.850m³/s). Levando-se em
consideração os volumes alocáveis e seus usos efetivos
(360 – 91 = 269m³/s), os 65m³/s
médios do projeto represenCidadania&MeioAmbiente
41
“
Os canais terão 25m de largura, 5m de profundidade
e 700km de extensão. Seriam necessários cerca de 7 mil dias
para concluir os 700km de canais, correspondendo
a mais de 17 anos para execução das obras.
”
42
tam cerca de 25% e a vazão máxima, os 127m³/s, 47% dos volumes
alocáveis, respectivamente.
O FATOR CUSTO
Outro ponto importante a ser considerado diz respeito ao custo da
água do rio São Francisco posta nos estados receptores do projeto.
Segundo informações existentes no EIA-RIMA (o relatório e o estudo
de impactos ambientais do projeto), o m³ de água posto naqueles
estados custará cerca de R$ 0,11. Esse valor é proibitivo para uso no
agronegócio, principalmente em atividades irrigacionistas, se considerarmos o custo cobrado pela Companhia de Desenvolvimento do
Vale do São Francisco – Codevasf, aos seus colonos, de R$ 0,023 o m³.
Tudo leva a crer que para tornar viável o projeto, as autoridades
irão valer-se dos subsídios cruzados, ou seja, as tarifas de águas
dos grandes centros urbanos que não irão receber as águas do rio
São Francisco deverão ser acrescidas para possibilitar o agronegócio. Nesse sentido, já foi divulgada na imprensa de Pernambuco
a possibilidade de um aumento na
tarifa da água da cidade do Recife –
que não irá receber as águas do rio
São Francisco – de cerca de 30% para
a viabilização do projeto. Isso vai-se
tornar uma realidade.
PERNAMBUCO:
O CANAL DO SERTÃO
E O RAMAL DO AGRESTE
Finalmente, é oportuno comentar a participação do Estado de Pernambuco
no projeto de transposição. Em maio
de 2005, conforme publicado pelo Diário de Pernambuco na edição do dia
12, o governo do estado encaminhou
proposta ao Ministério da Integração
para a sua participação no projeto, por
entender que o estado não poderia servir apenas de passagem da água do
Velho Chico, para beneficiar a Paraíba,
o Rio Grande do Norte e o Ceará.
Ocorre que, diante da atual crise política e, portanto, com o quadro
de incertezas existente no país, o Ministério da Integração enviou
carta ao governo de Pernambuco aceitando não só as propostas
iniciais do estado, mas confirmando, também, aquelas já em andamento pelo governo Federal, ou seja, o Estado de Pernambuco irá
ter um terceiro eixo Oeste (antigo Canal do Sertão) e as águas no
eixo Leste, no chamado ramal do Agreste, chegarão até o município de Pesqueira, encarecendo o projeto dessa feita em cerca de
R$1 bilhão. Esses assuntos foram tratados na edição do Diário de
Pernambuco do dia 30 de julho do corrente ano.
Ora, pelo fato de o governo federal ter, de uma hora para outra,
atendido ao pleito de Pernambuco, entendemos esse fato como
mera cena política. Segundo a nossa ótica, o governo está tentando capitalizar o apoio político do governador Jarbas Vasconcelos
com um projeto que está fadado ao fracasso. Lembramos que
inicialmente havia relutância do Ministério da Integração em apoiar as reivindicações de Pernambuco e agora, diante do quadro
político vigente, o mesmo ministério
decide beneficiar o projeto a todo
custo, inclusive com um orçamento
maior.
Considerávamos, antes, que o principal empecilho era o custo, pois a substituição do eixo Norte pelo Canal do
Sertão e a extensão do ramal do Agreste até Gravatá, como proposto inicialmente, iria onerar a obra em torno de
15% em um projeto orçado em R$ 4,5
bilhões. Agora, falam em um custo de
cerca de R$ 1 bilhão. O governo federal não tem dinheiro para isso. Para
piorar a situação, lembramos que a
obra está embargada em suas atividades (não se pode retirar sequer uma
pá de areia das margens do rio) pelo
Superior Tribunal de Justiça – STJ,
que manteve a liminar concedida pela
Justiça Federal da Bahia, proibindo o
início das obras por causa de pendências ambientais. O Tribunal de
Contas da União – TCU também detectou possíveis irregularidades na licitação em curso.
O custo total da obra de
“transposição
está orçado
em R$ 4,5 bilhões.
”
é ineficiente,
“umaO projeto
vez que terá um custo
Numa forma de tirar o melhor proveito possível das duas passagens da
água no território pernambucano, sugeriu que o eixo Norte do projeto fosse substituído pelo Canal do Sertão,
alternativa que beneficiaria os melhores solos do estado (as autoridades
pernambucanas estimam um benefício em uma área de cerca de 150
mil ha) e que o eixo Leste fosse acrescido de um ramal (ramal do
Agreste) na altura do município de Arcoverde, para possibilitar a
chegada da água ao município de Gravatá, na bacia do rio Ipojuca.
elevado e não beneficiará
a população carente.
Naquela ocasião, a resposta do Ministério da Integração, diante
do pleito pernambucano, não foi muito animadora (apesar de ter
prometido analisar as mudanças solicitadas, sempre deu como pouco provável a sua incorporação no atual projeto), tendo em vista o
encarecimento em até 15% (R$ 675 milhões) do custo total da obra
orçada em R$ 4,5 bilhões.
”
Não acreditamos que o presidente
Lula estivesse sabendo desses detalhes da execução do projeto, principalmente diante dos condicionantes técnicos envolvendo o
ambiente nordestino. Caso o projeto venha a ter sucesso futuro
na sua condução, com a cassação das liminares impostas pelo
STJ, esperamos que os recursos a serem liberados para Pernambuco não venham a faltar em outros setores importantes para o
desenvolvimento do país, nem onerar ainda mais sua população
já tão sacrificada.
■
João Suassuna - Engenheiro agrônomo e pesquisador da
Fundação Joaquim Nabuco.
Cidadania&MeioAmbiente
43
do
O SÉCULO
HIDRONEGÓCIO
$
Compreender o conceito de água virtual é vital para
não se continuar a subsidiar o poder econômico e político
de quem controla os estoques de água planetários.
por Henrique Cortez
A
o que parece, diante das crescentes referências, está se consolidando no mercado mundial uma
atividade cada vez mais poderosa – o hidronegócio. Na verdade, devemos compreender o hidronegócio a partir da definição do que seja água virtual – conceito
utilizado para calcular a quantidade de
água necessária para produzir um determinado bem, produto ou serviço.
À primeira vista associa-se o hidronegócio
ao tratamento e à distribuição de água, às
engarrafadoras e outras atividades deste
tipo. Mas ele é muito mais abrangente e
complexo do que isto. A água virtual está
presente em tudo que usamos e consumimos, porque é parte de todos os processos
de produção, direta ou indiretamente.
ÁGUA:
contratualmente destinada à indústria de
alumínio. Cerca de 41% do custo final do
processamento do alumínio corresponde
à energia elétrica e, no caso de Tucuruí,
isto é significativo porque sua tarifa é pesadamente subsidiada.
Preciosas informações sobre o impacto da
água virtual no âmbito econômico- social
mundial visite www. wateryear 2003.org - o
site oficial do Ano Internacional da Água
Doce 2003. O volume de água exportado pelo
agronegócio é mais do que significativo, mas
a água virtual também tem peso em outros
setores. No Brasil, nossa geração de energia
elétrica é essencialmente hidrelétrica, o que
faz a água ser componente de tudo que demanda energia elétrica. Isto é muito claro na
indústria eletrointensiva (alumínio, siderurgia, ferroligas, celulose e petroquímica).
É por isto que o Japão chegou a produzir
1,1 milhão de toneladas de alumínio por
ano e baixou a produção para apenas 41
mil toneladas/ano, passando a importar o
restante. Neste caso, a indústria eletrointensiva é ‘’competitiva’’ porque, como
todas as exportações de bens primários
de baixo valor agregado, soma mão-deobra barata, benefícios fiscais, energia elétrica subsidiada e gigantescas quantidades de água virtual.
ELETROINTENSIVA
O
CONTROLE DA ÁGUA:
ONTEM E HOJE
MOTOR DA INDÚSTRIA
Na prática, a água virtual é o produto do
hidronegócio e o agronegócio é o seu principal consumidor. O aparente sucesso do
agronegócio nacional, também significa
que somos, crescentemente, grandes exportadores de água. E isto interessa a diversos países que consideram sustentável subsidiar seus agricultores, poupan-
44
do escassos recursos hídricos ao importar carne e grãos de países do terceiro
mundo. Isto pode ser demonstrado em interessante artigo da engenheira Vânia
Rodrigues, disponível em http://www.
aesabesp.com.br/artigos_agua_virtual. htm.
Dados do Ministério de Minas e Energia
demonstram que 408 indústrias eletrointensivas consomem 28,8% de toda a energia
elétrica produzida no país, o que a faz, ao
mesmo tempo, massiva exportadora de energia elétrica e água.
Enquanto isso, o hidronegócio – discreta e
silenciosamente – trabalha pelo controle do
acesso à água. O açude controlado pelo
coronelismo é algo da pré-história do hidronegócio, porque era muito mais uma questão de política paroquial do que de negócio.
Vejamos um exemplo prático. Metade da
energia elétrica produzida em Tucuruí é
O semi-árido brasileiro já possui uma impressionante rede de reservatórios, açudes
Esta é a lógica do hidronegócio, que será
cada vez mais concentrador do acesso à
água na medida em que a disponibilidade
hídrica for mais escassa. Quanto menor for
a disponibilidade hídrica em um país ou região, maior o valor agregado aos bens e produtos em razão do preço da água virtual.
A partir do controle dos reservatórios e
açudes cresce a tendência de buscar, como
negócio, o controle de toda a água disponível. Logo, quem controlar uma nascente
ou um manancial também controla toda a
bacia e, por conseqüência, impõe seu poder de negociação em toda a água virtual
incorporada à produção da região.
Nos novos projetos de hidrelétricas já existe
a concepção de que a água estocada no reservatório é um negócio em paralelo à própria geração de energia elétrica. Quanto mais
degradadas estiverem as bacias hidrográficas,
maior será o valor da água estocada nos reservatórios. No caso do aqüífero Guarani não
é diferente porque, independente de sua vasta
área, ele possui poucas áreas de recarga e
afloramento. E, neste sentido, ter a propriedade das áreas de afloramento também equivale a ter a propriedade do aqüífero.
Se não compreendermos a importância de
implementar as políticas públicas de proteção aos mananciais e ao acesso à água,
estaremos subsidiando o poder econômico e político de quem controlar os estoques de água.
Em escala global basta destacar que em 2030
nosso planeta estará com 8 bilhões de habitantes, o que equivale a um consumo de
água 55% maior do que em 2000.
O século 21 será o século da escassez de
água e, por isto, o hidronegócio chegou
para ficar. Se não formos atentos, este será
■
o século do hidronegócio.
Henrique Cortez – Ambientalista,
coordenador do portal EcoDebate e subeditor da Cidadania & Meio Ambiente.
E-mail: [email protected]
©Brocheur67
e adutoras. No entanto, a maior parte da
população continua sem acesso à água,
majoritariamente destinada à agricultura de
exportação. Este é um processo que se repete em boa parte dos países do terceiro
mundo, fato que não é mera coincidência.
ÁGUA VIRTUAL: PARA SABER MAIS
O conceito de água virtual foi introduzido em 1993 por Tony Allan(1).
Ele expôs essa idéia durante quase uma década para obter o reconhecimento
para a importância do tema, que envolve disciplinas de meio ambiente,
engenharia de alimentos, engenharia de produção agrícola, comércio
internacional, entre tantas outras áreas que se relacionam com a água.
Dados recentes da UNESCO(2) dão conta de que o comércio global movimenta
um volume anual de água virtual da ordem de 1.000 a 1.340km³, sendo:
• 67 % relacionados com o comércio de produtos agrícolas;
• 23 % relacionados com o comércio de produtos animais;
• 10 % relacionados com produtos industriais.
No 3º Fórum Mundial da Água realizado em 2003, nas cidades de Kyoto,
Shiga e Osaka, o Brasil foi citado como o 10º exportador de água virtual (atrás
de Estados Unidos, Canadá, Tailândia, Argentina, Índia, Austrália, Vietnã,
França e Guatemala).
Os maiores importadores são Sri Lanka, Japão, Holanda, Coréia, China,
Indonésia, Espanha, Egito, Alemanha e Itália. É interessante notar na figura
os fluxos de água virtual no planeta.
FLUXO DA ÁGUA VIRTUAL NOS CEREAIS (3)
Como regra geral, uma plantação de cereal transpira cerca de 1m3 de água
para produzir 1kg de cereal. Deste modo, a importação (ou exportação) de 1kg
de grão equivale aproximadamente a importar (ou exportar) 1m3 de água.
Esse fluxo de água contido nas commodities tem grande relevância para o
estresse e rarefação hídricos, e para a segurança alimentar, já que reduz a
necessidade do uso da água na produção de alimentos dos países
importadores, enquanto aumenta o consumo de água dos países
exportadores. Atualmente, os cereais compreendem a maior parte do comércio
de produtos agrícolas, fato que permite uma boa indicação do fluxo geral da
água virtual mundial neste setor.
Visual Water Flows
(crop evapotranspiration equivalent
in cubic kilometers)
<-15
Imports
-15 to -5
-5 to 0
0 to 5
Exports
-5 to 15
>15
Not extimated
REFERÊNCIAS
(1) Zimmer, D. Renault, D. Virtual Water in Food production and Global Trade. World Water
Council, FAO_AGLW, 2003.
(2) World Water Council. Virtual Water Trade Conscious Choices. Synthesis E-mail conference on
Virtual water trade and Geo-politics. Paul van Hofwegen. December 2003.
(3) Watersheds of the World: Global Maps. http://www.iucn.org/themes/wani/eatlas/html/gm19.html
Cidadania&MeioAmbiente
45
ÁGUA
A QUESTÃO
NA AMÉRICA LATINA
De bem abundante e sem valor, a água tornou-se ouro azul,
escassa, dotada de valor econômico, objeto de cobiça e fator de
guerras entre as nações. Descubra o que ameaça este “bem público,
direito humano e patrimônio de todos os seres vivos”.
por Roberto Malvezzi . foto: Carlos Terrana
ÁGUA:
BEM PÚBLICO OU
MERCADORIA?
Estamos em meio a uma profunda crise
civilizatória. O modelo civilizatório ocidental, alicerçado na exploração de seres humanos por outros seres humanos e na intensa exploração da natureza por uma restrita elite mundial, já não tem mais sustentação. Dos seis bilhões de pessoas que
habitam a face do planeta, apenas 1,7 bilhão pertence ao modo consumista e predador da civilização contemporânea. Para
sustentar os caprichos dessa elite mundial
são necessários 1,5 planeta Terra para al-
46
guns, ou até seis para outros. Essa elite
não está apenas no primeiro mundo, mas
também tem seus nichos no segundo, terceiro e quarto mundos. Estender esse modelo de produção e consumo a todos os
seres humanos é impossível, pelos próprios limites desses bens em nosso planeta.
Para sustentar esse modelo o maior tempo
possível para uma elite restrita é preciso
restringir o acesso dos demais a esses bens.
O melhor mecanismo para selecionar os incluídos do modelo é aplicar as regras do
mercado a todas as dimensões da existência. Quem puder comprar entra. Quem não
puder está posto de fora.
A consciência dos limites do planeta começou surgir a partir da década de 1960,
mas aprofundou-se na década de 1970 e
generalizou-se a partir da década de 1980.
A Cúpula Mundial do Meio Ambiente, no
Rio de Janeiro, consagrou a questão ambiental como fundamental para o destino
da humanidade e do planeta Terra.
Coincide com a tomada de consciência
dos limites do planeta e implantação
mundial do neoliberalismo. Não foi por
acaso. A elite mundial percebeu os limi-
tes do planeta e que seu modus vivendi
não poderia jamais ser estendido a toda
a humanidade. Então criou um mecanismo para estabelecer um “limite natural”
aos que têm acesso aos bens e os que
jamais o terão, isto é, aprofundou e tenta
estender para todas as dimensões da
vida as regras do mercado. Assim, através das regras do mercado, a elite mundial reservou para si os bens que antes
também tinha destinação universal. Entre eles está a água.
A regra número um do mercado é transformar todos os bens em mercadoria. Nesse sentido, o mundo passa atualmente
pela disputa dos últimos bens da natureza que ainda não foram privatizados. São
muito poucos: restavam ainda a própria
vida, água, sol e ar. A vida está sendo
privatizada através do patenteamento de
sementes, princípios ativos de plantas e
pelo avanço da ciência na própria genética humana. O sol e o ar ainda não descobriram mecanismos de privatização. Mas
a privatização dos solos, da água e da
biodiversidade segue a passos largos em
todo o planeta.
A
QUESTÃO DA ÁGUA
A privatização da água não se dá ao acaso, ou de forma dispersa. Ela passa pela
elaboração de grandes estratégias, mapeando a abundância da água nas regiões do planeta e construindo planos
que, a longo prazo, permitam a apropriação privada desse bem em escala mundial. Vamos citar aqui, rapidamente, os planos que existem, desde o Canadá até o
sul do continente latino-americano, para
termos uma idéia mínima do que está sendo estrategicamente pensado. Por trás
desses planos estão sempre grandes empresas transnacionais, a intermediação
dos organismos multilaterais como Bird,
Banco Mundial e FMI, sempre em articulação com os governos e elites locais
dispostos a transferir o patrimônio público para empresas privadas.
Normalmente, esses planos visam investimentos em infra-estrutura. Posteriormente, pelos tratados de livre comércio,
seja em nível continental como a Alca,
ou tratados bilaterais (os TLCs – Tratados de Livre Comércio), essas infra-estruturas acabam privatizadas (ver quadro Planos e Estratégias de Privatização
de Bens Nacionais).
PLANOS E ESTRATÉGIAS
DE PRIVATIZAÇÃO DE BENS NACIONAIS
PLANO “PUEBLA PANAMÁ” NA AMÉRICA CENTRAL
O
plano é um conjunto de grandes projetos de investimento em infraestrutura, transporte, comunicações, energia, turismo e outras obras
em países da América Central e nos estados do sul do México. Abrange
Puebla, Veracruz, Guerrero, Oaxaca, Chiapas, Tabasco, Campeche, Yucatán,
Quintana Rôo, Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Vai desde Puebla, México, até o Panamá. Através de
ferrovias, rodovias, portos, comunicações e uma rede elétrica que permita
interligar e explorar o potencial hidroelétrico de toda região, puxando energia na direção do norte. Fundamentalmente visa facilitar o acesso aos bens
naturais da região, criar facilidades para escoamento dos produtos do México e Estados Unidos, controlar os guerrilheiros da região e controlar as
migrações.
Um dos objetos principais de cobiça é a água. Só o estado de Chiapas,
com forte presença da guerrilha, contém 40% de toda água doce do México.
Mas a América Central é toda rica em água doce. Uma série de empresas
transnacionais, interessadas nessa água, tem se instalado na região, principalmente cervejarias, inclusive a Ambev, com uma fábrica na Guatemala e
outra na República Dominicana.
■
Há, ainda, um potencial hidroelétrico fantástico. Só no México está prevista a construção de 25 novas barragens, o que poderá remover cerca de oito
milhões de indígenas dos 10 milhões que habitam essas regiões1 .
■
IIRSA (INICIATIVA PARA A INTEGRAÇÃO DA INFRA-ESTRUTURA
REGIONAL DA AMÉRICA DO SUL)
Por hora, é mais uma concepção estratégica que uma realidade. Também
se planeja corredores industriais, hidrovias, rodovias que conectem os lugares mais recônditos de toda a América Latina, inclusive a região amazônica,
onde estariam 20% de toda água doce do mundo.
■
Mas não é apenas a Amazônia que é rica em água doce. Toda bacia do Prata
também é rica em água doce, considerada a segunda do mundo, logo depois
da Amazônica. É nessa região também que está o Aqüífero Guarani, um mar
subterrâneo de água doce. Os principais interessados são as empresas engarrafadoras de água e as fabricantes de bebidas que demandam muita água.
■
No Brasil, dispensa comentários o plano estratégico no Estado Brasileiro
para a construção de barragens. É também do conhecimento comum que,
hoje, a construção de barragens foi repassada para as empresas privadas, o
que tem acarretado mais problemas para os atingidos por barragens, que
agora têm que negociar com particulares e não mais com o governo.
■
NAWAPA (NORTH AMERICAN WATER
AND
POWER ALLIANCE)
Esse é um plano dos americanos do Norte. Pretende desviar vastos recursos de água do Alasca e do Oeste do Canadá para os Estados Unidos.
Esse é o plano de infra-estrutura. O plano de livre comércio da região é o
Nafta. Já existem problemas sérios na exploração das águas canadenses
pelos Estados Unidos.
■
Nos dias atuais, quando toda riqueza natural do planeta já está mapeada,
os colossais interesses privados não têm dificuldades de armar suas estratégias. Quando se trata da disponibilidade de solos, água doce e biodiversidade, as Américas, principalmente a Central e do Sul, estão necessariamente incluídas em qualquer grande estratégia, exatamente pela abundância que possuem desses bens imprescindíveis para o futuro da humanidade e da vida no planeta.
■
1 Equipo Maiz: “La Plaga Para la Gente Pobre/el Plan Puebla Panamá“. El Salvador, 2003.
Cidadania&MeioAmbiente
47
ÁGUA:
DE BEM ABUNDANTE A BEM ESCASSO
O discurso sobre a água mudou rapidamente nos últimos anos. O bem abundante e sem valor, “insípido, inodoro e incolor”, rapidamente tornou-se “ouro azul,
escasso, dotado de valor econômico, objeto de cobiça, fator de guerras entre as
nações”. Esse discurso não é ingênuo, e
exige um difícil discernimento para distinguir o que é realidade e o que são os interesses daqueles que o produzem.
Em primeiro lugar, é necessária a distinção entre água e recursos hídricos. Água
é um bem da natureza que está no planeta
há bilhões de anos. É o ambiente onde
surgiu a vida e componente de cada ser
vivo. Por isso, o supremo valor da água é
o biológico. Recurso hídrico é a parcela
da água usada pelos seres humanos para
alguma atividade, principalmente econômica. Portanto, água é um conceito muito
mais amplo que recurso hídrico, embora
sejam indissociáveis.
A questão é que o uso da água, hoje, é
muito mais intenso que em algumas décadas atrás. Hoje, a média mundial é que da
água doce utilizada, 70% destinam-se para
agricultura, 20% para indústria e 10% para
o consumo humano. Esse uso intenso da
água, principalmente na agricultura e na
indústria, ocorre num ritmo mais acelerado
que a reposição feita pelo ciclo natural das
águas. Dessa forma, muitos mananciais
estão sendo eliminados pelo sobreuso que
deles se faz. Pior, ao devolver a água para
seu ciclo natural, ela vem contaminada
pelos agrotóxicos da agricultura e pela química da indústria. A falta de saneamento
ambiental, sobretudo em países pobres, colabora para a contaminação dos mananciais. Em conseqüência, hoje, no planeta, segundo a ONU, 1,2 bilhão de pessoas não
tem acesso à água potável e 2,4 bilhões
não têm acesso ao saneamento.
O impacto na saúde humana e no meio ambiente é uma tragédia. Portanto, a chamada
“crise da água” é de quantidade e qualidade, não por razões naturais, mas pelo uso
irresponsável que o ser humano dela faz.
Agrava-se ainda mais essa situação quando a ambição, visando usos futuros privados da água, também a privatiza. A escassez produzida então passa a ser quantitativa, ou qualitativa, ou social, ou em todos
esses níveis simultaneamente.
48
O crescimento populacional ajuda agravar
a situação. Nesse sentido, a crise da água é
progressiva. A posição da ONU é clara: ou
se muda o modo de gestão das águas ou
essa será a pior crise que a humanidade já
enfrentou em sua história sobre o planeta.
O
USO MÚLTIPLO DA ÁGUA
O conceito de escassez, introduzido como
fundamento econômico pelos neoclássicos, agora também é aplicado na questão
da água. Para esses pensadores, um produto tem mais valor econômico quanto
mais escasso ele for. Por conseqüência,
aplicar o conceito de escassez à água tem
uma clara conotação ideológica dos princípios liberais dos neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, sua escassez quantitativa e qualitativa não é uma questão
natural, mas produzida pela mão humana.
Portanto, pode ser evitada. A própria ONU
afirma que a crise da água é mais uma questão de gerenciamento que de escassez.
Um dos argumentos utilizados para justificar a escassez da água é que 97,6% das
águas do planeta são salgados e apenas
2,4% são água doce. O quadro Distribuição Planetária das Águas, abaixo, nos dá
uma visão detalhada da distribuição da
água no planeta.
Sem dúvida, a chave da questão está no
intenso uso agrícola e industrial da água.
A água ainda é usada para navegação,
pesca, geração de energia elétrica, uso doméstico em geral, além de outros. É o chamado “uso múltiplo da água”. Porém,
quando se constata que 70% em média
vão para a agricultura, é preciso se perguntar que agricultura é essa que consome água em tamanhas proporções que
chega a desequilibrar o próprio ciclo das
águas. Será uma agricultura de primeira
necessidade, ou uma que visa produzir
permanentemente bens que, na verdade,
são sazonais, consumidos por uma
DISTRIBUIÇÃO PLANETÁRIA DAS ÁGUAS2
restrita elite mundiVOLUME
al? Essa resposta é
LOCALIZAÇÃO
%
RENOVAÇÃO
(1.000km3)
variada e depende
Oceanos
1.464.000
97,6
37.000 anos
de país para país.
Na Ásia, a produção de arroz é um
bem fundamental.
No Brasil, na região
do Vale do São
Francisco, a água é
usada para produção de frutas para
exportação, ou até
mesmo para irrigar
cana para produção de álcool e
açúcar. O etanol,
que move carros no
Brasil e na Europa,
pode ser visto
como um combustível limpo, desde
que não se perceba
a água embutida em
sua produção. O
projeto de transposição do rio São
Francisco para o
Nordeste Setentrional visa, sobretudo, a produção de
camarões em cativeiro e a fruticultura irrigada.
Massas Polares
Rochas
Sedimentares
Lagos
31.290
4.371
2,086
291
16.000 anos
300 anos
255
0,017
1 a 1000 anos
Solo e Subsolo
67
0,004
280 dias
Atmosfera
15
0,001
9 dias
Rios
1,5
0,0001
6 a 20 dias
DISPONIBILIDADE DE ÁGUA SEGUNDO
CLASSIFICAÇÃO DA ONU (1997)3
Estresse de água
inferior a 1.000m3/hab/ano
Regular
1.000 a 2.000m3/hab/ano
Suficiente
2.000 a 10.000m3/hab/ano
Rico
10.000 a 100.000m3/hab/ano
Muito rico
mais de 100.000m3/hab/ano
Entretanto, a natureza é sábia e até poucas décadas atrás nunca faltou água para
nenhuma forma de vida, sejam aquelas
que dependem da água salgada, sejam as
que dependem da água doce. Mais uma
vez, o problema não é da natureza, mas da
ação humana sobre ela. A água é um bem
natural renovável, e o ciclo das águas,
desde que respeitado em seu ritmo, repõe
os mesmos volumes de água doce e salgada há muitos milhões de anos. A crise
da água, portanto, tem que ser focada na
sua questão-chave, isto é, o modo como
o ser humano vem gerenciando a parcela
de água que utiliza. Certamente um novo
gerenciamento imporá limites ao desperdício e ao luxo.
Vale ressaltar que o Banco Mundial tem
outro padrão para o estresse, isto é, abaixo de 2.000m³ por pessoa por ano para
todos os usos. Entretanto, especialistas
acham que essa referência baseada no padrão de consumo dos Estados Unidos é
insustentável. Portanto, é lógica a opção
para trabalhar com os padrões da ONU.
água é um bem natural renovável,
“e oAciclo
das águas, desde que respeitado
em seu ritmo, repõe os mesmos volumes de água
doce e salgada há muitos milhões de anos.
”
PRECIPITAÇÃO NOS CONTINENTES6
REGIÃO
Precipitação
mm/ano
km³
Evapotranspiração
mm/ano
km³/
ano
Excedente
mm/ano
km3/
ano
Europa
700
8,290
507
5,230
283
2,970
Ásia
740
32,200
416
18,100
324
14,100
África
740
22,300
587
17,700
153
4,600
América
do Norte
756
18,300
418
10,100
339
8,180
América
do Sul
1.600
28,400
910
16,200
685
12,200
Austrália
e Oceania
791
7,080
511
4,570
280
2,510
Antártica
165
2,310
0
165
2,310
Totais
800
119,000
72,00
315
47,000
0
485
A ÁGUA NA AMÉRICA LATINA
Há um detalhe nessa reflexão. Mesmo
havendo água suficiente para todas as
formas de vida, desde que gerenciadas
com sustentabilidade, há distribuição desigual da água doce sobre o planeta. Os
países mais pobres de água sofrem com
sua escassez particular. Na outra ponta,
continentes inteiros, dentro deles alguns
países, têm abundância de água doce. É o
caso do continente latino-americano, particularmente alguns países.
Para exemplificar, o Peru é um país que está
situado no parâmetro de “suficiente”. Hoje,
sua disponibilidade per capta de água é de
aproximadamente 1.790m³ por ano. Entretanto, a projeção é que no ano de 2025 sua
disponibilidade caia para 980m³ por pessoa por ano. Deixaria de estar na faixa de
suficiente para a situação de estresse4 .
Já países como Brasil, Bolívia, Colômbia,
Venezuela, Argentina e Chile situam-se no
parâmetro de países “ricos”, isto é, têm
entre 10.000 e 100.000.000 m³/pessoa/ano.
Já a Guiana Francesa situa-se na faixa dos
“muito ricos”, isto é, acima de 100.000m³/
pessoa/ano.
Além disso, o continente sul-americano é
privilegiado no regime das chuvas. A in-
NOSSOS
VOLUME DE ÁGUAS
PAÍS
Kuwait
Malta
Qatar
Gaza
Bahamas
Arábia Saudita
Líbia
Bahrein
Jordânia
Cingapura
Disponibilidade
m³/hab./ano
Praticamente nula
40
54
59
75
105
111
185
185
211
Texto Base “Água, Fonte de Vida”5
tensa precipitação de águas meteóricas
sobre o continente, mesmo com intensa
média de evaporação, produz um grande
excedente hídrico. Mais uma vez é necessário considerar os detalhes dentro do
continente e dos países. Por exemplo, em
Lima, no Peru, nunca chove. Entretanto,
as águas que descem dos Andes abastecem a capital peruana. Basta compararmos o volume de nossas águas com países onde realmente ela é escassa (ver quadros Precipitação nos Continentes e Volume de Águas - acima) para termos uma
noção de nossa abundância.
RIOS
TAMBÉM SÃO ABUNDANTES7
As bacias hidrográficas tornaram-se hoje
a referência fundamental para a gestão das
águas. Embora seja um modelo francês,
ele tem pertinência. O Brasil, por exemplo,
foi dividido em 12 grandes regiões
hidrográficas, cada uma delas às vezes
com várias bacias hidrográficas. A Lei
Brasileira de Recursos Hídricos (9.433/97)
concebe a gestão das águas a partir das
bacias hidrográficas. Aqui estão as águas
mais acessíveis ao ser humano para todos os usos. Os rios, inclusive, tornaramse o destino dos dejetos industriais, hospitalares, domésticos. O Brasil, que tem o
maior volume de água doce do planeta e
uma imensa malha de rios, tem 70% de
seus rios poluídos. Portanto, prova que
não basta abundância, é preciso um cuidado especial para se ter água em quantidade e qualidade.
Aqui, mais uma vez, a América Latina aparece de forma destacada no cenário mundial. As duas maiores bacias hidrográficas do planeta estão em território latinoamericano, isto é, a Amazônica e a do
Prata. São as duas maiores vazões hidrográficas da face da Terra. A vazão méCidadania&MeioAmbiente
49
o Aqüífero Guarani
“temBemáguagerenciado,
para abastecer indefinidamente
360 milhões de pessoas.
Ou seja, a população de toda América Latina.
”
dia da bacia Amazônica é de 212.000m³/s,
enquanto a do Prata é de 42.400m³/s. O
Brasil, com a água da Amazônia Internacional, detem 53% das águas da América
do Sul e 13,8% do total mundial.
Além de oferecer água doce em abundância, estas duas bacias hidrográficas integram os países latino-americanos. Se forem sabiamente manejadas e preservadas
elas têm condições de garantir tranqüilamente o futuro de nossos povos.
O AQÜÍFERO GUARANI
A América Latina foi ainda abençoada
com o maior lençol freático de água do
planeta, com 1,2 milhão de km². Atinge
sete estados brasileiros (Goiás, Minas
Gerais, Mato Grosso do Sul, S. Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e
parte da Argentina, Paraguai e Uruguai.
Estende-se pelo Brasil (840.000km²), Paraguai (58.500km²), Uruguai (58.500km²) e
Argentina, (255.000km²)8 . Tem água para
abastecer 360 milhões de pessoas indefinidamente, desde que bem gerenciado. É
a população de toda América Latina.
Toda essa água, praticamente ainda inexplorada, é objeto de cobiça nacional e internacional. Somente agora há um esforço conjunto dos países banhados pelo
Aqüífero Guarani para o estabelecimento
de uma série de medidas que facilitem a
gestão e preservação comum do manancial. Entretanto, a abundância de água do
aqüífero também traz ambições. As grandes transnacionais da água já buscam colocar-se no espaço do aqüífero e reservar
seu quinhão em vista do futuro.
PANTANAIS E ALAGADOS
Nosso continente tem ainda uma série de
pantanais e de áreas alagadas, fundamentais para a dinâmica das águas e para a biodiversidade. O Pantanal Mato-grossense,
que atinge também a Bolívia e o Paraguai, é
um caso exemplar. Com uma fantástica bio-
50
diversidade animal e vegetal, situa-se no
coração da América do Sul. Sua biodiversidade inclui mais de 650 espécies diferentes
de aves, 262 espécies de peixes, 1.100 espécies de borboletas, 80 espécies de mamíferos e 50 de répteis. Além disso, o Pantanal
conta com 1.700 espécies de plantas9 . É também uma área ambicionada por sua riqueza.
A Igreja do Reverendo Moon comprou nessa região uma área de 10 milhões de hectares de terra. O tamanho da propriedade causou problemas no Brasil, onde por muita
gente é considerada até uma questão de
segurança nacional.
Entretanto, as áreas alagadas da América
Latina são muito mais amplas que o Pantanal Mato-grossense, como se pode verificar na pequena listagem do quadro Pantanais e Alagados de nosso continente.
PANTANAIS E ALAGADOS
DE NOSSO CONTINENTE 10
PAÍS
Brasil
Venezuela
Chile
Argentina
Paraguai
Bolívia
México
Nicarágua
Colômbia
Uruguai
Total de
áreas
38
29
49
57
5
18
40
17
36
12
LUTAS POPULARES
PELA
Extensão
(hectares)
59.789.733
14.447.155
9.188.713
5.797.930
5.723.528
4.017.920
3.377.900
2.111.349
1.928.389
773.500
ÁGUA
Como reação ao processo de privatização,
mercantilização e degradação das águas
surgiu a consciência do cuidado e da preservação da água como bem público, universal, patrimônio da humanidade e de todos os seres vivos. Essas articulações
prosperam em todo o mundo, através de
ONGs, defensores de direitos humanos,
Igrejas e especialistas que têm uma visão
ampla da água, não apenas mercantilista.
No Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, fortaleceu-se a “RED VIDA”,
como uma articulação de entidades que
lutam em defesa da água seguindo uma
série de dez princípios, todos na direção
da água como um bem público.
Da parte das Igrejas e das entidades defensoras dos direitos humanos, cresce a
consciência e a defesa da água como um
direito humano. Porém, há resistências
dos governos locais e das transnacionais
da água. A tendência é admitir a água apenas como uma necessidade, não como o
direito. É a mesma postura que se tem em
relação ao direito humano à alimentação.
Se a água for reconhecida como direito
humano, assim como a alimentação, então é obrigação do estado perante seus
cidadãos. Sob a direção dos verbos “proteger, promover e prover”, o Estado está
obrigado a garantir a todos os seus cidadãos a alimentação e a água necessária
para sua segurança hídrica. Portanto,
muda a relação mercantil com os alimentos e a água que as transnacionais querem aplicar a esses bens fundamentais
para a vida.
Assim, as transnacionais da água estabelecem uma ruptura entre o direito natural e
o direito positivo. O direito natural não é
mais reconhecido automaticamente como
um direito positivo e até é posto em subalternidade em relação a esse. Embora o reconhecimento da água como direito humano não garanta sua execução prática, é
muito importante para a luta dos mais pobres. Importante também é a luta das Igrejas e das entidades dos direitos humanos
para que a água seja definitivamente reconhecida como direito humano.
Muitos esforços concretos existem em
todo território latino-americano para que
as populações mais pobres tenham acesso à água em quantidade, qualidade e
regularidade. Cresce também o esforço
para a água na produção de alimentos.
Um exemplo é o que acontece no semi-
PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS DA ÁGUA
■ O USO MÚLTIPLO DA ÁGUA – O grande problema da água está
na equação mais justa de seu uso múltiplo. O padrão mundial adotado de se utilizar 70% da água doce em agricultura
indica ser sem sustentação. O uso da água na agricultura
precisará ser redefinido. Esse embate já existe, por exemplo,
no Brasil. É correto usar a pouca água disponível no Nordeste brasileiro para irrigar cana de açúcar? É correto usar 80%
da água do rio São Francisco, também no Nordeste brasileiro, para gerar energia, enquanto milhões de pessoas espalhadas pela região não têm um copo de água potável para
beber? Portanto, o uso múltiplo da água exige critérios éticos, não apenas técnicos ou econômicos. Por isso, além de
falarmos do “uso múltiplo” das águas, é necessário falar
também de seus “valores múltiplos”. Portanto, é necessário
falar do valor biológico, social e ambiental da água. Além
desses, a água tem valor simbólico, religioso, cultural, paisagístico, turístico. A água ainda tem dimensões econômicas, políticas e de poder. Controlar a água é ter poder sobre
os demais seres humanos e os demais seres vivos.
■ PRIVATIZAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO – Estes são os grandes desafios para a água no mundo contemporâneo. A estratégia
das grandes multinacionais da água é transformá-la numa
mercadoria comum. Entretanto, a água é um bem imprescindível e insubstituível. Nenhum ser vivo sobrevive sem água.
Controlar a água é controlar a vida. Por isso, em nível mundial, também surgem resistências a toda tentativa de privatizar e mercantilizar a água. Na América Latina temos resistências na Bolívia, Argentina, Brasil, Peru, Chile, Uruguai e
outros. Entretanto, na América Central os serviços de água
já estão sendo privatizados. Há também privatização da
água na Índia, Filipinas, países africanos e Europa.
POLUIÇÃO – Outra questão fundamental é a degradação qualitativa das águas. A civilização humana fez dos rios seus caminhos, depois sua moradia, depois seu esgoto. Há vários rios,
principalmente aqueles que cortam os grandes centros urbanos e
agrícolas, praticamente imprestáveis em sua utilização para consumo humano. No Peru, a poluição vem principalmente das mineradoras ao longo dos rios que abastecem Lima. Os dados do
saneamento dos países mais pobres são estarrecedores. O Brasil,
por exemplo, tem 20% de sua população sem acesso à água
potável, 50% de seus domicílios sem coleta de esgoto e 80% do
esgoto coletado são jogados diretamente nos rios sem nenhum
■
árido brasileiro, onde oitocentas entidades estão articuladas para construir um
milhão de cisternas para um milhão de famílias da região. Até hoje já foram construídas, aproximadamente, 150 mil. Embora esteja longe de alcançar seu objetivo,
praticamente 900 mil pessoas hoje têm
água de qualidade ao menos para beber.
Sem esse tipo de iniciativa, deixando apenas para as iniciativas do Estado, essas
famílias não teriam sua água para consumo garantida. Esse é o tipo de prática que
contempla as necessidades dos mais deserdados, garantindo-lhes o acesso à
água a qual têm direito.
■
tipo de tratamento. Isso faz com que 70% dos rios brasileiros
estejam poluídos. Porém, há situações ainda piores, como é o
caso do Haiti, onde mesmo em Porto Príncipe os esgotos correm
a céu aberto pelo centro da cidade.
A perda de qualidade das águas é um dos grandes dilemas da
humanidade. Hoje se fala em contaminação fina, à base de
hormônios, antibióticos e metais pesados. Normalmente esses
elementos não são detectáveis nos tratamentos mais comuns
das águas para consumo humano. Portanto, a qualidade da
água consumida atualmente não oferece segurança total. No
Brasil estima-se que 40% das águas das torneiras não têm potabilidade confiável.
■ DESFLORESTAMENTO DAS MATAS CILIARES – Há uma íntima corre-
lação entre cobertura vegetal, armazenamento de água nos
lençóis subterrâneos e a preservação dos mananciais de
superfície. Onde há cobertura vegetal, a água das chuvas
tende a infiltrar-se mais nos solos, elevando o nível dos
lençóis subterrâneos. Onde a terra está nua, a tendência
da água é escorrer para o leito dos rios, com pouco processo de infiltração. Além disso, a cobertura vegetal das margens dos rios – as matas ciliares – protege os leitos do
assoreamento provocado por materiais sólidos carreados
pelas enxurradas. Portanto, o processo contínuo de desflorestamento influi diretamente na disponibilidade hídrica dos
mananciais de superfície e subterrâneos.
OS “SEM ÁGUA” – A exclusão de grande parte da humanidade da “segurança hídrica” já é uma realidade mundial.
Repetindo os dados iniciais, no mundo contemporâneo 1,2
bilhão de pessoas não tem água de qualidade para beber
e 2,4 bilhões não têm acesso ao saneamento básico. Essa
realidade, segundo a ONU, tende a se agravar com o crescimento da população mundial. Não é um problema de
escassez, mas de cuidado, gerenciamento e justiça social.
■
■ CARTÃO PRÉ-PAGO – Atualmente, em vários lugares do Brasil
começa se instalar o “cartão pré-pago” de água, como na telefonia celular. Evidente que aí está uma flagrante violação do
direito humano à água. As populações mais pobres não podem estar sujeitas a essas regras do mercado. Muitos pobres
não têm como comprar sua água, mas como todo ser vivo têm
direito a ela. O surgimento dos “sem-água” é uma das mais
aberrantes tragédias que poderiam assolar a humanidade.
Referências:
1 Equipo Maiz: “La Plaga Para la Gente Pobre / el Plan Puebla Panamá“. El Salvador, 2003.
2 Costa, Ayrton: Introdução à ECOLOGIA DAS ÁGUAS DOCES. Universidade Federal
Rural de Pernambuco. Imprensa Universitária. 1991. Pg. 5.
3 Rebouças, Aldo C. et alii. “Águas Doces no Brasil”. São Paulo. Escrituras Editora, 1999. Pg. 31
4 Idem, pg. 21.
5 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil|: “Água, Fonte de Vida”, pg. 48. Texto Base da
Campanha da Fraternidade de 2004.
6 Aldo C. Rebouças, idem, pg. 12.
7 Idem, pg. 11.
8 www.ambiente.sp.gov.br/aquifero/principal_aquifero.htm
9 www.estadao.com.br/ext/ciencia/arquivo/pantanal/
10 Aldo C. Rebouças, idem, pg. 24.
Roberto Malvezzi (Gogó) – Membro da Coordenação Nacional da CPT/Brasil.
Cidadania&MeioAmbiente
51
Foto: Water for People
ÁGUA
e
CORRUPÇÃO
uma questão de vida ou de morte
por Charles Kenny
Recurso sem substituto, a água é vital
à saúde, à segurança alimentar,
ao futuro energético e ao ecossistema.
Mas a corrupção que corrói a
administração desse recurso afeta
diretamente a sobrevivência e a
sustentabilidade de milhões de indivíduos,
como revela este artigo extraído do Global
Corruption Report 2008, Part one:
Corruption in the water sector, publicado
pela Transparency International (TI).
52
T
odo o mundo precisa de água para
viver. Mesmo assim, muitas casas,
nos países em desenvolvimento,
não têm acesso à água encanada – quer por
estarem fora de alcance da rede de distribuição, quer pelo colapso do sistema. A solução é construir e manter os sistemas de distribuição de água. No entanto, até mesmo
quando os não-fáceis fundos de custeio de
tais obras tornam-se disponíveis, a corrupção cobra sua parte e distorce as decisões
sobre a aplicação dos recursos, desperdiçaos e, ao cabo de tudo, ceifa vidas.
Uma pesquisa da corrupção no fornecimento de água no Sul da Ásia sugere que os
contratantes, freqüentemente, pagam subornos para abocanharem contratos, além
da corrupção miúda que acontece nos pontos de entrega do serviço. O estudo, realizado entre 2001-2002, mostra que o custo
da corrupção para as empresas e para o
setor representa um fardo considerável,
com perda de enormes recursos quando a
conta final é tabulada. Os subornos variam, em média, de um a seis por cento dos
valores de contrato. Propinas pagas durante a construção oneram os custos em
mais 11% do valor do contrato.
A formação de cartéis sancionados agrava o problema dos custos inflados, já que
eles elevam os preços 15 a 20% a mais do
que o praticado pelo mercado. Piora o
quadro o fato de tais pagamentos impedirem as empresas de cumprirem as obrigações contratuais. As propinas tendem a
mascarar um serviço de baixa qualidade e
a não entregar os produtos com as características contratadas.
O material não-fornecido é estimado em
três a cinco por cento do valor do contrato.2 O custo econômico de cada dólar em
material não-fornecido deve ser re-estimado em três a quatro dólares, pois implica
na redução da vida útil e na capacidade
de fornecimento da rede de distribuição.
Esses custos somam outros 20% sobre
os de contrato já inflacionados. Esse duplo impacto da corrupção sobre a construção de redes de água pode elevar o
custo do acesso à água em 25 a 45%.
E quais são os custos econômico-sociais
dessa corrupção? A análise de dados de
uma pesquisa em domicílios de 43 países
em desenvolvimento sugere forte correlação entre o acesso à água e a mortalidade
infantil. Para cada ponto percentual adicional de acesso doméstico, verifica-se uma
redução na taxa de mortalidade infantil
abaixo dos cinco anos: um declínio de uma
morte para cada dois mil nascimentos.3
Pesquisas comparativas entre países revelam que o custo da instalação de água doméstica situa-se em redor de US$400.4 Levando em consideração o custo final da
corrupção no aprovisionamento de água,
aquela estimativa aumenta em 45%, chegando a US$580. Como demonstra o exemplo, o fracasso no combate à corrupção
resulta em menos domicílios conectados à
rede de distribuição de água, em pouco
avanço na redução da mortalidade infantil
e em maiores desafios para se alcançar as
Metas de Desenvolvimento do Milênio relacionadas à água, saúde e pobreza.
Se considerarmos a estimativa do custo
de conexão em US$400 por domicílio, o
“
Os subornos pagos
pelas empreiteiras
variam em média de
um a seis por cento
do valor contratual.
E as propinas
adicionais pagas
durante a construção
oneram os custos
em mais 11%.
”
investimento de US$1 milhão em projetos
de água encanada realizado em países
com carência de tais instalações beneficiaria 2.500 famílias e salvaria 19 crianças
por ano.5 O acesso à água traria outros
impactos positivos na saúde doméstica,
na educação, no resgate da condição feminina e na pobreza. E os custos impostos pela corrupção, em 20 anos, significam que, o mesmo investimento de US$1
milhão, quase 30 % menos de domicílios
teriam acesso à água, menos 113 crianças
sobreviveriam, e todos os benefícios relacionados ao serviço ficariam definitivamente comprometidos.
Recente estimativa na determinação dos
custos de investimento, baseados em tendências passadas, indica que países com
baixo PIB teriam que investir US$29 bilhões em projetos de água para enfrentarem a demanda dos usuários na década
que termina em 2010.6 Os impactos de corrupção inevitavelmente criariam perda de
recursos, arruinando a efetividade de tal
investimento. Assumindo um contexto de
baixa corrupção, a cada ano a taxa de mortalidade infantil recuaria em 540.000 vítimas, graças ao investimento em projetos
de acesso à água realizados numa década. Um ambiente de alta corrupção salvaria, ao menos, 30 % de vidas.
Essa é apenas uma estimativa parcial.
Como sinalizado, os impactos da corrupção no acesso doméstico à água vão mui-
to além do aumento da mortalidade infantil. A falta de acesso à água implica também em doenças e mortalidade de crianças mais velhas, bem como de adultos.
Menos água e mais doença representam
perdas de dias na escola e no trabalho. As
conseqüências do acesso reduzido à água
deixam marcas duradouras na escolaridade e na geração de renda domiciliar.
Para cuidar dos doentes, outros membros da
família são obrigados a se afastarem das atividades economicamente produtivas. Quando
o domicílio não é servido por água encanada,
muito mais tempo é gasto na coleta do líquido
em pontos distantes. E, como tal tarefa é freqüentemente delegada às mulheres e às crianças, as famílias são forçadas a se dividirem
entre a educação e outras atividades.7 Sistemas de governo fracos e altos níveis de
corrupçãocombinam- se em diferentes composições para afetarem os lares e arruinarem
o sustento das famílias. De qualquer modo, o
impacto mais surpreendente vem a ser o custo em termos de vida e de morte.
■
REFERÊNCIAS
1. As opiniões expressas neste artigo são do autor e não
refletem necessariamente as do Banco Mundial, de seus
diretores executivos ou dos países que eles representam.
2. J. Davis, ‘Corruption in Public Service Delivery: Experience from South Asia’s Water and Sanitation Sector’,
World Development, vol. 32, no. 1 (2004).
3. D. Leipziger et al., ‘Achieving the Millennium Development Goals: The Role of Infrastructure’, Policy Research
Working Paper no. 3163 (Washington, DC: World Bank,
2003). It is worth noting that this estimate is open to dispute: see M. Ravallion, ‘Achieving Child-Health-Related Millennium Development Goals: The Role of Infrastructure – A
Comment’, World Development, vol. 35, no. 5 (2007).
4. M. Fay and T. Yepes, ‘Investing in Infrastructure: What
is Needed from 2000 to 2010’, Policy Research Working
Paper no. 3102 (Washington, DC: World Bank, 2003).
5. Com base em domicílio médio de cinco pessoas e uma taxa
de natalidade bruta de 30 por 1.000 pessoas (a média nos
países de baixa renda). As estimativas exatas são 18,75 e
12,93 mortes evitadas, respectivamente. Cálculo para o caso
de baixo custo: cada US$1 milhão investido conecta 2.500
(US$1.000.000/US$400) de lares com 12.500 indivíduos
(2.500_ 5). Estes lares dão à luz 375 crianças a cada ano
(0,03_ 12.500). Para estas casas, a cobertura aumentou 0 a
100 por cento, resultando em menos 100 crianças mortas por
2.000 nascimentos. Isso sugere que cada US$1 milhão possa
salvar em média 18,75 crianças por ano (375_100/2000).
6. M. Fay e T. Yepes, 2003. As estimativas de custo são para
o período 2000 a 2010 e te por objetivo o aumento e a manutenção das redes de infra-estrutura de água. Não se baseia na
infra-estrutura exigida para atingir-se os objetos estabelecidos nas Metas de Desenvolvimento d Milênio, da ONU.
7. Veja artigo que começa à página 40.
Charles Kenny é economista sênior do Banco
Mundial, emWashington, DC. O texto, com tradução da editoria de C&MA, foi extraído do Global Corruption Report 2008, Part one: Corruption in the water sector, pp. 15-16. Dividido em
10 capítulos, o relatório de 346 pp. pode ser baixado em formato PDF de www.transparency.org/
publications/gcr/download_gcr#1 Primeiro relatório do gênero, ele identifica todas as questões
relacionadas à água.
Cidadania&MeioAmbiente
53
s
ESCASSEZ DE ÁGUA:
Crise ilenciosa
foto: kariris
Já é consenso que grande parte dos conflitos
políticos e sociais no futuro deixará de ter
como causa o petróleo
e será provocado pelas disputas
em torno da água doce,
cujos estoques diminuem
dramaticamente a cada ano.
É tempo de se dar um basta
à exclusão hídrica.
por Carlos Ferreira de Abreu Castro e Aldicir Scariot
A CRISE
SILENCIOSA
A água é vida para as pessoas
e para o planeta. A água doce é
– por si só – o elemento mais
precioso da vida na Terra. É
essencial para a satisfação das
necessidades humanas básicas, a saúde, a produção de alimentos, a energia e a manutenção dos ecossistemas regionais e mundiais. “Embora se
observe pelos países mundo
afora tanta negligência e tanta
falta de visão com relação a
este recurso, é de se esperar
que os seres humanos tenham
pela água grande respeito, que
procurem manter seus reservatórios naturais e salvaguardar
sua pureza. De fato, o futuro
da espécie humana e de muitas
54
outras espécies pode ficar comprometido a menos que haja
uma melhora significativa na
administração dos recursos hídricos terrestres.” (1)
O acesso à água já é um dos
mais limitantes fatores para o
desenvolvimento socio-econômico de muitas regiões. “A
sua ausência, ou contaminação, leva à redução dos espaços de vida, e ocasiona, além
de imensos custos humanos,
uma perda global de produtividade social. (2) A competição
de usos pela agricultura, geração de energia, indústria e o
abastecimento humano tem
gerado conflitos geopolíticos
e sócio-ambientais e afetado
diretamente grande parte da
população da Terra. Mais de
2,6 bilhões de pessoas carecem de saneamento básico e
mais de um bilhão continuam a
utilizar fontes de água impróprias para o consumo. Por falta de água limpa, metade dos
leitos hospitalares disponíveis
no mundo é ocupada e cerca
de 5 milhões de pessoas (3), na
sua maioria crianças, morre
anualmente. Apesar destes
dados assustadores, a crise da
água é uma crise silenciosa.
A qualidade e quantidade de
água têm impactos diretos nos
meios de vida das populações
mais pobres, na sua saúde e
na sua vulnerabilidade a crises
de todos os tipos. Também afetam grandemente o estado do
meio ambiente, a capacidade
dos ecossistemas de fornecer
serviços ambientais e a probabilidade de desastres ambientais. Em todo o mundo, a falta
de medidas sanitárias e de tratamento de esgotos polui rios
e lagos; lençóis freáticos são
rapidamente exauridos e contaminados por métodos de exploração inadequados; águas
superficiais são superexploradas pela irrigação e poluídas
por agrotóxicos; populações
de peixes são sobre-exploradas, áreas úmidas, rios e outros ecossistemas reguladores
de águas são drenados, canalizados, represados e desvia-
dos sem planejamento.(4) Os
estoques de água doce estão
sendo intensamente diminuídos pelo despejo diário de 2
milhões de toneladas de poluentes (dejetos humanos, lixo,
venenos e muitos outros efluentes agrícolas e industriais)
nos rios e lagos. A salinidade,
assim como a contaminação
por arsênico, fluoretos e outras toxinas ameaçam o fornecimento de água potável em
muitas regiões do mundo.
2050, se mudanças profundas
não ocorrerem, a escassez de
água afetará 7 bilhões de pessoas em 60 países(7). É uma crise silenciosa, é uma crise dos
que não têm voz.
A
OBJETIVOS
DESENVOLVIMENTO
DO MILÊNIO
EXCLUSÃO HÍDRICA:
OS POVOS SEM ÁGUA
Uma das conseqüências mais
perversas deste mau uso é a
exclusão hídrica. Hoje, apenas
metade da população das nações em desenvolvimento tem
acesso seguro à água potável.
A escassez de água aumentará
significativamente nos próximos anos devido ao aumento
do impacto combinado resultante do aumento do uso per
capita de água e dos efeitos das
mudanças climáticas. O aumento da população e da renda reflete diretamente no aumento do
consumo de água e na produção de resíduos poluentes. A
população urbana dos países
em desenvolvimentos aumentará dramaticamente, gerando
demanda muito além da capacidade, já inadequada, de infraestrutura para fornecimento de
água e saneamento.
Em 2050, pelo menos uma em
cada quatro pessoas provavelmente viverá em um país afetado por escassez crônica ou recorrente de água potável. Isto
poderá restringir seriamente a
disponibilidade de água para
todas as finalidades, particularmente para a agricultura, que
atualmente responde por 70%
de toda a água consumida.(5) A
falta de conciliação entre todos
esses usos e funções da água,
o aumento da demanda aliado
aos conflitos já existentes e a
assimetria de poder entre os interesses envolvidos criou uma
ÁGUA E OS
DE
Porto Velho (RO) - Crianças da comunidade carente de São
Sebastião. Na capital de Rondônia, apenas 3% da população
tem saneamento e 50% não conta com abastecimento de água.
Prefeitura recebeu R$ 600 milhões para esse tipo de obras, por
conta do PAC. Foto: Roosevelt Pinheiro/ABr
OS OITO OBJETIVOS FIXADOS
PELA CONFERÊNCIA DO MILÊNIO:
■
■
■
■
■
■
■
■
A erradicação da pobreza e da fome.
A universalização do acesso à educação primária.
A promoção da igualdade entre os gêneros.
A redução da mortalidade infantil.
A melhoria da saúde materna.
O combate à AIDS, malária e outras doenças.
A promoção da sustentabilidade ambiental.
O desenvolvimento de parcerias para o desenvolvimento.
nova categoria de injustiça
social – a exclusão hídrica, os
“povos sem água”.
O cenário de escassez provocado pela degradação e pela
distribuição irregular gera conflitos, seja dentro dos próprios países ou entre nações. Historicamente, dominar o uso da
água dos rios fez com que algumas civilizações se utilizassem disso como forma de exercer poder sobre outros povos
e regiões geográficas. Um
exemplo de conflito moderno
pelo uso da água é vivenciado
por israelenses e palestinos.
Israel depende das águas subterrâneas que estão no território palestino ocupado e retira
cerca de 30% da disponibilidade do aqüífero, comprometendo a capacidade de recarga
desse reservatório.(6)
O estoque de água já é grandemente desigual. A Ásia, com
60% da população mundial,
detém apenas 36% da água
doce mundial. As disparidades
continuarão a crescer. Hoje,
vinte países enfrentam uma
dramática falta de água. Em
Como afirmou Nitin Desai, Secretário-Geral da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável, não é possível
melhorar a difícil situação dos
pobres do mundo sem fazer alguma coisa em relação à qualidade da base de recursos de
que dependem: as terras e os
recursos hídricos. Melhorar a
utilização dos recursos hídricos é decisivo para todas as
outras dimensões do desenvolvimento sustentável. Para o
Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento
(PNUD), a água é um ponto de
partida catalítico nos esforços
para ajudar os países em desenvolvimento na luta contra
a fome e a pobreza, na salvaguarda da saúde humana, na
redução da mortalidade infantil e na gestão e proteção dos
recursos naturais.
Durante a Conferência do Milênio, promovida pela Organização das Nações Unidas em
setembro de 2000, 191 países –
a maioria representada na conferência por seus chefes de
estado ou governo – subscreveram a Declaração do Milênio, que estabeleceu um conjunto de objetivos para o desenvolvimento e a erradicação
da pobreza no mundo, os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) –
(ver quadro à esquerda).
Dada esta lista de oito objetivos
internacionais comuns, 18 metas
e mais de 40 indicadores foram
definidos, tendo em vista possibilitar entendimento e avaliações
uniformes dos ODM nos níveis
global, regional e nacional.
Cidadania&MeioAmbiente
55
A meta 10 visa reduzir pela metade, até 2015, a parcela da população sem acesso seguro e
duradouro a água potável.
No contexto dos ODM a água
desempenha um papel central
devido à sua importância para
promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza,
propiciar segurança alimentar,
melhorar as condições da saúde ambiental e proteger os
ecossistemas. A expansão do
acesso ao fornecimento doméstico de água e aos serviços de saneamento contribuirá para o alcance de vários
ODM, visto que a água está
intrinsecamente ligada a eles.
É difícil imaginar como pode
haver avanços significativos
sem primeiro assegurar que as
pessoas tenham um fornecimento duradouro e confiável
de água e instalações sanitárias adequadas.
A
de 2,6 bilhões
“ deMaispessoas
carecem
de saneamento básico
e mais de um bilhão
continuam a utilizar fontes
de água impróprias
para o consumo.
”
água é um recurso infinito, já
provocam o aumento na escassez de água de qualidade nas
regiões Sul e Sudeste do país,
onde vive 60% da população.
CRISE DA ÁGUA
NO
BRASIL
O Brasil detém 12% das reservas de água doce do mundo,
sendo que cerca de 70% desse
total estão na Bacia Amazônica, onde a densidade populacional é a menor do país. Por
outro lado, a região mais árida
e pobre do Brasil, o Nordeste,
onde vivem 28% da população,
possui somente 5% da água
doce. A alta densidade populacional, a poluição e a agricultura, aliadas à visão de que a
56
foto: Allarakhia
“Nenhuma medida poderia
contribuir mais para reduzir a
incidência de doenças e salvar
vidas no mundo em desenvolvimento do que fornecer água
potável e saneamento adequado a todos”. Essa afirmação do
então secretário-geral da ONU,
Kofi Annan, define de forma
categórica o papel fundamental que a água e o saneamento
desempenham na erradicação
da pobreza e para assegurar o
desenvolvimento humano
sustentável.
Os índices de abastecimento de
água mostram que há enormes
desigualdades entre regiões e
entre ricos e pobres. Os mais
prejudicados são aqueles que
vivem nas favelas, periferias e
pequenas cidades. Somente
um terço dos 40% mais pobres
dispõe de serviços de água e
saneamento, enquanto que
para os 10% mais ricos esse
valor sobe para 80%. O saneamento básico atinge somente
56% dos domicílios urbanos e
meramente 13% dos domicílios rurais. As classes mais altas, com rendimentos acima de
10 salários mínimos, têm cobertura 25% maior em água e acima de 40% em esgoto que a
população com renda inferior
a 2 salários mínimos, cujos índices de cobertura desses serviços estão abaixo da média
nacional.(8)
A Meta 11 dos ODM estabelece que, até 2020, deve haver
melhora significativa na qualidade de vida de 100 milhões
de habitantes de moradias inadequadas em todo o mundo,
incluindo-se acesso a esgotamento sanitário (indicador 31).
A análise dos dados demonstra que diminuiu, em termos
relativos, a proporção da população sem acesso a esgotamento sanitário – apesar de,
em número absolutos, ter havido aumento da população
brasileira e da população sem
acesso a esses serviços. De
fato, em 1991 havia 75,1 milhões de pessoas (61,6%) sem
acesso à rede de esgoto e, em
2000, esse número subiu para
93,7 milhões, o equivalente a
55,6% dos habitantes. Se o ritmo de queda percentual continuar o mesmo, em 2015 ainda haverá 45,5% da população
sem acesso a esgotamento
sanitário. A projeção desses
dados indica que pouco menos da metade da população
do Brasil (42,3%) continuaria
sem acesso à rede de esgoto
em 2020. (9) Essas disparidades demonstram o quanto o
Brasil ainda tem de avançar
nessa questão.
O
ACESSO À ÁGUA
E SANEAMENTO
É UMA QUESTÃO ÉTICA
A crise da água vem aumentando, mesmo com alguns
avanços obtidos para atingir
os objetivos estabelecidos em
2000. O Projeto do Milênio das
Nações Unidas foi estabelecido em 2002 para desenvolver
um plano de ação que habilite
os países em desenvolvimento a alcançar os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio
e a reverter o massacre da pobreza, da fome e das doenças
que atinge bilhões de pessoas. As equipes das dez forçastarefas do Projeto Milênio,
congregando 265 especialistas de todo o mundo, foram
desafiadas a diagnosticar os
principais impedimentos ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a
apresentar recomendações de
como superar os obstáculos,
colocando as nações no caminho certo para atingir as
metas até 2015.
No início de 2005, a força-tarefa sobre Água e Saneamento
recomendou ações críticas
para minorar a crise global de
água e saneamento e promover a gestão adequada dos recursos aquáticos. (Ver algumas
das ações recomendadas no
quadro Água e Saneamento.)
ÁGUA E SANEAMENTO
Governos nacionais e outras partes envolvidas devem
assumir o compromisso de definir a crise do saneamento
como prioridade máxima em suas agendas.
■
Investimentos em água e saneamento devem ser ampliados e devem focalizar a provisão sustentável de serviços,
em vez de apenas construir instalações.
■
Governos e agências doadoras devem fortalecer as comunidades locais com a autoridade, recursos e capacidade profissional necessários para a gestão do fornecimento de água e a provisão de serviços de saneamento.
■
Estas recomendações mostram
claramente que, após cinco
anos, a ONU continua conclamando os países a assumir o
acesso seguro à água potável
como prioridade máxima em
suas agendas. O mais grave é o
fato de que as metas estabelecidas para 2015 não visam a eliminar, e sim reduzir, a tremenda
injustiça social da falta de acesso seguro à água e ao saneamento básico para todos os
habitantes da Terra. De acordo
com a força-tarefa, expandir a
cobertura de água e saneamento não requer somas colossais
de dinheiro (10), nem descobertas científicas inovadoras. Quatro em cada dez pessoas no
mundo não têm acesso nem a
uma simples latrina de fossa
não-asséptica e são obrigadas
a defecar a céu aberto. Obviamente, o conhecimento, as ferramentas e os recursos financeiros estão disponíveis para
pôr fim a esta infâmia.
Como afirma Mohamed Bouguerra(11), o fornecimento de
água para a humanidade articula-se estreitamente às prioridades estabelecidas pelos homens. Os usos que damos à água
refletem, no fim das contas, os
nossos valores mais profundos.
“A água é, primeiramente, uma
questão política e ética. Nenhuma outra questão merece mais
atenção por parte da humanidade. Ela determina a paz universal e o futuro de todos os seres
vivos”. A posição de Wally
N’Dow(12), para quem grande
parte dos conflitos políticos e
sociais no futuro deixarão de ter
como causa o petróleo e serão
provocados pelas disputas em
Dentro do contexto das estratégias nacionais de redução da pobreza, os países devem elaborar planos coerentes de desenvolvimento e gestão dos recursos hídricos.
■
■ A inovação deve ser incentivada para acelerar o progresso, e assim alcançar diversos Objetivos de Desenvolvimento simultaneamente. Por exemplo, o desenvolvimento de
novas formas de reutilização da água recuperada na agricultura poderia aumentar o rendimento das colheitas e reduzir a fome, melhorando também o saneamento.
■ Mecanismos
de coordenação devem ser implementados
para melhorar e avaliar o impacto das atividades financiadas por agências internacionais no âmbito nacional.
O Programa 1 Milhão de Cisternas levou água ao Povo Xacriabá, em
São João das Missões, MG, Médio São Francisco.Foto: João Zinclar
torno da água, é hoje praticamente um consenso.
O alerta feito por Bouguerra não
pode ser ignorado. Necessitamos, hoje, da formulação de uma
política global para a água, fundada sobre o plano da ética, e
que sirva de guia para definir
uma partilha equilibrada dos
recursos. “Dessa maneira se
poria fim aos embates indignos
que os detentores do poder e
alguns grupos de pressão exer-
cem sobre este recurso. Se a
política da água precisa ser integrada à viabilidade econômica, não é menos indispensável
que ela englobe também a solidariedade social, a cooperação
com os países mais desprovidos, a responsabilidade ecológica e a utilização racional desse recurso, para não comprometer as necessidades das gerações atuais e futuras e dos demais seres vivos que partilham
conosco a água do globo”. ■
REFERÊNCIAS:
(1) J.W.Maurits la Rivière “Threats to the World’s Water” Scientific American, special issue Managing Planet Earth, 1989
(2) Ladislaw Dobor. In “A Reprodução Social” Volume 2 Política
Econômica e Social : os desafio do
Brasil. 2001
(3) Dados do relatório da Força-tarefa da ONU. Água e Saneamento
do Projeto do Milênio. 2005. Na
literatura especializada, estes dados
variam muito, com números até cinco vezes maiores.
(4) WWF-Brasil “Programa Água
para a Vida - Conservação e Gestão
de Água Doce”
(5) UN/WWAP (United Nations/
World Water Assessment Programme). 2003. UN World Water Development Report: Water for People,
Water for Life. Paris, New York and
Oxford: United Nations Educational,
Scientific and Cultural Organization
and Berghahn Books.
(6) Instituto Socioambiental – ISA.
Almanaque Brasil Socioambiental,
2004. Relatos de diferentes conflitos
entre intra e inter nações, bem como
resultantes do crescente processo de
privatização dos serviços de águas e
saneamento pode ser visto em Evaristo
Miranda. Água na natureza e na vida
dos homens. Idéias e Letras. 2004 e
em Mohamed Bouguerra. As Batalhas
da Água: por um bem comum da humanidade. Editora Vozes, 2004.
(7) The United Nations World
Water Development Report 2003,
UNESCO-WWAP.
(8) Ministério das Cidades 2004.
Saneamento Ambiental. Cadernos
MCidades, vol. 5.
(9) Centro de Pesquisa de Opinião
Pública – DATAUnB. Relatório Nacional ODM 7 “Garantir a Sustentabilidade Ambiental”. UnB, 2004.
(10) Estima-se que sejam necessários apenas 4% dos gastos militares
com armamentos no Mundo para
prover água potável e saneamento
adequado para toda a humanidade.
(11) Mohamed Bouguerra. As Batalhas da Água: por um bem comum
da humanidade. Editora Vozes,
2004. 238p.
(12) Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Habitações Humanas (Habitat II)
Carlos Ferreira de Abreu
Castro – Doutor em Meio
Ambiente e Desenvolvimento,
Coordenador da Unidade de
Meio Ambiente, Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento – a PNUD/Brasil.
Aldicir Scariot – Doutor em
Ecologia, Analista de Projetos,
Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento –
PNUD/Brasil.
Cidadania&MeioAmbiente
57
SACIAR
A SEDE
O Programa
1 milhão de
Cisternas
prova que
o povo do
semi-árido
é capaz de
dirigir seu
próprio destino
e encontrar
meios de
resolver seus
problemas
quando lhe são garantidos meios e políticas de
convivência com o fenômeno natural da seca.
de ÁGUA e
CIDADANIA
por Frei Beto - fotos: Febraban
CISTERNAS
DE CHUVA:
ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO
Como impedir que a população do semiárido brasileiro prossiga vítima da seca?
A melhor iniciativa é o Programa 1 Milhão
de Cisternas, também conhecido por Programa de Mobilização e Formação para
Convivência com o Semi-árido. Em novembro último comemorou-se o marco de
1 milhão de pessoas favorecidas pela
construção de cisternas.
Quem o monitora, há quatro anos, é a Articulação no Semi-árido Brasileiro (ASA),
ONG que conta com o apoio do governo
federal, da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), da sociedade civil e de vários
parceiros nacionais e internacionais.
58
O programa parte da concepção de que o
povo do semi-árido é capaz de dirigir seu
próprio destino e encontrar meios de resolver seus problemas, desde que a ele
sejam garantidos meios e políticas de convivência com a seca, e não de combate a
este fenômeno natural. Assim como em
outros países não se combate a neve, mas
se aprende a conviver com ela, o mesmo
se aplica à seca.
Até agora, o programa mobilizou 228.538
famílias e construiu 221.362 cisternas de
placas para captação de água de chuva –
via calha do telhado da casa –, para consumo humano. Nada mais potável que a
água da chuva – que, nas cidades, irres-
ponsavelmente desperdiçada, entope
bueiros, causa erosão de encostas, alagamentos e enchentes.
ÁGUA
DE QUALIDADE PARA TODOS
Hoje, mais de 1 milhão de pessoas têm
garantido o acesso a água de qualidade
para beber e cozinhar, o que significa,
em termos de segurança alimentar e nutricional, efetiva revolução em suas vidas. Quando se sobrevoa o semi-árido
notam-se pontinhos brancos esparsos
na zona rural. São as cisternas alocadas
nas casas dos agricultores, muitas em
lugar de difícil acesso.
Um dos efeitos mais tangíveis é favorecer
mulheres e crianças que, todo dia, deixam
de caminhar quilômetros para buscar água,
muitas vezes poluída. Agora, podem dedicar o tempo à educação, à família, à produção, ao lazer. Como muitas mulheres afirmam, sentem-se mais mães, mais esposas,
mais companheiras, mais gente.
As crianças, agora mais saudáveis, já não
são acometidas por doenças transmissíveis por recursos hídricos, entre as quais
a diarréia; idosos e portadores de deficiências são atendidos; famílias inteiras, que
anteriormente nunca tinham acesso a noções e cursos de tratamento da água e
convivência com o semi-árido, agora usam
essas informações para melhorar sua qualidade de vida.
As cisternas são construídas com, e não
para as pessoas; essas se envolvem profundamente na obra, o que garante o seu
cuidado. Como todo o processo é feito
em comunidades, vê-se ali a erradicação
da exclusão social e a afirmação da cidadania. São mais de 1 mil municípios do
semi-árido que, mobilizados, compõem um
novo cenário.
As cisternas, perfuradas ao lado da casa e
revestidas de placas de cimento, são equipamentos simples, de tecnologia barata e
fácil manejo. Têm longa vida útil quando
cercadas de cuidados mínimos, de acordo
com o que se aprende nos cursos. Ao visitar a região, notei em algumas girinos vivos, sinal de que a água é própria para
consumo humano. Inaugura-se, assim, uma
política pública não-clientelista, efetivamente voltada aos mais pobres.
Falta, agora, o governo federal dar mais
apoio à ASA, para que se possa atingir a
meta de construir 1 milhão de cisternas e
favorecer 5 milhões de pessoas com acesso à água potável.
E fica a pergunta que não quer calar: por
que nas edificações urbanas raramente se
encontram equipamentos de captação da
água da chuva, gratuita e potável? O exemplo não deveria começar pelas obras do
poder público?
■
Frei Beto é escritor e autor, em parceria
com Mario Sergio Cortella, de Sobre a
Esperança (Papirus), entre outros livros.
Artigo publicado no Estado de Minas,
Belo Horizonte (15/11/2007) e enviado
por William Rosa Alves, colaborador do
www.ecodebate.com.br
CISTERNAS: ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO
SEMI-ÁRIDO NORDESTINO
Área de 868 mil km2.
Abrange o norte dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo; o sertão da
Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará,
Piauí e o sudeste do Maranhão.
Estima-se que vivam aproximadamente 8 milhões de pessoas na área rural
dessa região, o que a torna o semi-árido mais populoso do mundo.
Na região chove em média 700 a 750 milímetros por ano.
A chuva não é regular, e o solo não absorve a água, que evapora
rapidamente.
Por isso é importante captar a água das chuvas e armazená-la para a estiagem.
CISTERNAS
Cisternas caseiras são o reservatório mais simples e eficiente.
Cisternas de placas são o tipo mais comum.
Cisternas de placas são reservatórios cilíndricos, cobertos e semi-enterrados
que permitem o armazenamento de água para consumo humano.
O tamanho da cisterna varia de acordo com o número de pessoas da casa e
do tamanho do telhado.
As cisternas podem armazenar 10 mil, 15 mil, 16 mil, até 20 mil litros.
A experiência mostra que a cisterna pode garantir água potável para a
família beber e cozinhar por oito meses.
Uma família de cinco pessoas terá água para beber por até um ano, com
200 mm de chuva por ano.
MATERIAIS
E
CUSTOS
Os materiais necessários são cimento, areia, ferro, arame, brita, vedacit,
calhas de zinco, pano, canos de PVC e joelho de PVC e supercal.
Segundo técnicos da ONG dos funcionários do Banespa que trabalham com
o Projeto Cisternas, os custos atuais variam bastante: de um mínimo de
R$844,00 até o máximo de R$1.200,00. Há construções de R$880,00 a
R$900,00, até R$1.111,00.
A mão-de-obra é a própria família, que precisa aprender não só a construir
a cisterna, mas como fazer sua manutenção e como tratar a água.
Pedreiros são treinados para fazer cisternas. Pela obra podem receber
R$100,00, muito acima da média do sertão. Dá-se preferência a pedreiros
da própria comunidade.
BENEFÍCIOS
Queda vertical dos casos de verminose. Uma comunidade da Bahia acusou
100% de habitantes com verminose antes da construção de cisternas. Depois,
o índice caiu para 7%.
Uma família gasta em média uma hora por dia para buscar água nos
açudes. Com a cisterna a família tem mais tempo para outras atividades.
Diminui a dependência da população aos caminhões-pipa enviados por
políticos regionais.
Promove a educação da população em questões de saúde, higiene, ecologia
e cidadania.
Contribui para a geração de renda, tornando o grupo beneficiado
auto-sustentado.
Fixa a população na região.
Fonte: Febraban - Federação Brasileira de Bancos/Superintendência de Comunicação Social
Cidadania&MeioAmbiente
59
DIREITOSIHUMANOS
S
eria de se esperar que o advento do século 21 iniciasse
uma era de tolerância e de respeito ao semelhante. Na
prática, no entanto, evidencia-se o crescimento de uma
onda global de intolerância, de preconceitos e de absoluta
rejeição aos que, de algum modo, são diferentes. Por isso,
os direitos humanos fundamentais são seguidamente violados em escala global.
Ninguém nasce intolerante, preconceituoso, racista, homofóbico, misógeno, anti-semita, islamofóbico, etc. Tais atitudes são aprendidas no berço, herdadas da intolerância –
aberta ou camuflada – de nossos antepassados. Se não
tivermos capacidade crítica de compreender nossos próprios preconceitos e superá-los, iremos, certamente, reproduzir
o modelo, contaminar nossos descendentes... e perpetuar
desigualdades.
Muitos desafios se apresentam neste novo século, com
destaque para as mudanças climáticas, aquecimento
global, hiperconsumo, esgotamento de recursos naturais, crise alimentar, refugiados ambientais... Sem o esforço concentrado de solidariedade e de respeito aos
valores humanistas, todas as ações para salvar o planeta e a nós mesmos redundarão em fracasso.
Nenhuma parcela da humanidade está ao abrigo dos
desafios globais. Mais do que nunca precisamos redescobrir o sentido da fraternidade, valorizar o que nos une e
desprezar o que nos distância.
Se não nos esforçarmos para sermos melhores do que
nossos antepassados, os novos desafios deste século serão
muitos maiores e mais poderosos do que todos nós. Não
temos muito tempo.
Henrique Cortez
60
?
POR QUE
A LEI ÁUREA
NÃO REPRESENTOU
A ABOLIÇÃO
DEFINITIVA
por Leonardo Sakamoto
O fim da escravidão legal no Brasil não foi
acompanhado de políticas públicas e mudanças
estruturais visando à inclusão dos trabalhadores.
Por isso, para além dos efeitos da Lei Áurea,
que completa 120 anos, trabalhadores rurais do Brasil
ainda vivem, hoje, sob a ameaça do cativeiro.
61
Cidadania&MeioAmbiente
61
E
m 2008, comemoram-se os 120 anos
da Lei Áurea, quando o Estado bra
sileiro passou a considerar ilegal o
direito de propriedade de um ser humano
sobre outro. Contudo, o ato da princesa
Isabel não foi a causa do fim do regime
escravista no país, mas o final (postergado, ao máximo) de um processo que começou com a proibição do tráfico negreiro entre a África e o Brasil. E contou com
a instituição de garantias prévias para que
os proprietários rurais tivessem mão-deobra farta e à disposição, mesmo após a
assinatura que condenou o trabalho escravo à ilegalidade.
Para entender esse processo, portanto, é
necessário voltar no tempo e recorrer aos
acontecimentos do início do século XIX. Não
apenas àqueles decorrentes da mudança da
família real para o Brasil, mas também à expansão da Inglaterra industrial pelo mundo.
O EXPANSIONISMO INGLÊS
E A ESCRAVIDÃO
Com a invasão das tropas napoleônicas,
a Coroa Portuguesa passou a depender
dos ingleses para retomar seu país e garantir sua própria segurança no Rio de
Janeiro, além da proteção das colônias.
Não é de se estranhar, então, que a Inglaterra, interessada em tornar o Brasil e as
colônias espanholas do Prata e do Pacífico mercados para seus produtos manufaturados e fontes baratas de matérias-primas, pressionasse por melhores condições
comerciais. O Tratado de Navegação e
Comércio, assinado em 1810, dois anos
após a abertura dos portos às nações estrangeiras, foi instituído nesse sentido. Por
um tempo, os ingleses passaram a usufruir de uma taxa de importação (15%)
menor que a própria tarifação imposta aos
produtos portugueses (16%).
Junto a esse acordo foi assinado outro
entre as duas coroas. Pelo Tratado de Aliança e Amizade, Portugal comprometia-se
a limitar o tráfico de escravos entre suas
colônias. A bem da verdade, isso não causou grande impacto na economia brasileira, pois o comércio português de escravos já estava restrito aos seus próprios
domínios na África. Mas foi um dos primeiros indícios do que viria a ser o comportamento inglês, nas décadas seguintes. Prova disso é que, no Congresso de
Viena, cinco anos mais tarde, pressionado pelos ingleses, Portugal concordou em
62
proibir o tráfico de seres humanos em regiões acima da linha do Equador. A medida colocava de fora desse sistema comercial um dos principais fornecedores de
mão-de-obra para o Brasil – a Costa da
Mina, na África Ocidental. O acordo veio
ganhar “força de lei” após a inclusão das
canhoneiras ao papel assinado, por meio
de uma cláusula adicional, inserida anos
mais tarde, que dava à Inglaterra o direito
de abordar, em alto-mar, embarcações suspeitas de transportarem cativos e de
apreendê-las.
“
A importação era
a única forma de
suprir o aumento da
demanda por força
de trabalho e mesmo
sua reposição, já
que a reprodução da
mão-de-obra escrava
em cativeiro era
insignificante.
”
A despeito dos acordos internacionais,
tanto a Coroa Portuguesa quanto o governo imperial brasileiro que a sucedeu
não tornaram efetivas essas promessas de
encerrar o tráfico. A Inglaterra, que teve
um papel de mediação no processo de independência do Brasil, continuou pressionando a nova administração, com medidas duras, para acabar com o tráfico negreiro. Exigiu, em um tratado de 1826, ratificado em 1827, que o país proibisse o
comércio humano em três anos. Em 1831,
o Brasil realmente promulgou a lei proibindo o tráfico de pessoas da África e
declarou livres os cativos que desembarcassem após aquela data. É claro que a lei
permaneceu como letra-morta, em função
do fortalecimento da influência dos proprietários rurais após a abdicação do Imperador Pedro I, no mesmo ano.
ESCRAVIDÃO:
BASE DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS
Pois, como afirmou Caio Prado Júnior, a
escravidão constituía a mola mestra da
vida do país, repousando sobre ela todas
as atividades econômicas. A produção nacional, voltada para atender às necessidades de gêneros alimentícios (como o café)
e de matérias-primas para uma Europa em
plena marcha industrial, dependia do trabalho servil. Em decorrência disso, por
mais que houvesse um crescente descontentamento da opinião pública esclarecida com relação ao trabalho escravo, era
enérgica a defesa de sua manutenção pelo
setor produtivo. Afinal de contas, não
havia no horizonte visível uma opção (que
não desmontasse o sistema) para substituir esse tipo de mão-de-obra. E a importação era a única forma de suprir o aumento
da demanda por força de trabalho e mesmo sua reposição, haja vista que a reprodução da mão-de-obra escrava em cativeiro era insignificante.
Na sociedade escravista, o trabalhador não
possuía a propriedade de sua força de trabalho. Não tinha liberdade para vendê-la a
quem garantisse melhores remunerações ou
condições de subsistência; estava atado a
uma pessoa ou empresa pelo tempo de sua
vida. Era mercadoria. E, por ser mercadoria,
também era patrimônio. A riqueza de um
homem era comumente medida pela quantidade de escravos que possuía. Mas configurava-se como um patrimônio de natureza diferente, comprado pelo fazendeiro
em um mercado de força de trabalho, do
qual acabava por ser dependente e refém.
O escravo-mercadoria tornava-se objeto
de lucro pelo comércio internacional antes mesmo de começar a produzir. Ao investir determinada soma de dinheiro na
compra de força de trabalho, um fazendeiro tinha em mente que teria de buscar um
retorno equivalente ou superior à quantidade de recursos necessários à manutenção da mão-de-obra, somada aos recursos que ele investiu em sua compra, mais
a taxa de juros que ganharia caso investisse o mesmo valor no mercado. Caso
contrário, o negócio não valeria a pena.
Na primeira metade do século XIX já era
possível prever que o fim da escravidão
no Brasil seria apenas uma questão de tempo. Tanto as pressões externas quanto as
internas apontavam para uma mudança no
tipo da força de trabalho utilizada na produção, o que, sem dúvida alguma, era condição fundamental aos desenvolvimentos
econômico e social do país. A dúvida seria como e quando a mudança aconteceria
e a qual custo – toda alteração no curso
de um sistema tem um custo, que é ponderado pelos gestores no momento de
tomar decisões quanto à adoção de políticas. Um fator interno que contribuiu para
que esse balanço de fatores pendesse
para o fim do tráfico foi a situação exposta
pelo sociólogo José de Souza Martins. Os
comerciantes de escravos haviam se tornado proeminentes figuras financeiras,
tendo os proprietários rurais do país como
seus devedores. A sujeição econômica a
essa classe, que já não gozava de boa reputação e imagem na sociedade, trazia insatisfação aos produtores.
Vale lembrar que, externamente, o país já
enfrentava problemas com a abordagem
internacional de seus navios, sendo eles
transportadores de escravos ou não. A justificativa de impedir o tráfico era usada
mesmo quando as embarcações estavam
de acordo com os acordos ingleses. Em
1845, o parlamento inglês aprovou o Bill
Aberdeen, declarando legal o aprisionamento de qualquer embarcação utilizada
no tráfico e a sujeição de seus ocupantes
ao julgamento por pirataria. Os navios
eram caçados não apenas em alto-mar, mas
também em águas abrigadas do Brasil e
nos seus portos.
LEI
DE
TERRAS:
A EXCLUSÃO SOCIAL E ECONÔMICA
Em 1850, o governo brasileiro finalmente
adotou ações eficazes para coibir o tráfico transatlântico de escravos, com a adoção de leis e ações. Os resultados puderam ser sentidos rapidamente: em 1849, 54
mil escravos entraram no país. O número
caiu para 23 mil, em 1850; 3 mil, em 1851;
pouco mais de 700, em 1852, até acabar,
então, definitivamente.
Nos anos seguintes, foram tomadas medidas
pela libertação de crianças e de sexagenários.
Isso, na verdade, serviu apenas como distração, postergando o fim da escravidão. Os
escravos que conseguiam chegar aos 60 anos
já não tinham condições de trabalho e eram
um “estorvo” financeiro para muitos fazendeiros que os sustentavam. Já os filhos dos
escravos não possuíam autonomia para viverem sozinhos. Muitos, até completarem 18
anos, foram tutelados (e explorados) pelos
proprietários de seus pais. Além disso, uma
corrente de tráfico interno vendia escravos
do Nordeste para suprir a crescente produção de café, no Sudeste.
Todavia, por mais que fosse postergada,
com o fim do tráfico transatlântico, a propriedade legal sobre seres humanos estava com os dias contados. Em questão de
anos, centenas de milhares de pessoas
tornaram-se livres para ocuparem terras
virgens – que o país tinha de sobra – e
produzirem para si próprias, em um sistema possivelmente de campesinato.
“
Libertos, os filhos
de escravos não
possuíam autonomia
para viverem sozinhos.
Até completarem
18 anos eram tutelados
(e explorados)
pelos proprietários
de seus pais.
”
Mas quem trabalharia para as fazendas?
Como garantir mão-de-obra após a abolição
total? Vislumbrando que, mantida a estrutura
fundiária do país, o final da escravidão poderia representar um colapso dos grandes produtores rurais, o governo brasileiro criou formas de garantir que poucos mantivessem
acesso aos meios de produção. A Lei de Terras foi aprovada poucas semanas após a extinção do tráfico de escravos, em 1850; e ela
criou mecanismos para a regularização fundiária. As terras devolutas passaram para as
mãos do Estado, que passaria a vendê-las, e
não doá-las, como era feito até então.
O custo da terra começou a existir, mas não
era significativo para os fazendeiros, que
dispunham de capital para a ampliação de
seus domínios – ainda mais com os excedentes que deixaram de ser invertidos com
o fim do tráfico. Porém, era o suficiente para
deixar ex-escravos e pobres de fora do processo legal. Da mesma forma, a lei proibia
que imigrantes que tiveram suas passagens
financiadas para virem ao Brasil (ato co-
mum na política de imigração) comprassem
terras até três anos após sua chegada. Ou
seja, mantinha a força de trabalho à disposição do serviço do capital.
Os preceitos da lei não foram necessariamente respeitados, principalmente por quem
possuía recursos para isso. Afinal, ela não
havia sido criada para impor ao capitalismo
brasileiro um problema, e sim para garantir
seu florescimento. De acordo com Emília
Viotti da Costa, os ocupantes de terras e os
possuidores de títulos de sesmarias ficaram sujeitos à legitimação de seus direitos,
o que foi feito em 1854, por meio do “registro paroquial”. O documento validava a ocupação da terra até essa data. Assim, nasceu
uma indústria de falsificação de títulos de
propriedades, com a participação de cartórios. Familiar aos proprietários de terra, os
procedimentos para isso eram inatingíveis
ao ex-escravo ou ao imigrante, por desconhecimento ou falta de recursos financeiros para subornar alguém.
Com o trabalho cativo, a terra poderia estar à disposição para livre ocupação. Porém, com o trabalho livre, o acesso a ela
precisava ser restringido. A existência de
terras livres garantia produtores independentes e dificultava a centralização do
capital e da produção baseada na exploração do trabalho. Com o fim do tráfico e o
livre mercado de trabalho despontando no
horizonte, o governo brasileiro foi obrigado a tomar medidas para impedir o acesso
à terra, mantendo a mão-de-obra reprimida e alijada de seus meios de produção.
Dessa maneira, a Lei de Terras, nascida
do fim do tráfico de escravos, está na origem da atual exploração do trabalhador
rural e, portanto, da escravidão contemporânea. As legislações que se sucederam a ela trataram do assunto apenas reafirmando medidas para garantir a existência de um contingente reserva de mão-deobra sem acesso à terra, mantendo baixo
o nível de remuneração e de condições de
trabalho. Com a Lei de 1850 estava formatada uma nova estrutura – em substituição àquela que seria extinta em maio de
1888 – para sujeitar os trabalhadores.
O
PÓS-LEI
ÁUREA:
LIBERDADE PARA O
CAPITAL E SERVIDÃO POR DÍVIDA
Porém, ela também resolveu outro problema crucial: ao dificultar o acesso à terra e
legalizar a posse, criou valor para algo que
Cidadania&MeioAmbiente
63
até então não o possuía – a terra. Como
não era um objeto passível de ser comercializado, a fazenda consistia, em um primeiro momento, no locus onde ocorria a
exploração e, dali em diante, no trabalho
acumulado dos escravos – traduzido em
mercadorias e benfeitorias. Martins explica que a lei possibilitou, dessa forma, a
transferência da garantia dada ao mercado de crédito da propriedade dos escravos à propriedade da terra. Esse momento
foi decisivo. O trabalho, liberto da condição de renda capitalizada, deixou de fazer
parte do capital para se contrapor a ele.
Não era mais preciso comprar a capacidade de gerar riqueza; com o fim do direito à
propriedade privada sobre seres humanos,
o capital também ganhou a liberdade; com
a diferença de que poderia usufruí-la melhor do que os antigos escravos.
No dia 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, o Estado deixou de reconhecer o direito de propriedade de uma pessoa sobre
outra. Contudo, isso não significou que
todas as relações de trabalho nas sociedades regidas pelo capital passariam a ser
guiadas por regras de compra e venda da
força de trabalho mediante assalariamento, com remuneração suficiente para a manutenção do trabalhador e de sua família.
O fim da escravidão não representou a
melhoria na qualidade de vida de muitos
trabalhadores rurais, uma vez que o desenvolvimento de um número considerável de fazendas continuou a se alimentar
de formas de exploração semelhantes ao
período escravocrata. Na verdade, não
apenas no momento da acumulação primitiva originária – historicamente realizada em função de recursos naturais e da
força de trabalho –, mas ao longo do tempo, como forma de garantir uma margem
de lucro maior ao empreendimento ou
mesmo lhe dar competitividade para a
concorrência no mercado.
Dois casos de utilização de formas de exploração semelhantes ao trabalho escravo, mas que não envolvem propriedade
legal de um ser humano sobre outro, tornaram-se referência no pós-Lei Áurea. O
primeiro é o dos nordestinos levados a
trabalharem na florescente indústria da
borracha, na Amazônia. O segundo, o dos
colonos estrangeiros trazidos às fazendas de café do interior do estado de São
Paulo. Pela descrição da situação, é pos-
64
sível constatar que há um padrão na forma de exploração desses trabalhadores,
que continua praticamente o mesmo nos
dias de hoje – a servidão por endividamento ilegal. Como esse modelo repetiase em diversos países, ele foi objetivo de
discussões internacionais e definido em
convenções da Organização Internacional do Trabalho.
“
Na sociedade
escravista,
o trabalhador
não possuía
a propriedade
de sua força
de trabalho:
estava atado pelo
tempo de sua vida.
Era mercadoria.
”
Após 1850, as exportações de borracha
cresceram, no Brasil, devido ao aumento
da demanda internacional pelo produto,
após o desenvolvimento do processo de
vulcanização, maximizando sua resistência e ampliando as possibilidades de moldagem. Entre 1881 e 1890, o produto representava 8% do total de exportações do
país e ocupava o terceiro lugar entre os
mais vendidos. Vinte anos depois (19011910), a borracha passou a 28% do total
de exportações. Isso levou o luxo à região
amazônica, onde estavam concentrados
os seringais – riqueza esta extraída do trabalho de migrantes nordestinos, muitos
deles fugidos da seca que atingiu o Nordeste entre 1877 e 1880. O relato de Caio
Prado Júnior vale para aquela época, mas
também descreve esse padrão que continua até os dias de hoje:
“As dívidas começam logo ao ser contratado: ele adquire a crédito os instrumentos que utilizará, e que, embora
muito rudimentares, estão acima de
suas posses em regra nulas. Freqüentemente estará ainda devendo as despesas de passagem desde sua terra nativa até o seringal. Estas dívidas iniciais nunca se saldarão porque sempre
haverá meios de fazer as despesas dos
trabalhadores ultrapassarem seus magros salários. E quando isto ainda não
basta, um hábil jogo de contas, que a
ignorância do seringueiro analfabeto
não pode perceber, completará a manobra. Enquanto deve, o trabalhador
não pode abandonar o seu patrão credor; existe entre os proprietários um
compromisso sagrado de não aceitarem a seu serviço empregados com dívidas para com outro e não-saldadas.”
E utilizava-se a força para manter o trabalhador no serviço.
A EXPLORAÇÃO DEGRADANTE
DO COLONATO DO CAFÉ
Com o final do tráfico negreiro, deu-se o
início da implantação de regimes de parceria em várias fazendas de café, trazendo
colonos europeus para o serviço. Vale lembrar que a escravidão não era apenas um
modo de produção. Historicamente, estava enraizada em toda a sociedade, que girava em torno dela. Portanto, era claro que
a relação fazendeiro/escravo demoraria a
ser substituída pela de patrão/empregado, tanto ideologicamente quanto na prática – e talvez nunca venha a se realizar
plenamente! Um exemplo citado por José
de Souza Martins é o da firma Vergueiro &
Cia, que contratou imigrantes para executar o serviço:
“Na parceria, conforme o contrato assinado com os colonos suíços, “vendido o café por Vergueiro & Cia pertencerá a estes a metade do seu produto
líquido, e a outra metade ao (…) colono. Entretanto, o parceiro era onerado
em várias despesas, a principal das
quais era o pagamento do transporte e
gastos de viagem dele e de toda a sua
família, além da sua manutenção até os
primeiros resultados do seu trabalho.
Diversos procedimentos agravavam os
débitos, como a manipulação das taxas
cambiais, juros sobre adiantamentos,
preços excessivos cobrados no armazém (em comparação com os preços das
cidades próximas), além de vários abusos e restrições que, no caso da [fazenda] Ibicaba, logo levaram a uma re
belião. Esses recursos protelavam a
remissão dos débitos dos colonos, protelando a servidão virtual em que se
encontravam.”
O colono não entrava no mercado de trabalho livre para vender sua força. E, se
estivesse insatisfeito com o patrão, teria
de procurar outro que comprasse suas dívidas. Perante a lei, estavam livres; contudo, economicamente, eram similares a
escravos. A experiência da Vergueiro &
Cia gerou insatisfação por parte dos colonos, criou temor nos fazendeiros (receosos de que insurreições como a ocorrida
nessa fazenda, em 1856, se repetissem) e
também desconfiança de outros países
fornecedores de mão-de-obra.
Situações como essa se repetiram ao longo
de décadas, até que a prática da imigração
para o colonato estabelecesse um modus
operandi que contou com a participação do
governo. Este passou a subvencionar o
transporte dos estrangeiros de seu país de
origem até o Brasil, diminuindo os problemas com o endividamento. Os colonos esperavam obter, pelo trabalho nas fazendas
de café, recursos suficientes para adquirirem sua própria terra. O colonato passou a
ser visto e incentivado como uma etapa necessária à independência econômica.
A exploração degradante e ilegal do trabalho continuou, portanto. Ao analisar a situação do colonato do café entre o final do
século XIX e início do seguinte, no Brasil,
Martins afirmou que a propriedade capitalista da terra assegurava ao fazendeiro a
sujeição do trabalho e, ao mesmo tempo, a
exploração ilegal de seres humanos.
Apesar de trabalharem para a fazenda, os
colonos atuavam como arrendatários, ficando cada grupo com um pedaço da região, cuidando do cafezal e entregando o
produto para o proprietário da terra. Para
isso, eram remunerados abaixo do valor
de seu serviço e de forma insuficiente para
garantir a subsistência. Como conseqüência, tinham que utilizar as terras entre
os cafezais, ou próximas deles, para produzirem seus alimentos. O trabalho absorvido na formação da fazenda de café era
convertido em capital na forma de cafezais. Dessa forma, ela produzia, a partir de
relações não-capitalistas de produção,
boa parte de seu capital.
Durante todo o século XX, a servidão
Brasília (08/05/06) - Ato na Câmara dos Deputados pede aprovação de proposta de
emenda à Constituição (PEC) contra o trabalho escravo. Foto: Antônio Cruz/ABr
por dívida utilizada contra os seringueiros e os primeiros imigrantes do café consolidou-se como uma das formas empregadas para reprimir a força de trabalho
nas situações de expansão do capital
sobre formas não-capitalistas de produção. Não há estimativas confiáveis do
número de escravos no país, atualmente.
Alguns levantamentos falam de 25 mil;
outros, de 40 mil. O fato é que, de 1995
até hoje, mais de 30 mil pessoas já foram
libertadas em operações dos grupos móveis de fiscalização do Governo Federal,
responsáveis por apurarem denúncias e
libertarem trabalhadores.
Para além dos efeitos da Lei Áurea, que completa 120 anos, trabalhadores rurais do Brasil ainda vivem, hoje, sob a ameaça do cativeiro. Mudaram-se os rótulos; ficaram as
garrafas. Marx afirmava que o “morto apodera-se do vivo”. Com base na permanência
da escravidão sob outras formas, constatase que não são apenas as velhas formas que
se inserem nas novas, mas as novas recorrem às velhas sempre que possível.
■
PARA SABER MAIS:
◗ História do Brasil, de Bóris Fausto
◗ História econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior
◗ Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos, de Emília Viotti da Costa
◗ O cativeiro da terra, de José de Souza Martins
◗ Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do
Rio Grande do Sul, de Fernando Henrique
Ilustrações: Jean Baptiste Debret
Leonardo Sakamoto –
Jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, além de coordenador da ONG Repórter
Brasil e da Agência de Notícias Repórter Brasil.
Brasília - O jornalista e cientista político Leonardo
Sakamoto recebe o Prêmio
Combate ao Trabalho Escravo 2006 de cinco instituições
(OIT, Anamatra, ANPT, ANPR
e Ajufe), na categoria Personalidade, como destaque no combate a esse tipo de crime. Foto: Antonio Cruz/ ABr
Cidadania&MeioAmbiente
65
2,5 SEM
BILHÕES
SANEAMENTO
INSTALAÇÕES SANITÁRIAS
A CONSTRUIR ATÉ 2015
MENOS DE 100
100 - 200
200 - 300
MAIS DE 300
Nº DE INSTALAÇÕES
POR 1000 DOMICÍLIOS
NÚMERO DE VASOS SANITÁRIOS NECESSÁRIOS PARA ATINGIR A META DE SANEAMENTO EM 2015
A FIM DE REDUZIR À METADE A PROPORÇÃO DE PESSOAS SEM ACESSO SUSTENTÁVEL AO SANITARISMO
Pesquisa realizada pela OMS e pelo UNICEF mostra que quase metade da população
mundial sofre com a falta de acesso a saneamento básico, e que 1,2 bilhão defecam
ao ar livre – a prática sanitária de maior risco –, embora cresça o número de pessoas
que recebem água potável.
por OMS/UNICEF
O relatório Progress on Drinking Water and
Sanitation – Special Focus on Sanitation
(Progressos sobre Água Potável e Saneamento – Enfoque Especial no Saneamento),
do Programa Conjunto OMS/UNICEF de
Monitoramento do Abastecimento de Água
e Saneamento, divulgado em junho último,
avalia – pela primeira vez – os progressos
globais, regionais e nacionais em relação ao
uso de um inovador conceito escada. Esse
conceito revela práticas de saneamento com
maior detalhe, permitindo aos especialistas
realçar as tendências no uso de instalações
66
sanitárias melhoradas, partilhadas e nãomelhoradas, e a tendência quanto à prática
da defecação ao ar livre.
De maneira similar, quando aplicado à água
potável, esse conceito revela a porcentagem da população mundial que utiliza água
canalizada para uma habitação, terreno ou
quintal; outras fontes melhoradas de água,
tais como as bombas manuais; e fontes não
melhoradas. Globalmente, o número de
pessoas que não têm acesso a uma fonte
melhorada de água potável² desceu abaixo
de um bilhão desde a primeira coleta de
dados em 1990. Atualmente, 87% da população mundial têm acesso a fontes melhoradas de água potável, e, se forem mantidas as tendências atuais, até 2015, essa
proporção vai superar os 90%.
O número de pessoas que, em todo o mundo,
praticam a defecação ao ar livre diminuiu de
24% ,em 1990, para 18%, em 2006. O relatório
sublinha também as disparidades dentro das
fronteiras nacionais, especialmente entre os
moradores do campo e os da cidade. No mun
do, há quatro vezes mais pessoas que vivem
em áreas rurais – aproximadamente 746 milhões – sem acesso a fontes de água melhoradas, se comparadas com os cerca de 137 milhões de moradores urbanos.
O saneamento deficiente ameaça a sobrevivência das crianças dado que um ambiente
contaminado por resíduos fecais está diretamente ligado às doenças diarréicas, uma das
principais causas de morte de crianças menores de 5 anos. É muito difícil garantir um
ambiente limpo quando a defecação ao ar
livre é praticada, mesmo que seja só por uma
pequena parte da população.
“Se as tendências atuais se mantiverem, o
mundo ficará aquém da meta do saneamento dos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio para mais de 700 milhões de pessoas. Sem melhoramentos profundos, os prejuízos serão enormes”, adverte Ann M.
Veneman, diretora executiva da UNICEF.
Não obstante as estatísticas alarmantes, cada
vez mais pessoas usam instalações sanitárias
melhoradas – aquelas que garantem a eliminação dos excrementos de modo a impedir
que provoquem doenças por meio da contaminação dos alimentos e das fontes de água.
Embora a defecação ao ar livre esteja em declínio globalmente, 18% da população mundial,
totalizando 1,2 bilhão de pessoas, continua a
praticá-la. No sul da Ásia, cerca de 778 milhões de pessoas continuam com essa prática sanitária tão arriscada.
“Atualmente já se dispõe de variadas opções técnicas de baixo-custo para proporcionar saneamento em quase todas as circunstâncias”, explica a Dra. Margaret
Chan, diretora-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde). “Cada vez mais
governos estão decididos a levar água e
saneamento às suas populações mais carentes. Se quisermos romper o ciclo da
pobreza, e colher os múltiplos benefícios
para a saúde, temos de enfrentar a questão da água e do saneamento.”
Melhorias reais no acesso à água potável
ocorreram em muitos países do sul da África.
Segundo o relatório, sete dos 10 países que
realizaram progressos mais rápidos e estão a
caminho de cumprir o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio relativo à água potável
estão na África Sub-saariana (Burquina Faso,
Namíbia, Gana, Malaui, Uganda, Mali, Djibuti).
Dos 10 países que ainda não estão a caminho
de cumprir a meta do saneamento, mas estão
fazendo progressos rápidos, cinco situam-se
na África Sub-saariana (Benin, Camarões,
Comoros, Mali e Zâmbia).
■
Rua da Estrutural, a 10 quilômetros do centro de Brasília. Bairro popular não tem
coleta de esgoto. Foto: Valter Campanato/ABr
CRIANÇAS: AS MAIORES VÍTIMAS DA FALTA
DE SANEAMENTO NO BRASIL
A relação direta entre acesso ao saneamento e saúde das populações é uma das
conclusões da pesquisa Saneamento e Saúde divulgada em maio último pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O estudo revela que crianças até seis anos de idade sem
acesso à rede de esgoto têm 32% de chances maiores de morrer.
■
Apenas 46,77% da população brasileira têm acesso ao esgotamento sanitário.
A taxa de mortalidade de crianças de um a seis anos, de 1995 a 1999, era de
3,75% entre a população que não possuía acesso à rede de esgoto, e de 2,35%,
entre a população que possuía. Entre 2001 e 2006, os números são 2,89% e 2,25%,
respectivamente.
■
■ Um agravante para essa situação: a taxa de redução da pobreza avança quatro
vezes mais rápido do que o acesso ao saneamento. Nesse ritmo, seriam necessários
mais 56 anos para atingir-se a Meta do Milênio (reduzir pela metade o déficit do
saneamento). Há 14 anos, o esgotamento sanitário brindava apenas 36,02% da
população, cujo crescimento no mesmo período foi de 10%.
■O
dado sobre o saneamento leva em consideração apenas os domicílios em que o
esgoto é coletado por redes, descartando aqueles que possuem fossas sépticas –
solução que o Ministério das Cidades considera adequada para o destino dos
dejetos, elevando o percentual brasileiro de coleta para quase 90%.
Todos os dados e os cruzamentos da pesquisa são baseados na última Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e estão disponíveis no site www3.fgv.br/
ibrecps/trata_fase2/index.htm
Fonte: Trata Brasil – Saneamento, Educação, Trabalho e Turismo. Da Agência Brasil. Publicado no Portal Ecodebate em 21/05/08.
NOTAS
1 – Saneamento melhorado refere-se a qualquer
instalação sanitária que, de maneira higiênica,
separe os dejetos humanos do meio ambiente.
2 – Fontes melhoradas de água potável significa que a fonte de água potável está protegida
da contaminação fecal e química.
Programa Conjunto OMS/UNICEF de
Monitoramento do Abastecimento de Água e
Saneamento – Publicado pelo Boletim Diário
nº 278 ONU-Brasil. Para mais informações:
Kate Donovan, UNICEF Mídia, Nova Iorque
– Tel.: (212) 326 7452
E-mail: [email protected].
Publicado no Portal EcoDebate, 18/07/2008.
Gráfico por Hugo Ahlenius – “Toilets needed
to meet the MDG sanitation target by 2015.”
UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics
Library. 2005. UNEP/GRID-Arendal.
<http://maps.grida.no/go/graphic_
toilets_needed_to_meet_the_mdg_
sanitation_target_by_2015>
Cidadania&MeioAmbiente
67
AQUECIMENTO GLOBAL,
ECOLOGISMO DOS POBRES
E ECOSSOCIALISMO
O autor analisa
a Revolução Ecológica
ora em curso no planeta,
que objetiva o surgimento
de uma nova sociedade
ecossocialista
radicalmente democrática
e capaz de superar
a atual crise social e ambiental.
por João Alfredo Telles Melo
foto:Eduardo Amorim
“
Do ponto de vista de uma formação socioeconômica mais avançada, a
propriedade privada dos indivíduos na Terra parecerá tão absurda como a
propriedade de um homem sobre outros homens. Mesmo uma sociedade inteira,
uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes num dado momento, em
conjunto, não são donos da Terra. São simplesmente os seus possuidores, os seus
beneficiários, e têm que a legar, num estado melhorado, para as gerações seguintes,
como boni patri famílias (bons pais de família).” Karl Marx, O Capital
68
E
m artigo recente, intitulado A Ecologia da Destruição, John
Bellamy Foster – autor de A Ecologia de Marx, materialismo e natureza (Civilização Brasileira), um dos livros mais
importantes para os ecossocialistas – chama a atenção para o
fato de que “é uma característica da nossa época que a devastação global pareça sobrepor-se a todos os outros problemas, ameaçando a sobrevivência da terra como a conhecemos”.
A CATÁSTROFE ANUNCIADA
A grande repercussão do quarto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, da ONU, em sua sigla
em inglês) – em que milhares de cientistas não só constataram a
relação direta entre fenômenos climáticos intensos, decorrentes
do aquecimento global com a emissão dos chamados gases de
efeito estufa (GEE) pelas atividades industriais, energéticas e
agrícolas, mas também apontaram projeções catastróficas para
este século, caso não haja uma drástica mudança na matriz energética e no padrão de consumo – deu foros de cientificidade ao
documentário A Verdade Inconveniente, do ex-vice-presidente
estadunidense Al Gore, que recebeu o Oscar deste ano e também, juntamente com o próprio IPCC, o prêmio Nobel da Paz.
Portanto, com exceção da minoria dos chamados céticos, dentre
os quais se encontram cientistas sérios como o brasileiro Aziz
Ab´Saber, e organizações bancadas pelo Governo Bush e pelas
grandes indústrias de petróleo e carvão mineral no mundo, há
uma ampla maioria – amplíssima, diria – de gente da comunidade
científica (e aqui se perfilam brasileiros da maior respeitabilidade,
como José Goldenberg, Carlos Nobre e Luis Pinguelli Rosa), de
movimentos ambientalistas, de governos e até de setores empresariais que, a partir dos dados do IPCC, procuram encontrar saídas para a crise planetária, manifestada hoje pelo aquecimento
global que ameaça a vida na Terra. Abram-se aqui parênteses
para aduzir que a aposta dos céticos – em sua versão séria e não
comprometida com os interesses do capital petroleiro e mineral –
é uma aposta perdida em suas duas possibilidades, a saber:
Se estiverem errados (quando afirmam que o fenômeno do
superaquecimento é natural e que as previsões do IPCC estão
equivocadas), eles podem, de forma involuntária, estar contribuindo com o lobby das grandes corporações petrolíferas e
minerais, impedindo a mudança do padrão energético para as
fontes renováveis, e serem co-responsáveis pela catástrofe
que se prenuncia.
Se estiverem certos (o que não é muito provável, dado o
amplo consenso científico alcançado depois de quase 20 anos
de IPCC), estão atrasando a evolução para a despoluição do
planeta. Ou seja, ainda que, numa hipótese quase absurda,
não esteja ocorrendo o aquecimento provocado pelas atividades humanas, no mínimo o alerta do IPCC questiona o modo
de produção e o modo de vida humana no planeta e nos induz
a mudanças profundas e necessárias.
A TERRA
EM SURSIS: ATÉ QUANDO?
Voltando ao tema, vou me permitir não mais ter que detalhar, mas
apenas listar, em parte, o extenso e impactante elenco de fenômenos climáticos e de suas resultantes sobre a vida no planeta,
como o acréscimo da temperatura média da terra, o derretimento
foto:Harry Firmo
“
O Brasil é o quarto maior
emissor de gases
do efeito estufa pelas
queimadas e desmatamentos
de florestas.
”
das geleiras e calotas polares, a desaparição de espécies, a subida do nível do mar, a desertificação e seus profundos impactos
sobre a humanidade, que poderá conviver – aliás, já está convivendo – com os chamados “refugiados ambientais” (vítimas de
enchentes, tornados, secas, furacões, que, nos últimos tempos,
têm atingido populações tão diversas como as asiáticas, as das
pequenas ilhas do Pacífico, ou mesmo, nas terras do Império
Americano, com o Katrina, em New Orleans, e o incêndio que
devastou a Califórnia nos últimos meses deste ano).
Se voltarmos ao nosso país – o quarto maior emissor de GEE
pelas queimadas e desmatamentos de florestas –, o que se prenuncia é gravíssimo. Se em todo o planeta, no próximo século,
ultrapassarmos a linha perigosa de acréscimo de 2oC na temperatura média da Terra, metade de nossa Floresta Amazônica (a mais
importante cobertura vegetal tropical do planeta) se transformará em savana, causando profundos impactos não só na própria
temperatura da terra, como no regime de chuvas em todo o hemisfério sul. Para o Nordeste brasileiro, as previsões não são
menos sombrias. O nosso semi-árido, que, mais uma vez, convive com uma estiagem prolongada, se transformaria em região
árida, num quase deserto, sem água e sem produção agrícola.
Estaríamos diante do apocalipse? Paulo Artaxo, um dos cientistas brasileiros do IPCC, tenta nos tranqüilizar: “O aquecimento
global não é o fim do mundo, de jeito nenhum”, mas adverte: “Um
dos pontos cruciais do relatório do IPCC é a urgência da diminuição da emissão dos gases do efeito estufa. Se não fizermos isso,
a temperatura vai subir de forma a trazer danos para os ecossistemas e zonas costeiras sem precedentes na história da humanidade”. Para ele – e o IPCC – esse corte deveria ser em torno de 50 a
70 por cento. (Caros Amigos, edição especial: “Aquecimento Global, a busca de soluções”).
Cidadania&MeioAmbiente
Cidadania&MeioAmbiente
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69
©Greenpeace/Alberto César
Manaquiri (Amazonas) - Seca em 2005
política e a economia ecológica podem desvendar
“A ecologia
e apontar as soluções para a atual crise planetária.
”
Ora, a necessidade imperiosa da redução na emissão de GEE na
escala de 50 a 70% torna o Protocolo de Kyoto (não assinado
pelos Estados Unidos, primeiro ou segundo maior emissor de CO2,
e que neste mês de dezembro foi ratificado pela Austrália, uma das
maiores exploradoras de carvão mineral) absolutamente obsoleto
e inócuo. Recorde-se: Kyoto propõe, apenas para os países em
desenvolvimento (principais responsáveis pelo aquecimento), o
corte de somente 5% (nos níveis de 1990) até 2012. O Brasil, a Índia
e a China (que, dado o seu crescimento econômico vertiginoso, já
teria ultrapassado os EUA e que tem na base de sua matriz energética o combustível de maior poluição, que é o carvão mineral),
dentre outros, não são obrigados a cumprir metas de redução.
Todo esse debate não se refere, por óbvio, apenas a números.
Aqui se trata, em primeiro lugar, da tentativa de se compatibilizar
a urgência urgentíssima na diminuição drástica de emissão de
CO2 e outros GEE para a atmosfera, com o direito e a necessidade
de países pobres se desenvolverem e atenderem os direitos e
necessidades de sua população.
Como atender tais necessidades sem tocar no padrão de vida e
consumo das classes médias e altas tanto no hemisfério norte
(onde são majoritárias) como no hemisfério sul (onde são minoritárias)? (Já gastamos 25% a mais do capital natural da Terra e
seria preciso que tivéssemos pelo menos quatro planetas Terra
para que todos alcançassem o nível de vida do chamado american
way of life.) Uma nova utopia (sustentabilidade ambiental, igualdade social e desenvolvimento econômico em escala planetária)
seria possível na atual configuração geopolítica mundial, onde o
poder destrutivo da indústria armamentista, petrolífera e minerária se materializa em governos como de Bush, senhor das guerras
no mundo? É possível superar a atual crise nos marcos do sistema capitalista? Nas palavras, mais uma vez, de Foster: “Como é
que isto se relaciona com as causas sociais e que soluções sociais podem ser oferecidas em resposta tornaram-se as questões
mais urgentes com que a humanidade se defronta.”
70
RIQUEZA NATURAL E RIQUEZA MATERIAL
Esse debate se situa no campo da chamada Ecologia Política,
que, na compreensão de Joan Martinez Alier, estuda “os conflitos ecológicos distributivos - isto é, os conflitos pelos recursos
ou serviços ambientais, comercializados ou não”. Para ele, a ecologia política é “um novo campo nascido a partir dos estudos de
casos locais pela geografia e antropologia rural, hoje estendidos
aos níveis nacional e internacional” (“O Ecologismo dos Pobres”,
Editora Contexto). É a ecologia política, juntamente com a economia ecológica, quem pode nos desvendar as causas da crise e
apontar as soluções reclamadas por Foster, acima.
Carlos Walter Porto-Gonçalves – um dos mais atilados ecologistas políticos da atualidade – nos situa de forma ainda mais precisa na atual crise planetária, quando afirma que
“o desafio ambiental se coloca no centro do debate geopolítico contemporâneo enquanto questão territorial, na medida em
que põe em questão a própria relação da sociedade com a
natureza, ou melhor, a relação da humanidade, na sua diversidade, com o planeta, nas suas diferentes qualidades” (“O
Desafio Ambiental”, Editora Record).
Para ele, há contradições profundas entre a economia capitalista e
a dinâmica ambiental. A separação –“a mais radical possível”–, em
suas palavras entre homens e mulheres, de um lado, e a natureza,
de outro; a apropriação privada dos recursos ambientais, em que
tudo é transformado em mercadoria; o princípio da escassez, pelo
qual um “bem só tem valor econômico se é escasso” são absolutamente contraditórios com a visão ecológico-ambientalista de
riqueza natural. Vejamos, em suas próprias palavras:
“Os economistas modernos vão fundar a economia no conceito de escassez, que, paradoxalmente, é o contrário da riqueza. Tanto é assim que os bens abundantes – idéia central da
riqueza – não são considerados como bens econômicos e,
sim, como naturais (...). Somente à medida que a água e o ar se
tornam escassos – com a poluição, por exemplo – é que a
Essa distinção entre riqueza natural – objetivo maior de todos os
movimentos ecológicos – e riqueza material – que advém da escassez e, para deleite do sistema mercantil, transforma os bens
ambientais em mercadoria – também é tratada por Foster, em outro belo texto, chamado Revolução Ecológica, onde se vale do
filósofo grego Epicuro, que declarava: “Quando medida pelo propósito natural da vida, a pobreza é grande riqueza, riqueza ilimitada é grande pobreza.”
Portanto, para Foster,
“O livre desenvolvimento humano, surgindo num clima de limitação e sustentabilidade naturais, é a verdadeira base da riqueza,
de uma riqueza para a existência multilateral; a busca sem limites
de riqueza é a fonte primária do empobrecimento e sofrimento
humanos. É desnecessário dizer que tal preocupação com o bemestar natural, em oposição a necessidades e estímulos artificiais,
é a antítese da sociedade capitalista e a pré-condição de uma
comunidade humana sustentável”.
Assim, é plenamente justificável que se afirme que, sob o capitalismo, não há possibilidade de superação da atual crise planetária, o que nos permitiria atualizar, como quer Michel Löwy, outro
grande expoente atual do ecossocialismo, a consigna de Rosa
Luxemburgo para “Ecossocialismo ou Barbárie”.
Ora, afirmar isto – a contradição fundamental entre o sistema
capitalista e uma nova forma de organização sócio-político-econômica fundada na sustentabilidade e justiça ambiental, na igualdade social e, também, por óbvio, na democracia política, em
suas formas mais avançadas de participação popular – por si só
não é suficiente para os ecossocialistas. Nas palavras de Löwy:
“É preciso começar a construir esse futuro desde já. É necessário participar de todas as lutas, inclusive das mais modestas
como, por exemplo, a de uma comunidade que se defende
contra uma empresa poluidora; ou a defesa de uma parte da
natureza que esteja ameaçada por um projeto comercial destrutivo. É importante ir construindo a relação entre as lutas
sociais e as ambientais, pois elas tendem a concordar, unidas,
ao redor de objetivos comuns” (Ecologia e Socialismo).
OS ECOSSOCIALISTAS E AS LUTAS SÓCIO-AMBIENTAIS
É esse campo – o das lutas sócio-ambientais – que reclama a
presença dos ecossocialistas. Aqui, poderíamos listar as lutas
das comunidades costeiras contra o turismo predatório e a criação de camarões em cativeiros; a resistência dos atingidos por
barragens contra os grandes projetos hidrelétricos; o movimento que reúne sem terra, agroecologistas, defensores de consumidores e ambientalistas contra a adoção de sementes transgênicas; a luta de populações locais contra a ampliação das usinas
nucleares; a resistência de índios e pequenos agricultores no
embate contra a transposição das águas do Rio São Francisco; a
articulação dos povos da floresta – índios, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos – contra ao avanço do agronegócio do gado
e da soja na Amazônia brasileira; a luta das mulheres camponesas contra o exército verde da monocultura do eucalipto; o enfrentamento dos ecologistas e urbanistas contra a especulação
imobiliária nas grandes metrópoles etc.
FSM 2006-PortoAlegre, Brasil
Gabriel Jacobsen
economia passa a se interessar em incorporá-los como bens
no sentido econômico moderno, isto é, mercantil.”
As lutas sócio-ambientais do
“ecologismo
popular têm uma
importância fundamental não só
para os ecossocialistas mas para
o próprio futuro do planeta.
”
Aqui, estamos diante do que Martinez Alier denomina de ecologismo dos pobres ou ecologismo popular, que, nas palavras do
autor, tem como eixo fundamental o interesse pelo meio ambiente
como fonte de condição para a subsistência e como fundamento
ético a demanda por justiça social (e ambiental, acrescentaria)
contemporânea entre os humanos. Essa corrente do movimento
ambientalista, por lutar contra os impactos ambientais que ameaçam os pobres, que constituem a ampla maioria da população em
muitos países, tem uma presença muito forte nos países do hemisfério sul (no antigamente denominado terceiro mundo).
As lutas com tais características – sócio-ambientais, do ecologismo popular – têm uma importância fundamental não só para os
ecossocialistas, mas para o próprio futuro do planeta. Ali, há uma
resistência que, partindo da luta concreta por direitos humanos
básicos de moradia, cultura, de modo de vida e de produção, e,
também, ao ambiente saudável, questiona os fundamentos não só
do atual modelo econômico, mas, em última análise, investe contra
as bases do próprio modo de apropriação privada do sistema capitalista, responsável pelo atual estágio de degradação do ambiente
planetário. Nessas comunidades, se contrapõem não só interesses materiais, mas formas de vida e produção antagônicas.
Portanto, neste momento (mesmo que ainda de forma não articulada) podem se estar forjando não só as alianças sociais fundamentais para esse processo de transformação urgente e necessário – a Revolução Ecológica - mas, também, as bases sócio-econômico-ecológico-cultural-ético-políticas de uma nova sociedade que possa superar a atual crise ambiental global para se tornar, a um só tempo, ecologicamente sustentável, socialmente justa
e igualitária, cultural e etnicamente diversa, e política e radicalmente democrática: a sociedade ecossocialista. Estaremos à altura desse imenso desafio?
■
João Alfredo Telles Melo – Advogado, professor de Direito Ambiental e consultor do Greenpeace. Artigo originalmente publicado pela
Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – ADITAL,e em
http://www.ecodebate.com.br/default.asp?pagvis=6684
Cidadania&MeioAmbiente
Cidadania&MeioAmbiente
71
OS
POR QUE
MORREM
OS
CORTADORES DE CANA
por Francisco Alves
Conheça, nesta detalhada análise das relações de
trabalho vigentes na lavoura da cana-de-açúcar, uma das
mais arcaicas formas de exploração do homem do campo.
Uma aberração que precisa ser discutida e encerrada.
S
egundo a Pastoral do Migrante,
entre as safras 2004/2005 e 2005/
2006 morreram 10 cortadores de
cana na região canavieira de São Paulo.
Eram trabalhadores jovens, com idades
variando entre 24 e 50 anos; todos eram
migrantes, oriundos de outras regiões
(norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí)
para o corte de cana. Em seus atestados
de óbitos as causa mortis são vagas a
respeito do que verdadeiramente ocasionou os óbitos. Os atestados informam
apenas morte por parada cardíaca.
Proálcool: o início do boom
Para entendermos as razões destas mortes
é necessário entendermos o processo de
trabalho a que os cortadores de cana estão submetidos em sua atividade produti-
72
va. O processo de trabalho passou por mudanças significativas da década de 1980
até a atual. Logo no início dos anos 1980, o
país – e, mais especificamente, o setor
sucro-alcooleiro – vivia seu período áureo. Estava em plena vigência a segunda
fase do Proálcool (após 1979), que incentivava a produção de álcool hidratado e
anidro em destilarias autônomas, cuja produção se destinava a atender o enorme
crescimento do setor automobilístico movido unicamente pelo novo combustível.
O Proálcool foi o maior programa público
mundial de produção de combustível alternativo aos derivados do petróleo.
Em decorrência do Proálcool cresceu a
produção de cana-de-açúcar, foram instaladas novas destilarias e usinas, cres-
ceu o número de empregos diretos em
toda a cadeia produtiva: da indústria produtora de máquinas e equipamentos para
o setor sucro-alcooleiro à comercialização
de álcool e açúcar. Criaram-se novos postos de trabalho industrial e agrícola.
Naquele período também cresceu a produtividade da cultura agrícola medida em
quantidade de cana por hectare ocupado: de 50 t/ha atingiu mais de 80 entre as
décadas de 1950-80. Cresceu também a
produtividade do trabalho no corte de
cana, medida em toneladas de cana cortadas por dia por homem ocupado. Se na
década de 1960 tal produtividade era em
média de 3 toneladas de cana por dia de
trabalho, na década de 1980 ela passou
para 6 toneladas e no final dos anos 1990
e início da presente década atinge 12 toneladas de cana por dia.
O corte da cana
O processo de trabalho no corte de cana
consistia, na década de 1980, no corte por
trabalhador de um retângulo de 8,5 metros de largura em 5 ruas (linhas em que é
plantada a cana) por um comprimento que
varia de trabalhador para trabalhador, e é
determinado pelo que ele consegue cortar num dia de trabalho. Este retângulo é
chamado pelos trabalhadores de eito e seu
comprimento varia em função do ritmo de
trabalho e da resistência física de cada
cortador. E é tal distância que, ao final da
jornada de trabalho, é medida para ser o
indicador do ganho diário.
Estes metros lineares de cana
multiplicados pelo valor da cana
pesada pela usina dá o valor do
dia de trabalho no corte de cana
para cada trabalhador. Estimase que para cortar 6 toneladas
de cana num dia – considerando-se uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto – o
comprimento do eito é de aproximadamente 200 metros. Além
de cortar a cana contida na área
deste retângulo (1.700m²), o cortador deve igualmente cortar as
pontas e transportar a cana para
a linha do meio (3ª linha), distante 3 metros de cada uma das
extremidades do eito.
trabalhadores só sabem quantos metros
de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, o valor do metro de cana
para aquele eito cortado. Tal desconhecimento é devido ao fato de o valor do metro de cana do eito depender do peso da
cana. Ora, tal peso varia em função da
qualidade do vegetal produzido naquele
espaço, sendo que a qualidade desta cana
é por sua vez dependente de uma série de
variáveis (variedade da espécie, fertilidade do solo, sombreamento etc.).
Nestas condições, as usinas pesam a cana
cortada pelos trabalhadores e atribuem o
valor do metro, através da relação peso da
cana, valor da cana e metros cortados. O
processo de pesagem é feito nas balanças
da conversão de toneladas de cana em
metro. Tais desavenças foram responsáveis pela deflagração da greve de 1986,
que começou em Leme (SP) e se alastrou
para outras regiões canavieiras do estado e do país. Esta foi a segunda grande
greve após a de Guariba, em 1984, detonada contra o sistema de corte em 7 ruas.
Na greve de 1986, os trabalhadores reivindicavam o pagamento por metro de
cana cortado e não por tonelada. A reivindicação era simples: cada metro de
cana cortada, dependendo do tipo de cana
(cana de primeiro corte, cana de segundo
e demais cortes, cana de ano e meio, cana
caída e enrolada), teria um preço definido
no acordo coletivo de trabalho. E ao final
do dia, o trabalhador teria direito a um recibo (pirulito),
no qual estaria registrada a
quantidade de metros cortada naquele dia e o valor do
metro de cana naquele eito.
Os empresários contra-argumentaram, afirmando ser impossível adotar-se o pagamento por metro, já que a
unidade de medida utilizada
em todas as etapas do processo produtivo era a tonelada de cana.
Na verdade a argumentação
dos empresários escondia o
essencial. Se os trabalhadores
A plantação em fileiras permite que o trabalhador abrace um feixe
adquirissem o controle do prode cinco e dez canas a cada corte rente ao chão. (Foto IAC)
cesso de trabalho e o controle
Remuneração
das usinas, sem controle do trabalhador.
de seu pagamento, as usinas perderiam o
baseada na produção
Portanto, entre aquelas situações de traprincipal meio de pressão que as empresas
O pagamento dos trabalhadores era e é
balho analisadas pelos dois pensadores
dispõem para aumentar a produtividade do
feito em função do volume de cana cortanos séculos 18 e 19 e as praticadas na cana
trabalho. Afinal, o processo de trabalho no
da/dia de trabalho. Portanto, a remuneranos séculos 20 e 21 há uma enorme distâncorte de cana depende única e exclusivamenção era e é baseada na produção. Assim,
cia, a saber: o não controle do salário e do
te da destreza do trabalhador, isto é, de um
as usinas adotam o pagamento por proprocesso de trabalho pelos trabalhadores;
conjunto de atividades manuais independendução, forma de trabalho denunciada por
o controle é realizado pelas usinas.
te da administração do processo.
Adam Smith no final do século 17 e por
Karl Marx no século 19 como uma das
Assim, em pleno século 21, os cortadores
No corte de cana, os trabalhadores têm o
mais desumanas e perversas, já que o trade cana trabalham por produção sem sacontrole da atividade, o que não ocorre
balhador tem seu ganho atrelado à força
berem quanto vão ganhar, já que a remunos processos de produção mecanizados
de trabalho despendida por dia. É verdaneração fica na dependência do volume
devido à subordinação do trabalhador e
de que tanto Adam Smith quanto Karl
cortado. Além disso, mesmo cortando
do trabalho ao sistema, e no qual os auMarx analisavam esta forma de trabalho
muitos metros, o trabalhador pode ter um
mentos de produtividade são alcançados
em situações em que o trabalhador conganho pequeno, já que o valor do metro
através do sistema mecanizado.
trolava o seu processo de trabalho e tidepende de um fator de conversão connha, ao final do dia, pleno conhecimento
trolada pelas usinas.
O fim da greve de 1986 só foi alcançado
do valor que tinha ganho por conhecer o
quando se acordou que o pagamento dos
valor do trabalho executado.
Ocorrem inúmeros casos de desavenças
trabalhadores seria feito a partir da toneNo corte de cana é diferente porque os
entre trabalhadores e usinas, em função
lada de cana convertida em metro linear,
Cidadania&MeioAmbiente
73
Foto IAC
CORTE: TAREFA ÁRDUA E INSALUBRE
No corte de cana, o trabalhador recebe o eito de cana definido pelo supervisor da turma e realiza as
atividades exigidas: começa a cortar pela linha central (a linha onde a cana será depositada);
em seguida corta as duas linhas laterais à central, de forma a que todas as linhas do eito
sejam cortadas simultaneamente, sem falhas.
No corte, o trabalhador abraça um feixe de cana (de cinco e dez canas) e curva-se para realizar o corte
da base, que deve ser bem rente ao chão porque é no pé da cana que se concentra a sacarose.
O corte rente ao chão não pode atingir a raiz para não prejudicar a rebrota.
Depois de cortadas todas as canas do feixe, o trabalhador corta o palmito, isto é, a parte superior com
folhas verdes, que são deixadas ao solo. Em algumas usinas é permitido aos trabalhadores o corte do
palmito no chão, na fileira do meio, onde os feixes são amontoados. Neste caso, além de cortar o palmito
o trabalhador tem que realizar um movimento com os pés para separar as pontas das canas amontoadas
na linha central. Em algumas usinas as canas amontoadas na fileira central devem ser dispostas em
montes distantes entre si de um metro. Em outras, é permitido ao trabalhador fazer uma esteira de canas
amontoadas, sem a necessidade dos montes. Assim fica claro que para ganhar mais, a quantidade que
cada trabalhador corta por dia depende de suas força física e habilidade para a execução da atividade.
Eu comparo o cortador de cana a um corredor fundista, pois o trabalhador com maior produtividade não
é necessariamente o que tem maior massa muscular. É aquele com maior resistência física para a atividade
repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, em alguns casos na presença de fuligem, poeira
e fumaça e por um período que varia entre 8 e 12 horas de trabalho diário.
Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200 metros de comprimento por 8,5
metros de largura, caminha por dia um percurso estimado de 4,4km. Como desfere aproximadamente 50
golpes com o podão para cortar um feixe de cana, ao final do dia são dados 183.150 golpes (considerando-se uma cana em pé, não caída e não enrolada e com densidade de 5 a 10 canas a cada 30cm).
Além de andar e de golpear a cana, o trabalhador tem de a cada 30cm se abaixar, se torcer para abraçar
e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la por cima (aproximadamente 36.630
flexões de perna). Como se não bastasse, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha
e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.4km/dia, mas transporta nos
braços 6 toneladas de cana – um peso equivalente a 15kg por uma distância de 1,5 a 3 metros.
Além de todo o dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando
peso, o trabalhador utiliza sob o sol botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças
e camisa de manga comprida com mangote de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e
chapéu ou boné.
Vestido com tal aparato e operando sob o sol, o trabalhador sua abundantemente, perdendo água e sais
minerais (em média 8 litros de água por dia) que ocasionam desidratação e as freqüentes câimbras. Em
geral, estas últimas começam nas mãos e nos pés, avançam pelas pernas e alcançam o tórax, provocando
fortes dores e convulsões – muitas vezes confundidas com ataque nervoso. Para minimizar câimbras e
desidratação, algumas usinas levam para o campo e ministram ao trabalhador soro fisiológico e até
mesmo suplementos energéticos para reposição de sais minerais.
74
século 21, os cortadores de cana trabalham
“Emporplenoprodução,
sem saberem quanto vão ganhar!
”
com a possibilidade do controle da conversão pelos trabalhadores. A fiscalização seria feita da seguinte forma:
■ Ao início do trabalho, de manhã cedo, um
caminhão (campeão) vai ao local de corte.
■ O caminhão é carregado com cana colhida de três pontos diferentes do talhão,
para possibilitar uma amostra representativa da qualidade e das especificidades
da cana local.
■ Os trabalhadores podem participar da
escolha dos três pontos.
■ Após ser carregado com cana colhida
dos três pontos do talhão, o caminhão segue para a usina para ser pesado, sabendo-se que aquela carga corresponde a um
determinado número de metros lineares.
■ Após a pesagem é realizada a conversão de tonelada de cana para metro; já
atribuído o valor do metro, na medida em
que a tonelada de cana paga aos trabalhadores já tem seu valor definido pelo
acordo coletivo.
■ O valor do metro obtido na conversão é
informado aos trabalhadores no canavial
antes do fim do dia.
■ Ao final da jornada de trabalho, o trabalho de cada eito de cana de cada trabalhador daquele talhão é medido através de
um compasso de ponta de ferro com 2 metros de largura entre suas pontas.
■ Feita a medição do eito é então elaborado um recibo (pirulito) em que consta a
quantidade de metros cortados por cada
trabalhador, o valor de cada metro e o total de rendimentos obtidos pelos trabalhadores naquele dia de trabalho.
(c) fiscalização da pesagem da cana na
usina; e
(d) participação no cálculo de conversão
da tonelada em metro.
Como os trabalhadores são remunerados
por produção, os que se dispõem a acompanhar estas quatro etapas perdem, no mínimo, meio dia de trabalho. E se não trabalham, não ganham! Além disto, os que se
dispõem a participar se sentem marcados
pelos gatos, fiscais e apontadores e pelas
usinas, e temem perder seus empregos.
O que passou a ocorrer, na prática, é que
mesmo nas usinas que mantiveram o
campeão, a conversão de tonelada em
metros é de responsabilidade exclusiva
das usinas, o que pode acarretar prejuízo aos cortadores.
Aumento de produtividade
A partir da década de 1990 ocorreu forte
aumento da produtividade do trabalho.
Para manter seus empregos, os trabalhadores necessitam hoje cortar no mínimo
10 toneladas de cana por dia. A média cortada subiu para 12 toneladas de cana/dia.
Portanto, a produtividade média cresceu
em 100%: das 6 toneladas/homem/dia (na
década de 1980) chega atualmente a 12
toneladas de cana/dia.
O fato de os trabalhadores hoje terem uma
produtividade duas vezes superior à da
década de 1980 se deve ao seguinte conjunto de fatores:
AUMENTO
Desrespeito
aos acordos coletivos
Apesar de desde 1986 as regras acima
enunciadas constarem dos acordos coletivos, na prática o procedimento nunca
funcionou, porque a base para o seu funcionamento se centrava na participação
dos trabalhadores nas seguintes etapas:
(a) escolha dos três pontos representativos da cana do talhão;
(b) medição em metros da cana para carregar o campeão;
DA QUANTIDADE DE TRABALHADORES
DISPONÍVEIS PARA O CORTE DE CANA.
Tal disponibilidade se deve a três fatores:
1. aumento da mecanização do corte de cana;
2. aumento do desemprego geral provocado por duas décadas de baixo crescimento econômico; e
3. expansão da fronteira agrícola para o
cerrado, atingindo o sul do Piauí e a região da pré-amazônia maranhense, destruindo as formas de produção da pequena propriedade agrícola familiar, predominante nestes estados.
POSSIBILIDADE DE SELEÇÃO MAIS APURADA PELOS DEPARTAMENTOS DE RECURSOS HUMANOS DAS USINAS.
■ Esta seleção leva à seleção de trabalhadores mais jovens, à redução da contratação de mulheres e à possibilidade de contratação de trabalhadores oriundos de regiões mais distantes de São Paulo (norte
de Minas, sul da Bahia, Maranhão e Piauí).
■ A seleção mais apurada permite que as
usinas programem a contratação por período de experiência. Os trabalhadores que
não conseguem atingir a nova média de
produção – 10 toneladas de cana por dia
– são demitidos antes de completarem três
meses de contrato.
As razões dos óbitos
Com todo este detalhamento da atividade
do corte de cana fica fácil entendermos porque morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em SP. A meu ver, a solução para
este problema só se dará através de mudanças no cerne da questão – o excesso de trabalho devido ao pagamento por produção.
O setor sucro-alcooleiro vive uma dicotomia interna. Enquanto utilizar o que há
de mais moderno em tecnologia e organização (tratores e máquinas agrícolas de
última geração, agricultura de precisão
controlada por geoprocessamento via satélite etc.) e ao mesmo tempo manter relações de trabalho condenadas, os trabalhadores continuarão a morrer.
Os 10 trabalhadores que faleceram nas
duas últimas décadas são uma amostra insignificante do total que deve morrer, clandestinamente, em cada safra. Ao longo dos
últimos 20 anos que dedico à análise das
condições de vida e de trabalho dos trabalhadores rurais, colhi depoimentos de trabalhadores relatando mortes como as agora
tornadas públicas via o excelente trabalho
da Pastoral do Migrante de Guariba. ■
www.pastoraldomigrante.org.br
Francisco Alves - Professor Adjunto do
Departamento de Engenharia de Produção da
UFSCar. Artigo originalmente publicado pela
ADITAL- Agência de Informação Frei Tito
para a América Latina, em 23/02/2006
Cidadania&MeioAmbiente
75
FAVELA
OS SUBÚRBIOS DAS CIDADES
DO TERCEIRO MUNDO SÃO O NOVO
CENÁRIO GEOPOLÍTICO DECISIVO
Entrevista com Mike Davis
P
ela primeira vez na história da humanidade, a população
urbana superará em número a população rural.
Entretanto, a maior parte dessas pessoas não vive no que
normalmente entendemos por cidades, mas em imensos
subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais escapam a
qualquer conceituação tradicional. Em Planet of slums – traduzido
como Planeta favela(1), e mote desta entrevista – o urbanista,
historiador e ativista político Mike Davis aborda o processo de
favelização e empobrecimento das cidades do terceiro mundo.
76
foto:Stafly
PLANETA
COMCIÊNCIA – NA SUA DESCRIÇÃO DE UMA
com aspecto de videogame, enfrentando-se com heróicos tecnoguerreiros e
com os cavaleiros da Força Delta. É
claro que, do ponto de vista moral, é
um filme aterrador: é como um
videogame no qual é impossível contar todos os somalis que morrem.
NOVA “GEOGRAFIA PÓS-URBANA”, O SENHOR
UTILIZA UM VOCABULÁRIO INOVADOR: CORREDORES REGIONAIS, CONURBAÇÕES DIFUSAS,
Mike Davis – Trata-se de uma linguagem
em pleno processo de desenvolvimento e é
nela que apenas reside o consenso. Os debates mais interessantes têm surgido a partir do estudo da urbanização no sul da China, Indonésia e no sudeste da Ásia e giram,
principalmente, em torno da natureza da
periurbanização na periferia das grandes cidades do terceiro mundo. Com este termo
refiro-me ao lugar no qual o campo e a cidade se encontram, e a pergunta que se coloca é: estamos diante de uma fase temporária de um processo complexo e dinâmico
ou esta natureza híbrida será mantida ao
longo do tempo?
A nova realidade periurbana apresenta uma
mistura muito complexa de subúrbios pobres, deslocados do centro das cidades e,
no meio deles, pequenos enclaves de classe média, freqüentemente de construção
recente e com muros. Nessa periurbanização encontramos também trabalhadores
rurais atraídos pela manufatura de baixa remuneração e moradores dos centros urbanos que se deslocam diariamente para trabalhar na indústria agrícola.
foto:Angela7dreams
REDES POLICÊNTRICAS, PERIURBANIZAÇÃO...
“
Tanto a esquerda
quanto a direita
concordam que os
subúrbios das cidades
do terceiro mundo
são o novo cenário
geopolítico decisivo.
”
Além disso, a realidade é que os brancos não são maioria entre os cavaleiros deslocados para o estrangeiro:
são americanos, sim, mas quase todos eles são também procedentes dos
subúrbios. O novo imperialismo, como
o velho, tem essa vantagem: a metrópole é tão violenta e aloja tanta pobreza concentrada que produz excelentes guerreiros para este tipo de
campanha militar.
Um professor que tive escreveu um livro magnífico que mostrava, contra todo
prognóstico, que nas vitórias nas campanhas militares do Império Britânico o
fator decisivo não era a tecnologia armamentista, mas a habilidade dos soldados britânicos no corpo-a-corpo com a
baioneta, uma habilidade que era conseqüência direta da brutalidade da vida
cotidiana nos bairros baixos ingleses.
PARA ALÉM DO GIRO EM TORNO DA VIOLÊNCIA E DA INSURGÊNCIA, ESTÁ SURGIN-
Curiosamente, este fenômeno despertou também o interesse de
analistas militares do Pentágono, que consideram essas periferias labirínticas um dos grandes desafios com o qual irá se deparar
o futuro com tecnologias bélicas e projetos imperialistas. Após
uma época em que se centraram no estudo dos métodos de gestão empresarial moderna – o just-in-time e o modelo Wal Mart –
esses militares parecem estar agora obcecados com a arquitetura
e o planejamento urbano.
Os Estados Unidos desenvolveram uma grande capacidade para
destruir os sistemas urbanos clássicos, mas não tiveram nenhum
êxito nas “Sader Cities” do mundo. O caso de Falluja (Iraque) é
sintomático: depois que a destroçaram com tanques de guerra e
bombas cluster, os mesmos insurgentes com os quais se quis acabar
a reocuparam quando acabou a ofensiva. Acredito que tanto a esquerda quanto a direita concordam que os subúrbios das cidades do
terceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo.
DO ALGUM SISTEMA DE AUTOGOVERNO NOS SUBÚRBIOS?
M.D. – A organização nos subúrbios é extraordinariamente diversa. Em uma mesma cidade latino-americana, por exemplo, existem
desde igrejas pentecostais, até Sendero Luminoso, passando por
organizações reformistas e ONGs neoliberais. A popularidade de
uns e outros coletivos varia muito rapidamente e é muito difícil
encontrar uma tendência geral. O que está claro é que na última
década os pobres – e refiro-me não apenas aos dos bairros urbanos clássicos que já mostravam níveis altos de organização, mas
também aos novos pobres das periferias – têm se organizado em
grande escala, seja em uma cidade iraquiana como Sader City ou
em Buenos Aires.
DO TERCEIRO MUNDO QUE O SENHOR DESCREVE EM PLANETA FAVELA?
Os movimentos sociais organizados colocaram sobre a mesa reivindicações de participação política e econômica sem precedentes, que impulsionaram um avanço na democracia formal. Sem
dúvida, em geral os votos têm pouca relevância: os sistemas fiscais do terceiro mundo são, com raras exceções, tão regressivos
e corruptos, e dispõem de tão poucos recursos, que é quase
impossível colocar em marcha uma redistribuição real.
M.D. – Se o filme Blade Runner foi um dia o ícone do futuro
urbano, o Blade runner dos subúrbios é Black hawk down (2).
Reconheço que não posso deixar de vê-lo: sua entrada em cena e
sua coreografia são incríveis. O filme representa com perfeição
esta nova fronteira da civilização: a “missão do homem branco”
nos subúrbios do terceiro mundo e seus exércitos ameaçadores
Ademais, inclusive naquelas cidades em que existe maior grau de
participação nas eleições, o poder real é transferido para agências executivas, autoridades industriais e entidades de desenvolvimento de todo tipo, sobre as quais os cidadãos não têm nenhum
controle, e que tendem a ser meros veículos locais dos investi-
QUAL É A REPRESENTAÇÃO CULTURAL MAIS ADEQUADA PARA OS SUBÚRBIOS
Cidadania&MeioAmbiente
77
Em quase todos os programas governamentais
ou estatais que procuram abordar a pobreza
urbana, o subúrbio pobre é compreendido
como um simples subproduto da superpopulação. Não tenho nenhuma confiança no conceito de superpopulação. A
questão fundamental
não é se a população tem
aumentado muito, mas
como fechar a equação
de ter, por um lado, a justiça social e o direito a
um nível de vida decente e, por outro lado, a sustentabilidade ambiental. Não há pessoas
demais no mundo, o que existe é, obviamente, um consumo excessivo de recursos não renováveis.
problema são os brancos que
passeiam em seus carrinhos de
golfe pelos cento e dez campos que existem em Coachella
Valley. Em outras palavras, um
homem da minha idade, ocioso, pode estar usando dez,
vinte ou trinta vezes mais recursos que uma chicana que
tenta seguir adiante com sua
família num apartamento do
centro da cidade.
foto:Miles78
mentos do Banco
Mundial. A via democrática em direção ao
controle das cidades –
e, sobretudo, dos recursos necessários para
realizar as reformas urbanas – segue sendo
incrivelmente difícil.
Não se pode deixar levar pelo
pânico do crescimento da população ou da chegada dos
imigrantes; o que se deve fazer é pensar como se podem
fomentar as atitudes do urbanismo para conseguir, por
exemplo, que subúrbios como
os de Los Angeles funcionem
como uma cidade no sentido
clássico. Também se deve respeitar a necessidade absoluta
de conservar as zonas verdes
e as reservas ambientais sem
as quais as cidades não podem funcionar. A tendência atual em todo o mundo é que os pobres
busquem acomodação em zonas úmidas (de mananciais) de importância vital, que se instalem em espaços abertos cruciais para o
metabolismo da cidade. Aí está o exemplo de Bombaim, onde os
mais pobres assentaram-se em um Parque Nacional adjacente e
que, de vez em quando, são comidos pelos leopardos, ou de São
Paulo, onde se empregam enormes quantidades de substâncias
químicas para purificar a água para se livrar de uma batalha perdida
contra a poluição na cabeceira de suas fontes de abastecimento.
Se se permite esse tipo de crescimento, se são perdidas zonas
verdes e os espaços abertos, os aqüíferos são bombeados até
esgotá-los e se são contaminados os rios, danifica-se fatalmente a
ecologia da cidade.
■
A grande questão atual é:
“como
conciliar a justiça social
e o direito a um nível de vida decente
à sustentabilidade ambiental.
MAS NÃO EXISTEM CIDADES EXCESSIVAMENTE POVOADAS PARA UM ENTORNO ESCASSO EM RECURSOS, NO QUAL ESTÃO IMPLANTADAS?
MD - A inviabilidade de uma megacidade tem menos a ver com o
número de pessoas que vivem nela do que com seu modo de consumir: se são reutilizados e reciclados os recursos e se compartilha
o espaço público, então é viável. Tem que se levar em conta que a
pegada ecológica varia muitíssimo segundo os grupos sociais. Na
Califórnia, por exemplo, a ala direita dos movimentos conservacionistas sustenta que há uma enorme onda de imigrantes mexicanos
que é responsável pelos congestionamentos e pela poluição, o
que é completamente absurdo: não existe população com menor
pegada ecológica ou que tenda a utilizar o espaço público de forma
mais intensa que os imigrantes da América Latina. O verdadeiro
78
(1) Planeta Favela, Boitempo Editorial, posfácio de Erminia Maricato,
2006, 272 pp.)
(2) Black hawk down (Falcão negro em perigo) é um filme dirigido por
Ridley Scott em 2001, que retrata uma força de elite americana enviada
para capturar militares locais durante a guerra civil da Somália (1993).
Mike Davis é prof. no Dpto. de História da Univ. da Califórnia, em Irvine,
editor da New Left Review, ensaísta, jornalista
e autor de Ecologia do medo, Holocaustos
coloniais, e Cidade de quartzo: escavando o
futuro em Los Angeles. Suas publicações são
referências no meio acadêmico. Entrevista publicada originalmente em BLDGblog (//
bldgblog.blogspot.com) e na ComCiência
(www.comciencia.br – tradução livre de Marta Kanashiro da versão em espanhol publicada pelo Instituto Argentino para o Desenvolvimento Econômico - www.iade.org.ar
foto: DR
Claro que a solução deve passar pela própria cidade: as cidades verdadeiramente urbanas são os sistemas mais eficientes, ambientalmente
falando, que criamos para a vida em comum. Oferecem altos níveis de
vida por meio do espaço e do luxo públicos, ou permitem satisfazer
necessidades que o modelo de consumo privado suburbano não pode
permitir-se. O problema básico da urbanização mundial atual é que não
tem nada a ver com o urbanismo clássico. O autêntico desafio é conseguir que a cidade seja melhor como cidade. Planeta favela dá razão
aos sociólogos que assinalaram nos anos 50 e 60 os problemas da
suburbanização norte-americana: ocupação caótica do território, incremento dos tempos de deslocamento do domicílio ao trabalho e dos
recursos associados a esse deslocamento, deterioração da qualidade
do ar e falta de equipamentos urbanos clássicos.
”
TODOS EM GUERRA
CONTRA GAIA
Qual é o canto da Terra que não seja objeto de
conquista e de dominação por parte do ser humano?
por Leonardo Boff
O
cataclismo econômico-financeiro –
fruto de avidez e de mentiras – es
conde uma via-sacra de sofrimento
para milhões de pessoas que perderam suas
economias, suas casas e seus postos de
trabalho. Quem fala deles? Os verdadeiros culpados se reúnem mais para salvaguardar ou corrigir o sistema que lhes garante hegemonia sobre os demais atores
do que para encontrar caminhos com características de racionalidade, cooperação
e compaixão para com as vitimas e para
com toda a humanidade.
Esta crise traz à luz outras crises que, quais
espadas de Dâmocles, estão pesando sobre a cabeça de todos: a climática, a energética, a alimentária e outras. Todas elas
remetem para a crise do paradigma dominante. A situação de caos generalizado
suscita questões metafísicas sobre o sentido do ser humano no conjunto dos seres
em evolução. Neste momento silenciam os
pós-modernos com o seu every thing goes.
Queiram eles ou não, há coisas que têm
que valer; há sentidos que devem ser preservados, caso contrário nos enchafurdamos no mais reles cinismo, expressão de
profundo desprezo pela vida.
Já há tempos que pensadores como Teilhard de Chardin ou René Girard notaram
certo excesso de maldade no caminho da
evolução consciente. Cito um pensamento de Girard, estudioso da violência, quando esteve entre nós em 1990 dialogando
com teólogos da libertação:
“Tudo parece provar que as forças geradoras da violência neste mundo, por
razões misteriosas que eu tento compreender, num certo nível são mais podero-
sas que a harmonia e a unidade. Este é o
aspecto sempre presente do pecado original, enquanto, para alem de qualquer
concepção mítica, representa um nome
para a violência na história”.
Não há por que rejeitar este sombrio veredito. Somente o pensamento da esperança
contra toda a esperança, da compaixão e da
utopia nos oferece com um pouco de luz.
Mesmo assim, há que conviver com a sombra de que somos seres com imensa capacidade de autodestruição, até o último
homem. Há anos uma pesquisa alemã sobre as guerras na história da humanidade,
citada por Michel Serres em seu último
livro “Guerre Mondiale” (2008), chegava
aos seguintes dados:
■ De três mil anos antes de nossa era até
o presente momento, três bilhões e
oitocentos milhões de seres humanos
teriam sido chacinados, muitos deles em
guerras de total extermínio.
■ Só no século XX foram mortas duzentos milhões de pessoas.
Como não se questionar, honestamente,
sobre a natureza deste ser complexo, contraditório, anjo bom e satã da Terra que é
o ser humano?
A GUERRA CONTRA GAIA
Hoje vivemos uma situação absolutamente inédita. É a guerra coletiva contra Gaia.
Até a introdução da guerra total por Hitler
(totaler Krieg), as guerras possuíam seu
ritual: eram entre exércitos. Depois passaram a ser entre nações e entre povos: era a
guerra de todos contra todos. Hoje ela se
radicalizou: é a guerra de todos contra o
mundo, contra o planeta Gaia (bellum
omnium contra Terram). Pois é isso que
está implicado em nosso paradigma civilizacional que se propôs explorar e sugar,
com violência tecnológica, a totalidade
dos recursos do planeta Terra.
Com efeito, atacamos a Terra em todas as
suas frentes, nos solos, nos subsolos, nos
ares, nas florestas, nas águas, nos oceanos, no espaço exterior. Qual é o canto da
Terra que não seja objeto de conquista e
de dominação por parte do ser humano?
Há feridas e sangue por todas as partes;
sangue e feridas de nossa Mãe Terra. Ela
geme e se contorce nos terremotos, nos
tsunamis, nos ciclones, nas enchentes
devastadoras em Santa Catarina e nas secas terrificantes do Nordeste. São sinais
que ela nos está enviando. Cabe
interpretá-los e mudar a nossa conduta.
Esta guerra não será ganha por nós. Gaia
é paciente e com capacidade imensa de
agüente. Como fez com tantas outras espécies no passado, oxalá não decida livrar-se da nossa, nas próximas gerações.
Não nos basta o sonho do filósofo Kant
da paz perpétua entre todos os povos. Precisamos com urgência fazer um pacto de
paz perene de todos com a Terra. Já a atormentamos demasiadamente. Importa pensar-lhe as feridas e cuidar de sua saúde. Só
então Terra e Humanidade teremos um destino minimamente garantido.
■
Leonardo Boff é Teólogo. Artigo originalmente publicado na Agência de Informação Frei
Tito para a América Latina – Adital.
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ÁFRICA
Viveiro de pinhão manso em Kaffrine, Senegal.
Em 2007, foram plantadas as primeiras 35 mil mudas
de centenas de milhares previstas para um projeto de
cultura energética. Foto:Treesftf
A CORRIDA DO “OURO VERDE”
Empresas ocidentais estão comprando vastas extensões
de terra para satisfazerem as necessidades mundiais de
biocombustível. Os governos africanos e os pequenos
proprietários rurais são cobertos de promessas de um
futuro brilhante. Na verdade, tudo indica que estamos
frente a mais uma forma de colonialismo econômico.
por Horand Knaup
80
80
T
udo dará certo. Correção: tudo vai
melhorar. Haverá novas estradas,
escolas, farmácias e até mesmo provisão de água própria. Melhor ainda: serão criados no mínimo 5 mil postos de trabalho. “Se houver trabalhos, então será
bom para nós”, diz Juma Njagu, 26 anos,
que deseja deixar para trás sua difícil existência de carvoeiro.
Njagu vive em Mtamba, uma aldeia com
1.100 habitantes no distrito de Kisarawe,
Tanzânia, aproximadamente 70 quilômetros sudoeste de Dar es Salaam, a maior e
mais importante cidade. Mtamba, acessível por uma estrada de terra, é um lugar
onde as pessoas sobrevivem com um
pouco de agricultura e de pesca e a produção de carvão. Não há muito mais.
Isso pode mudar se a empresa britânica Sun
Biofuels der prosseguimento a seus planos de produção de biodiesel do pinhão
manso (Jatropha curcas), uma planta energética com alto conteúdo de óleo, que espera plantar nas terras de Kisarawe.
O governo da Tanzânia concedeu à empresa britânica o uso de 9 mil hectares (22.230
acres) de terra cultivável nessa região escassamente povoada, ou seja, aproximadamente 12 mil campos de futebol, por um
período de exploração de 99 anos – gratuitamente. Em contrapartida, a companhia
investirá aproximadamente U$20 milhões
(•13 milhões) na construção de estradas e
de escolas, trazendo, assim, um mínimo de
prosperidade à região.
A Sun Biofuels não está só. Na realidade,
meia dúzia de outras companhias dos Países Baixos, Estados Unidos, Suécia, Japão, Canadá e Alemanha já enviaram seus
agentes para a Tanzânia. Prokon, empresa
alemã conhecida principalmente por suas
turbinas de vento, já começou a cultivar
jatropha curcas em larga escala. Ela espera ter brevemente cerca de 200 mil hectares (494 mil acres) plantados – a superfície de Luxemburgo – na Tanzânia.
A Kavango BioEnergy, empresa britânica,
planeja investir milhões de euros no norte
da Namíbia. As empresas ocidentais estão
se implantando em Malawi e em Zâmbia,
onde planejam produzir diesel e etanol a
partir da jatropha curcas, do dendê ou da
cana-de-açúcar. Os investidores estrangeiros estão de olho em 11 milhões de hecta-
oferece
“aosA África
fazendeiros de
energia condições
ideais para seus
objetivos: muita terra
improdutiva e a
baixo preço, títulos
de propriedade
nebulosos e regimes
políticos altamente
influenciáveis.
”
res (27 milhões de acres) em Moçambique
– mais de 1/7 da área total do país – para
cultivarem plantas energéticas. O governo
da Etiópia já disponibilizou 24 milhões de
hectares (59 milhões de acres).
A corrida do ouro explodiu; não só na
África Oriental, mas em todo o continente. Em Gana, a empresa norueguesa Biofuel África conseguiu o direito de plantar
em 38 mil hectares (93.860 acres), e a Sol
Biofuels também está negociando na Etiópia e em Moçambique.
pulacional também exercerão pressão no
hemisfério sul para a conversão de terra
não-produtiva em produtiva.
BIOCOMBUSTÍVEL: LUCRATIVO
FRENTE AO PETRÓLEO CARO
Para os investidores, as plantações energéticas na África são altamente lucrativas. O
petróleo cru se tornar-se-á escasso no futuro próximo, de forma que o biocombustível
fácil de produzir chega no tempo certo. A
um rendimento anual estimado de 2.500 litros por hectare, a Sun Biofuels ficará na
Tanzânia por muito tempo. A produção de
biocombustível torna-se lucrativa quando
o preço do barril de petróleo cru ultrapassa
os U$100 (•69) no mercado mundial.
A África oferece aos “fazendeiros de energia” condições virtualmente ideais para
seus objetivos: terra improdutiva em muitos lugares, baixos preços de terra, títulos
de propriedade nebulosos e, sobretudo,
regimes políticos altamente influenciáveis.
A terra é improdutiva, diz o Ministro da
Energia etíope em Adis-Abeba, capital do
país. “Nada mais que terra marginal”,
confirmam os funcionários do Ministério
de Energia e Recursos Minerais em Dar es
Salaam. “Tudo isto é mais que positivo”,
afirma o administrador de distrito de Kisarawe, responsável pelo projeto da Sun
Biofuels. “Nós convencemos as pessoas.”
Em seu escritório rudimentar, no qual faltam computador e copiadora, ele folheia
os documentos do projeto.
As conseqüências dessa corrida são dramáticas. Os especialistas concordam que
a compulsão mundial pelo cultivo de plantas energéticas é fator preponderante da
explosão global dos preços de alimentos.
Segundo um estudo do Banco Mundial,
até 75 % do aumento podem ser atribuídos a essa mudança nos tipos de plantações. Muitos fazendeiros de países industrializados ficam mais que felizes em aceitarem subsídios governamentais para plantarem milho ou canola, às expensas do cultivo de trigo, de batata e de legumes.
Em nenhum desses lugares, as necessidades dos residentes foram levadas em
conta. Em Gana, a BioFuel África arrancou a concessão de uso da terra de um
chefe de aldeia que não sabe ler, nem escrever. O chefe tribal deu seu consentimento imprimindo no documento sua impressão digital. O jornal semanal Public
Agenda fez lembrar os mais sombrios dias
do colonialismo. Infelizmente, a Agência
de Proteção Ambiental de Gana acabou
com a farra da limpeza do terreno apenas
depois que 2.600 hectares (6.422 acres) de
floresta foram derrubados.
Plantas produtoras de óleo não competem com as terras cultivadas na África —
pelo menos ainda. Os investidores argumentam que estão usando a terra não-produtiva ou subutilizada. No entanto, o custo em alta dos alimentos e o aumento po-
Na Tanzânia, as esperanças também dão margem ao ceticismo acerca das promessas de
que tudo melhorará. Em abril de 2006, a Sol
Biofuels alegou ter recebido aprovação formal para o cultivo em 10 das 11 aldeias afetadas. No entanto, naquele momento, várias
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comunidades nem mesmo
estavam cientes dos planos, enquanto outras haviam colocado condições
para darem seu consentimento. Um líder de aldeia
reclamou, por escrito, à administração do distrito que
a Sol Biofuels tinha limpado o terreno e separado a
terra sem mesmo contatar
os anciões da aldeia.
Com semelhantes promessas atraentes, os pequenos agricultores foram desalojados de suas
terras para darem lugar
a cafezais algumas décadas antes. Nos anos 90,
as companhias mineiras
estrangeiras chegaram à
Tanzânia para prospectarem ouro. “Eles nos
prometeram trabalho,
novos poços de água,
estradas e escolas”, lembra o jornalista Joseph
Shayo. “E o que aconteceu? Nenhuma escola, nenhum poço e poucos postos de trabalho
mal pagos”. Para tornar
as coisas ainda piores,
grandes regiões mineiras foram cercadas e ficaram inacessíveis aos
antigos residentes.
Em Dar es Salaam, Peter
Auge, gerente geral da
Sol Biofuels Tanzânia, recebeu-nos em seu escritório. Trata-se de um sulafricano simpático e de
fala direta. “É verdade
termos sido um tanto reA empresa de biocombustível sueca Sekaba planeja plantar cana-de-açúcar
servados acerca de nosao longo de um rio da Tanzânia. A cultura do biocombustível competirá com
sa política de informaas plantações de subsistência pela água do rio. Foto: Article[25]
ção. Ainda há muitos
senões e tudo o que não
desejamos ver publicado nos jornais é que
to perguntaram sobre os pagamentos de
nosso projeto está atrasado em dois anos.”
indenização, receberam a seguinte resposEm estudo recente, publicado em “Biofuel
ta: “Vocês receberão o que foi acordado”.
Industry in Tanzânia”, o jornalista Khoti KaAuge promete investimentos sociais, emmanga, da Universidade de Dar es Salaam,
bora eles não façam parte dos acordos até
O sistema de Relações Públicas está cada
adverte contra os efeitos colaterais das plano momento. Mesmo quando se aborda o
vez mais ativo, até mesmo em países potações energéticas. A população, Kamanga
item compensação para as pessoas que
bres como a Tanzânia. A sul-africana Joseescreve, é normalmente desinformada sovivem na terra, e que o governo insiste
phine Brennan, chefe de RP da Sekab em
bre o fato de que o cultivo de plantas enerque devam ser indenizadas, os investidoDar es Salaam, só vê para a Tanzânia um
géticas normalmente caminha de mãos dares estão fazendo um excelente negócio.
futuro rosa. O cultivo de biocombustível
das com o deslocamento populacional forAfinal, eles ofereceram o equivalente a
permitirá ao país construir novas escolas e
çado. Segundo ele, é muito provável que a
cerca de •450.000 – preço ridículo para os
estradas, que resultarão em melhores oporprodução de etanol também afete os preços
9 mil hectares (22.230 acres) que poderão
tunidades para a nação. Segundo Brennan,
dos alimentos na Tanzânia, aumentando aindesfrutar durante quase um século.
no futuro, os pequenos fazendeiros tamda mais a dependência do país por alimenbém poderão ganhar mais dinheiro cultitos importados.
Setenta quilômetros mais ao sul, no rio Ruvando plantas energéticas. E apenas isso
fiji, milhares de residentes estão sendo forpermitirá que três milhões de habitantes esEm Dar es Salaam, o governo agora recoçados a se mudarem para darem lugar aos
capem à linha da pobreza. Com seus dois
nheceu que o boom do ouro verde tamprojetos da sueca Sekab: cultivo de canamilhões de hectares de terras cultiváveis, a
bém traz problemas. “As plantas energéde-açúcar, uma plantação altamente conTanzânia, diz Brennan, tem potencial de
ticas não podem ser uma alternativa prosumidora de água, que cobrirá cerca de 9
crescimento semelhante ao Celtic Tiger, da
dução de alimentos”, sentenciou o Presimil hectares (22.230 acres) para, em seguiIrlanda. Ela está convencida de que o mundente Jakaya Kikwete, em resposta ao resda, ser destilada em etanol. Cinco mil hecdo precisa da Tanzânia.
sentimento geral difundido no país em retares (12.350 acres) já foram aprovados.
lação aos altos preços dos alimentos.
Mas as róseas previsões de Brennan
O rio e as terras alagadas ao longo de suas
não refletem o que se pensa na África
Mas os “fazendeiros de energia” permamargens são a única fonte de água potável
Oriental. Um estudo realizado pela
necem insensíveis. Tanto a Sun Biofuels
para milhares de pessoas, especialmente duAgência Alemã para Cooperação Técquanto a Sekab querem ampliar suas prorante a estação seca. A Sekab também planica sobre plantas energéticas na Tanduções para 50 mil hectares (124.000 acres)
neja fechar esse reservatório para irrigar suas
zânia lista um rol de efeitos colaterais
– o mais rápido possível.
■
plantações. Transparência? Inexistente.
negativos. Agrava a questão o fato
Horand Knaup – O texto Green Gold Rush –
Compensação? Nenhuma. Informação? Um
desta não ser a primeira vez em que inÁfrica becoming a Biofuel Battleground foi
artigo escasso. Quando os residentes prevestidores brancos prometem prospepublicado em Spiegel online – www.spiegel.de
sentes ao evento de apresentação do projeridade ao país.
(09/05/2008).
82
?
PARA
ONDE
CAMINHA
A HUMANIDADE
por Roberto Malvezzi (Gogó)
Se as calotas polares vão derreter;
Se o mar vai subir;
Se as cidades baixas vão desaparecer;
Se um bilhão de pessoas vai migrar;
Se vai haver secas, chuvas torrenciais, furacões;
Se em quarenta anos o Pantanal não vai existir;
Se em cinqüenta anos a Amazônia será uma savana;
Se em quarenta anos o Nordeste será inabitável;
Se em cinqüenta anos o São Francisco vai correr apenas em época de chuva;
Se milhões de espécies irão desaparecer;
Se bilhões de pessoas irão morrer;
Se o único lugar habitável do planeta será onde hoje estão os continentes gelados;
Que rumo tem nossa velocidade?
Nossa competitividade?
Nossas tecnologias?
Que adianta saber se o aquecimento global é o óbito do mercado?
Que adianta essa pressão para um desenvolvimento se ele nos leva ao abismo?
Que adianta saber se os sobreviventes cuspirão em nossos túmulos?
Já estaremos mortos e nem o inferno poderá punir essa geração predadora.
Penso em nossos filhos, filhas, netos...
Penso nos que vão morrer à mingua, de fome, sede, calor...
Com um pouco de misericórdia penso na humanidade...
Um pouco mais e penso em todos os seres vivos...
Recuso-me conceder ao capital o poder de exterminar a vida.
Seria sua suprema honra, sua suprema glória.
Creio ainda que Deus existe, age na história e sempre tem uma carta na manga...
Creio que Ele se revela nos pequeninos e nas pessoas magnânimas,
Em quem aprendeu a cultivar os solos,
A captar a água de chuva,
A preparar e repartir seu próprio pão,
A viver uma vida simples,
Em quem faz ciência, arte, política e economia a serviço da humanidade,
Quem não desperdiça e nem agride as pessoas e a natureza.
Em todas as épocas Ele suscitou pessoas à altura de seu tempo.
Não vai nos faltar agora,
Quando a humanidade mais Dele precisa.
Foto:Antonio Cruz/ABr
Roberto Malvezzi (Gogó) é Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra – CPT
Publicado originalmente em www.EcoDebate.com.br - 09/01/2007.
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