Viso · Cadernos de estética aplicada
Revista eletrônica de estética
ISSN 1981-4062
Nº 15, 2014
http://www.revistaviso.com.br/
Sobre Heidegger e a desestetização da arte
Luiz Camillo Osório
Viso · Cadernos de estética aplicada n.15
2014
RESUMO
Sobre Heidegger e a desestetização da arte
Esse artigo é uma réplica ao texto de Virgínia Figueiredo intitulado "O paradoxo sublime
ou a alforria da arte".
Palavras-chave: Lacoue-Labarthe – Heidegger – Kant – sublime
ABSTRACT
On Heidegger and the Disaesthetization of Art
This paper is a critical response to Virgínia Figueiredo's "The Sublime Paradox or the
Enfranchisement of Art"
Keywords: Lacoue-Labarthe – Heidegger – Kant – sublime
Sobre Heidegger e a desestetização da arte · Luiz Camillo Osório
É um prazer continuar esta longa conversa com a Virgínia Figueiredo. Nossa troca de
ideias começou em torno da crise da modernidade e desdobrou-se em reverberações
mais locais, indo tratar do que denominei de altermodernidade brasileira. Seus
comentários ao meu texto ajudaram-me a rever muitos pontos, aprofundá-los e dar-lhes
mais densidade. Fica aqui outra vez o meu agradecimento por esta troca e, à Revista
Viso, pela contribuição significativa aos estudos de estética, crítica e filosofia da arte no
Brasil.
De certo modo, é ainda em torno da crise da modernidade e das questões trazidas à luz
pela época moderna que nossa discussão prosseguirá aqui, pondo em foco seu apelo à
desestetização da arte e sua aposta, profundamente heideggeriana, em uma
reivindicação ontológica do acontecimento artístico. Esta vinculação entre a arte e o
acontecimento da verdade, o pôr em obra da verdade, implica separá-la da sua
dimensão estética, vista aqui enquanto mero apelo à vivência subjetiva de um
sentimento. Em suma, para a arte ser um acontecimento da verdade ela precisaria se
desestetizar – este é o ponto do Heidegger que Virginia segue mesmo tomando um
caminho original. O diagnóstico comum é que a arte havia se fechado em uma
experiência esteticista, autorreferenciada, subjetiva, abandonando sua potência de
criação de mundo, sua força política capaz de instaurar historicidade.
Antecipando o ponto ao qual gostaria de chegar nesta discussão e que até certo
acompanha a tese da Virginia, eu diria: como repensar a noção de verdade para torná-la
um acontecimento instaurável pela arte? Todavia, e aqui tomo outra direção, será que
para isso precisamos retirá-la do âmbito da estética? Ao fazer a pergunta sobre qual
noção de verdade cabe reescrever depois da metafísica, caberia também se perguntar:
qual estética podemos constituir que não se reduza ao jogo entre subjetivismo e
objetivismo, que não persista nos termos redutores da oposição entre
experiência/vivência subjetiva de um lado e critérios poéticos objetivos de outro? Como
pensar uma noção de verdade que possa ser posta em obra e que não recuse o
aparecer em sua dimensão estética?
Vamos primeiro seguir os passos da desestetização proposta no texto da Virginia para,
em seguida, avançarmos com alguma interrogação. Desestetizar a arte seria o
prolongamento da destruição da metafísica, uma vez que a estética é filha da metafísica.
Dois autores são convocados pela autora nesta trilha: Benedito Nunes e LacoueLabarthe.
A arte enquanto vinculada à estética estaria restrita ao âmbito da subjetividade. Para
superar este aprisionamento, ela retoma os passos de “A origem da obra de arte”, tendo
em vista, como já dito, a necessidade de retomada da equação entre a obra de arte e o
acontecimento da verdade. A verdade deixaria de “ser proposicional (verdadeiro x falso,
erro) – adequação da proposição com o ente –, para se tornar desvelamento (alétheia)
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Construir é reunir elementos homogêneos;
fundar é unir elementos heterogêneos
George Braque
Há no deslocamento desta noção de verdade, em que ela, a verdade, sempre se
manifestaria junto a algo que fica velado, em que ela não se revela completamente, um
movimento paralelo que a desloca de um âmbito teórico para outro prático, em que a
“liberdade é a própria essência da verdade”. O aparecer da verdade deve se dar em um
campo pré-teórico, prático, junto ao mundo e às coisas mesmas, como foi tratado por
Heidegger na primeira parte de Ser e tempo.
Segundo Virginia, e este é um ponto muito significativo de seu texto, esta noção de
verdade seria “tão não representacional como participativa”. Esta noção de participação
com a verdade e pela verdade é o que permitiria instalar um mundo, dando à obra que a
atualiza e a desvela “uma potência que é inegavelmente política, histórica. A arte irrompe
como instaladora ou fundadora de um mundo”.
Depois de citar a passagem em que Heidegger descreve o templo grego e sua
capacidade de instalar o conflito produtivo entre Mundo e Terra, o texto de Virginia vai
destacar dois aspectos determinantes para se pensar o caráter acontecimental da obra:
1 – o fato de ela, a obra, congregar em torno de si a unidade das vias e relações, ou
seja, fundar, inaugurar as relações possíveis por ela postas em obra; 2 – que essas
relações são sempre mundanas, ou seja, históricas.
Em seguida, em uma guinada extremamente ousada, cita uma passagem do artista
brasileiro Hélio Oiticica sobre o processo criativo que iria ao encontro do caráter
acontecimental de Heidegger, atualizando-o no contexto artístico contemporâneo.
Escreve o artista:
eu acho que o trabalho criador não é nem sintoma nem reflexo da sociedade. Pode ter
alguns sintomas e alguns reflexos, mas não é uma coisa nem outra. Eu acho que o
trabalho criador propõe uma nova sociedade. É exatamente aí que eu acho que todo
esforço criador tem um lado marginal, um lado marginalizado, é uma coisa que nunca
está condicionada ao que existe, ao que é, ao status quo.
A meu ver, o não condicionamento da arte ao que já se sabe, ao que já existe, é o que
compromete o espectador1, no interior do próprio regime estético da arte, e o faz
responsável pela criação, comprometendo-se com ela, tornando-se parte implicada no
seu devir histórico. Não seria esta condição à margem da obra – ou da Grande Arte –
algo que se constitui a partir da passagem moderna para o regime estético da arte?
Neste regime não há nada que garanta, no pôr em obra, uma verdade, um sentido, que
seja anterior à experiência dela, que seria constituída desde uma cosmologia totalizante
que definiria as formas de mediação entre “aquele que produz a obra e aquele que dela
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ou verdade do ser”. Seguindo o argumento do filósofo paraense, o que diferenciaria
Heidegger tanto da tradição clássica racionalista como da romântica irracionalista seria a
aposta no acontecer e, sendo assim, ele seria primeiramente um acontecimento histórico
e temporal; além disso, ele faria parte da própria História do Ser – deslocando, como já
dito, a concepção tradicional da verdade pensada como adequação e não como
desvelamento.
Para Virginia, tanto Heidegger como Oiticica estariam tirando a arte do domínio da
estética para situá-lo na ordem do Ser, da ontologia: como um acontecimento histórico e
POLÍTICO. A introdução desta dimensão política seria a leitura contra Heidegger
proposta por Lacoue-Labarthe que é o ponto original da leitura desestetizante,
ontológica, da arte. A virada interpretativa original dar-se-ia pela proposta de outro modo
de considerar o aparecer não mais enquanto “apreensão eidética do ente”, mas como
“apreensão fântica da presença”. Esta última apreensão seria um momento do aparecer
anterior à submissão eidética. Seria este aparecer fântico anterior ou apenas diferente do
aparecer como submissão eidética do ente? O aparecer fântico, e aí ele se diferencia da
apreensão eidética, bastar-se-ia enquanto aparecimento de algo que se dá aqui e agora,
em que algo se dá sempre momentânea e simultaneamente, que nos faz demorar junto à
singularidade de uma presença. É a fascinação por e a concentração no que aparece, na
sua indeterminabilidade e necessidade.
O ponto principal da interpretação da Virgínia e que me parece problemático é
justamente esta identificação inexorável entre o eidético e o estético, levando-a a
considerar esta apreensão fântica como necessariamente desestetizada, ontológica. Por
que razão “desplatonizar” a estética significa sair da estética? Por que estaria toda
estética necessariamente dominada pelo platonismo que submete o aparecer à ideia do
que aparece? Em vez de desestetizar o aparecer originário, gostaria de resgatar sua
potência estética não eidética como fundadora de novos horizontes históricos, sempre
abertos e não totalizantes, para o mundo. Ou seja, o aparecer originário ainda se daria
no âmbito da estética. Como propõe o filósofo Martin Seel em livro muito inspirador,
intitulado Estética do aparecer, caberia diferenciar o aparecer da aparição. 2 Nos termos
aqui propostos, eu acrescentaria: diferenciar o aparecer estético da aparição eidética. O
primeiro lida com o fenômeno e se manteria nele, no livre jogo potente e vivificante do
seu aparecer enigmático; já a aparição reconhece na coisa vista algo além dela, que já
reduziu/reconheceu a coisa vista enquanto algo, subsumindo-a a um eidos, a um
conceito. O aparecer estético não se deixa deslocar de um momento particular e sempre
situado da presença para submetê-la e subsumi-la a algo já conhecido, que enquanto
forma genérica não se mostra como presença sensível, mas como conceito. Neste
processo eidético (aparição) o sujeito não se compromete com a coisa vista, não se
deixa fascinar pelo visível, pois este já se adequou no (re)conhecimento; já no aparecer,
a percepção estética é um jogo que jogamos e que se joga conosco. O livre jogo da
imaginação e do entendimento, que vivifica a alma, não se deixa consumir com o tempo
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usufrui”. Esta mediação entre uma poética e uma estética é o próprio da mímesis. O
regime estético inaugura um endereçamento aberto, visando qualquer um – não
necessariamente todos – que se ponha no interior da experiência constituída pelo
acontecimento indeterminado do belo ou da arte. O que se funda a partir da obra não se
evidencia para todos, não se deixa apreender objetivamente, ficando como uma
insinuação que se impõe para aquele que dela participa e, a partir dela, se reinventa
junto ao mundo. O pôr em obra da verdade é um acontecimento que mobiliza e se
inscreve virtualmente para qualquer um que dela possa participar. As condições desta
participação são um problema à parte que não cabe aqui discutir.
Isto me parece importante também para “salvarmos” o belo. Em outro passo coerente
com seu argumento desestetizante, Virgínia, seguindo ainda Lacoue-Labarthe, vai
pensar este acontecimento fântico como mais próximo do sublime que do belo.
Caracterizando o aparecimento como esplendor (ekphanéstaton), Lacoue-Labarthe
“insere o sublime (que aqui generalizaremos para toda e qualquer Grande Arte), como
uma possibilidade de apreensão desse acontecimento que é o aparecer do ente, de um
modo totalmente diferente, liberado da apreensão eidética”, sugerindo então que este
aparecer do sublime dar-se-ia como “apreensão fântica da presença” que Virginia traduz,
com originalidade filosófica e coerência argumentativa, como apreensão alethéica da
obra de arte. Como sublinhei acima, não vejo necessidade desta preferência; preferiria
pensá-lo na chave deste aparecer estético anterior ou paralelo à determinação eidética.
A imaginação aí, para usarmos os termos kantianos, não se deixa determinar pela ordem
representativa da adequação, mas se liberta na produção conjunta e indeterminada de
ideias estéticas.
Para Lacoue-Labarthe, tratar-se-ia de retomar Kant como momento isolado da história da
estética em que seria possível falar de uma apreensão não eidética do aparecer que nos
deixaria afirmar a dimensão ontológica – não estética – do acontecimento da arte. Mas
por que não pensar uma dimensão não eidética da estética, ainda no âmbito do belo, em
que o aparecer mantém-se como lugar de combate e de instauração de possibilidades
não medidas segundo o que já se sabe, mas como via inaugural de novas relações de
sentido – território do risco, da experimentação, da contingência?
É aí, seguindo a relação entre a política e o estar à margem de Oiticica, que percebo
uma política da estética. Na trilha de Jacques Rancière, esta seria o lugar onde se criam
relações inauditas que modificam o regime do visível, do dizível e do pensável. A
dimensão política, contra Heidegger, deveria desmontar a aproximação que este faz
entre a Grande Arte e a necessidade absoluta, contida no mesmo capítulo discutido por
Lacoue-Labarthe do livro sobre Nietzsche. Cito-o: “A grande arte não é grande apenas
por meio da elevada qualidade do que é criado, mas por meio do fato de que ela é um
carecimento absoluto (ou necessidade absoluta)”. Este aparecer fântico, na
modernidade, estaria fadado a fundar uma ontologia do não absoluto, da contingência,
da heterogeneidade, em que o que se põe em obra rasura, desloca, desfaz os modos de
ver estabelecidos, produzindo outro aparecer – heterogêneo, múltiplo, que, ao mesmo
tempo, constitui sujeitos não-identitários e plurais.
Manter-se no âmbito da estética – e do belo - é manter-se neste território do conflito, do
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da experiência. Pelo contrário, potencializa-se e se recria na retomada reflexiva, faz com
que o belo, longe de ser vivência interior passageira, nos ponha sempre fora de nós,
dispõe-nos junto ao mundo que brilha no aparecer. Assim sendo, proporia, em vez da
divisão apontada pela Virginia (na trilha de Lacoue-Labarthe) entre um aparecer estético,
sempre eidético, e outro, mais arcaico, ontológico, uma divisão diferente, alternativa a
esta – ou estética ou ontologia – que seria um desdobramento da distinção proposta por
Martin Seel, a saber: aparição eidética e aparecer estético.
* Luiz Camillo Osório é professor do Departamento de Filosofia da PUC-RIO e curador do
MAM-Rio desde 2009.
Mantenho aqui o termo espectador, que não agradava a Oiticica, mas o faço tendo em vista
requalificar este lugar, retirando dele toda e qualquer passividade. Faço isso, seguindo
indiretamente a Kant, Hannah Arendt e Jacques Rancière.
1
“A reivindicação contra a subjetivação da estética (em Heidegger) não corresponde, em absoluto,
a uma objeção contra a preeminência do aparecer estético. Pelo contrário, o que se almeja é um
conceito adequado deste aparecer”. SEEL, M. Estética del Aparecer. Buenos Aires: Katz editores,
2010, p. 28.
2
BAUDELAIRE, C. “Exposition Universelle, 1855”. In: Écrits sur l’art. Paris: Librairie Générale
Française, 1992, p. 168.
3
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não absoluto, em que a política se faz ontologia deslocando-se do âmbito do ser para o
do devir. Isto, a meu ver, faz justiça ao juízo estético kantiano que vê na beleza o lugar
em que um sentimento subjetivo – eu sinto – deslizaria, como se fosse universal, para o
compartilhamento dissensual do comum. Um comum problemático e conflituoso. Lugar
constituído por qualquer um que se deixe atravessar pelo aparecer singular da arte e,
através dele, se ponha, junto aos outros, na verdade contingente que ali se mostra e se
transforma. Esta disputa é a constituição política do belo kantiano, desdobrado por
Schiller, que nos faz falar, nos expõe aos outros na indeterminação do mundo – não se
trata do silêncio admirado e avassalador do sublime. Enfim, concluindo meu comentário,
o que proponho é a retomada do belo na sua estranheza e indeterminação (le beau est
toujours bizarre3) para assim requalificar o aparecer estético depois da metafísica e das
vanguardas.
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